terça-feira, 1 de dezembro de 2015

"Ou a aprovação é trágica ou não há aprovação" (Clément Rosset)

Imagem relacionadaResultado de imagem para Lucrécio


Naturalismo ou Artificialismo
Uma decisão filosófica






Cosmovisão será o termo por mim adotado para denotar uma maneira geral de compreender o universo e nossa relação com ele. Ainda que a entrada cosmovisão seja apresentada nos dicionários como sinônimo de visão de mundo, a semântica de cosmovisão supõe que, na compreensão do universo e na relação com ele, está envolvido um modo de ser e de viver próprio do indivíduo que compreende o mundo e se relaciona com ele. A cosmovisão se estrutura em torno de pressupostos atinentes ao significado da vida, ao que é importante para a sua realização e reafirmação e ao modo como o mundo funciona. Naturalmente, não se deve perder de vista que a cosmovisão varia segundo um grupo ou uma sociedade; igualmente variável é o grau em que dela compartilham os indivíduos.
Neste texto, duas cosmovisões serão tematizadas – a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista[1]. Competir-me-á não só dilucidar os conceitos fundamentais nos quais se esteiam as duas cosmovisões, mas, máxime, sustentar a posição segundo a qual, se à filosofia deve-se destinar a tarefa de cunhar modos de ser – como creio seja a sua tarefa mais própria -, então quem quer que se dedique a ela com um compromisso existencial deverá decidir-se a assumir com fidelidade uma ou outra cosmovisão, ciente de que essa assunção implica o indivíduo por completo, isto é, demanda dele um compromisso psicofisiológico e/ou existencial com a cosmovisão adotada. Também manterei a hipótese de que tal decisão não é resultado de um ato puramente racional, intelectual, de um sujeito autônomo e absolutamente livre, mas é motivada por suas disposições, que são responsáveis por orientar suas ações, seus julgamentos e comportamento. As disposições são integrantes da personalidade de cada indivíduo e se moldam como resultado de experiências corporalmente vividas na fase chamada primeira infância, que compreende os cinco primeiros anos de vida da criança.
As duas cosmovisões que serão contempladas nessa discussão – a naturalista e a artificialista – são incomensuráveis entre si. A escolha de uma delas pelo indivíduo, preocupado em levar adiante seu compromisso existencial com a filosofia, implica toda a sua existência, todo um modo de ser e de apreender-se com o mundo em vivências orgânicas que mobilizam a sua estrutura fisiológica e que o expõem ao modo de funcionamento desse mundo. Insisto em que a decisão não redunda numa escolha meramente intelectual (embora a envolva), que definiria um horizonte interpretativo de mundo desvinculado de nossa tonalidade afetiva. Pensar assim significaria assumir que o intelecto é um princípio imaterial e separado do corpo, e que a decisão envolve algum cálculo racional sem qualquer relação com a forma como somos afetados pelas configurações vitais. A referida decisão a que o indivíduo humano não pode esquivar-se implica toda a sua integralidade enquanto existente que se constitui na relação necessária com o Todo (o mundo). A decisão envolve a integração de seus afetos, de suas experiências psicofisiológicas, de suas crenças, conhecimentos, disposições, de todo um complexo de formas de sentir o mundo e nele agir. Afeto é, sem dúvida, uma instância desse complexo que tem destaque na decisão, pois que a decisão envolve nossos sentimentos, e afeto, em filosofia, de um modo geral, designa tanto o sentimento quanto a impressão que causamos nos outros e os outros em nós. Um afeto é um estado de alma, como tal é uma marca do modo como nos inclinamos para o mundo, para os demais indivíduos.

1. As duas cosmovisões, segundo Rosset

Com defender a necessidade de uma decisão que defina uma orientação filosófica que deverá fundamentar a existência do indivíduo que se dedica ao exercício aturado da atividade filosófica, não estou sugerindo que, uma vez realizada a decisão, esse indivíduo deve cingir seu interesse ao elenco de pensadores que conformam a cosmovisão assumida. O convívio aturado com a literatura filosófica nos expõe a uma série imensa de formas diversificadas de pensar o homem e o universo. É indispensável, por isso, à consolidação de nossa formação filosófica dedicarmo-nos a estudá-las com obstinação e sem juízos de valor negativos, os quais não contribuiriam senão para estorvar a apropriação compreensiva satisfatória da riqueza do pensamento produzido e legado por homens cujas vidas foram completamente devotadas ao saber. Ademais, nossa atenção às diferentes formas de expressão da tradição filosófica é tanto mais necessária quanto mais cientes estivermos de que as visões de mundo filosoficamente expressas e defendidas pelas muitas gerações de filósofos, situados em determinadas escolas, comprometidos com diferentes sistemas de pensamento, não são, de modo algum, estanques; ao contrário, se constituem numa longa cadeia de discursos dialogicamente estruturada. Nossa formação filosófica é, portanto, devedora do grau com que nos permitimos ser agentes de uma expedição intelectual por diversas paragens filosóficas em cuja extensão os pensamentos se interpelam, se enunciam polifonicamente e as questões se reclamam umas as outras, se imbricam nas diversas formas de enunciação.
Rechaçada qualquer suspeita sobre o estar eu sugerindo a indiferença a outros horizontes hermenêuticos filosóficos, quando da escolha por assumir uma das cosmovisões que serão aqui tematizadas, começo por inscrevê-las no enquadramento teórico proposto por Rosset, em seu A Anti-Natureza: elementos para uma filosofia trágica (1989). Nesse livro, Rosset desenvolve uma defesa da visão artificialista, única capaz de expressar e subsidiar uma concepção trágica da existência. O desenvolvimento de sua posição filosófica, que, reconhecidamente, tem inspiração no pensamento nietzschiano, se faz pela elaboração de uma discussão que passa em revista as formas como as duas visões encaminharam e subsidiaram o pensamento filosófico na Antiguidade e na Modernidade. Rosset, inicialmente, citará, como mote de seu trabalho investigativo, um trecho do aforismo 109 de Nietzsche, que figura em A Gaia Ciência (2012), o qual se reproduz abaixo:

“(...) quando deixaremos nossa cautela e nossa guarda? Quando é que todas essas sombras de Deus não nos obscurecerão mais a vista? Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida?” (p.126-127, grifo meu).


É o próprio Rosset que responde a Nietzsche, nestes termos:


“(...) o homem será “naturalizado” no dia em que assumir plenamente o artifício, renunciando à própria ideia de natureza, que pode ser considerada uma das principais “sombras de Deus” ou então, o princípio de todas as ideias que contribuem para divinizar a existência (e, desta maneira, depreciá-la enquanto tal”)” (p.9-10).



O leitor deve atentar para o fato de que Rosset considera a ideia de natureza, num primeiro momento, como uma das formas através das quais se projeta a ideia de Deus como causa primeira ou princípio explicativo da existência de todas as coisas. Logo em seguida, essa perspectiva é reforçada com uma nova forma de categorização: “a ideia de natureza é  o princípio de todas as ideias que contribuem para divinizar a existência”. Se é “princípio”, é o que dá origem, o que fundamenta e confere um horizonte de inteligibilidade às ideias que concorreram para divinizar a existência. Disso é forçoso concluir que a oposição entre a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista assenta-se na assunção, de um lado, e na recusa, de outro, de um princípio ordenador, produtor de sentido à luz do qual a totalidade do real se explica. A natureza é, assim, tomada como algo já dado, anterior a todas as existências e responsável por dar-lhe uma ordem, uma necessidade, uma finalidade.
Rosset nega a possibilidade de, algum dia, os homens renunciarem à ideia de natureza como princípio explicativo do real. Segundo nota o filósofo,

“(...) a ideia de natureza – qualquer que seja o nome com o qual ela encontre, independendo da época, um meio de expressão – afigura-se como um dos maiores obstáculos que isolam o homem do real, ao substituir a simplicidade caótica da existência pela complicação ordenada de um mundo” (p. 10).



Dois são os objetivos perseguidos pelo autor: o primeiro dos quais consiste em demonstrar que a ideia de natureza não é outra coisa senão uma ilusão do desejo humano. Nesse sentido, poder-se-ia dizer, com Rosset, que é no desejo humano que devemos buscar a necessidade de compreender o mundo como uma totalidade ordenada e dotada de finalidade. O segundo objetivo consiste em opor à ideia de natureza a noção de mundo como artifício, em consonância com a qual o que existe é da ordem dos fatos, da qual está excluído qualquer princípio anterior.
O que se encena, por conseguinte, no desenvolvimento da proposta do autor é a oposição irredutível entre a (cosmo)visão naturalista e a (cosmo)visão artificialista. Rosset empreende a defesa da cosmovisão artificialista, a qual redunda na aprovação do caráter trágico da existência. Na verdade, aprovar a existência, segundo o autor, é aprovar o trágico, e aprovar o trágico significa prescindir de qualquer referencial ontológico, como “ser”, “finalidade”, “necessidade”, “ordem”, etc. Para Rosset, “ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação”.
Nas subseções seguintes, apresentarei as duas cosmovisões contempladas neste estudo, definindo as categorias conceituais sobre as quais elas repousam.


