quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"Nietzsche foi um bon vivant: ele soube desferir seus golpes" (BAR)

                                      


                

                  Contra o cansaço endêmico


Em entrevista a Silvie Jaudeau, o filósofo romeno E. M. Cioran responde a diversas perguntas sobre sua vida e obra. A certa altura, Jaudeau pergunta ao filósofo: por que o senhor rompeu com a poesia? -  ao que responde Cioran:[1]


“Por esgotamento interior, por enfraquecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que se fica ressecado. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual rapidamente os artifícios são percebidos. O mesmo vale para a prosa. Na medida em que fico mais velho, escrever não me parece essencial. Livre de um ciclo de tormentos, descubro enfim a dor da capitulação (...)”.



O esgotamento interior e o ressecamento a que se refere Cioran não são apenas sintomas do envelhecimento e da proximidade do fim da vida. São sintomas da apreensão da vanidade de tudo que, outrora, lhe parecia indispensável. Na juventude, para enfrentar suas crises de insônia e evitar que, afundado em seus tormentos, viesse a pôr fim a sua vida, Cioran dedicou-se a escrever. Escrever, segundo ele mesmo confessou, foi sua única alternativa para evitar o suicídio. A resposta de Cioran é reveladora de um homem já cansado da vida; mas esse cansaço não é meramente um estado fisiológico tardio; trata-se de um estado que o acompanhou durante quase toda a sua vida, que marcou profundamente sua obra. Que este cansaço  tenha-o mortificado ainda na juventude prova-o o texto Esgotamento e agonia de Nos Cumes do Desespero, no qual o jovem Cioran escreveu “quero morrer, mas lamento querer morrer”[2]. As páginas de Cioran não são, para mim, simples objetos de estudo e reflexão; são testemunhos de experiências que me são congênitas. Todo o sentido da filosofia, para mim, se justifica nessas páginas. A atmosfera asfixiante, de um pessimismo clarividente e desesperador, combinado com um ceticismo corrosivo, deleita meu espírito tanto quanto se parece com a atmosfera em que, há alguns anos, compus muitos de meus textos.
Ainda uma segunda pergunta dirigida a Cioran acarreta uma resposta que deve ser aqui referida. Jaudeau pergunta ao filósofo romeno: A sua verdade não reside no silêncio oposto hoje aos que ainda esperam livros do senhor?. Leia-se a resposta.


“Talvez; mas se não escrevo mais é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica -, algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade, e a lassitude elimina essa necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais.”



Eis aí, mais uma vez, o testemunho de alguém que foi vencido pela vida; não porque foi inapto fisiologicamente para suportá-la, mas justamente porque soube resistir a ela tão profundamente que a desmascarou para apresentá-la tal como é: um acontecimento sem sentido e sem propósito. A lucidez lhe foi o ônus por ter suportado durante tanto tempo a vida. A lucidez, porquanto é um estado de compreensão penetrante, cirúrgica, inquietante, revela aquilo que se mantivera encoberto por nossas ilusões (no sentido freudiano, a saber, por crenças motivadas pelo desejo). Por isso, em Do inconveniente de ter nascido, ele asseverou: “Relativamente a todo e qualquer ato da vida, o espírito desempenha o papel de desmancha-prazeres”.[3] Esse papel é extensivo à lucidez; no entanto, mais do que ser um estraga-prazeres, a lucidez costuma fustigar a ponto de, como no caso de Cioran, tornar-nos lassos. O tempo em que a lucidez atinge seu ápice é o tempo em que “nada mais interessa”.
De que modo busco compensar o cansaço contaminante de Cioran é o que minhas próximas linhas hão de explicar. A explicação, a fim de que seja o mais inteligível possível, deve começar pelo esclarecimento do significado deste meu enunciado: “Ter um alvo, um adversário sobre o qual possamos lançar nossos ataques – é este meu remédio contra o cansaço endêmico da vida”.
Esse enunciado, eu o produzi entre um trecho e outro de Nietzsche. Enquanto me mantinha debruçado sobre o livro A Vontade de Potência, ocorreu-me que Nietzsche pôde viver a vida que tanto o ocupou em sua filosofia, em meio aos seus tormentos costumeiros, porque soube aproveitar a vontade de viver para atacar seus adversários com o refinamento de quem sabe esperar o tempo oportuno. Quem são os adversários aos quais se opunha o autodenominado primeiro imoralista? É o próprio Nietzsche que nos esclarece, em Ecce Homo (Por que sou um destino?):


No fundo, são duas as negações que encerra em si a minha palavra imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã”.


