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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

"Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto" (BAR)

            


                Sobre a nossa incapacidade de amar

Quando o assunto é amor, dois coros de vozes se dispõem antagonicamente. De um lado, ouvem-se os otimistas que não cessam de acreditar que o amor é capaz de tudo: ele é constante, eterno e criativo. Estes se acostumaram à crença num caráter salvífico do amor. De outro lado, protestam os pessimistas, que denunciam o óbvio: as expectativas geradas pelo amor são repetidamente frustradas. Estes chegam, pois, a uma conclusão que conta com o testemunho da realidade: a natureza humana não permite que as esperanças do amor se realizem. O amor humano, à luz dessa visão, está atolado em ilusão, encarcerado no narcisismo, na incompreensão, na possessividade e na manipulação egoísta. Freud e Proust (entre outros) são, reconhecidamente, partidários dessa visão.
É notável, contudo, que tanto Freud quanto Proust estejam ainda vinculados a uma concepção cristã do homem, que eles tentaram rejeitar. No seu esforço por substituir as velhas categorias com base nas quais se explica a depravação humana, tais como ORGULHO, LUXÚRIA e IRA, esses autores não fizeram senão dar a elas um tratamento linguístico secularizado, donde a ocorrência de termos como NARCISISMO, PROJEÇÃO e INSTRUMENTALIZAÇÃO DO OUTRO para descrever o que aquelas categorias descreviam.
As dúvidas que eles acalentavam sobre a possibilidade de o homem ser capaz de um amor calcado sobre o despojamento do ego, de um amor altruísta, que seja a expressão de alegria sem a posse do outro, são muito semelhantes às que nutria, por exemplo, Santo Agostinho.
Lembremos o que a tradição cristã nos ensinou sobre o amor. No cristianismo, o amor é a fonte e a medida de todas as virtudes. O amor, como Deus, é eterno. No entanto, quando os pensadores cristãos teorizaram sobre a capacidade humana de amor (vejam-se, por exemplo, Santo Agostinho e Lutero), eles concordaram, em sua maioria, que o amor é uma graça de Deus, de modo que só podemos amar por intermédio de Deus. Agostinho e Lutero ainda estariam de acordo quanto a outro ponto: somos incapazes de amor genuíno. São Tomás, ao contrário, embora aquiescesse à ideia de que o amor genuíno fundamentalmente provém de Deus, acreditava que não somos meros recipientes para a ação de Deus. São Tomás argumentava que temos vontade animada, a qual, com o concurso da graça, poderia se desenvolver até o estágio em que atingiríamos a perfeição espiritual. Ele não negava que o amor – a suprema das três virtudes teologais, às quais se reúnem a fé e a esperança – fosse infundido em nós por Deus; mas não concordava com Agostinho no tocante à crença de que não sejamos naturalmente capazes de amar (tendo sempre em conta a concepção de amor cristão).
Se articularmos a visão cristã sobre a incapacidade humana de amor genuíno, tal como sustentada por Santo Agostinho – visão também ela pessimista – à visão secularizada do pessimismo de um Freud ou de um Proust, não será difícil concluir que a capacidade de amor não é possuída por todos; o amor está entre os mais raros de todos os talentos. Ele é tão excepcional quanto a capacidade que tem um grande artista de deixar-se penetrar pelo mundo para recriá-lo através de sua arte.
O que a experiência cristã e os teóricos da visão de mundo secularizada nos ensinam a respeito do amor é que ele exige um longo e meticuloso trabalho e aprendizado. Todos nós desejamos amar, mas nem todos dispomos de suficiente vontade e talento para tanto.




(BAR)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

"A religião é comparável a uma neurose da infância" (Sigmund Freud)

                               


                                     Psicanálise e religião
                                      A visão freudiana

    Minha imersão no universo da filosofia se deu sem muito esforço, sem trauma, sem aridez. Não posso evitar o clichê: foi naturalmente que me percebi seduzido pela filosofia, não como saber acadêmico, um saber engessado que é sinônimo de erudição, mas como exercício de existência; como prática de aprender a viver e a morrer. Minha imersão na filosofia foi uma consequência natural do amor ao saber, da dedicação incessante à leitura, ao aprendizado que daí decorre naturalmente. A filosofia conciliou-me com a vida, com a sua aridez e dureza. Mas não se enganem: não espero tanto assim da filosofia; apenas que ela me acompanhe e eu a ela, que, em seu exercício, eu continue aprendendo com ela, sem medo dos erros e dos equívocos a que todo pensador está inevitavelmente exposto. Errar quando pensamos não é razão de vergonha; mas de humildade, é errando em nossos raciocínios que buscamos aperfeiçoá-los. A filosofia, para mim, não é um cânone para pensar "corretamente", mas um caminho para pensar com liberdade, com honestidade, pouco importa por que caminhos retos ou tortuosos trafegarão os pensamentos. A filosofia é um exercício de autotranscendência, que deve ser assumido por cada um que mantém para com ele uma abertura. Abrir-se à filosofia é insuflar todo o espírito, o corpo, o coração de uma potência de existir. E a alegria do filósofo reside onde o homem da rua só vê inquietação e tristeza: na solidão dos pensamentos. É aí que mora a alegria do filósofo.
(BAR)

É com uma débil frustração que me debruço sobre a escrita deste texto, pois que, antes de iniciá-la, detive-me, por algum tempo, a procurar um texto que havia escrito, outrora, que versava, em parte, sobre o tema que desenvolverei aqui. Pretendia recuperar algumas ideias que externei naquele texto. Embora eu o tenha preservado em sua versão impressa, custa-me agora encontrá-lo.
 Afirmo, no entanto, ser uma débil frustração, porque ela se acompanhou de um indiscernível contentamento quando de minha redescoberta da quantidade de textos que estão arquivados em meu computador. Esses textos foram compilados em apostilas e muitos dos quais remontam a experiências intelectuais vividas há quase dez anos. Agradou-me entrever a mudança atravessada por meu espírito nas verbalizações em que ele deu testemunho de si. Ao revisitar esses textos, apreendo uma imagem de meu eu bastante distinta da imagem deste meu eu atual. O meu eu de outrora nutria algumas ilusões a respeito do mundo e de si mesmo, tomando-as como verdades para si. O meu eu atual não é, contudo, menos iludido, apenas tem consciência de que a ilusão é parte do real. Esse meu eu atual sabe que não existe enquanto substância. Ele nada é senão projeções imaginárias de um cérebro que, lhe conferindo uma substancialidade, o faz acreditar ser algo distinto do corpo ou, pelo menos, uma entidade que possui um corpo, embora reconheça que não pode existir independentemente do corpo. Muita tinta já correu para dar conta do valor de verdade de proposições como “eu tenho um corpo” e “eu sou meu corpo”. No primeiro caso, supõe-se a independência do “eu” em relação ao corpo, afirmando ser o “eu” uma substância que possui um corpo (outra substância). No segundo caso, estabelece-se uma relação de identidade entre o “eu” e o “corpo”, muito embora não se explique como esse corpo é capaz de asseverar essa identidade sem que se suponha justamente a inexistência dessa identidade, isto é, sem que se suponha um eu que, no ato de afirmar, coloque o corpo como objeto para si. Em outras palavras, afirmar que “eu sou meu corpo” parece complicar mais do que esclarecer o problema da relação mente-corpo que, em última análise, é o problema, ainda muito pouco compreendido, nas neurociências, da consciência, não só do que ela é, mas da possibilidade mesma de sua existência. Nossa intuição natural ou espontânea leva-nos a pensarmo-nos como “eu” irredutível ao corpo. Nós não escapamos dessa ilusão. Percebemo-nos como um “eu” singular, distinto, sentimo-nos como um “eu” que não se reduz ao corpo que, no entanto, é tomado como uma máquina “habitada” por esse “eu” (isso nos encaminha a questão denominada de “o fantasma na máquina”, que é uma crítica que o filósofo Gilbert Ryle fez do dualismo cartesiano).
Não me sinto suficientemente capaz de discutir, por ora, esta questão, nem tenho a pretensão de fazê-lo. Este texto é produto de algumas horas de pesquisa sobre a teoria psicanalítica de Freud, e sua produção e divulgação atendem ao meu interesse de apresentar, com o esmero que a tarefa demanda, como Freud explicava o fenômeno religioso a partir do aparato de conceitos e teorias psicanalíticas que desenvolvera. Não farei incursão imediata nessa questão, porque me parece indispensável situar o leitor na teoria psicanalítica de Freud. O que se seguirá, portanto, é a exposição dos pressupostos e conceitos de que se constitui essa teoria. Procurarei elucidá-la de modo mais didático possível.