1.2. A cosmovisão naturalista

Ao nos concentrarmos na descrição da cosmovisão naturalista, o conceito fundamental que será preciso definir e sem cuja definição é impossível compreender o que significa qualificar de naturalista uma cosmovisão é o de natureza. Antes de fazê-lo, é oportuno lembrar que, segundo Rosset, “toda filosofia é, inevitavelmente, de tendência naturalista” (p. 125). Por quê? (talvez esteja se perguntando o leitor) Porque toda filosofia se pretende um sistema e porque está interessada em determinar princípios. Por princípios, deve-se entender aqui as causas primeiras. Já se vê que a filosofia naturalista supõe a existência de um princípio metafísico que dá origem a tudo que existe (independentemente do nome que lhe atribuamos). Segundo a cosmovisão naturalista, o que existe é efeito de princípios que, em sua totalidade, não se reduzem ao acaso.
No que tange ao conceito de natureza, podemos começar por defini-la como um modelo de inteligibilidade do real. Mas essa definição provisória não dá conta da extensão da significação do conceito de natureza nem na história da filosofia nem no enquadramento teórico proposto por Rosset. Considere-se, num primeiro momento, a significação do conceito de natureza na história da filosofia, visto que da elucidação da significação no contexto histórico filosófico depende a compreensão de sua significatividade no enquadramento teórico proposto por Rosset. Comecemos, pois.
Do latim natura, natureza é a tradução da forma grega phýsis. Para os antigos gregos, phýsis recobre as ideias de processo de surgimento, de nascimento e de crescimento, porque derivado do verbo phýo, que quer dizer “fazer crescer”, “fazer brotar”, “fazer nascer”. A phýsis ou a natureza é uma potência autônoma que organiza ou comunica a vida.
Dois sentidos básicos podem ser distinguidos no conceito de phýsis.

1) natureza universal: como natureza universal, a natureza é a ordem do Todo, que é o mundo. Ela é a lei que rege todos os fenômenos e a alma que confere vida ao corpo.

2) natureza íntima: como natureza íntima, phýsis é a substância ou essência dos seres que têm em si o princípio de seu movimento. Este significado encontramos na pena de Aristóteles, o qual passou em revista os diferentes sentidos em que se empregou a palavra na tradição. Aristóteles discriminou entre quatro sentidos:

1) geração (gênesis) dos seres dotados de crescimento;
2) causa interna do crescimento, lei imanente à vida;
3) matéria-prima dos seres;
4) substância (ousia) dos seres naturais.

Como natureza universal, o emprego da palavra phýsis é antigo na história da filosofia. Encontramo-lo em Tales, na escola pitagórica, em Xenófanes, Parmênides, Zenão de Eléia, Empédocles e Anaxágoras. Para Pitágoras, por exemplo, a Natureza recobria mais do que o mundo sensível; além desse mundo, ela abrigava, como ensinara Porfírio, os deuses imortais.
Platão, em Fedro, via a Natureza como Lei Espiritual que rege o Universo. Os estóicos, por seu turno, pensaram-na como o Todo e o absoluto. A natureza é a alma que governa o mundo, o qual, por seu turno, era compreendido como um grande organismo vivo. Destarte, de acordo com os estóicos, a natureza rege eternamente o Todo (o mundo) com leis racionais e perfeitas.
Para Plotino, a natureza é a forma do Universo; é também a alma, mas não do mundo; é a alma segunda produzida por uma alma primeira que possui sensações e inteligência.
Cumpre ainda notar que, no sentido de essência, natureza também figura no pensamento de grande parte dos filósofos da tradição. Os estóicos compreendiam-na como aquilo que a coisa é ou que faz dela aquilo que é – como essência, portanto. Como essência, a natureza é o ser mesmo das coisas. Nesse caso, trata-se da natureza íntima de um ser. No entanto, esta natureza não se concebe isoladamente do Todo; na perspectiva estóica, a lei da minha natureza – a saber, daquilo que faz de mim quem eu sou – é estar incorporado ao Todo.
O que externamos a respeito da significação do conceito de natureza está longe de constituir uma exposição exaustiva, mas suficiente para esclarecer a significatividade do conceito no interior da proposta filosófica de Rosset. Pode-se, pois, formular uma definição de natureza que lança luzes sobre o próprio horizonte hermenêutico recoberto pelo naturalismo: a natureza é a causa do desenvolvimento imanente das coisas. Todavia, essa definição não elide a noção de essência como uma região da significação da ideia de natureza. Na verdade, os dois sentidos gerais, anteriormente definidos, são abrigados pela cosmovisão naturalista.
A phýsis ou natureza é o princípio donde se origina o Kósmos; é a realidade primeira e última de todas as coisas. Como força criadora originária de todas as coisas, a natureza é responsável pelo surgimento, transformação e perecimento delas.
Aproximando-se ao fim desta seção, ajunte-se que quem assume a cosmovisão naturalista do real endossa a compreensão de mundo como uma Totalidade ordenada cuja origem se identifica com um princípio primeiro – a natureza. Quem endossa a doutrina metafísica, deturpada mas de inspiração platônica, segundo a qual há um ser como suporte das aparências sensíveis, há uma ordem transcendente à desordem do mundo fenomênico endossa uma visão naturalista.


1.3. A Cosmovisão artificialista

Nesta seção, estarei interessado em definir a cosmovisão artificialista tendo em vista os aspectos que a tornam distinta da cosmovisão naturalista. Na seção anterior, vimos o que significa natureza, conceito fulcral da cosmovisão naturalista. Doravante, faz-se mister definir dois conceitos também fundamentais em vista dos quais a cosmovisão artificialista se estrutura como sistema filosófico de compreensão do mundo: o artifício e o acaso.
Não é escusável dizer, antes de nos lançarmos à tarefa cujo desenvolvimento se nos apresenta imperioso, que o traço fundamental com base no qual a cosmovisão naturalista se distingue da cosmovisão artificialista toma forma na proposição: nada se poderia produzir sem alguma razão. No passo seguinte, Rosset enfatiza a característica distintiva da cosmovisão naturalista:

“A ideia fundamental do naturalismo é uma neutralização da atuação do acaso na gênese das existências: afirma que nada se poderia produzir sem alguma razão e, consequentemente, as existências independentes das coisas introduzidas pelo acaso ou pelo artifício dos homens resultam de outra ordem de causas, a ordem das causas naturais. Sabe-se somente que a natureza é aquilo que resta quando em todas as coisas neutralizam-se os efeitos do artifício e do acaso: ninguém determina exatamente isso que resta, no entanto, para que se constitua a ideia de natureza, basta supor a existência de qualquer coisa que resta” (p. 24, grifos meus).



A distinção entre natureza e artifício está na base da separação tradicional entre o mundo natural e o mundo humano (o da cultura). A cultura é vista, assim, como artifício, como produto da prática humana. O domínio da cultura recobre, além das crenças, conhecimentos, valores produzidos pelo homem, as técnicas de transformação da natureza. A cultura é parte do ambiente resultante da transformação da natureza pelo homem. Essa transformação é operada pelo homem por meio de seu trabalho. O que daí resulta – a cultura – é o domínio do artificial e do convencional.
A natureza, por sua vez, recobre o domínio das existências presentes e independentes da ação dos homens. No escopo da crítica de Rosset, está justamente o postulado da separação entre natureza e cultura. A ideia de um mundo como natureza implica a recusa da facticidade do real, bem como uma exigência prévia de justificação do real. O artificialismo proposto por Rosset assenta na imprevisibilidade de todo ser e assume o acaso de toda constituição. Assim, a ideia de acaso implica a insignificância radical de todo pensamento ou acontecimento, bem como a supressão das fronteiras entre os domínios do natural e do artificial.
A ontologia proposta por Rosset é trágica, porque descerra um mundo desnaturado e privado de sentido. Entanto, não é um mundo absurdo o que se desvela; é um mundo frágil, simples e inocente, como diz o autor. O mundo se diz frágil porque o acaso – a soma fortuita de circunstâncias – o constitui. O mundo se diz simples, porque é um mundo em que tudo o que existe é singular. Finalmente, o mundo é inocente, porquanto a existência permanece incapaz de se reduzir a qualquer natureza.
A esta altura, o leitor deve ser prevenido de que a ideia de artifício, que está implicada na caracterização do pensamento artificialista, não recobre aquilo que resulta da ação humana. Não se deve pensar o artifício como aquilo que imita o natural, ou como uma capacidade ou método utilizado para fabricar algo. A cosmovisão artificialista se assenta na ideia de artifício como um marcador de independência em relação a todo princípio natural. O que se tem em vista com o termo artifício é a descrição de um mundo desprovido de natureza.
O artifício compreende o conjunto dos fatos existentes, ao qual se opõe a natureza como o domínio das leis não existentes (ou existentes enquanto projeções do pensamento humano). Leis naturais não são princípios objetivamente verificáveis, mas resultam de um processo de construção/abstração da mente humana com base na crença numa regularidade dos eventos fenomênicos. Só se pode postular leis naturais na suposição de que existe uma ordem natural. É isso que a cosmovisão artificialista rejeitará: não há leis naturais, porque não há tal ordem natural, porque não há tal natureza que confere ordem ao mundo.
No tangente ao conceito de acaso, a cosmovisão artificialista toma-o como anterior à constituição de toda série causal e de toda ordem. O acaso, no sentido trágico que nos interessa esclarecer, é anterior a todo acontecimento e a toda necessidade. Em Lógica do Pior (1989), Rosset denominará esse acaso de acaso original ou constituinte: original, porquanto não supõe nenhuma natureza na origem de sua possibilidade; e constituinte, porque é a origem produtora de tudo que se representa como dotado de natureza, de ordem. O pensamento trágico tem em vista o acaso original que, como se vê, prevê certa estabilidade de combinações, sempre, no entanto, temporária. Pontuando esse aspecto do acaso, escreve Rosset:

“(...) produzindo tudo, o acaso produz também seu contrário que é a ordem (donde a existência, entre outros, de um certo mundo, esse que o homem conhece, e que caracteriza a estabilidade relativa de certas combinações” (p. 96).


