sexta-feira, 23 de setembro de 2011

"Ser romântico é estar grávido de um amor que o mundo quer ver abortado" (BAR)

                            




Sobre o romântico


Na entrevista concedida a Jô Soares, em 1994, Renato Russo se diz romântico, após ter sido perguntado pelo apresentador se ele era um lírico. Jô aprecia a distinção entre ser lírico e ser romântico e esclarece: “o romantismo tem uma conotação de tragédia que o lirismo não tem”.
Uma pessoa razoavelmente instruída em Literatura, provavelmente, será capaz de reconhecer que temas como amor e morte, como fuga à ilusão amorosa, ao desencanto do real são constantes na literatura romântica. O Romantismo, como movimento estético-literário, é, tradicionalmente, estudado considerando-se três gerações através das quais se construiu a obra e o ideário romântico: 1ª geração se caracterizava pelo lirismo, subjetivismo, sonho, exagero, nacionalismo, idealização da mulher, do amor, da pátria. Nessa fase, a mulher era alçada à condição de anjo, sublimada, era considerada a virgem intocável, pura; era objeto de admiração, de veneração. O amor era o bem maior, sublime. A 2ª geração se caracterizava por um profundo sentimento de pessimismo e pelo gosto pela morte. Também a religiosidade e o naturalismo eram temas recorrentes. Embora fosse uma figura, então, alcançável, a mulher ainda era, nessa fase, pensada como fonte de uma felicidade inatingível. É sempre bom enfatizar que o amor romântico alimenta-se da alma e não do corpo. É à alma que ele se destina. "Páginas felizes são páginas em branco na história do amor romântico". O sofrimento é inevitável, já que a essência do amor romântico inclui o sofrimento. A segunda geração ficou conhecida como a geração do mal do século, visto que seus representantes derramavam sobre o papel denso sentimento de pessimismo, desilusão e melancolia. 
A 3ª geração é uma geração mais atenta aos problemas sociais, embora a crítica contemplasse uma grande dose de ironia e sátira. Nessa fase, a mulher ainda era idealizada, embora acessível.
Comuns às três fases do romantismo são a idealização, o egocentrismo, o subjetivismo, a exacerbação do sentimento ou o exagero lírico e o sublime. Convém insistir que o amor romântico é amor de desmedida, do exagero –  exagero tão bem cantado por Cazuza.
Anterior ao movimento conhecido como Romantismo (séc. XVIII), o Trovadorismo (séc. XII) serviu de modelo para o ideário romântico. Trovadores eram homens que compunham poesias melodiosas; as poesias, que eram cantadas, chamavam-se cantigas.
Uma cantiga merece destaque, para os fins que persigo neste texto: a cantiga de amor. Ela instaura uma relação de vassalagem entre o cavalheiro e a dama cujo amor aquele requestava. Essa dama era uma figura idealizada, sublimada e, portanto, inatingível. A ela se atribuía o título de senhora e o poeta trovadoresco punha seu coração a serviço dela. O poeta conservava o medo no coração e a dama rejeitava sua cantiga. Instaurava-se nessa relação a impossibilidade de realização do amor. Novamente aqui vê-se o amor como um ideal, como um desejo cuja satisfação estava fadada à impossibilidade.
Alguns estudiosos afirmam que a estética romântica se destaca pelo seu caráter atemporal, ou seja, foi um movimento que perdurou por séculos e que, ainda hoje, encontra raízes na literatura. Mas devemos lembrar que, talvez, o poema mais emblemático da rejeição dos valores românticos, com o surgimento de um movimento cultural, de caráter político, ideológico e literário, chamado de modernismo, na primeira metade do século XX, seja o poema-pílula de Oswald de Andrade, um dos grandes representantes do movimento modernista. O poema intitula-se de “Humor”:

Amor
Humor
(Oswald de Andrade)

Devemos ter em conta que o Romantismo aspirou à aliança entre amor e casamento. Melhor será dizer que o amor romântico foi, desde a sua origem, o amor-modelo para o casamento. Vejamos o que nos ensina a esse respeito a professora Isabel Osório, em seu livro O amor em palavras, o discurso amoroso em questão:

“O amor romântico, que surgiu a partir do final do século XVIII, (...) procurou unir amor e casamento. O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com a emergência da novela, uma forma de narrativa recém-descoberta. Os ideais do amor romântico inseriram-se diretamente no pensamento que começava a surgir e vinculavam a liberdade e auto-realização. O amor sublime ainda predomina sobre o amor sexual. Embora o amor romântico abra um certo espaço à sexualidade, essa abertura não é tão grande ainda. Os ideias da virtude ainda são valorizados, só que agora virtude significa pureza somada às qualidades de caráter necessárias à mulher para o casamento”
(p. 67)
(grifo meu)

