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quarta-feira, 8 de abril de 2020

"As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico". (Castoriadis)


                                   Jornalista E Fotógrafo Dos Desenhos Animados Elementos, Notícias ...

                                    Discurso e poder
                         Uma abordagem sociocognitiva


A relação entre discurso e poder quase nunca é evidente para os usuários da língua em geral. Isso se deve, em parte, ao fato de que discursos veiculam relações de poder, muitas vezes, veladas.  De que modo o discurso constitui, legitima e reforça relações de poder? Essa é a questão basilar do presente texto. Pretendo responder a ela a partir da abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk. A fim de que a tarefa, a cuja realização me dedicarei, logre sucesso, cuido indispensável a definição prévia dos conceitos de discurso, cognição, contexto, e poder.
No tocante à compreensão do discurso, Dijk observa que o discurso é um fenômeno multidimensional. Assim, o discurso pode ser, segundo o autor:
a) uma totalidade formada de sequências significativas, ou seja, palavras ou sentenças (nesse caso, o discurso se identifica com o texto);
b) um ato de linguagem (asserção, ameaça, etc.);
c) uma forma de interação social (gêneros discursivos tais como conversa, telefonema, etc.);
d) uma prática social (palestra, por exemplo);
e) uma representação mental (um modelo mental, uma opinião, conhecimentos);
f) um produto cultural (uma telenovela).

Não obstante as múltiplas formas pelas quais o discurso se realiza, Dijk admite ser possível uma definição operacionalmente razoável de discurso.  Na esteira da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk, o discurso é forma de ação  e interação social  situada em situações sociais das quais os participantes não são apenas falantes, escritores, ouvintes ou leitores, mas sobretudo atores sociais pertencentes a grupos e comunidades culturais. Destarte, o discurso não é um objeto autônomo. Não basta, portanto, analisá-lo tendo como escopo apenas a sua materialidade linguística (frases, textos, palavras). O discurso é resultado de uma interação social, histórica, cultural e politicamente situada. Por conseguinte, é necessário, para fins de análise, levar em conta as relações entre a materialidade linguística do discurso e as estruturas sociais,  tais como, por exemplo, a família, a escola, as corporações midiáticas, posições de poder, movimentos sociais, instituições governamentais, etc.
Uma vez que os participantes do discurso são atores sociais que pertencem a grupos específicos numa mesma cultura geral, o discurso jamais é neutro, mas é sempre cultural e politicamente marcado. Ora, do fato de que são social, cultural, histórico e politicamente situados os atores sociais, segue-se que eles não são completamente livres para usarem as construções discursivas como quiserem. As estruturas sociais condicionam a produção dos discursos produzidos pelos usuários da língua, mas não de modo direto. Em outros termos, as condições sociais, culturais, políticas e situacionais não influenciam diretamente a produção do discurso. A abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk esteia-se na tese segundo a qual as estruturas societárias ou situacionais só podem influenciar o discurso pela mediação das representações mentais dos sujeitos sociais. Vale insistir: os elementos da situação comunicativa não afetam diretamente a produção do discurso; na verdade, a relação entre a situação social (entendida como fragmento “demarcado espaço-temporalmente de mundos sociais possíveis” (Dijk, 2012, p. 45)) e o discurso só pode ser estabelecida pela intervenção da interface sociocognitiva. Portanto, é a definição, a interpretação, a representação ou a construção cognitiva da situação social, feitas pelos participantes do discurso, por meio de seus contextos sociocognitivos, que influenciam o modo como eles falam, escrevem, leem e compreendem. Antes de compreendermos como opera a interface sociocognitiva a partir da definição de contexto, cumpre esclarecer o que devemos entender por cognição, nos limites estritos da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk.
Em consonância com a abordagem sociocognitiva do discurso, tal como proposta por Dijk, pode-se definir a cognição como o conjunto de várias formas de conhecimento que, não sendo totalizado pela linguagem, é de sua responsabilidade. A cognição recobre as atividades mentais associadas ao pensamento, ao conhecimento, à memória e à linguagem. Os processos cognitivos como a linguagem e/ou a significação não são tomados à margem das rotinas significativas da vida em sociedade.  Portanto, a cognição é resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. A cognição é um fenômeno situado, o que significa dizer que não há limite claro entre o que acontece dentro e o que acontece fora da mente. A cognição é um efeito da relação complexa entre ações sociais e atividades mentais. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com demandas sociais.
A interface sociocognitiva esteia-se na visão de que sãos os modelos de contexto que permitem explicar que o que controla o modo como falamos não é um ambiente social objetivo, mas nosso modo de compreender ou construir subjetivamente a situação social. Modelos de contexto são, portanto, a interface entre a sociedade, a situação social imediata (por exemplo, profiro uma palestra no auditório de uma universidade) e o discurso. Os modelos de contexto são modelos mentais. Embora formados a partir de experiências pessoais, os modelos de contexto baseiam-se em conhecimentos socioculturais e outras crenças socialmente compartilhadas. Os modelos de contexto encerram as propriedades sociais e cognitivas dos eventos comunicativos, tais como os papéis sociais dos participantes, suas intenções e conhecimentos.
Para Dijk, contextos são tipos especiais de modelos mentais. E modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Em certo sentido, os modelos mentais são nossas experiências, se entendermos que experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Tais experiências pessoais ou modelos mentais armazenam-se na Memória Episódica, a qual faz parte da Memória de Longo Prazo. Dijk evita, portanto, o contextualismo ingênuo característico das teorias sociolinguísticas. Elementos situacionais como gênero, classe social, etnia, idade, posição e poder não operam objetivamente nem deterministicamente sobre o discurso, ou seja, tais restrições situacionais não determinam diretamente o que um sujeito diz em dada situação. As estruturas sociais não se relacionam com o discurso de modo direto. Elas se relacionam com o discurso pela mediação (interface) do contexto sociocognitivo. Chama-se, pois, contexto sociocognitivo ao conjunto de conhecimentos, propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.) armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por ocasião da interação verbal. A ativação desse contexto será indispensável para que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
O contexto, para Dijk, é um constructo cognitivo, é uma representação mental que os participantes do discurso fazem das propriedades relevantes da situação social na qual interagem e na qual compreendem textos falados e escritos. O contexto media as relações entre a estrutura social e o discurso. A concepção sociocognitiva de contexto não é determinista. Destarte, indivíduos diferentes podem falar de maneiras diferentes mesmo quando se encontram e uma situação social semelhante.  Isso é possível porque os participantes do evento discursivo têm representações mentais subjetivas das estruturas sociais. São as distintas representações mentais que eles têm que lhes conferem certa liberdade para fazerem suas escolhas temáticas, lexicais e sintáticas por ocasião da produção de seus discursos. Mas devemos atender no fato de que essa liberdade é relativa. Por outro lado, são essas representações mentais que permitem aos analistas do discurso reconhecer a relativa liberdade de que gozam os sujeitos e os condicionamentos sócio-históricos e linguísticos que regulam o comportamento discursivo deles.