O acaso é, na realidade, um antiprincípio, porque somente ele permite explicar o caráter fortuito, aleatório, isto é, artificial- não submetido a uma natureza e suas leis – de toda existência.



3. Considerações finais

A cosmovisão naturalista tem uma longa história na filosofia. Sua vertente antiga se estende do século IV AEC. ao século XV EC – um vasto período no qual encontraremos defensores como Sócrates, Platão, os Cínicos, Aristóteles, passando por pensadores da Antiguidade Cristã e da Idade Média e encontrando ressonância no início da Idade Moderna.
Todavia, entre o século XVI e a primeira metade do século XVII, num período de aproximadamente cinquenta anos que precede a restituição do naturalismo feita por Descartes, a cosmovisão artificialista pôde desfrutar de algum prestígio. Entre os defensores dessa cosmovisão, se acham Maquiavel, Pascal e Hobbes. É, no entanto, na modernidade, mais precisamente na segunda metade do século XVII, que a cosmovisão naturalista ressurgirá com Descartes e será ratificada na filosofia das Luzes, depois no idealismo alemão e em todas as formas modernas de filosofia da história.
A decisão que se impõe ao estudioso de filosofia em face das duas cosmovisões que se lhe apresentam como dois horizontes hermenêuticos que permearam a história da filosofia é condição de possibilidade para a assunção de seu compromisso existencial com a filosofia, a qual ou deve-lhe ser um exercício metamorfoseador de seu modo de ser, ou, suprimindo-se enquanto tal, se reduzir a um compêndio de ensinamentos entregues à mera prática de assimilação intelectiva. Como se vê, a decisão sobre a cosmovisão em que fundará sua existência envolve a escolha pelo indivíduo de quem serão os seus mestres na tarefa de (re)edificação e reafirmação de seu modo de ser próprio.
A oposição entre a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista supõe a separação entre aqueles para quem o mundo se explica por recurso a um princípio que lhe confere uma razão de ser e aqueles para quem o mundo é desprovido dessa razão de ser, não sendo mais do que resultado de encontros fortuitos produzidos pelo acaso. O que se opõe não são apenas duas cosmovisões, mas dois modos de existir, dois modos de ser, de se relacionar cognitiva e afetivamente com mundo, sem que dessa relação esteja alijado o investimento fisiológico do indivíduo cuja vida é devotada profundamente à filosofia. Na decisão, está em jogo a determinação do modo próprio de relação fisiológica do indivíduo com o mundo.
É o ser próprio de quem escolhe, de quem assume um compromisso efetivo com uma ou outra cosmovisão filosófica, com uma ou outra forma de compreender o Uni-verso que se determina na escolha. A decisão também define quais serão os filósofos que orientarão o trabalho permanente envolvido na constituição da coerência de seu modo próprio de ser - trabalho com cuja realização o indivíduo se compromete no momento da decisão. Essa decisão, portanto, opõe os que viverão na companhia cotidiana de um Platão, de um Epicuro, de um Rousseau, de um Schopenhauer aos que viverão na companhia de sofistas, de um Lucrécio, de um Maquiavel ou de um Nietzsche.




[1] Rosset (1989) usa apenas o termo “visão” para designar essas duas formas de compreensão do real. Mas o termo “cosmovisão” me pareceu mais adequado para descrever tanto a extensão totalizante da visão (pois se trata da visão do Todo) quanto o grau de envolvimento com o mundo por parte de quem a assume.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"Nietzsche foi um bon vivant: ele soube desferir seus golpes" (BAR)

                                      


                

                  Contra o cansaço endêmico


Em entrevista a Silvie Jaudeau, o filósofo romeno E. M. Cioran responde a diversas perguntas sobre sua vida e obra. A certa altura, Jaudeau pergunta ao filósofo: por que o senhor rompeu com a poesia? -  ao que responde Cioran:[1]


“Por esgotamento interior, por enfraquecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que se fica ressecado. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual rapidamente os artifícios são percebidos. O mesmo vale para a prosa. Na medida em que fico mais velho, escrever não me parece essencial. Livre de um ciclo de tormentos, descubro enfim a dor da capitulação (...)”.



O esgotamento interior e o ressecamento a que se refere Cioran não são apenas sintomas do envelhecimento e da proximidade do fim da vida. São sintomas da apreensão da vanidade de tudo que, outrora, lhe parecia indispensável. Na juventude, para enfrentar suas crises de insônia e evitar que, afundado em seus tormentos, viesse a pôr fim a sua vida, Cioran dedicou-se a escrever. Escrever, segundo ele mesmo confessou, foi sua única alternativa para evitar o suicídio. A resposta de Cioran é reveladora de um homem já cansado da vida; mas esse cansaço não é meramente um estado fisiológico tardio; trata-se de um estado que o acompanhou durante quase toda a sua vida, que marcou profundamente sua obra. Que este cansaço  tenha-o mortificado ainda na juventude prova-o o texto Esgotamento e agonia de Nos Cumes do Desespero, no qual o jovem Cioran escreveu “quero morrer, mas lamento querer morrer”[2]. As páginas de Cioran não são, para mim, simples objetos de estudo e reflexão; são testemunhos de experiências que me são congênitas. Todo o sentido da filosofia, para mim, se justifica nessas páginas. A atmosfera asfixiante, de um pessimismo clarividente e desesperador, combinado com um ceticismo corrosivo, deleita meu espírito tanto quanto se parece com a atmosfera em que, há alguns anos, compus muitos de meus textos.
Ainda uma segunda pergunta dirigida a Cioran acarreta uma resposta que deve ser aqui referida. Jaudeau pergunta ao filósofo romeno: A sua verdade não reside no silêncio oposto hoje aos que ainda esperam livros do senhor?. Leia-se a resposta.


“Talvez; mas se não escrevo mais é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica -, algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade, e a lassitude elimina essa necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais.”



Eis aí, mais uma vez, o testemunho de alguém que foi vencido pela vida; não porque foi inapto fisiologicamente para suportá-la, mas justamente porque soube resistir a ela tão profundamente que a desmascarou para apresentá-la tal como é: um acontecimento sem sentido e sem propósito. A lucidez lhe foi o ônus por ter suportado durante tanto tempo a vida. A lucidez, porquanto é um estado de compreensão penetrante, cirúrgica, inquietante, revela aquilo que se mantivera encoberto por nossas ilusões (no sentido freudiano, a saber, por crenças motivadas pelo desejo). Por isso, em Do inconveniente de ter nascido, ele asseverou: “Relativamente a todo e qualquer ato da vida, o espírito desempenha o papel de desmancha-prazeres”.[3] Esse papel é extensivo à lucidez; no entanto, mais do que ser um estraga-prazeres, a lucidez costuma fustigar a ponto de, como no caso de Cioran, tornar-nos lassos. O tempo em que a lucidez atinge seu ápice é o tempo em que “nada mais interessa”.
De que modo busco compensar o cansaço contaminante de Cioran é o que minhas próximas linhas hão de explicar. A explicação, a fim de que seja o mais inteligível possível, deve começar pelo esclarecimento do significado deste meu enunciado: “Ter um alvo, um adversário sobre o qual possamos lançar nossos ataques – é este meu remédio contra o cansaço endêmico da vida”.
Esse enunciado, eu o produzi entre um trecho e outro de Nietzsche. Enquanto me mantinha debruçado sobre o livro A Vontade de Potência, ocorreu-me que Nietzsche pôde viver a vida que tanto o ocupou em sua filosofia, em meio aos seus tormentos costumeiros, porque soube aproveitar a vontade de viver para atacar seus adversários com o refinamento de quem sabe esperar o tempo oportuno. Quem são os adversários aos quais se opunha o autodenominado primeiro imoralista? É o próprio Nietzsche que nos esclarece, em Ecce Homo (Por que sou um destino?):


No fundo, são duas as negações que encerra em si a minha palavra imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã”.


A filosofia nietzschiana combinou duas formas de entusiasmo: um entusiasmo ofensivo, combativo, que identificou os adversários para atacá-los  em suas trincheiras; e um entusiasmo afirmador, graças ao qual nos ofereceu belas páginas de uma lucidez fortificante. Contra o veneno que enfraquece a vida, Nietzsche ofereceu um antídoto: o seu Zaratustra, o seu homem dionisíaco, o seu amor fati. Nietzsche, que se insurgiu ferozmente contra as tendências negadoras da vida – reunidas sob as categorias do niilismo e do pessimismo, em suas formas diversas – não evitou o reconhecimento de que a vida é desfazimento, é dor, é sofrimento. Sua ousadia consistiu em condenar aqueles que, enfraquecidos pela consciência desta verdade, insistiam em desaprová-la, em condená-la.

A condição de existência do homem é a mentira; de forma diversa, seria não querer ver de modo recalcitrante como é feita, no fundo, a realidade. Esta não é tecida de forma a estimular a todo momento os instintos de benevolência, nem muito menos de maneira a permitir em qualquer ocasião a ingerência de mãos estúpidas e boas”.



Segundo Nietzsche,  o otimista é tão decadente quanto o pessimista; mas, ainda consoante Nietzsche, o otimista talvez seja um tipo mais nocivo porque nunca diz a verdade. Costumeiramente afirma sua “felicidadezinha” na mentira. É um tipo caluniador da vida.


Eu sou o primeiro imoralista; por isso, sou também o destruidor por excelência”.