1. O Desejo humano

Este é um hábito que incorporei: entretenho-me com meus próprios pensamentos, abandono-me à corrente impetuosa de palavras e fico a navegar em pensamentos, oscilando entre ideias serenas e crenças arrebatadoras. Consumo muitas horas do dia, buscando, muita vez, com esforço árduo, arranjar alguns pensamentos no papel, travando com a língua um embate que somente os poetas parecem capazes de vencer, uma vez que todo bom poeta força as palavras a testemunharem a ausência de formas de expressão, quando a linguagem teima em impor-nos ao pensamento os limites dela.
Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus próprios sentimentos? Antes, porém, de despender esforços para desenvolver essas questões, refiro um trecho, muito esclarecedor, de um artigo do psiquiatra Fábio Herrmann, que se topa num livrinho da série primeiros passos, da companhia Círculo do livro. O artigo data de 1989. Nele, lemos o seguinte:

“(....) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e o que é pior, quando pequenos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)  (pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Sou um deles. Durante horas, detenho-me a escrever e não faço as refeições habituais do dia.  Ao que parece, a razão, se, por um lado, atraindo o fascínio dos filósofos e cientistas durante séculos, nos confere um lugar especial na filogenia das espécies; por outro lado, torna-nos seres estúpidos – certamente, estranhos -, na medida em que oferece aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Agora, convido o leitor a se deter a pensar no mundo que se agiganta, quando, seja através da janela, seja pelas imagens da televisão, seja nas viagens que realizamos, seja na azáfama da vida moderna nas grandes cidades, olhamos para ele. Nesse mundo, encontramos um universo de práticas, incontáveis construções, instituições (Leis, informações em cascatas, tecnologias, comércio, indústrias, centros de finanças, etc.). Olhemos para esse mundo incessantemente transformado, domesticado pela ação humana. Confrontemos os espaços desérticos e inóspitos à sobrevivência, abandonados pelo poder político, terras onde só germinam doenças, só grassam a pobreza e a miséria, com os grandes espaços urbanos, que são concretizações da ideia de progresso e civilização (melhor seria dizer, ideal de progresso e civilização), com seus edifícios suntuosos e designe moderno, com escolas, universidades, museus e hospitais. Agora, surpreendemo-nos: esse mundo, fabricado segundo o desejo e a vontade humanos, domesticado pelas ações humanas, construído e degradado continuamente pelos próprios homens, esse mundo, que representa bem o desejo humano, é negado pelos próprios homens, que se irritam ao reconhecer que sua obra exprime bem o seu desejo. Estranho? Os homens acreditam, assim, que não tendo humanizado e domesticado o mundo completa e satisfatoriamente, a obra que construíram – o mundo – não é produto de suas ações e que ainda falta uma grande parte para ser domesticada. Estranho? Freud nos explica.
A psicanálise nos ensina que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como veremos, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Refiro as palavras de Herrmann, que sintetizam bem o que me parece ser a eterna incoerência humana:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo”(ib.id.).

Conforme veremos, a psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trata de psicanálise é suficiente para nos levar à compreensão de que a consciência humana é determinada pelos impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.

2. Os fundamentos da Psicanálise

A teoria psicanalítica de Freud baseia-se em dois pressupostos gerais:

a) a sexualidade infantil cumpre um papel fundamental na formação da personalidade;

b) motivos e conflitos inconscientes estão não só na base da formação da personalidade, como também explicam os pensamentos e as ações dos indivíduos.

A palavra personalidade recobre aqui o padrão de pensar, sentir e agir característico de cada indivíduo. Tendo em conta o significado de personalidade que adoto, não exageramos em afirmar que toda a teoria psicanalítica de Freud (provavelmente, toda a psicanálise que tem para com Freud, aí também, uma grande dívida) tem como centro estruturante a hipótese do inconsciente. Em outras palavras, a psicanálise talvez não existisse como tal sem a suposição de que a mente está, na maioria das vezes, escondida.
A psicanálise reza que o que chamamos de mente (que não deve ser confundida com psique) se estrutura em duas “regiões”: uma consciente, que corresponde ao ego; e outra, maior, inconsciente, que compreende pensamentos, desejos, sentimentos e lembranças. É verdade que, entre a consciência e o inconsciente, Freud acreditava existir uma outra “região” chamada de pré-consciente, na qual ficam armazenados, temporariamente, alguns daqueles pensamentos que podem ser acessados na percepção consciente.
Freud esteve principalmente interessado em investigar a grande quantidade de paixões e pensamentos que, segundo ele, nós recalcamos, ou bloqueamos energicamente de modo a impedir o acesso deles à consciência, porque eles seriam fonte de demasiada perturbação para nós. Mais adiante, considerarei, com algum pormenor, o conceito de recalcamento.
Por ora, cumpre reter Freud cuidava que, conquanto não estejamos conscientes destes pensamentos e sentimentos que trazem em si uma carga perturbadora, eles exercem sobre nós uma considerável ou demasiada influência. Nossos impulsos recalcados se manifestariam, no entanto, sob formas disfarçadas. Por exemplo, o trabalho que escolhemos, as crenças que alimentamos, nossos hábitos diários se apresentariam como impulsos disfarçados. Em tempo, darei um exemplo que elucidará como se dá essa operação de disfarce, ou o que Freud viria a chamar de retorno do recalcado, que é justamente o mecanismo psíquico pelo qual os conteúdos recalcados reaparecem na consciência sob formas disfarçadas.
Notemos, desde já, que Freud era um determinista. Nada para ele era acidental.

2.1.. Recalcamento

Com vistas a elucidar o conceito de recalcamento, necessário será explicar o modo como Freud entendia o funcionamento do psiquismo. Inicialmente, é preciso dizer que a psique está em constante tensão. Dizendo com mais rigor, a nossa vida psíquica se estrutura numa tensão da qual jamais se livra. É claro, no entanto, que a psique buscará descarregar tanto quanto possível essa tensão, sem jamais esgotá-la.
Na medida em que o psiquismo está imerso na realidade exterior, é de esperar que ele sofra as influências dessa realidade. Toda excitação é sempre de origem interna, quer se trate do impacto provocado pela visão de um acidente violento de automóvel, quer se trate da fome. Nos dois casos, há sempre uma excitação contínua do psiquismo. Sendo de origem externa ou interna, a excitação provoca sempre uma marca psíquica, “à semelhança de um selo impresso na cera” (Nasio, 1999, p.19).
Essa marca, essa ideia, essa imagem que se imprimiu no psiquismo continua em excitação, de modo que o psiquismo permanece constantemente excitado. A tensão resulta, portanto, dessa estimulação ininterrupta do psiquismo, e o sujeito a experiencia dolorosamente, não sem apelar à sua descarga.
O que Freud chama de desprazer é justamente essa tensão penosa que o psiquismo busca, em vão, descarregar, sem, contudo, lograr êxito verdadeiramente. Por isso, o estado de desprazer é constante, real e irreversível. E o estado de prazer absoluto é sempre ilusório. O desprazer é o aumento ou manutenção da tensão, ao passo que o prazer é a supressão dessa tensão. É Nasio que, em seu O prazer de ler Freud (1999), nos esclarece a respeito dessa condição irremediável de desprazer:

“Todavia, observamos que o estado de tensão desprazeroso e pensoso não é outra coisa senão a chama vital de nossa atividade mental; desprazer e tensão permanecem para sempre como sinônimo de vida” (Nasio, 1999, p. 20).


No psiquismo, nunca há a extinção total da tensão; e o prazer absoluto jamais é alcançado, porquanto a descarga absoluta nunca se realiza.
Essa maneira de esclarecer o funcionamento do psiquismo está calcada sobre o modelo neurológico do arco reflexo com o qual se explica a relação do organismo com o mundo – relação esta que envolve dois extremos: o da extremidade sensível, na qual o organismo percebe a excitação, a saber, a injeção de uma dada quantidade de energia (por exemplo, uma martelada que o paciente recebe no joelho num exame médico); e o da extremidade motora, em que o organismo libera a energia recebida numa resposta imediata do corpo. Nesse circuito, o sujeito recebe a energia, num dado momento, e transforma-a em ação, em outro momento, reduzindo, assim, a tensão. Mas lembremos que o psiquismo não pode funcionar do mesmo modo que o sistema nervoso.
O psiquismo nunca consegue escoar completamente a tensão. Ele reage à excitação por meio de uma metáfora da ação (Nasio, p. 20), uma imagem, um pensamento ou uma fala, em suma, um representante simbólico da ação. Uma vez compreendido como funciona o psiquismo, ficará mais claro entender o que é o recalcamento. Cumpre dizer, pois, que o recalcamento é um dos mecanismos de defesa com que o ego se protege contra a carga pesada da angústia que resulta da guerra interna entre as demandas do id e as imposições do superego. A estrutura do psiquismo demandará nossa atenção em outra seção deste texto.
O recalcamento é o mecanismo pelo qual são afastados da consciência do sujeito pensamentos e sentimentos que lhe causariam angústia.  Segundo Freud, o recalcamento constitui a base de todos os mecanismos de defesa. O recalcamento explica por que não nos lembramos do desejo que nutríamos pelo genitor do sexo oposto. Para Freud, o recalcamento é sempre incompleto. Os impulsos recalcados se manifestam através dos sonhos e dos atos falhos.
Deve-se enfatizar a ideia de que o impedimento da passagem dos conteúdos inconscientes para o pré-consciente realizado pelo recalcamento nunca é completo. Alguns conteúdos inconscientes irrompem na consciência, sob a forma disfarçada, surpreendendo o sujeito, que não é capaz de explicar sua origem inconsciente. Esses conteúdos aparecem na consciência, mas de modo incompreensível para o sujeito, que os experiencia intensamente na forma de angústia.
Vejamos um exemplo, que tomamos a Nasio (p. 26), do modo como o conteúdo recalcado pode aparecer sob a forma de um disfarce. Uma jovem padece de uma fobia de aranhas. No nível da consciência, ela experiencia uma angústia quando se depara com esse inseto que lhe é ameaçador. No entanto, ela é incapaz de compreender que a aranha que lhe incita tamanho temor é o substituto deformado de um aspecto do pai desejado, por exemplo, suas mãos aveludadas. O que está acontecendo aí, segundo a interpretação psicanalítica? A representação inconsciente do amor incestuoso pelo pai rompe a barreira do recalcamento, manifestando-se sob a forma disfarçada na representação consciente de angústia de aranhas.
Relacionemos esse exemplo à lógica do funcionamento do psiquismo, já descrita. Essa forma deformada de manifestação de um conteúdo inconsciente consegue descarregar certa quantidade de energia pulsional. Essa descarga produz um prazer parcial e substitutivo. Substitutivo porque faz as vezes de uma satisfação completa e imediata, que – sabemos – é ideal.
A quantidade de energia pulsional que não transpõe a barreira do recalcamento continua represada no inconsciente, a alimentar incessantemente a tensão penosa. É importante ver que essa descarga é uma forma de prazer, ainda que seja percebida como sofrimento ou angústia, como ilustra o caso da fobia de aranhas.
Na seção seguinte, desço a considerações sobre o que constitui a coluna dorsal da psicanálise, a saber, o conceito de inconsciente.