Contexto é um modelo mental de uma determinada situação comunicativa


O contexto, à luz da abordagem sociocognitiva de discurso, é a representação social que os participantes do discurso fazem da situação comunicativa com base em seus esquemas mentais. Portanto, contexto não é o conjunto de elementos sociais extralinguísticos (ambiente social, papel social, idade, gênero, etc.) aos quais se relaciona o discurso, mas a representação mental que os participantes do discurso fazem desses elementos. Cumpre, doravante, elucidar o que são esquemas mentais.
O processamento do armazenamento da Memória Episódica e da Memória de Longo Prazo (ou memória semântica) se dá por meio de esquemas mentais. Os esquemas mentais são estruturas de conhecimentos preexistentes na memória. Assim, quando os interactantes produzem ou interpretam um texto, eles já trazem um conjunto de crenças e conhecimentos prévios (background) estruturados mentalmente. São esses esquemas mentais que funcionam como interface entre a estrutura social e o discurso. Dois tipos de esquemas mentais são relevantes para a produção e interpretação dos textos:

a) frames: constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja necessário ordenação entre eles. Recobrem um padrão de conhecimentos fixos, estabilizados na memória. São estruturas de conhecimentos mais gerais numa comunidade ou sociedade.
 Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc. Nós possuímos uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam; há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.

b) scripts: recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se  linguísticamente. São um tipo de esquema mental mais dinâmico, como, por exemplo, saber fazer um pronunciamento.