O primeiro imoralista foi um destruidor que se pretendia também criador, que profetizava um tempo em que os homens seriam artistas.
Seu ateísmo foi reconhecido como instintivo, conforme atesta na passagem seguinte do texto Por que sou tão inteligente:

““Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “além”, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei o meu tempo, nem mesmo em criança; talvez nunca fosse bastante ingênuo para fazê-lo? Para mim, meu ateísmo não é uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto. Sou bastante curioso, suficientemente incrédulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta tão grosseira. Deus é uma resposta rude, uma indelicadeza contra nós, pensadores; antes, dizendo-se a verdade, não é senão um tosco empecilho contra nós mesmos: não deveis cogitar dele!”.



O Deus cristão esteve, sem dúvida, na linha de frente dos ataques ferinos de Nietzsche. Deus – bem notara o filósofo – era a própria antítese da vida. O cristianismo paulino não é senão a expressão da decadência. O cristianismo, retirando da vida qualquer valor em favor de um “além-mundo”, caracterizado por levar à fadiga os instintos, é uma religião niilista. Nietzsche acusa o cristianismo – e a prática missionária de Paulo, particularmente – de estimular a má consciência “contra o sentimento de dignidade da alma nobre”. Contra o Deus que enfraquece, Nietzsche escreveu:

Ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”[4]


A radicalidade da crítica do conceito de Deus, levada a efeito por Nietzsche, repousa no fato de ele ter conseguido, como poucos, operar uma incisão semântica que permitiu expor os sedimentos de sentido perniciosos encobertos por um longo trabalho de doutrinação. Em Ecce Homo, lemos:

“O conceito de “Deus” foi arquitetado como antítese ao de vida, tendo sido reunido nele, em terrível unidade, tudo o que havia de abjeto, de venenoso, de calunioso: todo o ódio mortal contra da vida”.


Com a invenção do conceito do Deus cristão, o homem torna-se culpado; a vida, objeto de renúncia; a “mundanidade”, de desaprovação.
O que as páginas de Nietzsche nos ensinam, em essência, é que a filosofia só pode estar a serviço da vida (e não pode ser diferente!) se for para afirmá-la contra as diversas tendências que se orquestram para enfraquecê-la, para negá-la.  A vida, enquanto vontade de poder, é um pathos – o fato donde resulta um devir e uma ação.
De que modo, afinal, compenso o peso do cansaço mortificante das páginas cioranianas? A resposta salta evidente: é necessário sorver o vigor nietzschiano compreendendo que o impulso para o "viver mais" depende da força com a qual atacamos as tendências que conspiram para aniquilá-lo.





[1] CIORAN, E. Entrevistas. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 29.
[2] CIORAN, E. Nos Cumes do Desespero. São Paulo: Hedra, 2011, p. 29
[3] CIORAN, E. Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 44.
[4] NIETZSCHE, F. Vontade de Potência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 201.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

"Deus é o único ser que, para reinar, não tem sequer necessidade de existir" (Baudelaire)

                   
                                         


                                 A carta de Tiago
                                                  e
                   a  fé como relação de barganha




Intróito

Israel não foi o único povo a conceber um Deus único, tampouco pode reivindicar ter sido o primeiro povo monoteísta. O monoteísmo tornou-se a religião egípcia oficial no tempo do jovem monarca Amenhotep IV. Esse soberano elidiu as antigas divindades em 1375 a.C., pôs fim à oposição sacerdotal e impôs uma religião baseada na crença num único Deus, Aton, nome este que parece ter assumido a forma hebraica adonai (senhor). Semelhantemente ao Deus judaico, Aton não admitia quaisquer imagens, exceto o disco solar, que era seu símbolo. O culto de Aton, no entanto, não durou muito, pois Amenhotep - àquela altura, chamado Aquenaton (por ter sido quem estabeleceu o novo culto) -, morrera em 1383 a.C. Pouco tempo depois da morte do soberano Aquenaton, o culto a Aton foi abandonado.
É verdade também que os judeus, tendo enfrentado muitas crises, retomaram frequentemente, cultos antigos e abolidos. Um exemplo dessa volta a cultos antigos é o culto a Tammuz, deus adorado pelos Sumérios, que o chamavam Dumuzi. Não faltam exemplos históricos que validam a afirmação de que todos os povos vizinhos, seja amigos, seja inimigos, estabelecem intercâmbios de conhecimentos e ideias, através dos quais se acham vinculados para o bem ou para o mal. Os escritos de Ezequiel (século VI a.C.) patenteiam-nos adesões de inúmeros judeus às várias crenças de seus opressores. Os judeus exilados não conseguiram permanecer imunes às influências de seus dominadores.
Os exemplos de Aton e Tammuz, somados a inúmeros outros, encaminham a conclusão, a que qualquer um chega sem dificuldades, de que deuses são entidades históricas, que nascem em condições sócio-históricas determinadas, podendo tornarem-se signos de um poder hegemônico durante longo tempo, mas sempre passíveis de sucumbirem às transformações sócio-políticas, culturais, econômicas. Deuses são entidades culturais (simbólicas), produtos da engenhosidade humana, ainda que os próprios homens os concebam como entes a-históricos, atemporais, eternos, sustentadores dos Céus e da Terra, Criadores do Universo,  ou com qualquer outra forma de categorizá-los que escamoteia o fato de que eles são, na realidade, criações humanas.
A história cristã é como uma virgem que já fora, várias vezes, despida, mas insiste em encobrir-se. Neste texto, pretendo despi-la novamente. A tese que norteia toda a discussão que desenvolvo aqui consiste em afirmar que a fé é sempre interessada. A fé é sinal que instaura uma relação de barganha entre homem e Deus. Deus diz: Creia em mim! Ao que responde imperativamente o homem: Dá-me algo em troca! Deus oferece a Salvação em troca da confiança humana total nele. Com a instituição das elites religiosas, essa confiança expressa-se sob a forma de subserviência do homem à Vontade Soberana de Deus, a qual se encarna historicamente no poder de uma classe dominante – a classe sacerdotal. Creia em mim!, quer dizer, submeta-se a mim (ao sacerdote), torne-se dócil, domesticável e obediente incondicionalmente. Se para demonstrar de que modo o signo Deus funciona como um dispositivo ideológico a serviço da manutenção da dominação espiritual, política e econômica de um certo grupo sobre outro(s), exige-se um trabalho de desterritorização teológica, a mesma exigência é indispensável para dar conta da razão por que Deus, sendo inegavelmente concebido como autossuficiente e perfeito, necessitaria do amor, da devoção, em suma, da confiança de criaturas imperfeitas tão naturalmente incapazes de uma fidelidade constante. Crendo não estar clara a questão que me coloco, formulo-a do seguinte modo: por que Deus, que de nada carece, precisa, no entanto, de seguidores, de adoradores, de servos, fiéis, crentes? Qualquer tentativa de resposta a esta questão, que não assuma como premissa a ideia de que são os homens que inventam Deus, e não o contrário, será expressão de uma compreensão ideológica do problema. Deuses não são senão produtos da práxis histórica, entidades culturalmente construídas, fabricadas pela imaginação humana em práticas sócio-históricas concretas. Qualquer resposta à questão ventilada acima que apele para uma explicação teológica não faz senão reproduzir uma compreensão ideológica que põe de ponta cabeça a relação entre homem e deuses.
O primeiro tema de que me ocuparei, tendo em vista a tese que sustenta minhas reflexões neste texto, é o da . Como definir a fé? No texto do Catecismo da Igreja Católica (2000), topa-se, a partir da página 48, o artigo I, que é destinado ao tema da . Na página 49, a palavra define-se como “uma adesão pessoal do homem a Deus”. De acordo com essa definição, fé recobre o significado de assentimento livre à verdade revelada por Deus.
Se prosseguirmos na leitura do texto, encontraremos a seção em que se especificam as características da fé. A primeira delas é que a fé é uma graça, isto é, um dom de Deus. A fé é uma virtude sobrenatural infundida por Deus no homem. Se é infundida no homem por Deus, o homem não é, então, naturalmente predisposto à fé.; ele necessita, para possuí-la e manifestá-la, da “graça prévia e adjuvante de Deus e [d]os auxílios internos do Espírito Santo” (p. 51). Depois da Queda, o homem não pode mais contemplar a Deus; se quiser relacionar-se com ele, precisará da fé, que, no entanto, não lhe é uma disposição natural; mas um hábito constante e firme que Deus lhe incute.
A segunda característica da fé consiste em ser ela um ato humano. Segundo o texto do Catecismo, a fé não contraria a liberdade nem a inteligência do homem que, através da fé, confia em Deus e adere às “verdades” por ele reveladas.
Silenciarei sobre as demais características da fé, apontadas pelo Catecismo, pois que elas são dispensáveis ao âmbito desta discussão. Em síntese, o texto do Catecismo dá-nos a saber o seguinte acerca da fé: 1) a fé é uma adesão pessoal do homem, enquanto totalidade, a Deus; 2) a fé é um dom sobrenatural de Deus; 3) a fé é necessária à Salvação.
Cumpre ainda notar que a fé é também segregadora, conforme lemos em Marcos (16,16): “Aquele que crer e for batizado será salvo; aquele que não crer será condenado”. Possuir fé é condição para a Salvação. A fé separa os que serão salvos, porque a possuem, dos que não serão salvos, isto é, serão condenados, porque são resistentes a ela. [1] É oportuno lembrar, de passagem, que a fé, segundo São Tomás, é “um antegozo do conhecimento que nos tornará bem-aventurados na vida futura”. Estando claro que a fé é condição para ser beneficiário da Salvação concedida por Deus, resta determinar em que consiste essa Salvação. A questão que se nos impõe à consideração é: Do que, afinal, seremos salvos?
No Tratado de Teologia (2011), Blazer observa que Deus nos salva “de muitas realidades negativas” (p. 308). Ele salva seu povo que se encontra em perigo, livra-o dos perseguidores, dos inimigos (Nm 10-9), das danações (Jz 15-18; Sl 18-3). Deus salva ainda de situações perigosas, das aflições em geral, entre as quais está a tristeza, a angústia, a enfermidade, o temor da morte, etc. Finalmente, Deus livra a humanidade do estado de pecado e de suas consequências. Em Lucas (19: 10), lê-se sobre o livramento da perdição: “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”. Se o texto do compêndio teológico mostra-nos que a Salvação divina é a solução para a condição pecadora a que o homem, desde a Queda, se vê destinado, também nesse texto diz-se que a Salvação é parte do plano de Deus, “antes da fundação deste mundo” (1Cor 2:7; Ef 1:3, 14). Reza o texto que o sofrimento e a morte de Jesus foram um acontecimento fundamental no plano de Deus. Jesus é “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13:8). O sofrimento e a morte de Jesus não decorreram de circunstâncias históricas, mas estavam previstos no plano de Deus. A explicação teológica pretende substituir a contingência histórica; nela, mascaram-se as razões verdadeiras pelas quais Jesus foi condenado e morto pela apresentação de uma razão fictícia, segundo a qual seu martírio foi determinado, desde as origens dos tempos, por Deus. Essas breves considerações sobre o que significa Salvação na teologia judaico-cristã deverão nos ser suficientes para compreendermos mais claramente a questão que ocupará o autor de Tiago, carta que se acha no Novo Testamento.

