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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“A miséria de grande parte da população não encontra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios”. (Celso Furtado)

 

          



     Política não se discute?

 

A política é uma atividade humana em cujo cerne está o diálogo, a deliberação; portanto, a discussão, no sentido de exposição conflitante, polêmica de pontos de vista, de julgamentos, interpretações, avaliações sobre a melhor forma de organizar uma sociedade em consonância com valores como igualdade e justiça. A política, ensina Hanna Arendt, diz respeito à coexistência e à associação de seres humanos diferentes. Como objeto de reflexão filosófica, a política descerra-se como um campo de questões que norteiam a convivência dos homens e dos grupos humanos entre si, e também as relações deles com o mundo. No entanto, o ditame que sentencia “política não se discute” quer dizer uma coisa que, sendo estranha ao fenômeno político, pretende levar à desmobilização dos atores sociais da participação política: não se deve tomar a política como assunto do falatório do senso comum, porque, nas esferas interacionais mediadas pelo senso comum, os interlocutores mobilizam, na conversação, uma série de crenças simplistas ou falsas, preconceitos, ideologias, lugares-comuns, representações coletivas de mundo que se vão acumulando na intercalação animados com as paixões tristes e ressentidas que levam a maus encontros e perturbam o contrato comunicativo tacitamente estabelecido. A política não é objeto de exame crítico, de reflexão sistemática, articulada e cuidadosa na definição e articulação dos conceitos largamente usados no debate calcado sobre o senso comum. O senso comum não consegue trabalhar os conceitos teóricos , não consegue pensá-los nem articulá-los para compor um discurso coerente e teoricamente bem fundamentado. O senso comum não se ocupa da problematicidade das questões que emergem de cada turno de fala dos interactantes. A conversação do senso comum leva os interlocutores a desconsiderarem os pressupostos de seus enunciados. Portanto, a discussão sobre política, no âmbito do senso comum , se converte, com muita facilidade, em bate-bocas que levam, quase sempre, a arrelias, a mútuas incompreensões, reforçando nos participantes o sentimento de que toda aquela disputa verbal foi em vão, porque nenhum deles modificou sua percepção da realidade construída e reconstruída no discurso de cuja produção eles se encarregavam. No senso comum, os interlocutores são muito mal instrumentalizados teoricamente para pretender refletir sobre “a questão política”, sobre os problemas complexos da realidade sócio-histórica em que vivem. Conceitos como “neoliberalismo”, “capitalismo de mercado”, “mercado”, “ideologia”, “Estado de direito”, “democracia”, “classe social” e outros tantos que definem o domínio discursivo da política como problema científico e filosófico a ser pensado com seriedade teórica são regularmente ignorados pelos interactantes que se movem nas esferas do senso comum. Na insistência no velho preconceito segundo o qual “o Brasil quebrou por causa da roubalheira do PT”, o senso comum assume como verdade incontestável uma visão simplista e equivocada acerca da realidade sociopolítica e econômica do Brasil, ao mesmo tempo que não vê que a realidade é muito mais complexa do que sugerem suas opiniões grosseiras. O senso comum ignora, por exemplo, que o governo Lula jamais rompeu com o sistema de acumulação neoliberal, com que os antipetistas, mesmo sem o saber, parecem simpatizar. O senso comum ignora a incompatibilidade entre o neoliberalismo, cujo significado também desconhece, e a democracia, cujo significado não compreende bem ou, o que dá no mesmo, compreende confusamente. O senso comum também faz vistas grossas ao conservadorismo do Estado brasileiro, que busca sempre assegurar os privilégios das elites econômicas, as relações de dominação, bem como busca reproduzir o modo de exploração que perpetua os padrões existentes de desigualdade de renda, riqueza e privilégio, independentemente do desempenho econômico do país. O senso comum não consegue levar em consideração as mudanças macroeconômicas na economia brasileira que, realizando a transição do Brasil de uma economia de Industrialização por separação de Importações para o neoliberalismo, tornaram a economia