A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia. Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Se, por exemplo, o Presidente da República vai à Câmara dos Deputados fazer um pronunciamento, os frames ‘’Presidente da República’  e ‘Câmara dos Deputados’ e o script ‘fazer um pronunciamento’ são ativados na mente dos participantes do evento discursivo, de modo que eles vão buscar em sua memória os conhecimentos e as crenças que julgam relevantes para a escolha de estratégias de produção e interpretação textual para aquele evento em particular. Frames e scripts permitem aos sujeitos sociais a produção de inferências sobre as propriedades do episódio que não são imediatamente acessíveis. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. 
Os elementos que fazem parte de um esquema mental são armazenados na memória do indivíduo ao longo da vida e são prototípicos. Assim, temos uma ideia prototípica do que é um mamífero: um animal de sangue quente, com pelos, que amamenta. É devido a essa prototipicidade que ficamos confusos quando descobrimos que um mamífero como o ornitorrinco põe ovos e um mamífero como o morcego voa.
Os frames variam de acordo com a diversidade das comunidades socioculturais. Assim, pessoas que vivem em comunidades socioculturais diferentes terão esquemas mentais diferentes. As representações mentais são controladas pelos esquemas mentais, os quais são constituídos de conhecimentos e crenças arquivados na Memória de Longo Prazo. Conquanto as representações mentais feitas pelos participantes do discurso sejam subjetivas e únicas, elas também se constituem de grandes quantidades de conhecimentos e outras crenças socialmente compartilhadas. O conhecimento cultural, portanto, é a base de todas as crenças avaliativas, incluindo as opiniões, atitudes e ideologias socialmente partilhadas. Pessoas diferentes, que possuem posicionamentos ideológicos, muitas vezes, conflitantes, precisam compartilhar um conhecimento cultural geral no qual se baseiam tais posicionamentos. A existência de esquemas mentais diferentes explica por que as pessoas fazem diferentes representações cognitivas de um mesmo fenômeno social que, por isso, não é o mesmo fenômeno para pessoas diferentes.
Em suma, para Dijk, contexto é definido como constructo mental, que constituirá a ponte entre os elementos da estrutura social e o discurso, ou entre a situação social imediata e o discurso.

Poder e ideologia

Para Dijk, poder é controle social de um grupo (ou seus membros) sobre outros grupos (ou seus membros). Assim, discursos expressam relações de poder. O discurso produz e reproduz a dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo em relação a outros grupos, mas também serve para realizar movimentos de resistência a tal abuso de poder. A maneira como os discursos expressam e sustentam relações de poder é através da veiculação de posições ideológicas. Por isso, é extremamente importante compreender o que são ideologias e como elas funcionam discursivamente.
Para Dijk, ideologias são crenças sociais gerais e abstratas que são compartilhadas por um grupo e que controlam e organizam as opiniões, as atitudes e os conhecimentos específicos desse grupo. A ideologia, segundo Dijk, é uma forma de cognição social, ou seja, a ideologia “é uma estrutura cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas, e de representações sociais como preconceitos sociais”. (Dijk, 2008, p. 48). Ideologias consistem em estruturas de normas, valores, metas e princípios socialmente relevantes que são selecionados e empregados de modo tal a favorecer a percepção, a interpretação e a ação nas práticas sociais que atendem aos interesses de um grupo como um todo. A ideologia dota de coerência as atitudes sociais, as quais, por sua vez, determinam as práticas sociais. É extremamente importante salientar que “todas as ideologias (incluindo as científicas) englobam uma (re)construção da realidade social dependente de interesses”. (ibid.).
O discurso desempenha um papel fundamental tanto na formação quanto na transformação das estruturas ideológicas. Por isso, o analista do discurso está interessado em examinar quem e mediante quais tipos de processos controla os meios ou as instituições de (re)produção ideológica, tais como os meios de comunicação e as instituições de ensino. As ideologias, enquanto cognição social, influenciam a construção social da realidade, as práticas sociais e a (trans)formação das estruturas sociais. Cada um dos elementos estruturais da ideologia (filiação, atividades, metas, valores, normas, posição, relações de grupo e recursos sociais) pode servir de base para a delimitação de um grupo. Assim, um grupo social é um conjunto de sujeitos que compartilham determinadas características que lhes dão o sentimento de pertencimento. Por exemplo, o elemento “valores e normas” mostra como as ideologias são sempre avaliativas. Segundo a orientação valorativa da ideologia, nosso grupo sempre está correto e é normal, ao passo que os outros sempre estão errados ou são anormais. Discriminam-se os elementos da estrutura ideológica, como se segue:

a) filiação: quem somos nós? De onde viemos? Como nós somos? Quem pode se tornar um membro de nosso grupo?

b) atividades: o que nós fazemos? O que se espera de nós? Por que estamos aqui?

c) metas: por que fazemos isso? O que nós queremos realizar?

d) valores e normas: quais são os nossos valores fundamentais? Como nós avaliamos a nós mesmos e aos outros? O que deve e não deve ser feito?

e) posição e relações de grupo: qual é a nossa posição social? Quem são nossos inimigos, nossos adversários? Quem é igual a nós e quem é diferente de nós?

f) Recursos: quais são os recursos essenciais de que nosso grupo dispõe ou precisa dispor? (poder econômico, poder político, cor de pele, civilização ocidental, etc.).