A filosofia nietzschiana combinou duas formas de entusiasmo: um entusiasmo ofensivo, combativo, que identificou os adversários para atacá-los  em suas trincheiras; e um entusiasmo afirmador, graças ao qual nos ofereceu belas páginas de uma lucidez fortificante. Contra o veneno que enfraquece a vida, Nietzsche ofereceu um antídoto: o seu Zaratustra, o seu homem dionisíaco, o seu amor fati. Nietzsche, que se insurgiu ferozmente contra as tendências negadoras da vida – reunidas sob as categorias do niilismo e do pessimismo, em suas formas diversas – não evitou o reconhecimento de que a vida é desfazimento, é dor, é sofrimento. Sua ousadia consistiu em condenar aqueles que, enfraquecidos pela consciência desta verdade, insistiam em desaprová-la, em condená-la.

A condição de existência do homem é a mentira; de forma diversa, seria não querer ver de modo recalcitrante como é feita, no fundo, a realidade. Esta não é tecida de forma a estimular a todo momento os instintos de benevolência, nem muito menos de maneira a permitir em qualquer ocasião a ingerência de mãos estúpidas e boas”.



Segundo Nietzsche,  o otimista é tão decadente quanto o pessimista; mas, ainda consoante Nietzsche, o otimista talvez seja um tipo mais nocivo porque nunca diz a verdade. Costumeiramente afirma sua “felicidadezinha” na mentira. É um tipo caluniador da vida.


Eu sou o primeiro imoralista; por isso, sou também o destruidor por excelência”.


O primeiro imoralista foi um destruidor que se pretendia também criador, que profetizava um tempo em que os homens seriam artistas.
Seu ateísmo foi reconhecido como instintivo, conforme atesta na passagem seguinte do texto Por que sou tão inteligente:

““Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “além”, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei o meu tempo, nem mesmo em criança; talvez nunca fosse bastante ingênuo para fazê-lo? Para mim, meu ateísmo não é uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto. Sou bastante curioso, suficientemente incrédulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta tão grosseira. Deus é uma resposta rude, uma indelicadeza contra nós, pensadores; antes, dizendo-se a verdade, não é senão um tosco empecilho contra nós mesmos: não deveis cogitar dele!”.



O Deus cristão esteve, sem dúvida, na linha de frente dos ataques ferinos de Nietzsche. Deus – bem notara o filósofo – era a própria antítese da vida. O cristianismo paulino não é senão a expressão da decadência. O cristianismo, retirando da vida qualquer valor em favor de um “além-mundo”, caracterizado por levar à fadiga os instintos, é uma religião niilista. Nietzsche acusa o cristianismo – e a prática missionária de Paulo, particularmente – de estimular a má consciência “contra o sentimento de dignidade da alma nobre”. Contra o Deus que enfraquece, Nietzsche escreveu:

Ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”[4]


A radicalidade da crítica do conceito de Deus, levada a efeito por Nietzsche, repousa no fato de ele ter conseguido, como poucos, operar uma incisão semântica que permitiu expor os sedimentos de sentido perniciosos encobertos por um longo trabalho de doutrinação. Em Ecce Homo, lemos:

“O conceito de “Deus” foi arquitetado como antítese ao de vida, tendo sido reunido nele, em terrível unidade, tudo o que havia de abjeto, de venenoso, de calunioso: todo o ódio mortal contra da vida”.


Com a invenção do conceito do Deus cristão, o homem torna-se culpado; a vida, objeto de renúncia; a “mundanidade”, de desaprovação.
O que as páginas de Nietzsche nos ensinam, em essência, é que a filosofia só pode estar a serviço da vida (e não pode ser diferente!) se for para afirmá-la contra as diversas tendências que se orquestram para enfraquecê-la, para negá-la.  A vida, enquanto vontade de poder, é um pathos – o fato donde resulta um devir e uma ação.
De que modo, afinal, compenso o peso do cansaço mortificante das páginas cioranianas? A resposta salta evidente: é necessário sorver o vigor nietzschiano compreendendo que o impulso para o "viver mais" depende da força com a qual atacamos as tendências que conspiram para aniquilá-lo.