Em sendo um amor voltado para a alma, o amor romântico não encontrará na experiência sexual sua fonte de inspiração. De certo modo, parece haver um consenso entre os estudiosos que as aspirações românticas, o ardor que as anima, o ímpeto lírico tendem a arrefecer uma vez consumada a relação sexual. Uma vez correspondido, o amor romântico alcançará outra forma de ser: o amor philia (o da amizade). A euforia romântica dá lugar à afeição amistosa que, não deixando de basear-se no desejo sexual, encontrará no ser do outro um refúgio. Segundo Spinoza, essa forma de amor é “uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Trata-se do amor como regozijo pela própria existência do outro.
No Banquete, uma das formas como se representa o amor é o amor-eros, ou seja, o amor da falta, da carência. Eros era filho de Penúria, a Pobreza. O amante busca no objeto de amor o que lhe falta. Segundo Alain, “amar é encontrar sua riqueza fora de si”. Nesse sentido, o amor identifica-se à paixão.
Se considerarmos o fato de que a representação do amor romântico encontra na alma sua fonte de inspiração e se considerarmos o fato de que essa forma de amor busca enaltecer as virtudes do ser amado, não nos será custoso admitir que, na modernidade líquida (em nossa era), o amor romântico é lançado por terra em face da ideologia que separa sexo de amor. Este último é encarado como uma experiência confusa, indiscernível e pouco tangível. Donde se segue a insistência em que “homens fazem sexo” e “mulheres fazem amor”.
Acontece que a história nos mostra que o amor, como um bem maior, como a virtude sublime, sempre aspirou à eternidade, à superação da morte. E, quando vivenciado, levava o espírito dos amantes ao arrebatamento, ao delírio, aos eflúvios da imaginação, do sonho. Por isso, numa época em que impera o efêmero e a supervalorização dos corpos, como forma de capital, é pouco provável que uma forma de amor, inspirada nas sutilezas do espírito, no gênio lírico, resista.
Com Bauman, em seu Amor líquido, ponho fim a este texto. Atente para as preciosas palavras do autor:

“O homo sexualis não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um processo, cheio de tentativas e erros, viagens explanatórias arriscadas e descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres ilusórios”.
(p. 75)

O romântico é, por definição, a encarnação da negação do mundo; filho do exagero, encontra no amor o alento para a vida que caminha para a morte inevitável.


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"O AMOR não basta num instante, porque aspira à eternidade" (BAR)


                          Das aparências       
                A infidelidade de nossos dias

Em Amor líquido (2004), Z. Bauman – nosso já conhecido sociólogo polonês – faz a seguinte observação no tocante à liquidez dos vínculos humanos:

“O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. (...) A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor”.
(p. 96)

O autor, como se vê, aponta-nos um caminho fértil para pensar os relacionamentos líquidos da modernidade líquida. Esse caminho é o caminho da tendência desenfreada ao consumo que se ancora na insaciabilidade dos consumidores. O consumo só é possível se os consumidores permanecerem sempre insaciados.
O comportamento consumista, caracterizado pela aquisição crescente de produtos e posterior descarte (já que para se consumir mais e mais é necessário que os produtos sejam cada vez mais descartáveis), se reflete, ou melhor, se estende às esferas dos relacionamentos afetivos. É a ideologia do consumo que rege o comportamento de homens e mulheres quando se relacionam.
Bauman lembra-nos também a tendência comum às sociedades modernas a reificar o homem, ou seja, a torná-lo objeto para o prazer imediato e interdito. Homens e mulheres são transformados, por força das condições consumistas, em objetos de consumo (bocas, nádegas, ancas, genitálias são consumidas sem despender qualquer energia anímica).
Esse consumo desenfreado de corpos deseroritiza os indivíduos. Essa deserotização (negação de Eros) consiste na tendência generalizada à vivência de relações frágeis e esvaziadas de sentimentos. O esvaziamento de alma parece estar no cerne dos relacionamentos epidérmicos.
Guido Mantega traz-nos, com bastante lucidez, uma contribuição que deve ser aqui referida. Em seu artigo Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da dominação, que consta do livro Sexo e Poder, o autor observa:

“Hoje, comparada com a da era puritana da Rainha Vitória, a liberdade sexual aumentou consideravelmente. Porém essa liberdade sexual deve ser entendida entre aspas, pois ela não representa a livre manifestação do princípio de prazer, mas sim uma sexualidade contaminada pelo princípio do desempenho econômico. Trata-se da “dessublimação repressiva”, onde, aparentemente, existe uma liberação do Eros, mas, na verdade, permitem-se as ações, mas não o sentimento. O indivíduo deserotizado, incapacitado de manifestar os seus sentimentos mais profundos, passa a intensificar seus “exercícios” sexuais. Para usar uma imagem pretensamente lírica, é um corpo amando sem alma
(p. 20)
(grifos meus)

Corpos amando sem alma, corpos esvaziados de sentimento, corpos deserotizados, incapazes de plenitude de ser – tudo isso representa a forma de uma sexualidade que é regida pelo “princípio do desempenho”. O princípio do desempenho torna a relação sexual uma relação entre um sujeito e um objeto, e não mais entre dois sujeitos. A suposta liberdade torna-se um condicionamento, não-consciente, a esse princípio regente. Segundo Mantega,

“[o ato sexual] tende a restringir-se a um ato individual, com pouca carga afetiva, e não consegue alcançar a qualidade de uma relação. O prazer mecanizado da sociedade de consumo (com bonecas de plástico, vibradores a pilha e outros engenhos) ilustra bem a solidão e alienação da sexualidade contemporânea”.
(p. 20)
A ideologia consumista está centrada no indivíduo e, portanto, liga-se ao individualismo. É interessante notar, nas palavras de Mantega, acima, que o esvaziamento emocional ou sentimental dos indivíduos torna seus envolvimentos seriamente empobrecidos, porque despojados de profundidade de alma.
È preciso agora compreender em que contexto sócio-cultural vivem esses homens e mulheres que se sentem atraídos por prazeres fugazes determinados pelo imperativo do desempenho.
Em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade, Tomás Melendo se ocupa da predominância do fazer sobre o ser. À página 32 de seu trabalho, escreve:

“[esse indivíduo moderno] no carro tem medo de ficar muito sozinho e, apressando-se, liga o rádio ou põe a mão no celular. E quanto mais veemente o vazio, maior a quantidade de ocupações nas que se refugia para não ter tempo de pensar”.

Ora, trata-se, como se vê, de indivíduos cuja vida se volta incessantemente para o exterior, é atraída pelos ruídos do exterior. São indivíduos incapazes, na maioria das vezes, de experienciar a si mesmos, de se confrontar com o seu próprio vazio. São indivíduos que simplesmente se “di-vertem”, se alienam de si em busca de prazeres fugazes provindos do exterior. Ora, o ser não está fora; está no interior. E é lá que devemos buscá-lo.
Esses indivíduos temem o sofrimento, as decepções, as frustrações e o tédio. Vivem à superfície dos envolvimentos a fim de evitá-los. Necessitam de agitações, de êxtase irrestrito para sentirem-se “plenos”, “livres”. Cuidam insuportável o vazio que os constitui, que aliás constitui o próprio humano em nós. A solidão é a experiência do vazio e esses indivíduos querem afastá-la.
À página 37, Melento faz-nos compreender como esses homens da modernidade líquida vivem imersos num universo de imagens, de simulacros, de aparências e como essa imersão afeta seu comportamento:

“Com efeito, num mundo em que os homens se vêem bombardeados por todo tipo de estímulos sensoriais, a atenção passa freneticamente de um a outro, sem que se saiba deter para tentar penetrar no sentido de algum deles. Assim, artigos ilustres de periódicos e revistas, imagens televisivas, peças publicitárias, efígies de Internet, tudo é “percorrido” por um olhar tanto mais ávido quanto menos capaz, no fundo, de acolher verdadeiramente a realidade. Deste modo, nasce o “equívoco”: “parece que se compreendeu perfeitamente tudo, que se agarrou e expressou, mas na realidade não é assim. Durante anos se vive numa concreta situação, com certas pessoas, seguros de que esse é o nosso lugar, de que as nossas amizades efetivamente o são, estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois, talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma vida verdadeiramente vivida” se esvaece a golpe, revelando-se na sua autêntica face – precisamente um “equívoco” – uma mentira na qual as pessoas se refugiam para livrarem-se da verdade”.