2.2. Inconsciente

Freud conferiu ao conceito de inconsciente uma extensão sobremaneira significativa, de tal modo que seu significado passou a recobrir não somente a patologia neurótica, mas também todas as esferas da atividade propriamente humana. Nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências, desejos escapa à ação do inconsciente, donde se segue que a fronteira, tão rigorosamente marcada pelo saber psiquiátrico de outrora, entre o normal e o patológico, passou a inexistir.
O que nos ensina, essencialmente, a psicanálise pode ser resumido na afirmação “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. Existe, nos homens, uma força que atua à revelia deles próprios, algo que motiva suas ações, seus comportamentos, sem que eles o saibam. Essa “força” é o inconsciente, que faz os homens agir sem saber o que fazem e por que o fazem.
O que é, então, o inconsciente? É uma hipótese teórica, e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em teoria, opera em nossa mente. Esse sistema explica os motivos que nos impelem a agir e a reagir de tal e qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. A interpretação psicanalítica visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Como é no inconsciente que estão, além de nossos desejos recalcados, nossas pulsões, não se pode tratar do inconsciente sem dizer alguma coisa sobre o conceito de pulsão. As pulsões do inconsciente estão reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas da boa educação e civilização. Por exemplo, um desejo forte como o de pintar a sala de minha casa com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser censurado, para que não chegue à consciência. Mas esse mesmo desejo censurado pode, por vezes, assumir formas disfarçadas e, assim, tornar-se aceitável para os padrões impostos pela sociedade.

2.3. Pulsão

A palavra pulsão traduz mais adequadamente o significado do termo alemão trieb, que a Edição Standard inglesa traduziu como instinct (instinto). Faz-se mister dizer que Freud não define pulsão como instinto, conceito este que designa, para ele, um comportamento próprio dos animais não-humanos determinado pela hereditariedade e característico da espécie. O instinto é bem adaptado para a relação dos animais com o meio em que vivem.
Freud não nega ao homem a disposição biológica, mas lhe acrescenta a irredutibilidade da pulsão ao se debruçar sobre a sexualidade humana. Importa, portanto, de início, frisar duas coisas: 1) Freud não define pulsão como instinto, de modo que quem pensa o termo pulsão, no interior da teoria freudiana, como sinônimo de instinto incorre em erro primário; 2) Freud jamais usou o termo instinto, que só aparece nas traduções de seus textos.
Feitas essas duas observações importantes, continuemos notando que o conceito de pulsão é radicalmente novo e serviu a Freud para abordar a sexualidade humana. Esse conceito lançou luzes sobre o fenômeno da sexualidade humana, de sorte que, sem ele, esse fenômeno permaneceria completamente enigmático.
Excederia os limites estabelecidos para esta exposição o discorrer sobre o conceito de pulsão, patenteando seu desdobramento na teoria freudiana. Cingir-me-ei a notar que o termo alemão trieb , de uso corrente na variedade coloquial, recobre a ideia de impulsão. Ademais, pulsão compreende também o que Freud chamou de estímulos endógenos na sexualidade. O que se dá na sexualidade humana, notara Freud, é algo completamente diverso do que ocorre no comportamento dos animais, o qual é calcado sobre o mecanismo instintual.
A experiência clínica de escuta de pacientes neuróticos, que estavam submetidos à análise, permitiu a Freud elaborar sua teoria das pulsões, graças à qual concluiu que a sexualidade é regida por uma lógica distinta daquela em que se pautam os instintos dos animais.
Freud constatou um fato irrecusável, qual seja, a universalidade das perversões sexuais em seus pacientes. Com base nos relatos de suas pacientes histéricas, apercebeu-se de que eles revelavam uma sedução e um trauma infantil. Daí em diante, Freud desenvolveu a ideia de “infantilismo da sexualidade”, pela revelação de fantasias sexuais nessas pacientes. A noção de infantilismo da sexualidade significa que a estrutura da sexualidade é essencialmente traumática, para todo e qualquer sujeito. Posteriormente, coube a Lacan chamar àquele trauma de trauma de contingência, já que não supõe a ocorrência, de fato, de um trauma sexual na infância do sujeito, mas sim o fato de ser traumática a própria estrutura da sexualidade.
Freud distinguiu na vida psíquica dos indivíduos duas espécies de pulsão: a pulsão de vida e a pulsão de morte. É delas, pois, que me ocuparei a seguir.

2.3.1. Pulsão de vida (Eros) e Pulsão de morte (Tanatos)

No pensamento mítico, Eros simboliza as atividades humanas que se ligam direta ou indiretamente à sexualidade. Na primeira teoria geral das pulsões, elaborada por Freud, Eros era sinônimo de libido ou princípio do prazer. Esse princípio é exclusivamente formado pela energia sexual. Posteriormente, em sua teoria definitiva, Freud tomou Eros como pulsão total de vida (autoconservação), da qual fazia parte o fator sexual em contraste com a pulsão total de morte – Tanatos ou autodestruição.
Consoante advoga Freud, em sua teoria final, Tanatos ou a pulsão de morte representa o conjunto de pulsões agressivas que operam no ego e que visam à destruição da vida. Trata-se de uma pulsão de negação e de regresso ao estado inorgânico, que se revela na compulsão de repetição. Essa compulsão caracteriza o fato de o paciente em tratamento repetir os acontecimentos recalcados, em sua vida, em vez de recordá-los. Essa compulsão causa nele grande sofrimento. Segundo Freud, o termo desta compulsão de repetição do ciclo normal da vida é a morte.
É importante salientar que a teoria freudiana das pulsões foi-se desenvolvendo lentamente. Em seu bojo, reside a dualidade entre o ego ou a pulsão de morte e o id (pulsões sexuais) ou a pulsão de vida (Eros) como base dos conflitos emocionais produzidos no indivíduo por função das finalidades opostas a que servem essas forças primitivas e antagônicas.
Freud, inicialmente, estabeleceu a dicotomia entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais; posteriormente, distinguiu entre pulsões do ego e pulsões sexuais, chegando, por fim, mesmo sem ver corroboradas essas distinções, a definir duas pulsões básicas de todo comportamento humano – vale reiterar – a pulsão de vida e a pulsão de morte. Isso é o que as sabedorias antigas, expressas em mitos e doutrinas religiosas, em sua linguagem própria, viram muito antes da teorização de Freud: a natureza humana encerra o bem e o mal, forças criadoras e forças destrutivas, a luz e a escuridão, o angélico e o maligno. Nem totalmente bom, nem totalmente mau, o ser humano, a julgarmos pelo que nos ensina Freud e o que nos revelam as sabedorias antigas, é dotado de uma natureza conflitual, atravessada por um antagonismo constitutivo, por uma tensão que se inscreve no tecido mais profundo de sua psique.
Atualmente, o conceito dualista de Eros e Tanatos constitui o alicerce da psicologia, e suas implicações para o estudo da própria sociedade são bem reconhecidas, dado que é o amor a expressão psicológica da pulsão de vida, que leva os homens a comportarem-se cooperativamente, é o amor o impulso essencial da união, indispensável, portanto, ao viver em sociedade. Por outro lado, a pulsão de morte, na medida em que se expressa nas tendências negativas e destrutivas do ego, no ódio e na aversão ao estabelecimento de boas relações, seja intrapisíquicas, seja sociais, explica por que a paz e a harmonia social sempiterna só podem figurar no horizonte humano como projeto para sempre irrealizável. É patente aqui o pessimismo schopenhauriano que tanta influência exerceu sobre Freud.

