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sexta-feira, 10 de junho de 2022

"Não é a satisfação da vontade que é a causa do prazer (...), mas o fato de que a vontade quer ir avante e quer ainda assenhorear-se do que encontra em seu caminho" (Nietzsche).

 




              O prazer e a dor à luz do perspectivismo nietzschiano

 

“O homem – escreve Nietzsche – não busca o prazer e não se esquiva do desprazer”[1]. O homem quer o mesmo que o mais rudimentar organismo vivo quer: um aumento de potência. Ao ter como fim o aumento de potência, é inevitável que na busca desse aumento de potência concorram o prazer e o desprazer. O desprazer é necessário para toda vontade de potência que deve opor resistência a um obstáculo. O desprazer é, assim, um “ingrediente” normal de todo fenômeno orgânico, de sorte que o homem não foge do desprazer, mas tem necessidade dele. O prazer e a dor, segundo Nietzsche, não são contrários. Não raro, o prazer se faz acompanhar de uma série de desprazeres que leva a um crescimento da vontade de potência. A vontade de potência que “quer” aumentar sua potência deve impor resistência a toda sorte de obstáculo. Assim, no fragmento 304 de Vontade de Potência, observa Nietzsche:

 

Há casos em que uma espécie de prazer é condicionada por uma certa sucessão de pequenas crispações de desprazer: atinge-se, assim, a um crescimento bastante rápido , do sentimento de potência, do sentimento de prazer. (...). Um pequeno obstáculo é suplantado, mas imediatamente segue-se outro que também é suplantado – esse jogo de existências e vitórias estimula ao máximo o sentimento geral de potência, supérfluo e excessivo; constitui precisamente a essência do prazer. (ênfases no original).

 

Para Nietzsche, a essência do sofrimento não consiste numa diminuição da vontade de potência, ou “do sentimento de potência”. A dor pode ser um estimulante para o acúmulo de potência, ao menos para o tipo humano afirmador. O que determina o que provoca prazer e o que provoca desprazer é o grau de potência de uma vontade de potência, de tal sorte que “a mesma coisa, em relação a uma pequena quantidade de potência, manifesta-se como um perigo e a necessidade de evitá-lo logo que possível pode, quando se tem consciência de uma potência maior, trazer consigo uma excitação voluptuosa, uma sensação de prazer”. (ibid., § 306).

O prazer não se dá como resultado da satisfação da vontade; a satisfação da vontade repousa sobre o fato de ela superar-se, de ela querer assenhorear-se “do que encontra em seu caminho”. (ibid.). O prazer reside justamente nesse avanço da vontade de encontro com aquilo que se lhe apresenta como obstáculo ao qual ela impõe resistência; o prazer já se encontra no embate da vontade contra um adversário. Para Nietzsche, o “homem feliz” que se reconforta na ataraxia é o ideal do rebanho. Tomar como critério de avaliação do mundo a quantidade de prazer alcançado é uma atitude própria do tipo humano cansado da vida, para quem “o mundo é algo que razoavelmente não deveria existir porque ocasiona ao sujeito sensível mais desprazer que “prazer””, visão esta a que Nietzsche acrescenta o seguinte comentário – “semelhante palavrório chama-se hoje pessimismo”. (ibid. § 312).

O pessimista, que desaprova a existência em virtude da quantidade de desprazer e/ou de dor que ela abarca, não vê que toma como causa de sua rejeição apreciações de valor. O desprazer e a dor são valores com os quais ele julga nociva a existência. Mas esse julgamento tem como base o sentimento. Nietzsche é incisivo ao rejeitar tal julgamento de superfície: “Eu desprezo este pessimismo da sensibilidade: é um traço de profundo empobrecimento vital”. (ibid.).

Pretender determinar se a vida tem ou não valor segundo a quantidade de prazer e/ou desprazer que ela encerra é ignorar que, na avaliação, o indivíduo se vale de sentimentos como meios pelos quais ele julga a vida. Mas pergunta-se Nietzsche como podemos determinar o valor do valor. O valor do valor não pode ser determinado segundo tais sentimentos agradáveis e/ou desagradáveis. Disso resulta que é somente a quantidade de poder aumentada e organizada que pode determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Em outras palavras, o homem habitualmente decide sobre o valor ou não da existência com base em sua consciência, a qual não é mais do que um instrumento a serviço da vontade de potência . Nietzsche considera como erro o assumir a consciência, mero instrumento da vida em geral, como valor superior da vida, como medida para avaliá-la. Quem toma a consciência como medida para julgar a existência toma a parte (consciência) pelo todo (vontade de potência).

 

A “negação da vida” considerada como finalidade da vida, como finalidade da evolução! A existência como grande tolice! Uma interpretação tão louca é somente o produto monstruoso de uma avaliação da vida por meio de fatores da consciência (prazer, desprazer, bem, mal)

(...) Mas o defeito de uma tal interpretação reside precisamente no fato de que em vez de procurar a finalidade que explica a necessidade de semelhantes meios, pressupomos, de antemão, uma finalidade que os exclui: quer dizer que consideramos como normas nossos desejos em relação a certos meios (meios agradáveis, racionais, virtuosos), estabelecendo, segundo eles, a finalidade em geral que é desejável...  (ibid., § 315, grifo nosso).

 

 

A expressão “negação da vida” que encabeça o excerto supramencionado sinaliza uma crítica às formas que assumem o instinto de decadência (por exemplo, a filosofia pessimista de Schopenhauer, o cristianismo, o budismo...) que tomam como critério de valoração da vida a quantidade de desprazer que ela provoca. Cada uma das formas que assume o instinto de decadência é uma vontade de potência, embora fraca. Cada uma dessas formas do instinto de decadência que toma como finalidade da vida “a negação da vida” constitui uma interpretação da vida, a qual reflete uma vontade de potência enfraquecida, esgotada. Todas essas formas condenam a vida em favor de alguma outra coisa. No pessimismo de Schopenhauer, a vida é condenada em favor da supressão de todo desejo, de todo querer; no cristianismo, em favor do além-mundo, do Reino de Deus; no budismo, em favor do Nirvana.

Sabe-se que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de potência que ele afirma, por outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de potência, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito.

 



[1] Vontade de Potência 2011, § 303.