brasileira uma economia de baixo crescimento desde que, no fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, o Brasil ingressou de vez no neoliberalismo, com uma democracia frágil que convive com profundas desigualdades socioeconômicas. Por fim, a discussão política, no senso comum, não leva em conta as mudanças estruturais da economia brasileira, ocorridas na década de 1990. Com o novo Sistema de Acumulação então vigente, o setor secundário da economia brasileira, ou seja, o setor manufatureiro (industrial) declinou, e a capacidade produtiva caiu significativamente, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais sofisticados da indústria. Se, por um lado, a economia perdeu a capacidade de gerar “bons empregos”, o Estado foi-se demonstrando cada vez menos eficiente no enfrentamento dos problemas do crescimento, na reestruturação produtiva e na busca por coordenar políticas econômicas. As reformas neoliberais feitas no Brasil foram incorporadas à Constituição por meio de regras fiscais que se justificavam pela necessidade de estabilização da inflação e da “boa governança”. Consequentemente, entre nós, o neoliberalismo ganhou legitimidade e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do país, minando as aspirações democráticas previstas pela Constituição. Mas tudo isso é ignorado pelo senso comum, que limita toda a discussão política ao comportamento ético dos atores políticos, à polarização partidária, ao mesmo tempo que faz desfilar toda sorte de preconceitos como o de classe (o senso comum da classe média prefere culpabilizar os mais pobres pelo desastre econômico do país, já que estes, como os índios aos olhos dos colonizadores , não apreciam a labuta diária, preferindo mamar nas tetas do governo, que por sua vez pouco faz para realizar o suposto desmame). Assim, o senso comum da classe média reflete o modo de ser e de pensar das elites socioeconômicas brasileiras edificadas numa tradição escravocrata e autoritária ainda persistente no modo de ser brasileiro. É que o senso comum compreende o conjunto de esquemas interpretativos úteis para orientar e dar significado e ordem à vida cotidiana. Ele se forma em cada ser humano de modo inconsciente e natural no curso de sua socialização primária e secundária, formando o pressuposto básico das ações individuais. Por isso, a experiência pessoal circunscrita ao âmbito do senso comum é um referencial muito limitado e empobrecido para nos assegurar um profundo e elaborado conhecimento do mundo. Nossas experiências pessoais, formadas pelos encontros com o mundo das coisas, nas diversas situações de interação social, lidam com parcelas muito circunscritas da realidade humanamente experienciável; nossas experiências pessoais, se permanentemente divorciadas da experiência da leitura, não nos permitem uma compreensão sistemática do todo, da totalidade dos problemas com que a existência humana lida; nossa experiência pessoal ordinária parcializa o real, pois só podemos conhecer aquilo que é imediatamente acessível em seu campo, aquilo que se torna para nós familiar. Alargar nossas experiências pessoais com o mundo é o que nos possibilita a leitura, o convívio com os livros. A leitura é também uma experiência pessoal, que se vai enriquecendo, no entanto, à medida que o sujeito leitor participa da construção e reconstrução sociointerativa de um modelo de mundo, de uma versão da realidade que é produto de atividades sociocognitivo-interacionais e dialógicas do produtor do texto. Assim compreendida, a leitura é também uma atividade sociointeracional, na medida em que o leitor é um sujeito social que, no ato de ler, dialoga com um interlocutor-autor (ele mesmo também um sujeito social), mediante um texto que oferece (que propõe) uma imagem do mundo que é social, cognitiva, interacional e linguisticamente construída. A leitura nos patenteia que o real é muito mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Há muitos níveis de realidade que nos são inacessíveis em nossa experiência pessoal e imediata com o mundo na cotidianidade. Por isso, a experiência pessoal cotidiana de mundo não é um critério seguro para validar a consistência, a razoabilidade, a veracidade do que pensamos, julgamos ou acreditamos saber acerca das coisas. Nossos encontros imediatos com o mundo da vida são “enxertados” e mediados pelas representações coletivas, as crenças, as ideias, os preconceitos do senso comum.