3. A estrutura do psiquismo

3.1. A constituição do aparelho psíquico

Concentrando nossa atenção no estudo da personalidade, que foi definida no limiar deste texto, veremos, doravante, que, para Freud, ela resulta de um conflito básico entre nossos impulsos biológicos e agressivos, orientados para a busca do prazer, e o conjunto de dispositivos sociais coercitivos destinados a controlá-los. No curso de nossa socialização, nós internalizamos esses dispositivos coercitivos na forma de leis, preceitos morais, regras, e, uma vez internalizados, eles entram em conflito com aqueles impulsos originais.
Freud mantinha que a personalidade é produto de nossos esforços por resolver esse conflito básico. A resolução desse conflito dependia de que a satisfação fosse produzida sem que a culpa e a punição sobreviessem a ela. Segundo Freud, os conflitos baseiam-se em três instâncias que interagem entre si: o id, o ego e o superego.
O id compreende o reservatório de energia psíquica inconsciente, que se esforça constantemente por satisfazer os impulsos sexuais e agressivos básicos. O id é regido pelo princípio do prazer e exige gratificação imediata. O id é um substrato inteiramente inconsciente; dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, dizia Freud, o indivíduo todo é um id, que é reorganizado à medida que o indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. A mente humana se estrutura de tal modo, que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica rege-se pelo princípio do prazer; buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo termo libido. O id é um reservatório da libido, portanto. A sexualidade humana não se restringe ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte do nosso corpo.
Os recém-nascidos que berram para que suas necessidades sejam urgentemente satisfeitas constituem exemplos de indivíduos dominados pelo id. Igualmente dominados pelo id são as pessoas que preferem a satisfação no presente imediato em detrimento do sucesso e prazer no futuro.
O ego, a seu turno, opera pelo princípio da realidade. Isso significa dizer que ele busca satisfazer os desejos do id tendo em conta as restrições que a realidade impõe a essa satisfação. O ego buscará, assim, o prazer a longo prazo. O princípio da realidade está calcado sobre a percepção sensorial e a motricidade. Ele rege a atividade do ego, permitindo à psique estabelecer a distinção entre o mundo interior e o mundo exterior.
Sendo a região “executiva” e consciente da personalidade, o ego encerra nossos pensamentos, nossas percepções, nossos julgamentos e nossas memórias parcialmente conscientes. O ego é a instância mediadora entre as exigências do id e as imposições do superego e da realidade.  Por isso, sua realidade fundamental é a angústia. O ego, não podendo satisfazer completamente os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo, para não ser aniquilado. O ego obedece, portanto, ao princípio da realidade, ou seja, busca objetos que satisfaçam o id, sem transgredir as imposições do superego.
O recurso pelo qual são oferecidos ao id e ao superego substitutos para a sua satisfação é chamado de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciências, religião, filosofia, ações éticas, política,  etc.
O superego é a parte da personalidade que fornece os padrões para nossos julgamentos morais. É uma espécie de juiz social, é a voz social da censura e da repressão internalizada na psique. O superego baseia-se nas censuras que a sociedade impõe ao indivíduo. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é a consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições a que se submetem os indivíduos nos processos formativos da sua cultura. O superego forma-se entre os 4 e 5 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente. O superego força o ego a considerar não somente o real, mas também o ideal.
O superego determina ao indivíduo a forma de comportamento socialmente adequado. O superego luta pela perfeição, julga as ações e produz sentimentos positivos de orgulho ou sentimentos negativos de culpa. Uma pessoa que tenha desenvolvido um superego extremamente forte, ainda que seja considerada virtuosa, vive oprimida pela culpa; por outro lado, um superego fraco torna a pessoa indulgente e impiedosa.
A psicanálise reza que a origem de muitas doenças psíquicas e distúrbios do comportamento está em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer são massas de modelar, tintas, coisas cremosas. A terceira fase é a fase fálica. Nessa fase, o prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, o falo. O menino ou a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se objeto de prazer do menino; o pai, da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que irá determinar toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo. Supondo que o leitor conheça a tragédia de Édipo Rei, passarei a esclarecer o que é o complexo de Édipo. Esse complexo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Posteriormente, Carl Jung chamará de complexo de Electra o desejo da menina pelo pai. Em todo caso, o complexo de Édipo – reitere-se – determinará a totalidade de nossa vida psíquica. A saúde de nossa vida mental dependerá do modo como atravessamos essa fase. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, chamado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo (e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição do desejo incestuoso pelos genitores.
É chegado o momento de dizer que as produções de Freud foram alvo de grande controvérsia, muito embora tenham atraído um grande número de admiradores e seguidores. Os chamados neofreudianos, psicanalistas que seguiram, pioneiramente, de perto, as ideias de Freud, acolheram as noções básicas de estrutura do id, do ego e do superego; a importância do inconsciente; a formação da personalidade na infância; a dinâmica da angústia e os mecanismos de defesa. Mas também se distanciaram de Freud no tangente a duas questões importantes. Em primeiro lugar, esses seguidores acreditavam que a mente consciente tinha um papel mais significativo na interpretação da experiência e na relação com o ambiente. Em segundo lugar, duvidavam da tese de Freud segundo a qual o sexo e a agressão deteriam o monopólio das motivações. Por exemplo, Alfred Adler e Karen Horney, conquanto concordassem com Freud no tocante à importância da infância no desenvolvimento da personalidade e da sexualidade, não concordavam com ele na assunção de que as tensões sociais e sexuais da infância fossem tão determinantes da formação da personalidade. Horney chegou a afirmar que a angústia, decorrente de nosso sentimento de desamparo, é causa de desejo de amor e de segurança. Ela também critica Freud por ele supor que as mulheres têm um superego fraco e que elas sofrem de “inveja do pênis”, ponderando sobre o que cuidava ser uma visão machista da psicologia.
Carl Jung, discípulo de Freud, também dissidente, contudo, concordou com Freud no tocante à influência poderosa do inconsciente. No entanto, para Jung, o inconsciente compreende mais do que nossos pensamentos e sentimentos recalcados. Ele advogava que somos dotados de um inconsciente coletivo, isto é, um reservatório comum de imagens produzidas em experiências universais de nossa espécie. É suficiente dizer que o inconsciente coletivo fornece a chave para o entendimento do porquê, em muitas pessoas, as experiências espirituais são arraigadas. Ademais, o inconsciente coletivo permite explicar por que indivíduos que vivem em culturas diferentes compartilham certos mitos e imagens, tais como a figura da mãe como símbolo da nutrição.
Atualmente, a ideia de que o sexo é a base da personalidade é rejeitada por uma grande maioria de terapeutas. Mas a maioria ainda está de acordo com Freud na suposição de que uma grande extensão de nossa vida mental é inconsciente. Essa maioria também anui à ideia freudiana de que travamos uma luta incessante contra conflitos internos entre nossos desejos, nossos medos e nossos valores; quase todos aceitam a ideia de que a infância molda nossa personalidade e nossas formas de nos relacionar com as outras pessoas.

4. Freud e a questão da religião

Como Freud explicava o fenômeno religioso? Vários escritos de Freud dão testemunho de que ele tinha uma vasta cultura religiosa. Ele frequentou, durante seus anos escolares, a sinagoga, onde estudou o Antigo Testamento. Seus textos demonstram que ele conhecia o Novo Testamento cristão e religiões da Antiguidade Clássica.
É verdade que ele fora um ateu empedernido, mas se dedicou apaixonadamente ao estudo da religião. Consagrou cinco títulos de sua obra ao tema: Toem e Tabu (1912), Psicologia das massas e análise do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).
Não vou resumir o que Freud expôs, em cada um desses cinco livros, a respeito da religião; interessar-me-á, contudo, dar a conhecer como Freud via a experiência religiosa de uma maneira geral.
Num primeiro momento, convém reter a ideia de que Freud via a experiência religiosa como parte de uma fantasia de onipotência. Essa fantasia de onipotência seria provocada pelo desejo de imortalidade, de absoluto, de transcendência. Segundo Freud, o homem nutre esse desejo em face da frustração e da angústia desencadeadas pela realidade. Esse desejo, de natureza interna, projeta-se para fora do homem, criando a religião.
Duas questões ocuparam Freud durante o tempo em que esteve assaz interessado pelo tema da religião. Ei-las: para que serve a religião e que futuro ela tem?
A primeira questão recebe um tratamento aproximativo em Psicologia das massas e análise do ego (1921). Nesse trabalho, Freud se ocupou do estudo do comportamento das massas e seu processo de identificação com o líder. Freud relacionou essa identificação ao processo de comunhão e identificação com Cristo na Igreja Católica.
Consoante Freud, o indivíduo busca compensar as limitações impostas pela realidade ou pela vida social ao princípio de prazer com a ilusão de sentir-se amado pelo líder. Essa identificação cumprirá, na religião, uma dupla função compensadora: uma no mundo aqui e agora; outra, na promessa de uma vida além-mundo. Também nesse livro Freud enfocará a agressividade dirigida aos outros, aos que não pertencem ao mesmo grupo ou seita.
Em sua obra O ego e o id (1923), Freud se debruçará sobre o ideal do ego – o superego – e sustentará que esse ideal é um substituto do primeiro desejo de um pai amado. Esse ideal constitui o núcleo a partir do qual estão constituídas todas as religiões. Não se ignore que a questão sobre o que está na origem da religião é extremamente complexa e controversa, e as especulações de Freud, nesse tocante, muito criticáveis. Mesmo em seu tempo, algumas de suas teorias sobre a evolução das religiões estavam definitivamente superadas. É claro, por outro lado, que Freud estava muito pouco preocupado com a verdade histórica de suas teorias sobre a religião.
Tendo em vista essas ressalvas, considerarei, sem pretender à exaustão, duas concepções gerais que Freud desenvolveu sobre a religião: religião como neurose obsessiva e religião como ilusão infantil.