[1] CIORAN, E. Entrevistas. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 29.
[2] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero. São Paulo: Hedra, 2011, p. 29
[3] CIORAN, E. Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 44.
[4] NIETZSCHE, F. Vontade de Potência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 201.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

"Deus é o único ser que, para reinar, não tem sequer necessidade de existir" (Baudelaire)

                   
                                         


                                 A carta de Tiago
                                                  e
                   a  fé como relação de barganha




Intróito

Israel não foi o único povo a conceber um Deus único, tampouco pode reivindicar ter sido o primeiro povo monoteísta. O monoteísmo tornou-se a religião egípcia oficial no tempo do jovem monarca Amenhotep IV. Esse soberano elidiu as antigas divindades em 1375 a.C., pôs fim à oposição sacerdotal e impôs uma religião baseada na crença num único Deus, Aton, nome este que parece ter assumido a forma hebraica adonai (senhor). Semelhantemente ao Deus judaico, Aton não admitia quaisquer imagens, exceto o disco solar, que era seu símbolo. O culto de Aton, no entanto, não durou muito, pois Amenhotep - àquela altura, chamado Aquenaton (por ter sido quem estabeleceu o novo culto) -, morrera em 1383 a.C. Pouco tempo depois da morte do soberano Aquenaton, o culto a Aton foi abandonado.
É verdade também que os judeus, tendo enfrentado muitas crises, retomaram frequentemente, cultos antigos e abolidos. Um exemplo dessa volta a cultos antigos é o culto a Tammuz, deus adorado pelos Sumérios, que o chamavam Dumuzi. Não faltam exemplos históricos que validam a afirmação de que todos os povos vizinhos, seja amigos, seja inimigos, estabelecem intercâmbios de conhecimentos e ideias, através dos quais se acham vinculados para o bem ou para o mal. Os escritos de Ezequiel (século VI a.C.) patenteiam-nos adesões de inúmeros judeus às várias crenças de seus opressores. Os judeus exilados não conseguiram permanecer imunes às influências de seus dominadores.
Os exemplos de Aton e Tammuz, somados a inúmeros outros, encaminham a conclusão, a que qualquer um chega sem dificuldades, de que deuses são entidades históricas, que nascem em condições sócio-históricas determinadas, podendo tornarem-se signos de um poder hegemônico durante longo tempo, mas sempre passíveis de sucumbirem às transformações sócio-políticas, culturais, econômicas. Deuses são entidades culturais (simbólicas), produtos da engenhosidade humana, ainda que os próprios homens os concebam como entes a-históricos, atemporais, eternos, sustentadores dos Céus e da Terra, Criadores do Universo,  ou com qualquer outra forma de categorizá-los que escamoteia o fato de que eles são, na realidade, criações humanas.
A história cristã é como uma virgem que já fora, várias vezes, despida, mas insiste em encobrir-se. Neste texto, pretendo despi-la novamente. A tese que norteia toda a discussão que desenvolvo aqui consiste em afirmar que a fé é sempre interessada. A fé é sinal que instaura uma relação de barganha entre homem e Deus. Deus diz: Creia em mim! Ao que responde imperativamente o homem: Dá-me algo em troca! Deus oferece a Salvação em troca da confiança humana total nele. Com a instituição das elites religiosas, essa confiança expressa-se sob a forma de subserviência do homem à Vontade Soberana de Deus, a qual se encarna historicamente no poder de uma classe dominante – a classe sacerdotal. Creia em mim!, quer dizer, submeta-se a mim (ao sacerdote), torne-se dócil, domesticável e obediente incondicionalmente. Se para demonstrar de que modo o signo Deus funciona como um dispositivo ideológico a serviço da manutenção da dominação espiritual, política e econômica de um certo grupo sobre outro(s), exige-se um trabalho de desterritorização teológica, a mesma exigência é indispensável para dar conta da razão por que Deus, sendo inegavelmente concebido como autossuficiente e perfeito, necessitaria do amor, da devoção, em suma, da confiança de criaturas imperfeitas tão naturalmente incapazes de uma fidelidade constante. Crendo não estar clara a questão que me coloco, formulo-a do seguinte modo: por que Deus, que de nada carece, precisa, no entanto, de seguidores, de adoradores, de servos, fiéis, crentes? Qualquer tentativa de resposta a esta questão, que não assuma como premissa a ideia de que são os homens que inventam Deus, e não o contrário, será expressão de uma compreensão ideológica do problema. Deuses não são senão produtos da práxis histórica, entidades culturalmente construídas, fabricadas pela imaginação humana em práticas sócio-históricas concretas. Qualquer resposta à questão ventilada acima que apele para uma explicação teológica não faz senão reproduzir uma compreensão ideológica que põe de ponta cabeça a relação entre homem e deuses.
