segunda-feira, 10 de setembro de 2018

"O destino conduz o que consente e arrasta o que resiste". (Sêneca)


                       
                     Imagem relacionada
                     

                                 O mundo estoico

O estoicismo chama mundo de Natureza ou deus: a natureza é divinizada; e o divino, naturalizado. O divino (theion) é, a rigor, a ordem, a estrutura do universo, o cosmos. A física estoica afirma a total imanência do divino à natureza (natura sive deus). Cosmologia e teologia são, portanto, indissociáveis. É por isso que a felicidade dos homens depende do ajuste de sua vida a esta ordem divina em relação à qual a própria vida humana se ordena e ganha sentido. Os estoicos nos convidam a contemplar ( théion orao ou “eu contemplo o divino”) essa ordem divina do mundo, a conhecê-la como condição necessária para a adesão a esta ordem. Quando bem ajustados estão os homens ao cosmos divino, podem eles desempenhar a função que nele lhes é atribuída, encontrando nele seu lugar próprio para cultivar os talentos que lhes são próprios. Portanto, a vida boa, para um estoico, consiste em adequar-se à ordem divina do mundo, em ficar em harmonia com a harmonia do universo.
É importante dizer que o divino dos estoicos não é transcendente, não se situa num além, não é um deus para quem destinamos preces, orações, mas se confunde com a própria ordem do mundo, ou melhor, é essa ordem, harmoniosa e perfeita, radicalmente superior e exterior aos homens, os quais a descobrem, pelo menos enquanto filósofos, maravilhados. O cosmos se diz divino em virtude dessa sua superioridade radical em relação aos seres que dele fazem parte, mas deus é imanente ao cosmos, ao mundo, à natureza.
O mundo, no estoicismo, se organiza segundo dois princípios indestrutíveis: um princípio passivo (tó páskon), a matéria ou substância sem qualidades; e um princípio ativo (tó poioun), a razão ou o logos, que age sobre a matéria, que é a essência (ousia) ou substância eterna, que só se manifesta na medida em que é informada pelo lógos. Mesmo o princípio jamais aparece desvinculado da matéria, mas só por meio dela. O mundo é composto de indivíduos totalmente diferentes; nele não encontramos jamais dois seres rigorosamente semelhantes. Cada ser é um indivíduo. E todo indivíduo é um corpo, que possui uma tensão interna (tónos), uma maneira de ser. Essa maneira de ser se expressa como estrutura ou coesão (héxis) no mineral; como natureza (phýsis) no vegetal; como alma (psyché) no animal; como espírito (nôus) no homem. Todo ser é uma héxis, uma phýsis, um psyché e o homem ainda se caracteriza por uma quarta maneira de ser que lhe é própria, o nôus.
Para o estoicismo, portanto, no mundo, só há corpos: a alma e o espírito são corpos; o dia e a noite são corpos; deus é um corpo, etc. Os corpos são indivíduos, que se inter-relacionam, que se interprenetram, que se comunicam uns com os outros em relações de simpatia ou antipatia. Mas há também os incorporais, que são quase-seres, que não existem propriamente, mas subsistem como efeitos das relações entre os corpos. Os incorporais têm um mínimo de existência. São incorporais o exprimível, o vazio, o lugar e o tempo.
O logos é um princípio imanente e divino, é inteligência e razão, que tudo ordena. Tudo é rigorosa e profundamente racional. Consoante ensina Reale, “tudo é como a razão quer que seja e como não pode não querer que seja, e o conjunto de todas as coisas é perfeito”[1]. Destarte, os estoicos pensavam a ordem do mundo, em última instância, segundo um finalismo universal. A Providência estoica, que nada tem que ver com a providência de um deus pessoal, é ela mesma esse finalismo universal: trata-se da convicção de que todas as coisas foram feitas pelo logos, segundo uma necessidade e em conformidade com o que é bom. Essa Providência não é transcendente, mas imanente, coincidindo com a alma do mundo, com o próprio mundo. Sob outro ponto de vista, essa Providência imanente e física é pensada como destino (heimarméne), “como necessidade inelutável”.[2]
Para os estoicos, o Destino é a própria natureza, ou “(...) a série irresistível de causas, a ordem natural e necessária de todas as coisas, o indissolúvel nó que liga todos os seres, o lógos segundo o qual as coisas passadas aconteceram, as presentes acontecem e as futuras acontecerão”[3]. Os estoicos concebem o Destino, portanto, como uma realidade natural, inscrita na ordem do mundo ou da vida que anima a totalidade do universo. O destino não é uma força transcendente que governa a vida humana à revelia dos indivíduos. O destino é a ordem e a conexão naturais de todas as coisas, o nexo causal necessário ou, segundo Deleuze, “a unidade das causas entre si (...) na extensão do presente cósmico”[4]. Não há, para um estoico, acaso ou contingência no universo. Tudo é necessário, porquanto o destino é também uma força cósmica e divina, o lógos vital, sopro divino, tensão que organiza e contém o todo. Por isso, o começo da sabedoria humana supõe a tomada de consciência do destino ou da necessidade universal e se desenvolve até realizar-se plenamente na submissão humana ao destino, isto é, no assentimento voluntário à necessidade, à vida que une todos os seres. Eis o que significa viver em conformidade com a natureza.
Sem pretender descer a pormenores sobre a aporia que resulta da admissão conjunta da rígida determinação de todo acontecimento e da admissão da liberdade humana, gostaríamos de dar a saber, em linhas gerais, como os estoicos explicaram a liberdade do sábio. Segundo os estoicos, a liberdade dos sábios consiste em conformar-se com o Destino, mas isso não significa resignação (Deleuze, aliás, nos advertirá disso ao pensar o homem livre como aquele que quer o acontecimento). O viver estoico em conformidade com o Destino ou com a Natureza não é a resignação do homem sofredor que aceita lamentoso seu padecimento. O sábio estoico quer juntamente com o Destino aquilo que o Destino quer. Liberdade aqui é “racional aceitação do destino”[5]. Como o Destino é lógos, uma vez queiramos aquilo que quer o Destino, queremos o que quer o lógos, de modo que “liberdade (...) é levar a vida em total sintonia com o lógos[6] . Sêneca, em Da tranquilidade da alma, diz-nos o que significa o desprendimento do sábio:

Aquele que temer a morte não fará jamais obra de homem, mas aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governará sua vida em conformidade com esta decisão e por prêmio terá a vantagem, graças a este mesmo rigor de alma, de jamais se deixar surpreender por qualquer acontecimento que surja.[7]





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COLEÇÃO Os pensadores. Antologia de textos: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca. Trad. Agostinho da Silva et.al. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.


REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.




[1] Reale, 2011, p. 57.
[2] Ibid., p. 60.
[3] Ibid.
[4] Deleuze, op.cit., p. 5
[5] Reale, op.cit., p. 63.
[6] Ibid.
[7] Sêneca, 1988, p. 207.

Nenhum comentário:

Postar um comentário