Um exemplo dessa situação são os matrimônios, cada vez mais fugazes. Imersão no mutável, no universo das aparências, a busca por prazeres imediatos e irrestritos, esvaziada de densidade sentimental são subterfúgios de que se socorrem os indivíduos da modernidade líquida para fugir ao encontro consigo mesmo.
Tais indivíduos vivem numa sociedade caracterizada pelo que Gilles Lipovetsky chama “império do efêmero”, ou seja, numa era cuja temporalidade tem curta duração. Nesse contexto, o presente é celebrado, o aqui-agora é a referência em torno da qual se situam as experiências; todo o prazer deve ser buscado nesse curto espaço de tempo. Nesse império do efêmero, predomina a lógica da moda: valorização do novo e do individual. Não há constância, não há permanência; nada se conserva, tudo muda, tudo deve passar (ou como se costuma dizer “a fila anda”).
Vale notar que as críticas de Bauman ao consumismo são orientadas no sentido de trazer à tona sua desvinculação com qualquer finalidade que transcenda a si mesmo. Ou seja, o consumo encontra finalidade em si mesmo; consome-se para consumir.
É nesse contexto sócio-cultural, governado pelo império do efêmero, no qual corpos amam sem alma, que devemos pensar a carência de fidelidade nas relações entre homens e mulheres – relações motivadas pelo imperativo do desempenho e estimuladas pelo imperativo da libido. Predomina-se o instinto fálico (símbolo do poder masculino) que se estende ao comportamento feminino.
A tão proclamada liberação sexual tornou, nas últimas décadas, homens e mulheres meros objetos de consumo sexual. Uma “igualdade” supostamente alcançada a expensas de sua objetificação.
Em outras oportunidades, insisti em que amor pressupõe fidelidade, compromisso, doação. Amar alguém é ser fiel a esse alguém, porque é ser fiel ao amor que se nutre por esse alguém. Na modernidade líquida, em que parece predominar o amor líquido (se é que possamos chamá-lo de “amor”; talvez, melhor dizer “desejo líquido”), fidelidade é incompatível com o padrão que estipula prazo de validade para as relações. Fidelidade requer permanência e, nesse contexto líquido, permanência dá lugar ao efêmero. Fidelidade requer compromisso; mas, num contexto em que predomina o aqui-agora, assumir compromisso é assumir uma grande quantidade de riscos.
Nesse tocante, Bauman tem muito a nos ensinar, quando considera a analogia entre investimentos econômicos e relacionamentos, à página 29:

“(...) Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe?” Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?”.

Mais adiante, acrescenta:

“A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos. Só que nesse caso não existe um mercado em operação e ninguém fará por você o trabalho de ponderar as probabilidades e avaliar as chances (a menos que você contrate um especialista, da mesma forma que contrata um consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no caso dos relacionamentos haja uma infinidade de programas de entrevistas e de “dramas da vida real” tentando ocupar esse espaço). (... ) “Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.

Ora, a fidelidade exige-nos um compromisso com a certeza, com a segurança. Nem o confronto com a certeza, nem a vulnerabilidade às incertezas, nem uma coisa nem outra interessará aos indivíduos ávidos de gozo egóico, de satisfação imediata, de prazeres efêmeros num incessante e renovado consumo desenfreado de corpos desejando sem alma.


"Não sei por que consumimos grande parte do tempo procurando entender os outros, quando deveríamos buscar entender a nós mesmos" (BAR)

                          
                     
                                      O essencial

Para encaminhar estas meditações a bom termo, começarei referindo uns trechos do livro Perdas e Ganhos, de Lya Luft. Aprecio as seguintes passagens e, deitando meus pensamentos sobre elas, os conduzirei por caminhos que, espero, o leitor também possa trilhar:

Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência tem paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda a nossa existência”.
(ênfase no original)

“O meu diminuto jardim me ensina diariamente que há plantas que nascem fortes, outras malformadas; algumas são atingidas por doença ou fatalidade em plena juventude; outras na velhice retorcida ainda conseguem dar flor”.


“Essa mesma condição também é a nossa, com uma diferença dramática: a gente pode pensar. Pode exercer relativa liberdade. Dentro de certos limites, podemos intervir”.
(grifo meu)

“Por isso, mais uma vez, somos responsáveis, também por nós. Somos no míninmo co-responsáveis pelo que fazemos com a bagagem que nos deram para esse trajeto entre nascer e morrer”.
(ênfase no original)