4.1. Religião como neurose obsessiva e ilusão infantil

No cerne da visão freudiana da religião como neurose obsessiva, está a ideia de que as primeiras repressões que cada um de nós experienciou se dão na primeira infância (período que se estende do zero ao cinco anos de vida), quando nós, enquanto criança, devemos renunciar aos nossos desejos e impulsos. A neurose se caracteriza pela fuga do adulto para o mundo infantil. Os conflitos não resolvidos na infância encontram aí oportunidade de reaparecimento.
Freud, então, via a religião como regressão do adulto ao mundo ideal da criança. O complexo de Édipo desempenha um papel fundamental nessa regressão. Lembremos que esse complexo ocorre, para Freud, em meninos e meninas, entre os 4 e 6 anos de idade. A criança, no momento em que nutre um desejo incestuoso pela mãe, vê o pai como um rival. O amor que ela devota à mãe é dividido com o pai. A criança experimenta desejos agressivos em relação ao pai e, não raro, esses desejos podem assumir a forma de desejo de matá-lo. No entanto, ao mesmo tempo, a criança reconhece que necessita do pai. Daí decorre o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade, admiração e medo, experienciado relativamente ao pai.
Sucede que esses desejos serão transportados para o “porão” do inconsciente. À medida que se desenvolve, a criança aprende o que é proibido e o que é permitido em seu meio cultural. Ela internaliza esses preceitos e proibições por meio das práticas discursivas engendradas em sua cultura. É assim que se forma o superego. O superego – reiteremos – é essa região da psique que compreende as normas, os preceitos culturalmente estabelecidos e transmitidos à criança pelo pai, e que é sentido na fase adulta como censura.
Freud observa que o neurótico não quer aceitar a dura realidade da vida e se nega a se relacionar com o mundo tal como ele é. O neurótico, na realidade, não nega que a realidade é dura, áspera, atroz; ele apenas não quer saber disso. Prefere viver como no sonho onde o que o homem deseja pode manifestar-se de maneira inconsciente.
Agora, relacionemos o exposto até aqui à questão da religião. Direi muito grosseiramente,  e o leitor poderá acompanhar o desdobramento do que aqui se seguirá lendo o livro Totem e Tabu – que a neurose, segundo Freud, é como o mosteiro para o qual costumam se retirar os que se iludiram da vida ou aqueles que se sentem debilitados demais para encará-la. Na religião, o homem também foge da dura realidade da vida, encontrando esconderijo num mundo ideal da infância. É por isso que a religião é ilusão, segundo Freud. Para o pai da psicanálise, o fundamento último da religião é o desamparo infantil do homem.
Na medida em que a religião é considerada em sua dimensão cultural, Freud a verá como um aspecto neurótico da cultura. Compreendamos essa ideia. Na vida cultural, os impulsos não satisfeitos, dadas as exigências da cultura, são sublimados. Nesse processo de sublimação, os impulsos egoístas se tornam úteis para a sociedade e satisfeitos na fantasia. Assim, evita-se o sofrimento, e a sublimação acarreta a gratificação. Dirá Freud que a arte, a religião, a ciência, a metafísica são, em última análise, a manifestação da sublimação de pulsões mais primitivas. A religião não seria outra coisa, na perspectiva freudiana, senão expressão do temor e do medo do castigo e expressão do desejo de consolo. Em uma palavra, ela é a resposta dada pelo homem à árdua realidade da vida.
Freud assinalou uma relação entre as exigências dos tabus na experiência religiosa e a sintomatologia dos neuróticos obsessivos. Nos dois casos, observa-se a ausência de motivação consciente, a capacidade de contagiar e a necessidade de purificação mediante atos rituais. Todavia, uma diferença entre os dois casos não lhe escapou à consciência: se, por um lado, os neuróticos obsessivos são movidos por uma pulsão tipicamente sexual; por outro lado, nos tabus, se percebem impulsos antissociais de agressão e de morte.
A fim de sublinhar a concepção de religião como ilusão infantil, observe-se que, para Freud, a religião é a nostalgia que o homem sente de um pai onipotente que o console e o proteja, em face da angústia vivenciada na dura realidade do viver. Por isso, novamente, cumpre dizer que a religião era vista por Freud como fundamentada no desamparo infantil do homem.
Em face da natureza indiferente e assustadora, esse homem infantil forja deuses segundo o modelo do pai, e a religião se torna fuga à realidade. Nas palavras de Freud: “O homem não pode permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”.
Não se deve ignorar o fato de que Freud procurou explicar a religião por sua gênese psíquica. Interpretando os sonhos e os sintomas neuróticos, Freud elaborou um modelo teórico que via a religião como a realização de desejos. Nesse sentido, as representações religiosas não derivariam da experiência nem da razão, mas seriam ilusões, “realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais intensos da humanidade”. Freud, naturalmente, referia-se aos desejos da criança desamparada e ávida de proteção em face das ameaças da vida. De passagem, noto que Freud, como homem de seu tempo, não deixou de esposar a fé positivista na ciência como caminho para a libertação do homem do mundo da ilusão religiosa e da superstição.
Deus e imortalidade são desejos infantis cuja origem remonta, em última instância, ao complexo de Édipo não superado. Essa visão Freud a estendeu a toda humanidade.
Em suma, é a cultura que cria as concepções religiosas e as inculca no indivíduo em formação. A religião surge da necessidade de proteção contra as forças implacáveis da natureza e do destino. Freud precisou lidar com acusações de que fez incursão no tema religioso desconsiderando a pluralidade inerente ao fenômeno da religião.

O próprio Freud viria a confessar, em uma carta destinada ao seu amigo psicanalista e principal colaborador S. Ferenczi, que sua redução do fenômeno religioso a meras experiências infantis e à busca de segurança foi demasiado apressada, para se dizer o mínimo. Apressada, talvez, mas não menos intrigante e digna de reconhecimento. 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

"O amor é o palco mais elevado onde homens e mulheres encenam sua mais íntima contradição: a do desejo com a sua condição humana" (BAR)


                           

                                   Extrapolações matinais


A partir das 6 da manhã, a cama se me torna intolerável. Pensamentos vão-se-me empilhando na alma, produzindo um desconforto tal, que me expulsa do único estado em que me é possível esquecer a vida mesma para experienciar outras vivências, a que se segue, quase sempre, um sentimento de decepção, porquanto não sejam reais, num sentido forte. Sonhos compensam o estar vivo ou, como poderia dizer Freud (não exatamente com  estes termos), são as formas pelas quais o inconsciente se expressa ou se declara. E eu tenho sonhado bastante. Mas o pior sonho é aquele que sonhamos em vigília e do qual despertamos. Esse sonho em vigília, quase sempre, tem outra natureza: é uma ilusão.
O drama que se me encena na alma é agravado pelo fato de aos pensamentos perturbadores associarem-se altos níveis de ansiedade e frustração. Não confundamos ansiedade aqui com sofreguidão. Em psicologia, ansiedade não é sofreguidão. Refiro-me à ansiedade básica, que remonta à infância, e que inclui sentimento de solidão e impotência em face de um mundo hostil. É desse desconforto familiar no estar-no-mundo que se trata. Por frustração, também à luz da psicologia, entendo o estado emocional que resulta do impedimento, da decepção, de um interdito à realização de um desejo. E nossos amores modernos são celeiros fartos de frustrações.
A sabedoria antiga já rezava, muito antes da psicanálise surgir à cena no mundo ocidental, que a mulher é um enigma. Quase nunca se pode estar certo do que ela quer. Ela é um esconderijo que dissimula alguma coisa. Mas que coisa? Freud, seguido por Lacan, posteriormente, viria a endossar a tese de que só há um sexo: o falo, muito embora haja dois modos de gozo. A Lacan devemos uma frase que se tornou famosa: “A mulher não existe”. Freud insistirá ainda que a sexualidade feminina é, em essência, masculina, pois só há uma libido e essa libido é a masculina. Muitas feministas chiaram contra Freud (e contra Lacan?), por considerarem sua teoria da sexualidade feminina fruto de uma ideologia patriarcal predominante entre nós ainda. Especialistas em Freud já notara uma tendenciosidade masculina na abordagem da sexualidade feminina proposta por ele. 
Mas deixemos Freud, o que é ser mulher e a sexualidade de lado. O que aprendi, em minhas leituras de psicanálise, é que os homens (não sei se todos, mas alguns) buscam encontrar numa mulher a anima deles, ou seja, seu lado feminino. Esse “lado feminino” supõe que saibamos sua definição ou que essa definição descreva uma natureza feminina objetivamente. Mas deixarei a cargo do leitor os questionamentos. No amor romântico, há justamente essa busca: o homem deseja encontrar na amada sua anima. Alguns, ao contrário, não têm encontrado senão o silêncio do desconhecido, o escuro do desejo que não sabem por quê. Não livro nem homens nem mulheres da responsabilidade por seus infortúnios amorosos, pela sua desnutrição amorosa. Ah! Estes seres bípedes sempre insatisfeitos! Prisioneiros do desejo.  Gosto do trecho do texto Psicanálise, que consta da série O que é, em que o psicanalista Fabio Herrmann descreve a relação contraditória dos seres humanos com o desejo:

“(...) a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos, não sabemos bem o que desejamos. Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?”
(pp. 54-55, grifo meu)


Como se vê, os homens são excesso e estão constantemente insatisfeitos, não porque o mundo criado por eles esteja em desacordo com o desejo (ao contrário, como sugere Herrmann, o mundo humano corresponde exatamente ao desejo humano). O homem constrói um mundo que reflete bem o seu desejo, tanto no que diz respeito àquilo que nele aprecia, quanto no que toca àquilo que nele odeia. Mas, ao olhar para a obra criada e para as coisas que nela odeia, o homem diz a si que não foi seu autor, que essas coisas precisam ser humanizadas. Sua insatisfação decorre do fato de acreditar que o mundo domesticado não corresponde ao que desejou. A insatisfação se nutre desse engano, encontra nele sua fonte. Daí a insistência com que culpa o mundo, a sociedade, a família, a cultura, esquecendo-se de que na origem de tudo isso se encontra o próprio excesso do homem e seu desejo criativo, mas tedioso.
Por ora, é o que temos para hoje. A satisfação, ao contrário do que sugere o mercado capitalista que engendra o consumismo, nunca está garantida. E sigamos como famintos (de amor?) pedindo socorro a que forças superiores desconhecemos, porque elas mesmas não são senão fumaças do incêndio de nosso desejo.

sábado, 27 de abril de 2013

"O amor-próprio é o lugar vazio do amor" (BAR)


      