O senso comum abriga juízos morais e afetivos sobre as causas, as condições dos eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum compreende um conjunto de proposições cognitivas e valorativas, fortemente restritivo e seletivo, porquanto seleciona e articula um dado número de “fatos” dentre a massa ilimitada de eventos, de ocorrências que constituem o mundo da vida. Assim, tudo no senso comum tem caráter de obviedade, de objetividade, de irrevogabilidade e coercitividade irrecusável. Para o senso comum, o mundo é um mar tranquilo de fatos autoevidentes. Nesse sentido, discutir política, no âmbito do senso comum, que ousa entender mais do que entende, é arriscar-se a envolver-se numa disputa na qual ninguém se entende, todos arengam e da qual todos saem como entraram: munidos com o mesmo background de crenças, suposições equivocadas, juízos afetivos e morais cristalizados, preconceitos, valores inquestionáveis e pretensas verdades não devidamente examinadas.



                                              A FARSA DA MERITOCRACIA

 

O projeto político do capitalismo financeiro neoliberal, há mais de 30 anos, é condenar ao silêncio o sofrimento da maioria, ao mesmo tempo que dá visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais talentosos e aptos na esfera pública como se representassem todo o sofrimento social existente.

A mentira da meritocracia consiste em afirmar que, embora o mundo seja um lugar inóspito e cruel, aquele que se esforça e trabalha duro conseguirá ganhar 500 vezes mais que outros. Os que ganham 500 vezes menos é porque são burros ou preguiçosos. Mas a meritocracia mascara o fato de que são as classes sociais os principais meios que permitem reproduzir os privilégios visíveis e invisíveis. A reprodução desses privilégios ocorre, em primeiro lugar e fundamentalmente, pela SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR. Como só existe a família de classe, cada qual tem uma história e uma forma de reprodução dos privilégios visíveis e invisíveis. O privilégio mais visível é o econômico. Este é notável na classe da elite de proprietários, os quais detêm todas as riquezas. Entre estes estão os donos de grandes fazendas, dos meios de comunicação, das cadeias de comércio, os grandes especuladores e rentistas. Abaixo desse 0,1% da população, situam-se as classes que lutam pelo capital cultural, que não é visível como o dinheiro e a propriedade. O capital cultural é formado pela incorporação do conhecimento útil e legítimo socialmente. Será a classe média - que se define pela reprodução do privilégio da educação - que criará e disseminará, de modo invisível e eficiente, a farsa da meritocracia mediante a incorporação privilegiada do capital cultural. Numa sociedade como a brasileira, disposições como disciplina, autocontrole, visão de futuro, capacidade de concentração e de elaboração do pensamento abstrato não são dons naturais, mas competências que são verdadeiros privilégios de classe. O hábito da leitura, por exemplo, é criado pelos pais. A criança passa a exercer a prática de leitura seguindo o exemplo dos pais. A disciplina do equilíbrio entre brincar e aprender, que acostumará a criança a renunciar, quando crescer, ao presente em benefício de um futuro, é aprendida na socialização familiar. Tudo isso é, portanto, privilégio de classe, nomeadamente da classe média brasileira, que produz a base social invisível que todo mérito pessoal oculta. Nas classes dos oprimidos e socialmente excluídos no Brasil, os valores reproduzidos são quase todos “negativos”. Toda a socialização familiar se realiza por meio de exemplos práticos (e não por discursos). São estes exemplos práticos que os filhos vão imitar e, mais tarde, reproduzir como um legado de sua classe social. Uma mãe que diz a um filho que ele deve ir à escola precária dos negros e pobres porque só assim ele terá chances de sair da pobreza, dificilmente o convencerá porque, afinal, a própria mãe frequentou uma escola semelhante que não a tornou mais do que uma analfabeta funcional, como sucede com tantos outros membros dessa classe social a que ela e seu filho pertencem. Enquanto os humilhados e desprivilegiados, quase todos negros, se colocam como “fracassados” já no ponto de partida, os membros da classe média entram na escola como bem-sucedidos já desde tenra idade, porque foram nutridos, desde o berço, com os pré-requisitos emocionais, morais e cognitivos para tanto. Essas condições de que se beneficiam desde muito cedo na vida os farão indivíduos predispostos ao sucesso escolar e ao acesso a postos de trabalho com remuneração muito maior anos mais tarde.



Lição básica de história econômica do Brasil

 

O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso, visto que aumentou as desigualdades econômicas e sociais





Um recorte do Brasil


Nestes pouco mais de 500 anos de história, persistem no Brasil alguns traços que o definiram como sociedade histórica desde o período colonial. Um desses traços é justamente a difícil e tortuosa construção da cidadania. Último país, no Ocidente, a abolir a escravidão, o Brasil convive ainda hoje com inúmeros processos de exclusão social. Somos campeões em desigualdade social. Nosso bovarismo, isto é, nosso inextirpável desencanto com nossas condições sócio-históricas reais, é tão característico do nosso modo de ser brasileiro quanto o familismo, ou o costume arraigado em nossa cultura de transformar questões públicas em questões privadas. A lógica e a linguagem da violência tanto quanto a corrupção estão encravadas profundamente na mais remota história da formação de nossa sociedade. No Brasil, os pobres e os negros ainda são culpabilizados pela Justiça. São os que mais morrem cedo, os que têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. E estas circunstâncias que nos ajudam a nos compreender como nação, como sociedade histórica, são mantidas e reproduzidas por uma estrutura de poder oligárquico caracterizada pela aliança entre os agentes estatais (funcionários administrativos e do governo) e os potentados privados (os detentores da riqueza privada). Estes dois grupos de poder buscam, antes de tudo, realizar seus interesses próprios em detrimento do bem comum do povo.




ALIANÇAS POLÍTICAS

 

Não deveríamos nos surpreender com essa aproximação de Lula à agenda neoliberal, representada na figura de Alckmin. Quando estava na presidência, a despeito de seus 80% de aprovação, Lula foi um neopopulista de mercado. Em 1 de dezembro de 2010, Lula declarou, na Carta Capital, “ foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista”. O governo lulopetista caracterizou-se pelo desenvolvimento e expansão do mercado de consumo interno e pelo pacto desenvolvimentista com o grande Capital nacional. Só mesmo na narrativa fantástica da extrema direita e dos apoiadores de Bolsonaro, seria possível associar Lula e o PT a algum projeto de revolução comunista no Brasil. O governo petista historicamente foi pró-mercado. Assim, vivenciamos três movimentos psicopolíticos no Brasil de hoje, que configuram juntos uma única produção de força delirante: 1) recusa dos elementos históricos complexos; 2) regressão imaginária radical a um modo antigo de organizar a história; 3) ódio e pressão urgente por ação de violência, sacrifício e restauração da civilização. Esses três movimentos formam o sistema delirante da extrema direita. Esse sistema delirante, paranoico e fetichista alimenta o nosso arraigado e antigo desprezo antipopular e ódio pelos pobres. Esse sistema delirante, alimentando nossa tradição anticrítica e anti-intelectual, enraizado em nossa formação moderna como sociedade escravocrata, explica por que é possível que pessoas comuns insistam em ignorar o fato de que o PT e o governo Lula ousaram dirigir o processo histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza COM UM GRAU MÍNIMO DE PARTILHA COM OS MUITOS POBRES.