Essas lúcidas passagens se acham à página 27. Uma leitura polifônica nos permitiria ver nelas a voz sartreniana. A influência existencialista é inegável. A autora alude à nossa condição humana de seres pensantes, seres de angústia, em face da consciência da finitude da existência, de seres capazes de exercer certa liberdade, que não é total, mas cerceada por determinadas condições sociais.
Eu gostaria, contudo, de me deter apenas na opinião da autora, segundo a qual existe um núcleo duro em nós (que ela chama de essência, muito embora aqui ela divirja da posição de Sartre, para quem no homem a existência precede a essência). Talvez, ela não assuma uma essência prévia para o homem. Sartre insistiu em que o homem, ou melhor, a sua essência é resultado de suas experiências existenciais; é, pois, na existência que devemos buscar a essência humana. Talvez, não do homem enquanto gênero, mas do indivíduo.
De qualquer forma, estou de acordo com Lya. Há em nós uma essência rija, protegida por fortificações. Essa essência, quiçá, se identifique com o ser. Quiçá, resida nas profundezas daquilo que chamamos, com Freud, de o inconsciente. Essa essência constitui a base do iceberg que é o ‘eu’.
Aqueles que conseguem, ao longo da vida, desnudar a sua essência, ou melhor, parte dessa essência (supondo-se que uma grande porção dela está inconsciente, submersa) e confrontá-la com o mundo vivem autenticamente.
Há, pois, uma essência que nunca será modificada, ou completamente modificada. Mas o que entendo eu por essência? Em filosofia, a essência é uma das divisões do ser, é aquilo que faz da coisa o que ela é. A imutabilidade é atributo intrínseco à essência. Por definição, seguindo a tradição platônica, a essência é a negação da mudança, do devir. A essência é o que permanece inalterado.
Talvez, a esta altura, o leitor tenha ficado tentado a identificar a essência com a personalidade, já que, no homem, a essência é produto da existência. Primeiro existimos para então sermos (essência). No homem, o “eu sou” é “eu existo”. No entanto, a vida nos dá testemunho de que, dentro de uma mesma família, irmãos não têm a mesma personalidade. Embora criados pelos pais, comuns a ambos, cada qual tem seus traços específicos de personalidade. Um seguirá determinados valores herdados; outro dispensará alguns. Evidentemente, nossa formação não se completa na socialização primária (ou seja, no convívio com os familiares). Na verdade, nossa socialização está em aberto e se prolonga pelo resto da vida. Nunca se completa. Ela conta com a nossa participação em outras esferas sociais, donde a influência que exercem sobre nossa personalidade os amigos, os estranhos (“os outros”). Creio em que a personalidade é apenas a superfície que se põe a descoberto na vida social. O essencial em nós liga-se a uma intimidade que só conseguimos revelar num convívio muito restrito e prolongado.
Um casal apaixonado pode, eventualmente, trazer à tona a essência de cada um, mas ainda não me demovi da ideia de que é nos consultórios de psiquiatria que desnudamos a nossa essência. É lá que ela chora, que ela sangra, que ela dói.
Acho que somos grávidos de uma essência que dói. Carregamos o peso dessa dor; uma dor que nos punge sempre que nos damos conta de que somos capazes de pensar e pensar nos coloca adiante e nos lança à angústia. Estamos desamparados, como defendera Sartre? Possível. Fomos lançados à existência, sabemos que ela é finita e enquanto existimos podemos dispor dos pensamentos para buscar entendê-la. No entanto, o desamparo ainda é maior quando não se busca o autoconhecimento, quando não se conhece a essência que torna único cada um de nós.
       O eu só é possível pelo outro, que entre si compartilham o mesmo desejo: o da vida inesgotável

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

poemas





                                                                             
                                                                                 Passarinho

O amor é um passarinho
Que no Céu vive a pairar
Eu, de meu leito, o via pertinho
Levando-me no bico a dor de sonhar.

Descaía suave, cessava o santo vôo
Nos meus lábios, pousava o febril consolo
Dos olhos cerrados, uma lágrima ousada
Pendia ao ver que alheio se afastava

Voava! Na distância constelada e infinita,
Se perdia, ruflando as asas de Ouro!
Se via a mim numa dor incompreendida,

Voltava! De uma compaixão, mimoso,
Consumido. Uma Flor Azul no bico levava
E na mih’alma, jazida, a Flor deixava.

(BAR)





Verme lírico

Toda venusta mulher que a Lira inflama
Leva vaidosa um poeta preso ao sapato
Tépida! Posto que honrada levante da cama
E apaga d’alma o sonho que tem sufocado!

Livre! Leve! Lívia! Namora a vaidade
A mulher que clama e infunde canto
N’alma do poeta – verme lírico e nefando!
Que verte da terra imunda a Eternidade!

Toda bela mulher quando os densos versos
Líricos do poeta merencório, lê altiva
Mais melindroso do poeta o seio fica

Enche-se de entulho verbal anacreôntica ode
A bolsa de quinquilharias, os seios dispersos
Nua, ao deitar, a mulher o sapato remove.

(BAR)