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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

“O importante não é viver, mas viver bem” (Sócrates)


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                   Sobre o modo de vida superior


Começo por colocar aquilo que me proponho dizer em perspectiva. Não acompanho Deleuze, ao sustentar que “o filósofo é o amigo do conceito”. Não pretendendo fazer aqui um  arrazoado crítico da concepção deleuzeana de filosofia, contento-me em afirmar meu completo desacordo com Deleuze no que tange à redução que faz da filosofia a uma atividade de produção de conceitos. O filósofo não é mero criador de conceitos, embora criar conceitos faça parte de seu trabalho. Mas Deleuze não capta o que me parece ser o essencial da vida filosófica, do modo de ser ‘filosófico’.
Concordo, por outro lado, terminantemente, com Pierre Hadot, ao advogar que a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser. A filosofia era experienciada na Antiguidade como "maneira de viver". Disso se segue que o filósofo é, ao mesmo tempo, aquele em cujo ser se exterioriza a maneira de viver filosófica e o guardião do modo de viver filosófico. Tendo a acreditar também que a filosofia, conquanto, originalmente, pretendesse conquistar as esferas da vida cotidiana, apresentando-se como uma série de questões formuladas por Sócrates ao homem comum, habitante e transeunte do "mundo da rua", ela, a filosofia, é uma experiência espiritual aristocrática. Não creio na possibilidade de "democratização da filosofia". Nem todos são capazes de filosofar. Pode-se discutir as razões por que a filosofia não é uma experiência acessível a todos; mas dificilmente se poderá negar a estranheza entre o exercício da filosofia e o homem comum. Tendo a aceitar a ideia de que o filósofo é um ser que vive à parte, não divorciado do real, como, aliás, pensa equivocadamente os não filósofos (a maioria esmagadora dos homens). Ele é um ser que vive à parte, porque, como pretendia Nietzsche, é quem deve afirmar-se como "espírito livre", a saber, aquele cujo modo de viver liberou-se da tradição, aquele que pensa de maneira diferente do que se poderia esperar; é ele quem questiona os valores do seu tempo e desvela o fundamento das crenças vulgarmente aceitas como "verdadeiras" e "inquestionáveis".
“O importante não é viver, mas viver bem”, disse Sócrates. Quase sempre, quando sou instado a prestar algum esclarecimento sobre para que me serve a filosofia, defronto-me com a persistente incompreensão de meu interlocutor – incompreensão esta cuja rígida espessura se conserva na persistência com que vigora um estado de profunda ignorância largamente compartilhada pelo homem comum acerca do valor existencial da filosofia. Em face dessa incompreensão inveterada do que faz um filósofo, do que é a sua atividade, sinto que os que se dedicam à experiência filosófica, ao estudo da filosofia, sinto que aqueles que tomam a vida filosófica como um modo de vida superior, habitam um mundo diverso do mundo habitado pelo homem comum. É claro que, na maioria das vezes, também o filósofo compartilha esse mesmo mundo comum da cotidianidade mediana com os demais homens, para os quais esse mundo esgota toda a extensão e complexidade do real. Mas sempre que ouso dizer “bem, o real é muito mais extenso e complexo que esse mundo cotidiano”, o choque, a colisão entre os dois mundos é inevitável. E a incomensurabilidade entre eles se torna evidente e insuperável. Donde advém a certeza que me é assegurada pelo sentimento que se me irrompe no espírito e o qual expresso do seguinte modo: pareço viver como um esquizofrênico, ou seja, cindido entre dois mundos – o mundo da filosofia e o mundo do senso comum. Como na maior parte do tempo convivo com aqueles que vivem e pensam segundo os padrões do senso comum, tenho necessidade premente de, na ausência daqueles que integram o círculo fechado dos “eleitos da filosofia”, refugiar-me na ocupação diária com os livros, ocupação, aliás, que se me afigura como um ato de resistência à impregnação da idiotice e vulgaridade das formas de existência do homem espiritualmente embotado pelas formas de vida em nossas sociedades da hipercomunicação, reproduzidas em redes de relacionamentos digitais - viveiros dos lugares-comuns, máquina da reprodução em massa dos clichês - esses cemitérios de significado. Todo clichê é sinal de empobrecimento de significado, de esvaziamento de sentido; é a própria morte da profundidade. Entendo bem Nietzsche, quando buscava apartar-se das multidões para viver recluso na sua fecunda solidão, própria, aliás, dos espíritos livres.
Termino, pois, este atestado de fidelidade ao modo de vida filosófico com estes meus dois aforismos, que me brotaram como duas flores na vastidão de um terreno árido e desértico. Eles me reconduzirão ao silêncio próprio daqueles que vivem imersos na ocupação com a leitura, mas não o farão sem a promessa de que esse silêncio será, em breve, interrompido para que se faça auscultar o Lógos da necessidade da filosofia.

Da necessidade da filosofia

Depois de Nietzsche, pretender que a filosofia é a busca da verdade é sinal de um inveterado mal-entendido; no entanto, me parece ainda justo falar da filosofia como uma experiência de profunda intimidade com o saber. O filósofo continua sendo o verdadeiro amigo do saber, aquele para quem a vida deve pôr-se a serviço da sabedoria, e a filosofia deve conduzi-lo na determinação da melhor maneira de viver. Na origem da filosofia, não só persiste a evidência de que há diferentes maneiras de viver, como também era evidente que algumas maneiras de viver eram inferiores e outras superiores. A filosofia era então procurada por aqueles que desejavam se tornar os melhores seres humanos e viver tão bem quanto um ser humano pudesse viver. Justificar uma forma de vida superior equivale, portanto, a justificar a própria necessidade da filosofia.

Da maturidade de espírito

A maturidade de espírito não é uma conquista da idade avançada; ela pode se dar em tenra idade, antes mesmo de aprendermos a fazer contas. O ápice da maturação espiritual se atinge quando cada um descobre, por intuição, sua irrelevância. É sinal de maturidade de espírito ousar dizer a si mesmo, todas as manhãs, "cosmologicamente, sou um ser irrelevante". A filosofia vem, em seguida, em socorro daqueles que, alcançado a beatitude de tal conhecimento, pretendem dignificar a irrelevância cósmica de sua existência, precária e sem sentido último.