Nunca é demais lembrar que os discursos, sendo produzidos por sujeitos social, cultural, histórica e politicamente situados, jamais são neutros, mas sempre ideologicamente condicionados. Todavia, nem todos os sujeitos têm consciência desse fato, o que torna mais fácil o trabalho de manipulação das opiniões e das ações das outras pessoas.
Acresça-se que as ideologias vão sendo constituídas ao longo da vida das pessoas à proporção que elas se deixam afetar pelos discursos de seus pais, mães, professores, líderes religiosos, escritores, músicos, políticos, jornalistas, colegas, etc. A exposição a esses discursos vai influenciar a maneira como os indivíduos representam e/ou constroem os fenômenos sociais. A influência que esses discursos exercem está diretamente relacionada às posições de poder ocupadas pelos atores sociais que (re)produzem esses discursos, fato, aliás, óbvio quando se consideram mães, pais e professores, cuja autoridade é vista como natural por filhos e alunos. Destarte, os discursos formadores de ideologias são mais diretivos e explícitos em casa e na escola. Por outro lado, quando consideramos os discursos de jornalistas e escritores, a influência ideológica tende a exercer-se de modo mais sutil e velada, o que não significa dizer que tais discursos não sejam formadores de ideologias.
Importa, por fim, enfatizar que ter ou não consciência da orientação ideológica de um discurso é resultado dos esquemas mentais que as pessoas têm e que, integrados em um contexto sociocognitivo, mediam as relações que os atores sociais – participantes do evento discursivo - estabelecem entre o discurso e a estrutura social. O trabalho dos analistas do discurso contribui para tornar patentes as orientações ideológicas materializadas/veiculadas nos textos que circulam nas diversas esferas sociais de uso da língua. Tais orientações ideológicas, muitas vezes, não sendo óbvias para os leitores e ouvintes, podem ser decisivas para a manutenção da desigualdade e das injustiças sociais. As escolhas lexicais e sintáticas feitas pelos produtores de textos são sempre controlados pelos seus modelos mentais. Nem sempre essas escolhas são conscientes, mas, quando feitas pelas elites simbólicas (jornalistas, políticos, líderes religiosos, publicitários, escritores) -, elas são sempre conscientes.
Quando pensamos a relação entre poder e discurso, devemos, pois, assumir que poder é controle social do discurso dos outros. As pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem; mas são parcial ou totalmente controladas por outras pessoas, grupos ou instâncias que gozam do poder de exercer controle, tais como o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade da escrita e da fala. O poder, como controle social do discurso dos outros, obriga também as pessoas a falar ou escrever como um grupo ou instância quer que elas falem ou escrevam.


Uma amostra de análise

Convém oferecer, doravante, um recorte de análise que vise a demonstrar como o discurso pode exercer controle sobre os modelos mentais de ouvintes e leitores. Van Dijk sugere que a análise comece levando em consideração as macroestruturas semânticas, ou significados globais, que são o tema ou tópicos discursivos. Essas macroestruturas semânticas são importantes porque elas são conscientemente escolhidas pelo produtor do texto. Elas expressam as informações subjetivamente mais importantes do discurso e marcam o conteúdo geral dos modelos mentais dos eventos. Tópicos ou temas são informações mais facilmente memorizadas pelos leitores. São caracteristicamente tópicos ou temas os títulos, os resumos e sumários.
Terminada a análise das macroestruturas semânticas, Dijk recomenda que o analista do discurso concentre sua atenção nas microestruturas semânticas ou significados locais, atualizadas pelas escolhas lexicais e sintáticas feitas pelo produtor do texto e também pelas relações entre conteúdos explícitos e implícitos, tais como as pressuposições, e por outros recursos imagéticos, tais como metáforas e metonímias. Os significados locais são o resultado da seleção feita pelos falantes/escritores de conhecimentos, crenças, ideologias constitutivas de seus modelos mentais. Ademais, tais significados influenciam diretamente os modelos mentais e, portanto, as opiniões e atitudes dos leitores e ouvintes.
Considere-se, para fins de análise, o seguinte texto, sem autoria específica, publicado pelo jornal Correio da Bahia, em 19 de abril de 2011.

