sexta-feira, 22 de julho de 2011

Somos o que lemos...


                                                                                                              Somos o que lemos
     E quanto nos reconhecemos


De chofre, um pensamento deteve-se em minha alma: o que lemos revela muito o que somos. E creio não enfadar o leitor, se eu lhe disser, mais uma vez, que este texto resulta da confluência de alguns pensamentos ao meu coração, no momento em que, como de costume, detinha-me na leitura de alguns livros.
Custa-me, neste momento, domar os pensamentos e o entusiasmo; aqueles, indisciplinados, parecem digladiar-se por um lugar no papel; este comove-me a alma a não protelar mais as palavras que, agora, vão tomando forma. Manterei, contudo, a serenidade para que os pensamentos não me saiam atropelados, atabalhoados ou embaraçados. Uma parada ou outra no dicionário é necessária para me certificar da exatidão de minha expressão.
Retomo a tese, em itálico, anunciada acima. Intento escrever sobre minha relação com os livros, ou, mais propriamente, minha relação com a leitura; e me esforçarei por entender como o que leio toca-me intimamente, ou, se o preferirem, toca a minha personalidade.
Começarei externando uma crença – talvez, possa parecer falsa, ou um disparate, ou um preconceito (no sentido positivo – ou seja, um prejulgamento que pode não corresponder aos fatos). Todavia, escusar-me-ei de excessivo cuidado, já que mentes mais brilhantes já produziram despautérios. A crença se expressa nesses termos: é possível que as pessoas que buscam auxílio psiquiátrico sejam pessoas dotadas de maior profundidade psicológica. Que entendo eu por “profundidade psicológica”? Entendo a qualidade daqueles que são emocionalmente mais densos, intensos e intelectualmente mais inquietos. Inquieto me parece uma palavra adequada, porque nos permite inferir a negação do conformismo, o sentimento de revolta que, como tal, busca estender a justiça a todos. Revoltado não se confunde com ressentido; este quer que o mal que sobre si recaiu recaia também sobre o outro; o revoltado, ao contrário, ao negar o status quo busca converter as condições de injustiça em condições mais justas, portanto, favoráveis a toda uma comunidade.
É possível que me repliquem, argumentando-se que as pessoas psicologicamente mais ‘profundas’ são as mais frágeis e que, portanto, a fragilidade psicológica é que leva essas pessoas às sessões de análise. Decerto, a fragilidade é consequência dessa profundidade, visto que essas pessoas absorvem mais a vida, não vivem à sua superfície. No entanto, minha crença, ainda que não atestada, por isso mesmo, chamo-a de hipótese, é respaldada em observações corriqueiras. Por exemplo, há pessoas que, por serem tolas, sequer cogitam da ideia de que precisam de análise (embora precisem) e passarão a vida toda supondo que ir a um/uma psiquiatra é uma necessidade dos fracos, fragilizados e sensíveis. Mas, convém inverter essa relação: ir a um/uma psiquiatra, uma vez reconhecida a necessidade, é próprio dos fortes e corajosos, pois estes não evitam o confronto consigo mesmos. Esse confronto é o confronto com o seu próprio absurdo, com o seu próprio escuro, obscuro, desconhecido. Na análise, o paciente se revela a si mesmo, se reconhece; faz aparecer à consciência alguém que ficara esquecido, como num quarto escuro pequeno e úmido.