O primeiro tema de que me ocuparei, tendo em vista a tese que sustenta minhas reflexões neste texto, é o da . Como definir a fé? No texto do Catecismo da Igreja Católica (2000), topa-se, a partir da página 48, o artigo I, que é destinado ao tema da . Na página 49, a palavra define-se como “uma adesão pessoal do homem a Deus”. De acordo com essa definição, fé recobre o significado de assentimento livre à verdade revelada por Deus.
Se prosseguirmos na leitura do texto, encontraremos a seção em que se especificam as características da fé. A primeira delas é que a fé é uma graça, isto é, um dom de Deus. A fé é uma virtude sobrenatural infundida por Deus no homem. Se é infundida no homem por Deus, o homem não é, então, naturalmente predisposto à fé.; ele necessita, para possuí-la e manifestá-la, da “graça prévia e adjuvante de Deus e [d]os auxílios internos do Espírito Santo” (p. 51). Depois da Queda, o homem não pode mais contemplar a Deus; se quiser relacionar-se com ele, precisará da fé, que, no entanto, não lhe é uma disposição natural; mas um hábito constante e firme que Deus lhe incute.
A segunda característica da fé consiste em ser ela um ato humano. Segundo o texto do Catecismo, a fé não contraria a liberdade nem a inteligência do homem que, através da fé, confia em Deus e adere às “verdades” por ele reveladas.
Silenciarei sobre as demais características da fé, apontadas pelo Catecismo, pois que elas são dispensáveis ao âmbito desta discussão. Em síntese, o texto do Catecismo dá-nos a saber o seguinte acerca da fé: 1) a fé é uma adesão pessoal do homem, enquanto totalidade, a Deus; 2) a fé é um dom sobrenatural de Deus; 3) a fé é necessária à Salvação.
Cumpre ainda notar que a fé é também segregadora, conforme lemos em Marcos (16,16): “Aquele que crer e for batizado será salvo; aquele que não crer será condenado”. Possuir fé é condição para a Salvação. A fé separa os que serão salvos, porque a possuem, dos que não serão salvos, isto é, serão condenados, porque são resistentes a ela. [1] É oportuno lembrar, de passagem, que a fé, segundo São Tomás, é “um antegozo do conhecimento que nos tornará bem-aventurados na vida futura”. Estando claro que a fé é condição para ser beneficiário da Salvação concedida por Deus, resta determinar em que consiste essa Salvação. A questão que se nos impõe à consideração é: Do que, afinal, seremos salvos?
No Tratado de Teologia (2011), Blazer observa que Deus nos salva “de muitas realidades negativas” (p. 308). Ele salva seu povo que se encontra em perigo, livra-o dos perseguidores, dos inimigos (Nm 10-9), das danações (Jz 15-18; Sl 18-3). Deus salva ainda de situações perigosas, das aflições em geral, entre as quais está a tristeza, a angústia, a enfermidade, o temor da morte, etc. Finalmente, Deus livra a humanidade do estado de pecado e de suas consequências. Em Lucas (19: 10), lê-se sobre o livramento da perdição: “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”. Se o texto do compêndio teológico mostra-nos que a Salvação divina é a solução para a condição pecadora a que o homem, desde a Queda, se vê destinado, também nesse texto diz-se que a Salvação é parte do plano de Deus, “antes da fundação deste mundo” (1Cor 2:7; Ef 1:3, 14). Reza o texto que o sofrimento e a morte de Jesus foram um acontecimento fundamental no plano de Deus. Jesus é “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13:8). O sofrimento e a morte de Jesus não decorreram de circunstâncias históricas, mas estavam previstos no plano de Deus. A explicação teológica pretende substituir a contingência histórica; nela, mascaram-se as razões verdadeiras pelas quais Jesus foi condenado e morto pela apresentação de uma razão fictícia, segundo a qual seu martírio foi determinado, desde as origens dos tempos, por Deus. Essas breves considerações sobre o que significa Salvação na teologia judaico-cristã deverão nos ser suficientes para compreendermos mais claramente a questão que ocupará o autor de Tiago, carta que se acha no Novo Testamento.