Fernando Henrique comete erro de português em artigo

DESLIZE – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um erro de português num artigo sobre o PSDB, distribuído a sites e blogs e publicado no endereço eletrônico do partido. O erro foi revelado ontem pela colunista Mônica Bergamo, do Jornal Folha de S. Paulo. No texto, FHC diz que “existe ou existiu até a pouco certa carga fiscal”. O correto é “existiu até há pouco”. O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos. O que chama a atenção no caso de FHC é que ele é extremamente culto e estudado. O ex-presidente é sociólogo formado pela USP, já lecionou na Universidade de Paris e fala fluentemente diversos idiomas, como o francês e o inglês, além do português.


A fim de que fiquem claras as orientações ideológicas que atravessam o texto, é importante saber que o Correio da Bahia pertence à família do ex-senador Antonio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Esse jornal é um meio de comunicação à disposição de um grupo político de direita, afinado com grupos ruralistas e com outros grupos conservadores da sociedade brasileira. Um dia antes da publicação desse texto, FHC desafiara Lula para disputar uma eleição presidencial. Essas informações são relevantes porque fornecem pistas sobre que estruturas ideológicas são compartilhadas pelos editores do jornal.
Levando em conta, em primeiro lugar, as macroestruturas semânticas, é notável a preocupação do autor do texto com a correção linguística, o que revela a orientação linguística normativista do jornal. Essa preocupação do autor é a mesma que se expressa no patrulhamento linguístico das elites brasileiras. Após relatar o suposto “erro” linguístico cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o autor introduz, sem nenhuma razão aparente, uma informação sobre o ex-presidente Lula: “O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos”. Sem deixar de ser curiosa, a menção aos erros de português cometidos pelo ex-presidente Lula não é por acaso. Ao lembrar que Lula “cometia diversos erros” em seus pronunciamentos quando era presidente, o autor do texto simplesmente aproveita a ocasião para desqualificar Lula. Como sabemos que o jornal Correio de Bahia é controlado por grupos de direita, conservadores, alinhados ideologicamente com as elites brasileiras, e que politicamente fazem oposição a Lula, o autor do texto reproduz essa oposição que é tanto política quanto de origem sociocultural. A expressão do compromisso do autor com o  posicionamento político-ideológico do jornal se torna inegável quando consideramos que, não fazendo mais qualquer referência a Lula, o autor passa a fazer valorações positivas de FHC.
Quando, num segundo momento, consideramos os significados locais, não podemos deixar de notar o uso de expressões valorativas como “extremamente culto e estudado” para caracterizar Fernando Henrique Cardoso. Expressões como estas não só assinalam avaliação positiva, podem, como acontece no texto, orientar o leitor a anuir às seguintes conclusões:

1. Se o erro de português cometido por FHC causa surpresa, os “diversos erros de português”  que Lula, supostamente, cometeu não surpreendem devido à falta de sua formação acadêmica;
2. Fernando Henrique Cardoso é um político mais competente que Lula.

Como se vê, o objetivo do Correio da Bahia é criar uma imagem negativa de Lula e uma imagem positiva de FHC, a despeito de este ter cometido também um suposto “erro de português”, que, aliás, é categorizado como “DESLIZE” (uma forma linguística que conota ‘atenuação, suavização’), o que reforça a ideia de que o que se considera “erro linguístico” depende da origem sociocultural do falante. A avaliação positiva de FHC, que se identifica com grupos de elite, e a construção de uma imagem negativa de Lula, que se identifica com as camadas populares, encenam, no âmbito ideológico, o velho embate etnocêntrico entre NÓS e os OUTROS.