2. Tiago: um caso de falsificação

No Novo Testamento, se acha um livro cujo autor parece interpretar equivocadamente os ensinamentos de Paulo. Trata-se de uma carta cuja autoria é atribuída a Tiago, chamado o Justo, irmão de Jesus. Era assim que esse Tiago se tornou conhecido nos primórdios da Igreja. Sua notabilidade deve-se também a seu comprometimento com suas raízes judaicas, mesmo vindo a tornar-se um seguidor de Jesus.
Tiago não foi um seguidor de Jesus  em vida (Jo 7,5), mas foi um dos primeiros a ver Jesus ressuscitado. Parece que, depois desse grandioso evento, passou a acreditar em Jesus. O apóstolo Paulo conhecia Tiago pessoalmente. Segundo Paulo, Tiago seguia a lei judaica e defendia a opinião de que os seguidores de Jesus também deveriam segui-la (Gl 2, 12). Tiago morreu por volta de 62 d.C., a acreditarmos nos melhores registros históricos, não sem ter comandado a igreja de Jerusalém durante trinta anos.
A questão principal que ocupou o autor de Tiago estava no centro de disputas com os cristãos. A controvérsia que ela suscita opunha cristãos para quem é suficiente ter fé para ser justo perante Deus ao próprio Tiago, ou melhor, a quem alegava sê-lo. O autor de Tiago sustentava que a fé sem obras não conduz à Salvação. Para Tiago, quem crê e não pratica boas ações não tem fé. A fé deve sempre se acompanhar da prática de boas ações para que aquele que tem fé se torne justo perante Deus. Acreditou-se, durante muito tempo, que a carta de Tiago encenava uma controvérsia com Paulo, segundo nos ensina Ehrman (2013, p. 194):

“Durante séculos, os estudiosos do Novo Testamento sustentaram que o livro de Tiago responde ao ensinamento de Gálatas. Paulo ensinou que era a fé em Cristo que colocava as pessoas na relação certa com Deus, independentemente de elas fazerem ou não as obras da lei”.


Para muitos estudiosos do Novo Testamento, parecia claro que Tiago contrapunha-se a Paulo, na medida em que rejeitava a possibilidade de a fé sozinha produzir justificação. Tanto o autor de Tiago quanto Paulo usam termos como “justificar”, “fé”, “obras”. Ambos apelam para a figura de Abraão e referem o Gênesis 15,6 ( “E creu ele no Senhor, e imputou-lhe isto por justiça”). Desde Lutero, no começo da Reforma, os intérpretes concordam em afirmar que Tiago está opondo-se a Paulo.
Sucede, contudo, que, recentemente, essa interpretação tem sido questionada por vários estudiosos. Eles argumentam que, embora, na carta de Tiago, figurem os mesmos termos usados por Paulo, Tiago não os empregou para dizer a mesma coisa. Ao usar o termo “fé”, Paulo queria sublinhar o seu aspecto relacional. Trata-se da fé em Cristo como confiança em que a morte e a ressurreição de Cristo tornam justa uma pessoa perante Deus. Paulo crê que isso se dá sem que seja necessário seguir a Lei judaica. A confiança (fé) em Cristo independe da obediência a essa lei. Na prática, Paulo acreditava que uma pessoa podia crer em Cristo sem precisar celebrar o sabá, sem precisar seguir as leis de comida kosher, sem precisar, se for um homem, ser circuncidada, etc.
Ao contrário, Tiago refere-se a “obras” não como ações exigidas pela Lei, mas como boas ações que atendem à satisfação dos necessitados: alimentar os famintos, vestir quem está nu, etc. Novamente, lemos em Ehrman,

“Para Tiago, uma concordância intelectual com o cristianismo que não se manifesta em como a pessoa vive não tem utilidade. Isso não salva a alma” (2013, p. 195).



O Tiago que escrevia para contradizer Paulo não era, contudo, o conhecido irmão de Jesus; era, na verdade, um falsificador. A carta de Tiago, que figura no Novo Testamento, foi escrita por alguém que alegava ser Tiago, irmão de Jesus. Ela surge como um desdobramento posterior do raciocínio de Paulo em uma comunidade paulina posterior. O ensinamento a que ela se opõe surgiu após os escritos de Paulo. O que Tiago ensina é semelhante ao que se topa em Efésios, escrito depois da morte de Paulo por um autor que alegava ser Paulo. Efésios está entre os seis textos falsificados em nome de Paulo. Das 13 cartas atribuídas a Paulo, seis são falsificações: Efésios, Colossenses, Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 3 Coríntios. Também são falsificadas as Cartas a Sêneca, escritas, no século IV d.C., em nome de Paulo. Antes de resumir o conteúdo de Efésios, acrescentem-se algumas considerações mais sobre a carta de Tiago.
Tiago pressupõe uma situação posterior nas igrejas de Paulo. Sabe-se que o verdadeiro Tiago morreu por volta de 62 d.C., duas décadas mais ou menos antes de Efésios ser escrito. A razão determinante pela qual a carta de Tiago é considerada uma falsificação repousa no fato de que o autor a escreveu num grego retoricamente fluente. Ele exibia conhecimento íntimo do Antigo Testamento. O Tiago histórico, irmão de Jesus, no entanto, era um camponês da Galileia que falava aramaico e que muito provavelmente não sabia ler,

“(...) Ou, se aprendeu, foi a ler hebraico. Se um dia aprendeu grego, foi como segunda língua, para falá-la, sem dúvida, de forma deficiente. Ele nunca teria ido à escola. Nunca teria se tornado fluente em grego. Nunca teria aprendido a escrever, mesmo em sua língua materna, muito menos em uma segunda língua (...)” (Ehrman, 2013, p. 197).



                     Quem escreveu a carta alegou ser Tiago com o propósito de dar credibilidade a sua posição, qual seja, a de que os seguidores de Jesus precisavam manifestar fé realizando boas ações, visto que sem obras não há fé.
No respeitante a Efésios, seu autor alega ser Paulo e ensina contrariamente ao Paulo histórico que as boas obras não conduzem à salvação. Para o autor pseudônimo de Efésios, fazer boas ações não é determinante para tornar uma pessoa justa perante Deus. O autor não se opõe, na verdade, ao que Paulo efetivamente ensinou, mas ao que cristãos posteriores equivocadamente entenderam do que Paulo ensinara. Foram, pois, esses cristãos posteriores que interpretaram o ensinamento paulino, segundo o qual era a fé que tornava uma pessoa justa como se o que importasse era apenas acreditar, independentemente do modo como essa pessoa vivesse. Sucedeu que o ensinamento de Paulo, segundo o qual, para se tornar cristão, não é necessário realizar as “obras da Lei”, foi tomado como uma recusa da realização de “boas ações”. Para esses cristãos posteriores, importava a crença de uma pessoa e não a vida dela. O autor de Tiago, portanto, mesmo não citando Paulo, tinha em mira objetar ao ensinamento de Paulo, ou melhor, à forma deturpada como ele fora interpretado na época em que esse autor viveu. Os cristãos desse tempo acreditavam que estavam diante de um ensinamento de Paulo, por isso também recorreram à figura de Abraão e ao Gênesis 15, 6, onde se lê que Abraão tinha sido justificado por sua fé, e não por suas obras.
Finalmente, ainda no tocante a Efésios, a carta destina-se a cristãos gentios com vistas a recordá-los de que, embora tivessem um dia sido afastados de Deus e de seu povo, os judeus tinham sido reconciliados e se tornado justos perante Deus. Já não existia mais a barreira que separava judeus de gentios, a saber, a lei judaica. A morte de Cristo lançou-a por terra. Doravante, judeus e gentios podiam viver em harmonia entre si, em Cristo e em Deus.
O autor de Efésios apresenta esse conjunto de ideias teológicas nos três primeiros capítulos (especialmente no segundo); em seguida, passa a ocupar-se com questões éticas com o intento de esclarecer a forma como os cristãos devem viver, para que sejam uma unidade em Cristo. Efésios foi escrito por um cristão posterior em uma das igrejas paulinas. Ele estava preocupado em resolver a grande questão de sua própria época, qual seja, a da relação entre judeus e gentios na igreja. Ele o fez alegando ser Paulo e sabendo que não era, isto é, produzindo uma falsificação.