2. Tiago: um caso de falsificação

No Novo Testamento, se acha um livro cujo autor parece interpretar equivocadamente os ensinamentos de Paulo. Trata-se de uma carta cuja autoria é atribuída a Tiago, chamado o Justo, irmão de Jesus. Era assim que esse Tiago se tornou conhecido nos primórdios da Igreja. Sua notabilidade deve-se também a seu comprometimento com suas raízes judaicas, mesmo vindo a tornar-se um seguidor de Jesus.
Tiago não foi um seguidor de Jesus  em vida (Jo 7,5), mas foi um dos primeiros a ver Jesus ressuscitado. Parece que, depois desse grandioso evento, passou a acreditar em Jesus. O apóstolo Paulo conhecia Tiago pessoalmente. Segundo Paulo, Tiago seguia a lei judaica e defendia a opinião de que os seguidores de Jesus também deveriam segui-la (Gl 2, 12). Tiago morreu por volta de 62 d.C., a acreditarmos nos melhores registros históricos, não sem ter comandado a igreja de Jerusalém durante trinta anos.
A questão principal que ocupou o autor de Tiago estava no centro de disputas com os cristãos. A controvérsia que ela suscita opunha cristãos para quem é suficiente ter fé para ser justo perante Deus ao próprio Tiago, ou melhor, a quem alegava sê-lo. O autor de Tiago sustentava que a fé sem obras não conduz à Salvação. Para Tiago, quem crê e não pratica boas ações não tem fé. A fé deve sempre se acompanhar da prática de boas ações para que aquele que tem fé se torne justo perante Deus. Acreditou-se, durante muito tempo, que a carta de Tiago encenava uma controvérsia com Paulo, segundo nos ensina Ehrman (2013, p. 194):

“Durante séculos, os estudiosos do Novo Testamento sustentaram que o livro de Tiago responde ao ensinamento de Gálatas. Paulo ensinou que era a fé em Cristo que colocava as pessoas na relação certa com Deus, independentemente de elas fazerem ou não as obras da lei”.


Para muitos estudiosos do Novo Testamento, parecia claro que Tiago contrapunha-se a Paulo, na medida em que rejeitava a possibilidade de a fé sozinha produzir justificação. Tanto o autor de Tiago quanto Paulo usam termos como “justificar”, “fé”, “obras”. Ambos apelam para a figura de Abraão e referem o Gênesis 15,6 ( “E creu ele no Senhor, e imputou-lhe isto por justiça”). Desde Lutero, no começo da Reforma, os intérpretes concordam em afirmar que Tiago está opondo-se a Paulo.
Sucede, contudo, que, recentemente, essa interpretação tem sido questionada por vários estudiosos. Eles argumentam que, embora, na carta de Tiago, figurem os mesmos termos usados por Paulo, Tiago não os empregou para dizer a mesma coisa. Ao usar o termo “fé”, Paulo queria sublinhar o seu aspecto relacional. Trata-se da fé em Cristo como confiança em que a morte e a ressurreição de Cristo tornam justa uma pessoa perante Deus. Paulo crê que isso se dá sem que seja necessário seguir a Lei judaica. A confiança (fé) em Cristo independe da obediência a essa lei. Na prática, Paulo acreditava que uma pessoa podia crer em Cristo sem precisar celebrar o sabá, sem precisar seguir as leis de comida kosher, sem precisar, se for um homem, ser circuncidada, etc.
Ao contrário, Tiago refere-se a “obras” não como ações exigidas pela Lei, mas como boas ações que atendem à satisfação dos necessitados: alimentar os famintos, vestir quem está nu, etc. Novamente, lemos em Ehrman,

“Para Tiago, uma concordância intelectual com o cristianismo que não se manifesta em como a pessoa vive não tem utilidade. Isso não salva a alma” (2013, p. 195).



O Tiago que escrevia para contradizer Paulo não era, contudo, o conhecido irmão de Jesus; era, na verdade, um falsificador. A carta de Tiago, que figura no Novo Testamento, foi escrita por alguém que alegava ser Tiago, irmão de Jesus. Ela surge como um desdobramento posterior do raciocínio de Paulo em uma comunidade paulina posterior. O ensinamento a que ela se opõe surgiu após os escritos de Paulo. O que Tiago ensina é semelhante ao que se topa em Efésios, escrito depois da morte de Paulo por um autor que alegava ser Paulo. Efésios está entre os seis textos falsificados em nome de Paulo. Das 13 cartas atribuídas a Paulo, seis são falsificações: Efésios, Colossenses, Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 3 Coríntios. Também são falsificadas as Cartas a Sêneca, escritas, no século IV d.C., em nome de Paulo. Antes de resumir o conteúdo de Efésios, acrescentem-se algumas considerações mais sobre a carta de Tiago.
Tiago pressupõe uma situação posterior nas igrejas de Paulo. Sabe-se que o verdadeiro Tiago morreu por volta de 62 d.C., duas décadas mais ou menos antes de Efésios ser escrito. A razão determinante pela qual a carta de Tiago é considerada uma falsificação repousa no fato de que o autor a escreveu num grego retoricamente fluente. Ele exibia conhecimento íntimo do Antigo Testamento. O Tiago histórico, irmão de Jesus, no entanto, era um camponês da Galileia que falava aramaico e que muito provavelmente não sabia ler,