O controle do discurso público: o discurso jornalístico

Hegemonia, conceito-chave do pensamento de Gramsci, designa o modo como um poder governante conquista o consentimento dos governados ao seu domínio. A noção de hegemonia recobre as ideias de ‘consentimento’ e ‘coerção’. Uma poderosa fonte de hegemonia política é a suposta neutralidade do Estado. A hegemonia caracteriza o fato de o poder de grupos dominantes integrar-se a leis, regras, normas, hábitos e a um consenso geral. Os grupos podem exercer maior ou menor controle sobre outros grupos, ou podem controlar certos grupos em situações específicas. Por seu turno, grupos dominados podem, em maior ou menor grau, aceitar, consentir, legitimar esse poder – até mesmo achá-lo “natural”-,  ou podem resistir a ele.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) cumpre, como uma de suas preocupações, a tarefa de explicitar e explicar como os grupos que gozam de maior poder controlam o discurso público e como o discurso público passa a controlar a consciência de indivíduos e a ação de grupos (menos poderosos) e quais são as consequências sociais desse controle (por exemplo, desigualdade social, exclusão de minorias, etc.). O acesso à comunicação e ao discurso público, ou o controle exercido sobre essas instâncias, representa um importante recurso simbólico que define a base do poder de um grupo ou instituição.
A maioria das pessoas tem um controle ativo tão somente sobre as conversas cotidianas com membros de sua família, amigos ou colegas. A maioria delas tem controle passivo sobre, por exemplo, os discursos da mídia. Em muitas situações, as pessoas comuns são simplesmente receptoras passivas, em menor ou maior grau, de textos orais e escritos, produzidos, por exemplo, por seus chefes, professores e autoridades como oficiais de polícia, juízes, burocratas da previdência social ou auditores fiscais. Todas essas autoridades dizem em que a maioria de nós deve acreditar (ou não acreditar)  e o que podemos (ou não) fazer.
Por outro lado, membros de grupos e instituições sociais que gozam de maior poder – mormente as elites – detêm o privilégio do acesso mais ou menos exclusivo a um ou mais gêneros de discurso público, exercendo controle sobre esses gêneros. Destarte, os professores universitários controlam o discurso acadêmico; os professores de escola, o discurso educacional; os jornalistas, o discurso midiático; os advogados, o discurso jurídico; os políticos, o discurso da política e de outros assuntos públicos. Quanto maior for o controle dos agentes sociais sobre a maior quantidade de discursos, sobretudo os mais influentes, tanto maior será o poder exercido por esses agentes.
No que se seguirá, serão apresentadas algumas considerações sobre o poder da mídia, com especial destaque ao discurso jornalístico.
Não resta dúvida de que a mídia é um instrumento ou espaço de poder no mundo contemporâneo. Não resta dúvida de que ela desempenha um papel sobremaneira relevante na disputa pela hegemonia, na promoção de ideias identitários, na regulação e normatização de comportamentos, na administração da memória, na constituição da chamada opinião pública e na formulação de agenciamentos democráticos. Sim, a mídia é um poderoso dispositivo simbólico capaz de influenciar significativamente, de formas variadas, a vida cotidiana e a atuação política dos indivíduos – isto é, a maneira como eles agem, sentem, desejam, lembram, convivem e resistem. Entretanto, a mídia não é apenas um instrumento de dominação burguesa; é também uma instância de luta político-cultural, na qual se confrontam diferentes discursos, ideologias e forças sociais. Destarte, ao mesmo tempo que a mídia legitima e sustenta a ação coercitiva do Estado, moldando a vontade política da sociedade, ela oferece também um espaço dinâmico e dialógico de manifestações contra-hegemônicas, de expressão e encenação de vozes dissonantes de atores sociais interessados na criação de novas formas culturais de viver e na criação de uma nova ordem social.
Quando pensamos na influência da mídia na formação da opinião pública, devemos ter em conta que o que se chama de “opinião pública” é sempre um ponto de contato entre o consenso e a força. Os chamados órgãos formadores da opinião buscam captar e expressam o consenso da maioria, consenso este que justifica, legitima e dá sustentação ao poder e à ação coercitiva do Estado. O Estado, quando pretende tomar medidas impopulares, cria preventivamente a opinião pública que lhe é adequada, a fim de obter o consenso geral. Se é verdade que a Rede Globo e um jornal de grande circulação nacional como a Folha de São Paulo cumprem inegavelmente uma função de direção político-cultural, não se deve daí concluir que sejam meros porta-vozes dos interesses das classes dominantes. A Rede Globo, a Folha, o Estado de São Paulo, a Veja constituem um coletivo intelectual que se ocupa da formulação e da elaboração sistemática da ideologia indispensável à dominação do grande capital financeiro. Todas essas instâncias midiáticas modelam a opinião pública e criam o clima cultural favorável e indispensável às reformas liberais de um Governo, como por exemplo, às privatizações do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mídia, como partido, “captura” as “paixões elementares” das massas, organiza-as e acomoda, com bastante eficiência, a visão de mundo da sociedade às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e aos interesses dos grupos de poder.
A maneira mais elementar e provavelmente mais fácil de o discurso jornalístico formar a opinião pública e expressar o consenso da maioria é reforçando a crença na objetividade do próprio discurso jornalístico. Como o homem comum acredita que usamos a língua para nos referir a um mundo externo de objetos que existem previamente e independentemente da linguagem e da percepção-cognição humanas, não surpreende que ele imagine que, diante de uma notícia que está lendo, ele está diante do que realmente aconteceu. Por acreditar numa relação especular entre a linguagem e o real, o homem comum crê que usamos a língua para falar de um mundo de objetos discretos previamente existente e que a função da língua é apenas fornecer descrições fiéis de estados-de-coisas no mundo. É preciso, no entanto, quebrar o encanto!
O homem, enquanto ser social, é construtor do mundo; e o homem é construtor do mundo porque ele é aberto para o mundo. Consoante ensinam Berger & Luckmann (2007, p. 142), “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização contínua”. Ao se exteriorizar, o homem constrói o mundo em que se exterioriza. No processo de exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados. O homem é produtor de significados, e estes significados não existiam antes do advento do homem. Para que fique clara a importância da linguagem no modo como experienciamos a realidade, devemos atentar para como Berger & Luckmann definem o que chamam de universo simbólico:

“O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo.” (ibid., p. 132).