                A ingenuidade do amor-próprio


Não raro, topo com frases como “Devemos ter amor-próprio em primeiro lugar”, “Antes de querer que alguém me ame, tenho de me amar primeiro”, em redes sociais de relacionamentos da internet. Basta-nos dar uma olhada no conjunto de postagens do facebook para nos certificar da farta frequência com que frases como aquelas se estampam nesse ambiente de relacionamentos virtuais.
Hoje, uma lamparina me acendeu na alma. Suspeitei (não desde o princípio) de que há algo que precisa ser revelado aí. Será que uma frase como “Devemos ter amor próprio em primeiro lugar” encerra uma crença verdadeira, em algum sentido? Estou falando em verdade aqui e peço que o leitor não escute Nietzsche (aliás, sempre que emprego a palavra “verdade” já não é mais Sócrates, através de Platão, que se me afigura ao espírito, ou melhor, o discurso deles, mas Nietzsche, a sussurrar-me que a verdade é uma ficção, ou mesmo Foucault, que me lembra que a verdade é construção de um trabalho histórico). É por isso que eu não descurei do uso de em algum sentido. Assim, suponho que uma crença é verdadeira se tiver alguma utilidade para quem a sustenta. Claro, isso não exclui a possibilidade do engano, do erro. Não quero me concentrar na questão da verdade. Para os meus propósitos, basta-me assumir que a verdade é uma espécie de caleidoscópio. Tem muitas regiões, muitas faces. A verdade é multifaceta. No entanto, ela não se reduz a cada uma de suas partes. A verdade, com Hegel, é o todo. É possível que nos apropriemos de parcelas da verdade, sem que estejamos de posse da verdade.
Prossigo.
O que me chama atenção nesses enunciados? Em primeiro lugar, a pessoa que os produz supõe que a experiência do amor próprio (tentarei defini-la mais adiante) antecede à experiência de amar ao outro e de ser por ele amado. Nada mais longe da verdade, conforme tentarei mostrar. Vou, contudo, protelar, por ora, o desenvolvimento dessa questão. Em segundo lugar, consigo ver aí a ignorância do eu sobre sua própria constituição. Quero dizer que a pessoa que produz “Devo me amar em primeiro lugar” ignora o fato de que o próprio sentimento que tem de seu eu, a imagem que tem de si é produzido ou é construída na relação com o outro. Vou-me esforçar por desenvolver essa concepção, de agora em diante. Posteriormente, retorno ao problema do amor próprio, ocasião em que procurarei avaliar o seu significado, a sua função e consequências para o eu. Não deixarei de definir os conceitos, que cuido importantes para a compreensão das questões suscitadas e discutidas aqui – certamente, um deles é o de imagem.
Cismando, identifico algo de fascinante na experiência do eu. É dela que passarei a tratar doravante. O que acho fascinante é que, se, de um lado, temos, a partir da sensação e percepção de nosso corpo, um sentimento bastante concreto do nosso eu; por outro lado, basta que alguém nos inste a nos descrever a nós mesmos, a falar sobre quem somos e como somos, que nos vemos em face do desconhecido. Alguns de nós sentem dificuldade para falar sobre si mesmos. Essa experiência é corroborada pela psicanálise. Lacan, por exemplo, dizia ser o eu “o lugar do desconhecimento”. No momento em que tenho a certeza de ser eu mesmo na experiência de meu corpo sentido e vivido, essa certeza mascara a minha ignorância sobre o que eu sou e de onde eu venho. Mas ponho freio no comboio de pensamentos que avança depressa. Vamos com calma. É o “eu”, ou melhor, o que é o “eu” a questão sobre a qual me debruço agora. Entra em cena o conceito de experiência. Não farei rodeios. A experiência é forma de conhecimento imediato e vivido. Podemos ter experiências externas, que envolvem nossa relação com o mundo, e experiências internas de nossos estados mentais, de nossas emoções e sentimentos. Implicadas na experiência estão as sensações e as percepções. É porque estão englobadas nas experiências que preciso defini-las. Na verdade, sensações e percepções são formas de experiência. Então, por sensação deve-se entender a experiência de perceber pela aplicação dos sentidos. Não vou descer a pormenores sobre sua dimensão fisiológica. Basta-nos entender que a sensação nos fornece as qualidades exteriores e interiores, a saber, as qualidades das coisas e os efeitos que essas qualidades exercem em nós. Na sensação, sentimos, ouvimos, degustamos, etc. O organismo reage aos estímulos exteriores, sem que consiga distinguir com clareza os estímulos exteriores do sentimento interior que eles provocam. Há na sensação, em suma, a interação do físico e do psíquico.
No tocante à percepção, consiste ela no processo ou resultado dele em que tomamos consciência de objetos, de relacionamentos e eventos por meio dos sentidos. A percepção envolve atividades cognitivas tais como reconhecer, observar, discernir, identificar, etc. Há na percepção – e isto é importante! – uma interpretação e organização dos estímulos recebidos que, durante o processo mesmo de perceber, se transformam em conhecimento dotado de significado. Reitero: perceber é interpretar. Se digo “percebo que você não me ama”, faço uma interpretação, com base em minhas experiências (em que estão envolvidas sensações), sobre como me sinto em relação ao outro e como vejo o outro na sua relação comigo. No caso, percebo (interpreto) a ausência de amor dele por mim. Percebo uma lacuna, atribuo um sentido àquela experiência, àquela relação: trata-se para mim de uma relação marcada pela carência de amor, pelo vazio que experimento na alma pela falta do amor correspondido.
Tenho de lembrar, contudo, que as sensações não são experienciadas isoladamente. São muitas as sensações que experienciamos e elas nos afetam em conjunto simultaneamente. Cabe à percepção reuni-las. É a percepção, que envolve interpretação, que constitui a síntese das sensações simultâneas. Assim, sentimos o quente (que embora seja uma propriedade da coisa, não existe sem que antes tenhamos contato com uma coisa quente; o quente existe quando o sentimos), mas percebemos que a água é quente. Nesse caso, elaboramos um juízo (associamos um predicado a um sujeito pela cópula “ser”) com base numa experiência sensitiva. Percebemos então que a qualidade ‘quente’ está contida na água, ou está associada a ela. É na experiência perceptual que os conceitos de “água”, “é” e “quente” nos são dados. Não me parece difícil concluir que temos sensações na forma de percepções, já que aquelas surgem na experiência reunidas num dado momento.
Agora podemos avançar. Vou me deter a meditar sobre o que é o “eu”. Para tanto, sigo a trilha do psicanalista e psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009).
Defini a experiência justamente porque intento levar o meu leitor a compreender que a maneira como experienciamos o mundo é determinante do modo como pensamos. Nossos pensamentos, ideias, concepções, visões de mundo são determinados por nossas vivências.
A primeira observação fundamental que deve ser feita sobre a natureza do eu é que é produto de uma interpretação. Eu sou como eu mesmo me interpreto. O eu é uma entidade imaginária. O eu é uma imagem. Isso não é tudo que podemos dizer do eu, evidentemente. Mas, antes de prosseguir, preciso definir o conceito de imagem com que eu estou desenvolvendo estas reflexões. O primeiro campo experiencial que a ideia de imagem sugere é o da visão. De fato, há imagens visuais, mas também há imagens auditivas, olfativas, há imagens sensoriais (que resultam de uma transposição psíquica da percepção de um objeto exterior). Imagem, então, não se reduz ao campo visual.
Para Nasio, que se situa no domínio da psicanálise, não há imagem sem um investimento afetivo. Dentre os diferentes conceitos de imagem que o autor nos apresenta, destaco o de duplo que se imprime na consciência quando temos uma sensação afetiva importante para nós (produz-se aqui uma imagem mental consciente). Chamo atenção para a expressão sensação afetiva. Veremos que a construção das imagens do eu e do outro envolve sensações, sentimentos, afetividade, não só crenças, julgamentos e opiniões.
Na perspectiva de Nasio, não há imagem que não seja deformada. E aqui lembro que, em psicanálise, toda interpretação é uma forma de distorção. A imagem que o eu constrói de si na relação com outro será permeada de distorções e de enganos.
Voltarei à perspectiva de Nasio, um pouco mais adiante. Creio ser necessário agora precisar, sob a perspectiva da psicologia cognitiva, o que se deve entender por imagem.
O que precisa ficar claro é que a imagem é uma representação de uma experiência sensorial exterior produzida por e em nossa mente. Ela é recordada, sem a necessidade de alguma estimulação externa. Chama-se mentalização ao processo pelo qual se vão produzindo cognitivamente informações sensoriais provenientes dos cinco sentidos, de modo individual ou coletivo. Essas informações são os materiais de que são feitas as imagens mentais. Pode-se falar também em uma mentalização visual, caso em que a imaginação envolve a sensação de termos na mente “retratos”. Esses “retratos” (imagens) podem ter origem na memória de experiências visuais anteriores ou de sínteses produzidas pela imaginação.
Finalmente, temos também a imagem corporal. Esse tipo de imagem é uma pintura mental ou um quadro mental que uma pessoa faz de seu próprio corpo em sua totalidade, nela incluídas características físicas e funcionais, bem como suas próprias atitudes com relação a essas características.
Voltarei, como disse, à concepção de Nasio de imagem. Ela supõe uma relação do eu com o próprio corpo. Aliás, a experiência que o eu tem de si envolve a imagem que constrói de seu próprio corpo. Nasio vai escrever: “considero a imagem do corpo a própria substância do nosso eu” (p. 54).
De minha parte, penso que a imagem, sem deixar de ter um aspecto simbólico e psíquico, é uma representação, para a qual concorrem crenças, julgamentos, opiniões, sensações, sentimentos, com base em nossa experiência sensório-perceptiva (que envolve sensações em forma de percepções). Mas também, na medida em que não penso o eu como, por exemplo, pensara Descartes - uma entidade abstrata, um pensamento, uma certeza de si – senão como um “eu” simbolicamente ancorado num corpo (é uma imagem que se constrói supondo uma relação com a imagem do corpo), a produção da imagem supõe um corpo dotado de um cérebro estruturalmente adequado para tanto.
Não percamos de vista a questão do eu. Estamos nos interrogando sobre o que é este eu e como ele se constitui, ou seja, como ele é percebido pela consciência do sujeito. Espero tenha ficado claro que o eu é uma criação resultante da interpretação que nós fazemos de nós mesmos. Essa interpretação implica uma auto-reflexão. Quando nossos pensamentos se voltam sobre nós mesmos, vamos construindo uma imagem do nosso eu.
Um eu pré-consciente não nos é acessível. O eu não constitui a totalidade da consciência, não se identifica com ela. Sartre via no eu um objeto da consciência e, provavelmente, inspirado em Freud, disse que o eu não é proprietário da consciência. Se não é proprietário, o que é então? Para o filósofo existencialista francês, o eu é um objeto da consciência e, como tal, pode ser reinventado. Essa concepção acena, em outros termos, com a ideia de que o homem é um projeto, de que é livre e de que pode reinventar-se continuamente.  
Uma ideia que já foi bastante repisada por mim, mas que se me demonstra fundamental para a compreensão do que é o “eu” é a de que o eu só se reconhece na relação com o outro. Só há eu quando colocado diante do outro. O outro dá ao eu o sentimento de si, uma autoconsciência. Nessa relação, observa-se uma constituição recíproca do eu e do outro, num jogo interativo de produção de imagens: imagem que o eu tem de si na relação com o outro; imagem que o outro constrói do eu com que se defronta; imagem que o outro tem de si mesmo; e imagem que o eu constrói do outro. É possível haver sobreposição de imagens: posso construir uma imagem da imagem que o outro faz de mim; ou construo uma imagem sobre a imagem que o outro faz de si.
A esta altura, acredito tenha ficado clara a ideia de que o “eu” não é um ser, não é uma coisa dentro da nossa cabeça. É, sem dúvida, um sentimento de si, um sentimento subjetivo de existir (Nasio, 2009, p. 55). Mas esse sentimento está longe de nos ser transparente à consciência. Lembro Lacan: “o eu é o lugar do desconhecimento”.
Mas voltemos a Sartre. Se, como pensava esse filósofo, o eu é o lugar da ausência, do nada, um lugar do silêncio do significante, disso se segue que sou o que os outros pensam a meu respeito. Isso é uma parte do que parece ser verdadeiro. A outra parte é que sou aquilo que penso que sou também.
Concluindo: é apenas na relação, na troca e na comparação com o outro que eu me descubro (venho à tona), que me apresento a mim (ainda que não com total clareza). Não há, ao contrário do que insiste o senso-comum, como escapar à comparação com o outro, já que dela depende, em parte, a constituição de nosso eu.
O eu é, então, uma imagem, ou um lugar simbólico que se constrói dialeticamente na relação com o outro. O eu é um lugar de uma dialética significante já que supõe a relação com o outro com base na diferença, num universo estruturalmente significativo. Entendamos o que quero dizer com dialética entre o eu e o outro. Pensar dialeticamente é (desde Hegel) discernir por relações de contradição, visando a superá-las por sucessivas sínteses. Um objeto se define numa relação de contradição com outro objeto. Assim, o senhor é o não-escravo, ou seja, na relação com o escravo, o senhor se define pelo que não é: o senhor é o não-escravo. O mesmo raciocínio se aplica ao escravo. Ele se define na relação de contradição com o senhor: o escravo é o não-senhor. A contradição, diga-se de passagem, se distingue da oposição, por consistir numa negação interna de um dos termos da relação. Ao definir o senhor nega-se internamente a condição de escravo.
Tendo em conta o exposto, eu me defino por aquilo que não sou ou pelo modo como não sou. Eu sou com base naquilo que não sou. Eu me defino numa relação de contradição – se bem que entendo não ser sempre necessário negar o outro nessa relação; portanto, reformulando minha compreensão, eu me defino numa relação de contradição ou de diferença em relação ao outro. Estou consciente de que a contradição implicaria negar completamente o outro em mim, o que não parece ser sempre possível ou desejável. No caso ilustrado do senhor e do escravo, quando o senhor se define nega a humanidade ao escravo. Torna-o objeto de sua (do senhor) consciência subjetiva. Claro é que, embora seja superior ao escravo, o senhor precisa dele para se definir como tal. Dada a relação que se estabelece com base num poder opressor, que reduz o outro à servilidade, arrancando-lhe a humanidade, é mais correto falar em contradição e não de diferença ou oposição.
Não pretendendo avançar nesse terreno, o fato é que quando se diz “eu sou diferente de você”, o eu se apropria do espaço da diferença em relação ao outro para nesse espaço se definir. Nesse lugar da diferença, ele fabricará suas próprias significações, suas imagens; o eu significará a si mesmo.
Disse que não há possibilidade de evitar a comparação com os outros. Por conseguinte, observar significa observar (saber) que estamos sendo observados. Precht, em Amor – um sentimento desordenado (2012), nos ensina sobre a formação da consciência de si pelo eu:


“(...) Nosso si mesmo e nosso sentimento de autoestima alimenta-se da autoconfirmação. As características com as quais nos definimos, as forças, as fraquezas, as expectativas de nossa atratividade, nosso charme, e a impressão que produzimos vêm do xadrez social que jogamos com nosso ambiente (...) Observamos os outros e, nessa hora, observamos como somos observados” (p. 168, grifo meu).



Saliente-se neste trecho a importância da percepção sensorial, do olhar que nos é fonte de significados e objeto de interpretação. Ao olhar o outro e ao ser olhado por ele, interpretamos (produzimos sentidos) o modo como esse outro nos situa na posição de objeto-do-olhar. Há um jogo especular na relação do eu e do outro que se entreolham: o eu que olha e é olhado percebe-se, ao mesmo tempo, como observador (fonte da percepção óptica) e observado (objeto dessa percepção). No olhar do outro me vejo como num espelho. Quando interpreto o modo como o outro me olha, produzo uma imagem do meu eu a partir do modo de olhar do outro. Em outras palavras, observar o modo como o outro me olha é fazer uma interpretação cujo resultado é a produção de uma imagem de meu próprio eu.
Retendo ainda a ideia de que não é possível deixar de fazer comparação na relação com o outro, cabe dizer que o que sabemos sobre nós, ou seja, a nossa autoimagem se constitui com base na percepção da diferença existente entre nossos talentos, nossas capacidades, nossos valores, nosso caráter, e os talentos, capacidades, valores e caráter dos outros. Pode acontecer que na percepção dessa diferença nossas características sobressaiam às do outro; pode suceder também que tenhamos certas características que estão ausentes no outro.
A imagem especular que sugeri para explicar a relação entre observador e observado, indispensável à constituição do eu, redunda em que nossa autoimagem nada mais é do que reflexo, por vezes, resultante de uma espécie de filtragem da imagem que os outros constroem de nós. Nossa autoimagem vai sendo moldada, com o aproveitamento e o descarte de significados que compõem a imagem que o outro tem de nós. Em suma, minha autoimagem se molda a partir da imagem que o outro constrói de mim.
Evidentemente, essa imagem (representação) que o outro constrói de mim depende de seus julgamentos, de suas crenças sobre meu comportamento, minhas atitudes, minha fala, sentimentos, emoções, etc. A imagem que as pessoas afins tem de nós é, certamente, mais importante que a imagem que estranhos tenham de nós (dizemos, normalmente, pouco nos importar com o que pensam de nós aqueles com quem não temos qualquer proximidade). Claro que nos enganamos a nós mesmos ao declarar nossa indiferença ao que os estranhos a nós pensam a nosso respeito; e isso se deve, em parte, porque é com base no que os outros pensam de nós que definimos o nosso eu.
Por outro lado, é no pensamento que temos sobre o que somos que o eu se forja. O eu se reconhece como aquele que pensa ser. Ao colocar o pensamento na origem do surgimento do eu, estamos dizendo que o eu é representação, para cujo processo desempenha papel fundamental a imaginação.
Acima, fiz referência ao fato de que a representação da imagem do eu conta com sentimentos e emoções. A isso quero acrescentar que a atenção que os outros dispensam a nós é uma fonte de autoestima. Aqui, chamo atenção para o delineamento da questão principal desse estudo: o amor próprio. Uma verdade sobre a experiência amorosa que passa despercebida por homens e mulheres não familiarizados com a teoria psicanalítica nem com a filosofia, quando se ocupa do tema, é que, na experiência de amor, amamos no outro nossa própria imagem refletida nele (nesse caso, temos a componente narcísica do amor objetal). Também amamos uma imagem do outro que construímos (isso parece ser reconhecido pelas pessoas), mas o que não é tão evidente é o fato de que o amante ama a si mesmo na imagem que o amado constrói dele, amante. Segue-se daí que a autoestima dependa da atenção dispensada pelo outro; e mais – segue-se daí que o amor próprio depende de que sejamos objeto de estima pelo outro. Quero dizer que essa experiência de amor próprio não é algo que nos é dado desde que nascemos. Precisamos ser primeiramente amados para então, tendo experienciado o amor tanto na condição de fonte irradiadora quanto na condição de objeto desse amor, desenvolver o amor próprio. Estou ciente de que não defini ainda o que entendo por amor próprio. Por ora, estou supondo que o leitor sabe, com base no senso comum, o que significa o amor próprio.

“É nossa imagem no olhar do outro que nos empresta nossos próprios contornos. E a imagem mais importante entre todas é aquela refletida por uma pessoa que nos é mais importante que todas as outras, aquela que amamos e nos ama (Precht, 2012, p. 169)