---------------------------------------------------------------------------------

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAZER, Ivan T. Salvação. In: Tratado de TeologiaAdventista do Sétimo Dia. Tauí: SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011.

EHRMAN, Bart. D. Quem escreveu a Bíblia – Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são? Rio de Janeiro: Agir, 2013.

SCLIGMANN, Kurt. Magia, sobrenatural e religião. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1948.

Catecismo da Igreja Católica (2000).



[1] Antes que me censurem a compreensão reducionista da fé, concedo na possibilidade de encontrarmos uma defesa da fé como experiência inclusiva, comunitária, mas essa inclusividade e comunidade da fé supõem sempre exclusividade, separação entre os eleitos e os rejeitados, entre os que pertencem ao grupo e os que estão dele excluídos. Nesse sentido, sendo parte do aparato da doutrinação levada a efeito pelas elites religiosas, a fé é um sintoma da cooptação dos mais vulneráveis socialmente.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

"Se os macacos chegassem a experimentar tédio, poderiam tornar-se gente." (Goethe)

                                 
                         


                           A experiência do Tédio
                              O Dasein e o mundo


1. Prelúdio
O aparecimento do mundo

Nossa mais primitiva forma de nos relacionarmos com o mundo se realiza através do corpo. Piaget identificou como período sensório-motor a fase que se estende desde o nascimento da criança até seus dois anos de vida – fase em que a criança começa a formar uma noção de “eu”, graças à qual ela se diferencia do mundo externo. O “eu”, na verdade, tem como centro gravitacional o corpo. A criança se apercebe como um corpo próprio distinto do mundo. Essa fase é caracterizada, fundamentalmente, pela ausência da função semiótica. É interessante notar que, para Piaget, a criança nasce num universo que se lhe apresenta caótico, preenchido por objetos que deixam de existir quando fora do campo da percepção. O espaço e o tempo são subjetivamente sentidos, e a causalidade é reduzida ao poder das ações. A criança explora o ambiente em que se encontra através das mãos e da visão. A experiência que obtém depende das ações num processo de imitação. Sua inteligência é prática: as ações precedem o pensamento. Mas uma grande transformação acontece quando a criança começa a desenvolver sua capacidade de linguagem. A aquisição da linguagem, segundo Piaget, tem início no final do período sensório-motor, quando a criança conta entre 3 e 4 anos. Evidentemente, a aquisição da linguagem é um processo de maturação, que envolve estágios, muito embora esse processo se desenvolva muito rapidamente acarretando um desenvolvimento cognitivo exponencial na criança. Com o desenvolvimento da linguagem, o que outrora lhe era caótico, torna-se dotado de ordem e significado: é a relação da criança com o mundo que se transforma radicalmente. É evidente que ela não deixa de relacionar-se com o mundo por meio de seus cinco sentidos e pelas ações de seu corpo. O processo de cognição é um processo corporificado e dependente das relações com outros. A cognição não é uma coisa que acontece na subjetividade dos indivíduos, mas é, fundamentalmente, cognição social, uma atividade que acontece entre indivíduos que atuam reciprocamente. Não obstante continuarmos até a morte a nos relacionar com o mundo através de nosso corpo, com o desenvolvimento da capacidade da linguagem articulada, a própria relação com o mundo assentada no corpo se transforma. O que entendo aqui por cognição é todas as atividades mentais associadas com o pensamento, com o conhecimento, com a memória e com a linguagem.
É por hábito que uso a palavra “mundo”, quando considero o desenvolvimento da criança antes do advento da capacidade linguística. Na verdade, não há mundo fora da linguagem ou antes da linguagem. O mundo não é uma coleção de coisas ou, pelo menos, não se reduz a uma coleção de coisas. Não nego que haja coisas no mundo (há este livro, aquela cadeira, aquela árvore, aquele rio, etc.). Mas este mundo mobilhado permanece imerso num breu impenetrável para nós antes que sejamos capazes de semiotizá-lo. A linguagem é a própria clareira à luz da qual o mundo aparece para nós como uma totalidade significativa. É forçoso protelar, por alguns instantes, o desenvolvimento de minha compreensão do conceito de mundo, para retomar o conceito de cognição em sua relação com a linguagem.
Devemos, pois, ter em conta que os processos cognitivos têm uma gênese sócio-cultural, não simplesmente biológica, pré-fixada. Os processos cognitivos, ademais, são objetos da consciência. Eles são mediados por instrumentos culturais e simbólicos. Quando nos referimos à cognição, pretendemos designar o processo de aquisição de conhecimento  que se dá pelo concurso da percepção, memória, raciocínio, imaginação e linguagem. Não menos importante é reter que, desde muito cedo, os signos inserem a criança no mundo social e organizam a experiência e a conduta delas; por seu turno, a criança torna-se capaz de engendrar linguística e cognitivamente o mundo, atuando sobre ele.
O que chamamos “mundo” não existe sem que ele seja estruturado pela dimensão simbólica. Esta dimensão não preexiste ao homem, mas é fundante do mundo pelo advento do homem. O simbólico, segundo Vygostky, recobre a construção de representações e a operação sobre elas, transformando a experiência humana com o real em conceitos, por meio dos quais o mundo é classificado e categorizado.
Para Vygotsky, é o significado das palavras que permite a elaboração de conceitos e de sistemas conceituais, de complexidade crescente de cadeias de pensamento. Lembro que o acesso ao significado das palavras é o momento de transição feita pela criança da inteligência prática – sensório-motora, para Piaget – aos complexos processos de pensamento.
Ainda com base em Vygotsky, uma vez que a natureza da linguagem é significar, segue-se daí que o desenvolvimento do pensamento conceitual é determinado pela linguagem, no curso das experiências sócio-culturais em que a criança está envolvida. Vygotsky percebeu bem que o significado é um elemento necessário e constitutivo da palavra e que a palavra sem significado não é palavra, mas um som (como são os fones de uma língua). Ademais, ele via o significado de uma palavra como uma generalização e, como tal, não era senão um conceito. A generalização é o próprio processo de formação de conceito, segundo Vygotsky, no que estamos de acordo. É um ato inegável e específico de pensamento. É forçoso, portanto, reconhecer que o significado da palavra, ou o conceito, é também um fenômeno do pensar.
As coisas que se dão em nossa experiência sensível não seriam totalmente conhecidas se não fossem reconhecidas pelo pensamento humano fundado no signo. Antes da aquisição da linguagem ou durante o desenvolvimento do processo, a criança já está sendo moldada pelas palavras dos adultos. Ainda que, nesse período, a imagem e a palavra se confundam para a criança, a palavra confere à imagem significado.
Quando as coisas são nomeadas pela palavra, ela liga a ordem do real (das coisas sensíveis) à ordem simbólica (das coisas para si), tornando aquela primeira ordem pensável e comunicável. Vale ponderar sobre este ponto. Não se negue a existência das coisas sensíveis, mas se rejeita a preexistência de uma ordem de coisas sensíveis. A totalidade das coisas sensíveis só se torna inteligível, só pode ser submetida aos processos de pensamento, quando a palavra ou a linguagem verbal lhe impõe uma ordem significativa. Somente quando essa totalidade sensível é estruturada numa ordem simbólica é que passa, então, a entrar a fazer parte da consciência humana como conhecimento.
Vygotsky nos mostra que o processo de internalização da linguagem faz confluir para um mesmo sentido o mundo biológico e as referências do mundo sócio-cultural. Esse processo desencadeia mudanças na relação do sujeito com a linguagem; marca as impressões culturais nos processos cognitivos, conferindo-lhes uma dimensão humana e estruturando a consciência e a cognição infantil.
O que é o mundo humano senão um sistema de significados? (Azeredo, 2007, p. 17).[1]
A linguagem, tal como a venho pensando aqui, é uma capacidade humana natural e mental que se acha articulada com outras funções cognitivas, tais como pensamento, memória, aprendizagem, inteligência, entre outras. A linguagem, segundo Chomsky, é a porta de acesso à compreensão da cognição humana. Nesse sentido, o estudo da linguagem possibilita a compreensão do funcionamento da mente.
Benveniste, em Problemas de Linguística Geral I (1989), chama-nos a atenção para a natureza fundante da linguagem:

“Por que o indivíduo e a sociedade juntos e por qual necessidade se fundam na língua? Porque a linguagem representa a mais alta forma de uma faculdade que é inerente à condição humana, a faculdade de simbolizar. Entendamos por aí, muito amplamente, a faculdade de representar o real por um “signo” e de compreender o “signo” como representante do real, de estabelecer, pois, uma relação de “significação” entre algo e algo diferente (...) A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder racionalizante do espírito. O pensamento não é um simples reflexo do mundo; classifica a realidade e nessa função organizadora (ênfase minha) está tão estritamente associado à linguagem que podemos ser tentados a identificar pensamento e a linguagem sob esse aspecto”. (1989, p. 30) (grifos meus).