Note que os autores ensinam que todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente experienciados como reais são produzidos por essa matriz criadora chamada “universo simbólico”. Ainda segundo os autores, “toda a realidade social é precária” e “todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141). Os universos simbólicos, sendo sempre construções linguístico-cognitiva-sociais, recobrindo e totalizando a realidade humanamente dotada de sentido e o cosmo inteiro, proclamam o valor da existência humana – valor, no entanto, que inexiste fora desses universos simbólicos. Os universos simbólicos são as extensões máximas da projeção humana de significados na realidade. Quando eles são questionados e abalados quer por movimentos sociais contestatórios ou revolucionários, quer quando são ameaçados por epidemias e pandemias, a fragilidade da realidade social que eles sustentam é exposta. É o universo simbólico que integrará e unificará todos os processos institucionais. Graças a essa integração e unificação realizadas pelo universo simbólico, a sociedade inteira ganha sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização em um mundo compreensivelmente dotado de sentido. O universo simbólico ordena a história, o que significa dizer que ele localiza os acontecimentos coletivos numa unidade coerente que abriga o passado, o presente e o futuro. No que diz respeito à sua relação com o passado, o universo simbólico estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. O universo simbólico também constrói um quadro de referência comum para a projeção de ações individuais. Assim, o universo simbólico cumpre a função de ligar os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, possibilitando a eles transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual. Finalmente, o universo simbólico permite que todos os membros de uma sociedade possam conceber-se como partes integrantes de um universo dotado de sentido, que existia antes de terem nascido e que continuará a existir depois de morrerem. É toda a comunidade empírica de seres humanos que é transportada para um plano cósmico e tornada majestática e ficcionalmente independente das vicissitudes da existência individual. Novamente é Berger & Luckmann que assinalam o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade:

“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (ibid., p. 61).