“(...) Ou, se aprendeu, foi a ler hebraico. Se um dia aprendeu grego, foi como segunda língua, para falá-la, sem dúvida, de forma deficiente. Ele nunca teria ido à escola. Nunca teria se tornado fluente em grego. Nunca teria aprendido a escrever, mesmo em sua língua materna, muito menos em uma segunda língua (...)” (Ehrman, 2013, p. 197).



                     Quem escreveu a carta alegou ser Tiago com o propósito de dar credibilidade a sua posição, qual seja, a de que os seguidores de Jesus precisavam manifestar fé realizando boas ações, visto que sem obras não há fé.
No respeitante a Efésios, seu autor alega ser Paulo e ensina contrariamente ao Paulo histórico que as boas obras não conduzem à salvação. Para o autor pseudônimo de Efésios, fazer boas ações não é determinante para tornar uma pessoa justa perante Deus. O autor não se opõe, na verdade, ao que Paulo efetivamente ensinou, mas ao que cristãos posteriores equivocadamente entenderam do que Paulo ensinara. Foram, pois, esses cristãos posteriores que interpretaram o ensinamento paulino, segundo o qual era a fé que tornava uma pessoa justa como se o que importasse era apenas acreditar, independentemente do modo como essa pessoa vivesse. Sucedeu que o ensinamento de Paulo, segundo o qual, para se tornar cristão, não é necessário realizar as “obras da Lei”, foi tomado como uma recusa da realização de “boas ações”. Para esses cristãos posteriores, importava a crença de uma pessoa e não a vida dela. O autor de Tiago, portanto, mesmo não citando Paulo, tinha em mira objetar ao ensinamento de Paulo, ou melhor, à forma deturpada como ele fora interpretado na época em que esse autor viveu. Os cristãos desse tempo acreditavam que estavam diante de um ensinamento de Paulo, por isso também recorreram à figura de Abraão e ao Gênesis 15, 6, onde se lê que Abraão tinha sido justificado por sua fé, e não por suas obras.
Finalmente, ainda no tocante a Efésios, a carta destina-se a cristãos gentios com vistas a recordá-los de que, embora tivessem um dia sido afastados de Deus e de seu povo, os judeus tinham sido reconciliados e se tornado justos perante Deus. Já não existia mais a barreira que separava judeus de gentios, a saber, a lei judaica. A morte de Cristo lançou-a por terra. Doravante, judeus e gentios podiam viver em harmonia entre si, em Cristo e em Deus.
O autor de Efésios apresenta esse conjunto de ideias teológicas nos três primeiros capítulos (especialmente no segundo); em seguida, passa a ocupar-se com questões éticas com o intento de esclarecer a forma como os cristãos devem viver, para que sejam uma unidade em Cristo. Efésios foi escrito por um cristão posterior em uma das igrejas paulinas. Ele estava preocupado em resolver a grande questão de sua própria época, qual seja, a da relação entre judeus e gentios na igreja. Ele o fez alegando ser Paulo e sabendo que não era, isto é, produzindo uma falsificação.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAZER, Ivan T. Salvação. In: Tratado de TeologiaAdventista do Sétimo Dia. Tauí: SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011.

EHRMAN, Bart. D. Quem escreveu a Bíblia – Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são? Rio de Janeiro: Agir, 2013.

SCLIGMANN, Kurt. Magia, sobrenatural e religião. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1948.

Catecismo da Igreja Católica (2000).



[1] Antes que me censurem a compreensão reducionista da fé, concedo na possibilidade de encontrarmos uma defesa da fé como experiência inclusiva, comunitária, mas essa inclusividade e comunidade da fé supõem sempre exclusividade, separação entre os eleitos e os rejeitados, entre os que pertencem ao grupo e os que estão dele excluídos. Nesse sentido, sendo parte do aparato da doutrinação levada a efeito pelas elites religiosas, a fé é um sintoma da cooptação dos mais vulneráveis socialmente.