Volvemos nossa atenção para o que é o mundo. Numa perspectiva à luz da qual o mundo é resultado de uma construção para a qual concorre a percepção-cognição, a linguagem e a cultura, deve-se rejeitar a ideia de um mundo já dado, ordenado e preexistindo ao homem. Que as coisas estejam aí e que nós habitamos em meio a elas não se coloca sob suspeita. A questão sobre o que é o mundo situa-se para além de nossa experiência imediata com ele. Nós nos habituamos a nos relacionar com o mundo enquanto uma totalidade de coisas já constituída. Husserl chama de mundo da vida o mundo da experiência humana considerado anteriormente a qualquer tematização conceitual. O mundo da vida é aquilo que se aceita, que se toma como dado, como pressuposto, constituindo nossa experiência cotidiana. O mundo da vida é o real em seu sentido pré-teórico, pré-reflexivo. Portanto, ao aventarmos a questão sobre o que é o mundo, estamos já formulando uma tentativa de teorizá-lo. A questão sobre o mundo retira-nos desse mundo da vida para nos lançar no domínio da reflexão sobre o que é mundo. Há algo, mas antes do advento do sentido não sabemos o que é algo. Ao nomear, o homem traz à existência as coisas. Vemos uma queda d’água. Algum tempo depois, ao retornar ao lugar, não a encontramos mais: o lugar permanece, pela memória identifico o ambiente em que antes me encontrara; mas não vejo mais a queda d’água. Se tudo muda no mundo, o que nos garante a permanência das coisas é a linguagem. Se disponho de uma palavra como “cachoeira” para designar aquele fenômeno que outrora percebi, mesmo na sua ausência, posso referir-me a ele, pensá-lo, torná-lo objeto de comunicação. O mundo natural, embora não seja fabricado pelo homem, não existe sem o investimento simbólico. É preciso nos prevenir contra a ideia ingênua de que a existência para o homem se reduza a estar em contato com as coisas, a estar no mundo em meio às coisas. A existência humana é atravessada pela dimensão simbólica: o homem existe numa rede de significados que ele mesmo constrói. Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser pensado, não existe. Aquela árvore, aquela cachoeira, aquele rio não sei o que são, antes de nomeá-los como tais. O mundo é uma totalidade ordenada de significados. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. 
Considerando o transtorno da depressão, a psiquiatra Maria Rita Kelh faz menção à ideia de “rede de sentido e amparo”, ao observar o rompimento dessa rede pela depressão. Ora, nossa relação com o mundo, nossa existência é constituída dessa rede de sentido e amparo. É oportuno citar as palavras da autora, já que, além de corroborar minha compreensão do que é o mundo até o presente momento, encaminhará minhas considerações ulteriores acerca dele:

“A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda (...)”.[2]

A psicanalista também se refere à ausência de sentido da vida e a brevidade de nossa vã existência. Ademais, nota que é pela multiplicidade de nossos laços libidinais que “tecemos uma rede de sentido para a existência”. Não estou interessado nas questões psicanalíticas suscitadas por esse passo. Interessa-me, na verdade, a ideia de que somos nós, seres humanos, que construímos uma rede de significados que constitui a totalidade do que chamamos de mundo. No entanto, o mundo, tomado em si mesmo, não está ordenado em significados, sequer se pode dizer que seja ele a manifestação exterior de uma natureza que lhe é subjacente. Em outros termos, não há uma natureza (essência) dada, um ser que as aparências escondem. Deve-se rejeitar a visão de que o mundo seja dotado de significado a partir de uma dimensão ontológica. Na contracapa de Antinatureza: elementos para uma filosofia trágica (1989), Rosset convida-nos a uma aprovação trágica da existência que consiste em prescindir de qualquer referencial ontológico:

“Aprovar a existência é aprovar o trágico: consentir em uma intangibilidade da existência em geral que as noções de acaso, artifício, facticidade, não-duração, descrevem cada um em seu nível conceitual. É também renunciar a toda exigência de ser para além da soma das existências. Ser e trágico opõe-se tal qual o não e o sim, a denegação e a afirmação, a necessidade e o acaso, a natureza e o artifício. O trágico da existência é o prescindir de qualquer referencial ontológico – ‘não nos comunicamos com o ser – diz Montaigne; todavia, seu privilégio é, paradoxalmente, ‘ser’. Por isso a existência somente é aprovada se simultaneamente for aprovado o caráter factício e artificial: ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação”.


A natureza ou phýsis deve ser aqui entendida como a Ordem do mundo, uma lei que rege todos os fenômenos. Trata-se de uma natureza universal a partir da qual a vida se organiza. É ela que faz crescer, brotar, nascer tudo que há. Para Rosset, é necessário desaprender a ver o mundo como uma totalidade ordenada segundo uma natureza que lhe subjaz. Por isso, o autor escreve:

“Considerar o mundo independentemente da ideia de natureza significa generalizar uma experiência de desaprendizagem que a maioria dos poetas recomenda a todos que desejam reencontrar um contato “ingênuo”, ao mesmo tempo novo e original, com a existência – contato gerador desta “emoção” diante das coisas de que fala F. Garcia Lorca, e que supõe o esquecimento fulgurante das redes de significação tramadas pelo costume e pelo hábito. (p.49) (grifo meu).


Reencontrar o contato ingênuo com a existência é tornarmo-nos capazes de ter a experiência do espanto em face do real. Mas essa experiência supõe que reconheçamos que as redes de significação de que se constitui a existência são “tramadas pelo costume e pelo hábito”; em outras palavras, são tramadas por nós, seres humanos, na vida em sociedade. Essas redes de significação não preexistem ao nosso advento no mundo.  O mundo é o caos – sustenta Nietzsche. A lógica do mundo não se encontra no mundo, mas em nós. Nós é que logicizamos o mundo.


2. Considerações filosóficas sobre o tédio.

Nesta seção, atacarei o problema que me interessará, de fato, neste texto. As considerações preliminares serviram-me para melhor situá-lo. Espero que o leitor não encontre demasiada dificuldade para apreender a conexão entre essa segunda etapa do texto e a primeira, na qual revistei, em linhas gerais, a problematicidade da relação entre linguagem e mundo. Estou especialmente interessado em discutir o modo como Heidegger elabora sua compreensão do tédio. Não obstante, começarei referindo as palavras de Schopenhauer que já introduz algumas dimensões da significatividade do tédio que não poderiam ser ignoradas para efeito de discussão. No livro As dores do mundo (2014), Schopenhauer traça-nos a imagem da condição existencial do homem ocupado. Leia-se o excerto abaixo:

“O que ocupa todos os seres vivos e os conserva em sua contínua atividade é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isso, não sabem que mais hão de fazer. Assim, o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, tornar-se insensível, matar o tempo, isto é, fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem um ganho toda hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, a qual se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com tanto entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para combatê-lo”. (2014, p. 34).


A leitura deste trecho não pode dispensar de articular as seguintes ideias. Em primeiro lugar, todos os seres vivos, entre os quais o homem, se ocupam, primordialmente, de assegurar sua sobrevivência. Garantir a sobrevivência é a atividade comum ao homem do cotidiano: o mundo da vida encontra nessa atividade seu modus operandi. Em segundo lugar, ocorre que, após realizar o trabalho que visa a garantir a subsistência, o homem se vê esmagado pelo peso da existência. Sua segunda tarefa consistirá em aliviar-se desse peso. Como o faz? Entretendo-se. Não encontrando mais nada que fazer, o homem se impõe a necessidade de escapar ao aborrecimento, isto é, ao tédio. Ele irá buscar meios para distrair-se da tediosa condição que é a sua, a saber, a de um existente. Estranhamente, a despeito do peso da existência, o homem preocupa-se em prolongá-la “com tanto zelo”. Para escapar ao desespero inerente à sua condição, os homens procuram uns aos outros, isto é, entregam-se à sociabilidade mesmo que “se amem tão pouco”. Para Schopenhauer, parece claro que os homens só constituíram a sociedade a fim de escapar ao aborrecimento e ao desespero inerente à sua condição. O Estado não pode permitir que os homens sejam abandonados a seu desespero, pois homens desesperados são muito suscetíveis à revolta contra a ordem que, na lucidez do desespero, pode revelar-se-lhes absurda e opressiva. Por isso, o Estado precisa sempre vigiar os homens e cuidar para que eles se mantenham domesticados e ocupados de tal modo, que não venham a se conscientizar do desespero de sua condição.
O homem ocupado é aquele que permanece fugindo ao tédio e ao desespero. Ele não está ocupado, propriamente, com a sua existência, com a sua condição enquanto existente, pois isso significaria ter de lidar com a vacuidade, com o vazio, com a fragilidade da rede de significados que dota o mundo de uma “ordem” e que sustenta a existência.
Em A filosofia do tédio (2006), o filósofo Svendsen desenvolverá uma compreensão do tédio como perda de significado. Vou-me ocupar de esclarecer essa compreensão. O tédio compreendido como uma perda de significado evoca-nos o que eu expus, na primeira seção, sobre o mundo como uma totalidade de significados. Acompanhemos o que nos escreve o autor:

“O homem é viciado em significado. Todos nós temos um grande problema. Nossas vidas têm deter alguma espécie de conteúdo. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. E o tédio pode ser descrito metaforicamente como perda de significado. O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita” (p. 32).


Cuido estar suficientemente clara a ideia de que o homem está condenado a significar. A condição para que o homem prolongue sua existência é que esta continue sendo fonte de significados. O que ocorre no tédio é que o homem experiencia a escassez da produção de significado. No tédio, homem reconhece a fragilidade da estrutura de significado que sustenta sua existência. Se ele crê que essa estrutura já está pronta, já está dada, cabendo-lhe apenas ajustar-se a ela, explorá-la, é possível que, no tédio, venha a suspeitar de sua solidez. Se, no entanto, não crê que essa estrutura seja preexistente e já constituída, é possível que, no tédio, reconheça não ser ela senão uma ficção que ele mesmo produz. Em qualquer dos casos, o homem precisa enfrentar a fragilidade dessa estrutura, que não resiste à própria fragilidade da vida.
Segundo Svendsen, no tédio, o homem experiencia o vazio do tempo como um vazio de significado. Ademais, o tédio tem a ver com a finitude e o nada. O tédio “é a morte em vida, uma não-vida” (p. 43).
Na perspectiva de Heidegger, o tédio é pensado a partir do conceito de humor. Os humores não devem ser reduzidos a estados psicológicos. Os humores são uma característica básica de nosso ser-no-mundo. Por conseguinte, segundo Svendsen,

“Uma mudança de humor deve, portanto, ser considerada também uma mudança no mundo quando operamos com um conceito de mundo como algo que pode ou não ter significado – pois não temos um mundo afetado para tomar como comparação, um mundo que não se deixasse atingir pela mudança de humor” .(p. 141).