De qualquer modo, a ajuda de uma psicóloga ou psiquiatra é, decerto, muito proveitosa e indispensável no momento em que nossa inquietude intelectual nos põe diante de um abismo: a consciência de que existimos, de que fomos arremessados à existência, ao nascer; enfim, a consciência do seu absurdo. E absurdo aqui, devo insistir – porque é palavra muito repisada nos discursos vulgares – é, no sentido existencialista, a impossibilidade de a existência dos homens e do mundo ser justificada racionalmente, bem como a impossibilidade de que tenha um sentido. O absurdo nos afirma: você existe. E, de repente, reconhecemos este fato. O assombro acompanha-se de uma questão “O que fazer?”. Assumir a completa liberdade, diria Sartre, porque “estamos condenados a ser livres”. O absurdo faz o mundo cair sobre nós. E, a menos que façamos algo a respeito, continuaremos a levá-lo sobre as costas durante toda a nossa breve vida.
É claro que as experiências em que nos envolvemos modificam-nos de algum modo; seus efeitos podem ser negativos ou positivos; entretanto, o que nos importa mesmo é o modo como reagimos a esses efeitos. Todas a experiências confluem para que alcancemos um amadurecimento maior, mesmo aquelas que, durante um breve período de tempo, tenham nos alegrado, mas que, passado esse tempo, já não possamos delas desfrutar. É o movimento da vida incessante; e nesse ir e vir de pessoas, instantes, situações, circunstâncias, emoções, desejos, paixões, amores, o desafio que nos impõe a vida é a de permanecermos intactos. Em outras palavras, o que somos deve permanecer, a despeito do devir, a que Heráclito sustentou com seus pensamentos.
Percorri até aqui um caminho, aparentemente, desviante da questão principal, sobre a qual decidi me debruçar, a saber, a minha relação com a leitura. Nossa relação com a leitura também passa por um amadurecimento, que, na realidade, depende do nosso amadurecimento. Mas é preciso reconhecer a leitura como uma experiência dentre as outras. Essa experiência, ou melhor, a forma dessa experiência, a sua complexidade, variará à medida que crescemos, que aprendemos, que lemos mais, que tornamos nossa socialização mais enriquecedora culturalmente. Por exemplo, a criança que toma gosto pela leitura, desde cedo, cultiva a sua imaginação, experiencia um "mundo" fantástico, desenvolve sua criatividade, reconhece no livro o seu universo infantil. Na (pré-)adolescência, é o mistério, a aventura, a descoberta, as inseguranças típicas dessa fase que podem atrair o jovem à leitura.
A escola e a universidade desempenharão, evidentemente, um papel fundamental na orientação de nossas leituras. É quando tomamos contato com os clássicos da literatura, com textos mais complexos e variados. Entretanto, muito do que lemos nesses espaços são exigências curriculares. Não estou interessado aqui em pensar na leitura feita por alguma espécie de exigência.
Já insisti, em outras ocasiões, que ler deve ser encarado como uma necessidade. A leitura preenche uma carência, a saber, a carência de conhecimento. Se pudermos escolher o que queremos ler, essa carência torna-se a satisfação de um prazer.
Eu tenho prazer enquanto leio. O que leio me acalenta, me atrai irresistivelmente; há paixão quando leio; há desejo inelutável de me apropriar do conhecimento que outras mentes estão a me proporcionar. Não se conclua daí que eu seja um leitor passivo, porque, ao ler, questiono, faço observações junto ao parágrafo ou no rodapé da página; grafo um sinal de interrogação, ou mesmo fico especulando (falando comigo mesmo), como se eu estivesse debatendo o tema diante de um auditório. Portanto, eu interajo com o autor. Trata-se do que se costuma chamar de agente-leitor.
O que os livros revelam sobre nós? Devo reconhecer que, toda vez que entro numa livraria, ou compro livros pela internet, eu já tenho em conta quais os livros que quero comprar. Alguns títulos me aparecem em livros que estou lendo; às vezes, não dispondo dos títulos, recorro aos livros pelo tema com que me deparo. E os temas, em geral, me inquietam.
Junto a mim tenho, agora, os seguintes livros, alguns dos quais comprados recentemente:

Ateísmo e Revolta – Os manuscritos do padre Jean Meslier (autor: Paulo Jonas de L. Paiva)

Evangelhos Perdidos – As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer (autor: Bart. D. Ehrman)

Histórias Íntimas – Sexualidade e erotismo na história do Brasil (autora: Mary Del Priore)

História da sexualidade –  (autor: Peter N. Stearns)

História da sexualidade (vol.2) -  (autor: Michael Foucault)

Eros e Civilização – uma interpretação filosófica do pensamento de Freud – (autor: Herbert Marcuse)

Não custará ao leitor reconhecer que as obras elencadas aqui versam sobre dois temas que me são caros: religião  ou a sua negação (ateísmo) e a sexualidade. Dois fenômenos que tocam a mim de modo muito peculiar; aliás, temas que são recorrentes nas sessões de análise, que o digam os psiquiatras. E devemos reconhecer-lhes o peso: a busca por uma justificação sobrenatural de nossa vida e o desejo de experienciar uma sexualidade plena, sem o peso da repressão, ou seja, o desejo de proteção transcendente e o desejo sexual devem ser legitimados, muito embora, infelizmente, este último sucumba às tolices doutrinárias na base das quais aquele se sustenta.
Acrescidos a estes livros, estão outros que versam sobre o feminismo. Meu interesse era entender as reivindicações e conquistas da mulher. E um deles, intitulado de A volta da Deusa – Feminismo e religião, merece ser citado pela sua relevância. Trata-se de um livro que inclui temas como misogenia e suas variedades, a homossexualidade e a religião, bem como a polaridade dos sexos; as fronteiras da pornografia; a história do beijo, entre outros.
Sinto-me, às vezes, distante do universo masculino, pelo menos naquilo que ele tem de mais grosseiro e instintivo. Eu já escrevi ter uma alma feminina, se é que isso signifique alguma coisa. Veja-se, a propósito, o que nos ensinam sociobiólogos a respeito da natureza da sexualidade humana. Em A História da sexualidade (2010), lemos na Introdução o seguinte:

“Os sociobiólogos acrescentariam alguns outros elementos básicos à sexualidade humana. Eles apontam que, como outros animais, existem significativas diferenças de gênero. Alguns afirmam que os machos, constantemente produzindo novas quantidades de esperma durante seus anos férteis, são “naturalmente” propensos a ter mais relações sexuais, com o maior número possível de parceiras diferentes, para espalhar sua herança genética; já as mulheres, por outro lado, com um estoque limitado de óvulos e o fardo de ter de carregar o filho antes do nascimento, acham importante limitar seus parceiros e se empenhar para assegurar a estabilidade de sua prole. De acordo com esse argumento, existe uma distinção inata, que também terá implicações sociais: homens mais ávidos, mulheres mais reticentes.”
(p. 12)

Pensemos na questão sem o peso de nossa herança de valores, preceitos morais e preconceitos (embora isso seja quase impossível). É claro que a sexualidade é atravessada pela dimensão biológica e socio-cultural. O longo processo civilizatório do homem, como, aliás, já o havia notado Freud, trouxe complicações para a sexualidade humana. Sabe-se que a cultura se torna possível senão pelo sacrifício do instinto ou impulso de prazer no homem. Para Freud, a cultura coage tanto sua história social como biológica. Assim, a história do homem é entendida, pelo pai da psicanálise, como a história de sua repressão.
Mas essa explicação sociobiológica dá conta de toda a dimensão da sexualidade humana – uma dimensão complexa, já que envolve não só apetite, mas afetividade, desejos mais íntimos, como o de proteção, cuidado, cumplicidade, companheirismo, além, é claro, das formas sociais, antinaturais e irracionais de interdição/ repressão? É certo que muitos homens, talvez, sejam protótipos do comportamento sexual masculino, segundo a explicação que dele dão os sociobiólogos, e não há por que fazer qualquer avaliação negativa nesse tocante. Desde que o sexo seja consentido, não me oponho a relações sexuais determinadas pelo imperativo da libido. Se apenas os corpos estão de acordo e os corações cientes desse acordo, que celebramos o prazer sexual! E aqui calemos as histerias religiosas com a lição do padre ateu Meslier. Quem desejar conhecê-la leia o livro. O que nos lembram os estudiosos é a importância de reconhecer o domínio do sexo: no corpo, na libido; as complicações surgem quando a alma se intromete, quer por estar imersa em ideias exorbitantes, quer por estar coagida, confusa e conflituada pelo peso de preceitos morais conservadores.
O que esses livros revelam sobre mim? Um desejo de liberdade, de libertação, de calar a infelicidade que me legou meu coração, de ser mais de mim mesmo, de ser eu mesmo meu próprio destino, sem subterfúgios nem ilusões da perpetuação de nossa infantilização.





2 comentários:

  1. A essência do que lemos sempre reflete na alma... Tenho um amigo poeta que diz:
    “Ler é expandir o espírito, é abrir os olhos da alma para contemplar a luz do conhecimento, sob a névoa da ignorância que gera conformismo. Ler é poder transgredir”. (BAR)

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