O trecho nos leva a entender a importância do amor dirigido ao outro como condição para que possamos amar a nós mesmos. É interessante notar que a experiência do amor próprio supõe que o eu seja, ao mesmo tempo, fonte e objeto do amor. O eu se desdobra num outro que se identifica com o si. É um eu outro de si mesmo. Logicamente, a fonte só pode irradiar amor sobre si mesma se produz uma imagem de um outro de si, que é objeto do amor. A essa altura, o leitor poderia se perguntar se a emergência desse outro como objeto no amor próprio não instituiria uma diferença em relação ao eu. Eu diria que é isso mesmo, porque o eu que ama a si mesmo ama uma imagem de si (um duplo de si). Para mim, nesse amor, o que é colocado no altar do eu como objetos de seu amor são seus valores, suas características mais caros; os traços desagradáveis acusados pelos outros ou eventualmente reconhecidos pelo próprio eu não entram no escopo do seu amor. A imagem do amor próprio é depurada de tudo quanto aos olhos do eu não é sequer digno de sua própria estima. Uma imagem bastante sugestiva pode ajudar na compreensão do que tento explicar. Imagine que o amor-próprio, à semelhança de um holofote, ilumine para a consciência do eu apenas os traços positivos, prestigiados, agradáveis de sua personalidade. É sobre o terreno dos tesouros do eu que recai a luz do amor próprio. Em suma, no amor-próprio, surge uma imagem-outro-de-mim depurada que passo a amar. A consciência do amor-próprio é uma autoconsciência do amor a um eu ideal que é outro de si.
Ainda me concentrando na relação entre eu e o outro, noto que Hurssel, dando-se conta da capacidade de o ser humano observar o modo como é visto no olhar do outro, cunhou a expressão “empatia dirigida”. Assim, “eu posso entender que o outro entendeu que eu o entendi” (Precht, p. 168). Nesse sentido, importa ver que, no momento em que eu reconheço que o outro reconheceu que eu o entendi ou o compreendi, eu me coloco no lugar reservado a mim no reconhecimento pelo outro da compreensão que tive dele. Daí a empatia dirigida: uma empatia (perceber como uma pessoa sente), mas dirigida a si mesmo. Em outras palavras, no reconhecimento pelo outro de que eu o entendi, há um lugar que posso ocupar como imagem valorizada pelo outro; nesse lugar concentro minha estima, ou é desse lugar que eu me estimo.
Agora, posso lançar olhares novamente sobre a lição de Nasio. Para Nasio, a imagem do corpo é a essência do eu (p. 54). Mas o autor adverte que não devemos identificar o nosso eu com nosso corpo de carne e osso. Na verdade, o que somos resulta do que sentimos e vemos de nosso corpo. O corpo é, assim, o centro para o qual se dirigem nossos sentimentos e nosso olhar e é na base dessa experiência do corpo que o eu se constitui. Nasio escreverá “sou o corpo que sinto e o corpo que vejo” (p. 54).
O leitor deve reter que Nasio introduz o papel da percepção do corpo na constituição do eu. O eu não deixa de ser encarado, por exemplo, como “uma ideia íntima”, mas é uma ideia íntima forjada do corpo. O eu é a representação mental de nossas sensações corporais. Mas essa representação “é mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho” (ib.id.). Desse último enunciado concluímos que para a construção da imagem do eu é determinante a imagem do corpo percebida pelo eu defronte de um espelho (que não precisa ser a superfície vítrea que temos em casa diante da qual vemos nossa imagem; esse espelho que me dá a imagem de meu corpo pode ser e, por vezes, o é o “outro” presente à minha consciência ou como presença simbólica em meu inconsciente). Isso explica que pessoas obesas possam desenvolver uma subestima de si mesmas. A imagem do seu eu poderá ser muito pouco atraente. Evidentemente, essa baixa autoestima será influenciada e agravada pela insatisfação do eu em não atingir os padrões de beleza que o Outro encarna. Ou seja, o seu desejo, ainda que inconsciente, de atingir os padrões de beleza estabelecidos em sua cultura moldará a imagem que o eu construirá de si. Por vezes, são os obstáculos impostos por sua constituição genética que, inviabilizando a satisfação do desejo interiorizado pelo eu por força daqueles padrões, motivam a construção de uma imagem depreciativa do eu.
Nasio reconhece dois tipos de imagens de que se constitui o eu: imagens corporais e imagens mentais. Esses dois tipos de imagens, embora diferentes, são indissociáveis. O eu é tanto a “imagem mental de [suas] sensações corporais [quanto] a imagem especular da aparência do [seu] corpo” (p. 55). Nasio destaca a importância de considerar o sentir o corpo e reconhecer seus movimentos diante do espelho como experiência inegável de ser um eu. Acompanhemos as palavras do autor no trecho abaixo:

“O que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos (p. 55)”.



A percepção de nosso eu, como se vê, é perturbada por uma nebulosa, de modo que se torna extremamente difícil produzir uma percepção límpida e profunda do nosso eu. Nasio nos leva a concluir que “não existe um eu puro; o eu resulta sempre de uma interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e vemos de nosso corpo” (p. 56).
Já mencionei que, na psicanálise, a interpretação é sempre uma atividade de distorção. Logo, segundo Nasio, dizer que a imagem do corpo é a substância do eu é, na verdade, dizer que é a substância deformante do eu. Instáveis e afetivas, as imagens deformadas de nosso corpo acarretam uma imagem distorcida de nosso eu.
Não considerarei o papel da protoimagem inconsciente no processo de constituição do sentimento do eu. Pretendo, assim, evitar me delongar mais ainda.
O que é o amor-próprio? Para definir o amor-próprio, devemos definir previamente o amor. Não farei incursão nesse domínio, é claro. Basta entender o amor como uma estima protetora. No caso do amor-próprio, trata-se de uma estima protetora diante da qual o eu se coloca como objeto a ser protegido. Protegido contra quê? Contra os efeitos danosos das frustrações, dos dissabores, das decepções, dos traumas legados pelo amor objetal. O amor-próprio é um sentimento de defesa de si mesmo erigido pelo eu contra as intempéries da vida. O amor-próprio não é o amor-eros, ou seja, o amor paixão. Também não entendo ser o amor-próprio um tipo de amor narcísico. Não vejo que haja nele um investimento libidinal. Não entendo haver um regresso da libido ao eu. Simplesmente porque o amor-próprio emerge num momento de crise do eu. Quem o afirma precisa dar testemunho de sua autossuficiência (ilusória) em face do outro.
O amor-próprio emerge de um lugar marcado pela solidão, pela frustração, pela decepção decorrentes da carência de amor que supõe a presença imaginária do outro. Estou de acordo com Precht quanto ao fato de que o amor é campo de desordens  (tanto no sentido de que é impossível explicá-lo com base numa única ordem de fatores quanto no sentido de que provoca desorganização de nossas sensações e estados mentais). O amor é arena de instabilidades, de conflitos, de insegurança, mas também é o palco de necessidades, de anseios, desejos, projetos, de conforto, de segurança, etc. O que me parece ser constante nas experiências amorosas, cujas feições podem assumir contornos caricaturais, é a suposição de uma relação baseada na reciprocidade afetiva com o outro. A condição primeira do amor é que nos sintamos realmente amados pelo outro. Amor demanda amor. O leitor poderia objetar que é possível que uma pessoa esteja enganada ao sentir que o outro a ama. Como o sentimento envolve uma interpretação, uma percepção, essa percepção poderia redundar ilusória. Todavia, não creio que esse amor não correspondido perdure. O equívoco aqui me aponta outro caminho para pensar a condição do amor: talvez, a primeira condição do amor é só podermos amar pessoas em que nos vemos refletidos. Seja como for, penso que não há amor humano desinteressado; o amor humano é fonte de demandas.
Ninguém tem necessidade de desenvolver sentimento de amor-próprio quando está amando e sendo amado. A pessoa se satisfaz em ser objeto de amor do outro e ama a imagem ideal construída do outro. Ama também a imagem de si ideal refletida no outro. Essa atmosfera entretecidamente amorosa a satisfaz, a inebria. O amor correspondido dispensa a necessidade de amor-próprio.
No amor-próprio, o eu experimenta uma sensação ilusória de poder existir, de satisfazer-se sem carecer do afeto, da afeição, da estima do outro. O eu vive uma ilusão de satisfação, mas no silêncio do íntimo ruge-lhe a convicção de que o amor-próprio que declara sentir é precário para lhe dar significado e prazer – melhor ainda, para lhe dar potência de existir. Seu amor-próprio é uma máscara para a sua infelicidade em face da indiferença do outro. É uma couraça com que se protege da sua condição de ser consciente da solidão, do abandono e do terror de seu destino derradeiro: a morte inevitável.
O que me parece claro, portanto, quando consideramos a ideia do amor-próprio e da possibilidade de sua experiência é que só podemos amar a nós mesmos se um dia tivermos sido amados (não por nossos próximos, mas por outros que não os nossos). O fato de minha mãe me amar não é suficiente para que eu me ame. Talvez, porque eu cuide que não é um mérito para mim ser amado por minha mãe; o amor dela é, para mim, uma experiência a que ela está obrigada desde o meu nascimento. Não há mérito envolvido aí. Todavia, quando somos objeto do amor de um outro que não sentimos que deveria estar implicado numa condição de obrigação de nos amar, despertar-lhe o amor dele por nós é visto como um mérito nosso.
Insisto em que a experiência de amor objetal, ou seja, que supõe a relação com o outro, que implica o outro, precede a experiência de amor por si. Antes devemos amar um outro e experienciar a satisfação aí envolvida, perdemo-nos no outro e nos decepcionar com ele, perder o amor dele, para então erigir o altar do amor-próprio. No amor recíproco não há lugar para o amor-próprio.
O bebê não parece ser capaz de amor-próprio. Primeiro ele é amado; primeiro precisa ser amado, precisa do amor de sua mãe para sobreviver – amor que demanda cuidados, de que depende também sua subsistência material. É só depois, ao longo da vida, nas incontáveis experiências como sujeito, na adolescência e na fase adulta, tomando consciência de que o amor original, acalentado junto aos seios maternos, assume outras feições, outras formas, por vezes, frágeis, fluidas, inconstantes, repletas de adversidades, contrariedades, conflitos, e tomando consciência de que aquele amor original não encontrará uma imagem exata de si nas relações com os outros; enfim, é só depois que se dá conta de que o amor de sua primeira infância, para ele fonte de segurança, dá lugar a uma forma de amor cheia de riscos, potencialmente capaz de lhe trazer infelicidade, frustrações e traumas, é que passará a acreditar na possibilidade de satisfazer-se com o único amor do qual não se separará: o amor-próprio. Mas a esse amor não pode conferir mais valor ou poder do que ele pode comportar. É bem verdade que pode ser útil em ocasiões em que, sentindo-nos desprezados, rejeitados, só nos resta a solidão do amor por si. Mas ele não deixa de ser ilusório, ele não deixa de reclamar o amor do outro, o amor pela nossa imagem forjada no amor do outro. É só no amor do outro que posso me amar realmente.
O amor-próprio é a defesa, portanto, dos desditosos, dos infelizes, dos mal amados contra a frieza e indiferença do mundo ao seu sofrimento real. É a couraça de homens e mulheres encarcerados no egoísmo e no individualismo que se assenhoreiam de si. É a única fortaleza (ilusória) de homens e mulheres que vivem nas condições da liquidez do amor, em sociedades em que cada vez estão mais conectados e cada vez menos dispostos a perseverar em seus relacionamentos convencionais. O amor-próprio parece ser o único alimento disponível no mercado para saciar a fome desses homens e mulheres desnutridos que dormem acalentados pela crença de que suas conexões são suficientes para lhes fornecer, ao menos, um débil estado de satisfação e felicidade.