A linguagem constrói esquemas de classificação ou categorização para diferenciar objetos em gênero e número. A linguagem constrói campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes ao meu trabalho constitui um campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos da rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser objetivada, conservada e acumulada.
Contrariamente ao realismo ingênuo, o homem não se relaciona com um mundo povoado de coisas independentemente da linguagem e as quais seriam nomeadas pelas palavras, que funcionariam como espécie de “etiquetas” para essas coisas. O referente é um evento cognitivo, produto de nossa percepção moldada discursivamente. A práxis, definida como conjunto das atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, sobretudo, as condições da existência de uma sociedade, modela a percepção/cognição e gera a significação do mundo. O indivíduo percebe o mundo e o capta intelectivamente através de “óculos sociais”. São através dos estereótipos da percepção, isto é, dos padrões ou modelos perceptivos que vemos a realidade e que fabricamos o referente. A língua une de modo indissociável percepção e cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não programado pelos corredores de estereotipação. Assim, nossa cognição está submetida a um processo de estereotipação contínuo, de sorte de que consideramos real e natural todo um universo de referentes e realidades fabricadas.
Todos os significados produzidos pelos universos simbólicos são socialmente construídos. Há uma íntima relação entre percepção, cognição, linguagem e cultura. São os sujeitos que constroem, mediante práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, as versões públicas do mundo. Segue-se daí que as categorias e objetos de discurso (os referentes) não preexistem às práticas discursivas e cognitivas, mas são elaborados nessas práticas e transformados segundo contextos.
Interpretar é necessariamente uma operação sociocognitiva por meio da qual o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas sempre para outro sujeito. Destarte, toda experiência social é semiotizada: atua-se numa situação social investida de sentido e reconstruída pelos esquemas mentais dos interactantes.
As categorias cognitivas ou linguísticas não existem a priori como entidades ontológicas (coisas no mundo). Elas são construídas no processo de referenciação, por meio do qual objetos cognitivos e discursivos são construídos nas práticas intersubjetivas das negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.
Tendo em vista o exposto, urge reconhecer que o discurso jornalístico não produz senão uma ilusão de objetividade. O mundo que nos é representado nas notícias ou nas reportagens é um mundo que passou por processos de edição, ou seja, um mundo redesenhado, redefinido num trajeto atravessado por milhares de filtros até aparecer no rádio, na televisão ou no jornal. A notícia, embora seja um produto real que pode ser lida ou vista, é sempre um símbolo, já que se põe no lugar de outra coisa. Não obstante, a famigerada objetividade do discurso jornalístico é alardeada por especialistas como um princípio ético que torna os gêneros jornalísticos práticas discursivas comprometidas com a “verdade”. Acontece que a crença na objetividade apaga a existência de um sujeito interpretante. Evidentemente, a objetividade do jornalismo é difundida pelos próprios meios de comunicação como garantia de credibilidade e como forma de manter a confiança de seu público, que espera saber o que é e o que não é verdade sobre o mundo. A suposta imparcialidade e neutralidade das informações veiculadas e a afirmada independência do repórter visam a assegurar que o produto midiático é um espelho da realidade. O jornalista seria, assim, responsável por produzir cópias fiéis da realidade.
O leitor, imaginando que está diante do que realmente aconteceu, ignora todo o processo de criação e seleção existente no ato de reportar um fato. Sem embargo, uma vez estejamos convencidos de que há uma complexa interação entre cognição-percepção, linguagem e práticas culturais na fabricação da realidade, o que chamamos de “fatos” são constructos sociocognitivos, em cuja base estão teorias, conceitos, sensações, sistemas, contextos, conhecimentos, linguagem. O discurso jornalístico não descreve ou retrata o mundo objetivo, o mundo aparente e externo à nossa consciência, mas fornece uma versão imagética do mundo, constrói a realidade segundo uma série de processos que culminam na fabricação do fato jornalístico. O jornalismo opera um tratamento simbólico da realidade, mas jamais um retrato do mundo.
Ao pretender relatar os acontecimentos do mundo, o discurso jornalístico discrimina objetos (fatos) já previamente selecionados e nomeados por uma pauta escrita (lista), uma teoria subjacente ou esquemas mentais. Depois de apurada, ou seja, depois que se ouvem possíveis testemunhas do ocorrido e que fontes tenham sido checadas, esta lista e todos os dados são usados para a redação de um texto – a notícia ou a reportagem -, que não sendo um retrato fiel da realidade, é um modelo, uma versão pública do real, cuja construção depende da interface linguístico-cognitiva. Não se trata de negar que exista um mundo externo à mente, mas de fazer compreender que as formas como experienciamos/percebemos o mundo são estruturadas pela linguagem. Vemos e distinguimos as “coisas” como são percebidas e categorizadas pela linguagem.
O discurso jornalístico trabalha tanto com fatos sociais quanto com fatos institucionais. Os fatos sociais dizem respeito a tudo que ocorre na vida em sociedade, a estruturas e contextos, a ambientes onde a atividade social humana acontece. Os fatos institucionais, por sua vez, pressupõem o consenso humano. Exigem uma instituição humana para existir. Por exemplo, para que um pedaço de papel seja considerado um dinheiro, é necessário que seres humanos concordem entre si em atribuir a ele a função de representar sistematicamente o valor de outras coisas em suas relações comerciais. Fatos institucionais não são naturais, mas criações, ficções humanas.
Do repórter que noticia determinado acontecimento até o telespectador/leitor que sobre esse acontecimento se informa, a “realidade” é submetida a vários processos de reconstrução, seleção, adaptação e edição, que tornam o produto final algo diferente e estranho à realidade “objetiva”. A objetividade aparente da informação é, por si só, um instrumento de legitimação de todo o processo de codificação. O leitor de um jornal, por exemplo, acredita estar recebendo um “retrato” da realidade sem distorções ou manipulações. Sob a aparência de se fazer um trabalho objetivo, ao noticiar apenas um fato tal como aconteceu, vela-se um poderoso aparelho ficcional (de invenção, de criação), mediante o qual a realidade é fragmentada, reunida, editada, adaptada e interpretada segundo a ideologia da instituição jornalística. Em suma, a notícia ou a reportagem não é a “realidade”, mas uma representação ou construção ficcional da realidade. Habitando os porões da vida cotidiana, o homem comum ignora que “a linguagem constrói (...) imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo”. (ibid.). Quando se trata de pensar em que medida a existência humana é dependente de uma rede simbólica tecida e mantida pela linguagem, convém sempre atentar para a lição de Castoriadis:

“Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (Castoriadis, 1982, p. 142).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A fabricação social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DIJK, van Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
____________. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Luciano A. Van Dijk. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.