O humor não é simplesmente um estado interno ou subjetivo que se projeta sobre o mundo. O humor modifica o próprio mundo. Se assumimos que o significado do mundo é construído pelo homem, então esse mundo pode ou não ter significado. O humor afeta o mundo como um todo e nossa relação com ele. Justamente porque é extensivo à totalidade do mundo, o humor difere da emoção. Emoções não são, necessariamente, gerais. Ademais, o humor pode durar por um tempo maior que a emoção. O humor também não tem objeto intencional; ao contrário, a emoção o tem.
O tédio será um humor, quando o mundo inteiro nos parecer entediante. O tédio que me interessa, para efeito de reflexão, é o tédio existencial, que pode assumir a forma de tédio profundo. Mas, ainda no que toca ao humor, é necessário frisar que encontrar-se num determinado humor não é apenas uma determinação ontológica do homem. Humores formam uma moldura básica para o entendimento e a experiência. Temos diferentes experiências de tempo dependendo do humor em que nos encontramos. Quando nos encontramos situacionalmente entediados, desejamos a supressão do presente, queremos escapar do lugar onde estamos. Portanto, diferentes humores são responsáveis por diferentes experiências de espaço também.
No tédio existencial, o tempo implode, torna-se uma espécie de presente eterno e enfadonho. Todo nosso ambiente perde sua vitalidade. E a diferença entre o próximo e o distante desaparece. No tédio, o indivíduo experimenta o desaparecimento das possibilidades que, quando se acha num humor adequado, se apresentam em número infinito.
Revisitando o pensamento heideggeriano sobre a estrutura existencial do Dasein, devemos lembrar que Dasein é um ser ocupado com o mundo. O Dasein é caracterizado por ser interessado em sua existência enquanto existente. O Dasein tem uma relação com sua própria existência. Ele também é um ser que tem uma compreensão de si mesmo, que se interpreta. Um humor pode abrir ao Dasein um horizonte de possibilidade de relacionar-se consigo. Trata-se, nesse caso, de um humor fundamental que o afeta a partir do mundo.
O exame dos humores pode revelar a disposição fundamental da existência humana, a saber, como ela deve estar no mundo. A disposição envolve sempre um descobrimento passivo do mundo feito pelo Dasein. A disposição não está sob seu controle. Mas é a disposição a condição necessária para que o Dasein perceba as coisas como significativas ou indiferentes. A disposição se revela através dos humores. Na verdade, são estes que revelam se alguma coisa tem significação para o Dasein.
A ideia de disposição consiste em que o Dasein já se encontra situado. Na disposição, o Dasein está aberto para o mundo. É necessário dizer que o humor é condição para o pensamento e a ação. Pelos humores, o Dasein vê seus próprios projetos. O humor o põe em contato com o mundo.
Para Heidegger, o tédio é um humor fundamental que nos conduz para a problematicidade do ser e do tempo. Como é a experiência do tempo no tédio? O tempo, no tédio, parece não passar como de costume. No tédio, experimentamos a realidade do tempo. O significado da vida se esfacela. E o Dasein perde sua relação com o mundo. Não lhe resta senão o nada, “uma falta que engloba tudo” (Svendsen, p. 140).
“(...) O Dasein é aprisionado no tempo, abandonado num vazio que parece impossível preencher. Ele fica entediado porque falta à vida um propósito e um significado; e a tarefa do tédio é atrair nossa atenção exatamente para isso”. (ib.id.).


Como se pode inferir da passagem acima, o tédio pode ser uma experiência de elucidação: no tédio, somos despertados para a insignificância de tudo. O homem entediado torna-se homem esclarecido sobre sua condição existencial no mundo: o mundo, em si, é desprovido de significado e a rede de significados que sustenta a existência é frágil. Por outro lado, o tédio não deixa de ser desumanizador, porque priva a vida humana do significado que a estrutura. Portanto, segundo Svendsen, “no tédio, há uma perda de mundo”, e “o Dasein torna-se empobrecido de mundo” (ib.id.). O tédio, tal como venho descrevendo-o, não é situacional, mas deve ser encarado como “um dado incontornável, como a própria gravidade da vida”. (p. 169).


2.1. Heidegger e a questão do tédio


Doravante, deter-me-ei a considerar, com mais acuro, a compreensão heideggeriana do tédio. Heidegger é mais conhecido por sua preocupação com o tema da angústia do que com o tema do tédio. Não obstante, não se deve daí concluir que ele estivesse desinteressado de pensar o tédio. Heidegger empreendeu uma análise de uma série de humores diferentes.
Ele insistia na necessidade de despertar um humor fundamental para a filosofia. Isso que deve ser despertado está, portanto, adormecido. O que ele quer despertar não é senão o tédio. O tédio dorme enquanto nos valemos de diversas formas para entretermo-nos cotidianamente. No entretenimento, o tédio fica adormecido. Mas por que deveríamos querer despertá-lo? Para Heidegger, é preciso despertá-lo porque só assim nós também seremos despertados. Os homens, segundo Heidegger, estão adormecidos em seus passatempos habituais. Heidegger via nesse sono comum a todos os homens na cotidianidade um caráter destrutivo. Adormecidos, os homens tornam-se incapazes de projetar-se para as suas verdadeiras possibilidades. Tais possibilidades se ocultam nos passatempos dos homens adormecidos. Segundo Svendsen,

“O principal problema com a vida real é que ela não nos dá acesso aos fundamentos da existência, uma vez que é uma vida que foge do fundamental. Viver é importar-se, especialmente, no sentido de facilitar as coisas para si escapando”. (p. 128-129).


A vida do homem do cotidiano assemelha-se à vida dos prisioneiros da Caverna de Platão; mas, no caso do homem do cotidiano, a verdade que lhes está oculta é a verdade sobre a sua condição enquanto ser-no-mundo. Consoante Heidegger, experiências como a angústia e o tédio provocam no homem a necessidade de reagir, visto que nelas o homem não pode mais relacionar-se confortavelmente com o mundo. O homem se vê lançado brutalmente de volta para si mesmo. Heidegger diz haver várias formas de tédio. Num extremo, há o tédio superficial; noutro, o tédio profundo, que atinge o próprio fundamento do Ser. É possível, segundo Heidegger, que sejamos lançados ao tédio profundo pela experiência do tédio superficial.
Retome-se a ideia de divertimento como meio de fugir ao tédio. Pascal expressa bem essa ideia no seguinte trecho:

“O único bem dos homens consiste, pois, em divertir o pensamento de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama divertimento”.[3]


Neste passo, convém, para a satisfação dos meus propósitos, reter a ideia de que os homens, para escapar ao tédio, buscam o divertimento. É necessário que busquemos alguma coisa que nos prenda a atenção e que nos ajude a passar o tempo. O tempo é nosso grande inimigo quando nos sentimos entediados. Se olhamos continuamente o relógio num determinado momento, é sinal de que o tédio está se acentuando. Olhamos o relógio quase compulsivamente na esperança de perceber que o tempo passou, que passou mais rápido do que de costume. Sabemos, contudo, que, normalmente, ficamos desapontados.
No tédio, o que importa, o que nos aflige é o ritmo do tempo. No tédio, o tempo é lento, e essa lentidão mostra-nos que não dispomos de controle sobre o tempo.
No passatempo, importa-nos a ocupação. Nós nos mantemos ocupados porque queremos escapar ao vazio do tédio. Mas não será possível entediar-se fazendo alguma coisa? A resposta é sim. Heidegger distingue entre o entediar-se por alguma coisa e o entediar-se fazendo alguma coisa. O tédio profundo corresponde a esta última forma de tédio. Posso estar ocupado fazendo algo e, a posteriori, tornar-me consciente de que estava entediado. Nesse caso, experimento um vazio que se enraíza na temporalidade de meu próprio eu. Na forma profunda de tédio, é o próprio tédio que entedia.
No tédio profundo, sentimo-nos vazios tanto em relação às coisas que nos cercam quanto em relação a nós mesmos. No tédio profundo, o Dasein é abandonado à totalidade de ser que, no entanto, se retrai. As possibilidades genuínas do Dasein deixam de se realizar no tédio. Tudo se torna ao mesmo tempo indiferente e aborrecido em sua falta de significado. Eu mesmo me torno indiferente a mim mesmo. Sinto-me absorvido na vacuidade de ser eu. Segundo Svendsen, “o tédio revela um vazio, uma insignificância, em que todas as coisas são atraídas para uma indiferença geral”. (p. 139).
Para Heidegger, o tédio revela o puro ser. Compreendamos o que significa isso. Em primeiro lugar, o Dasein tende, em si mesmo, a viver na inautenticidade, estado em que se deixa dispersar-se em distrações. Heidegger está interessado em pôr a nu a sensação de terror em nós. O tédio, como vimos, tem o privilégio de nos despertar; mas nós despertamos assustados quando o tédio nos afeta. O Dasein não está confortável no mundo do tédio. No tédio, o mundo torna-se estranho e inóspito – o mundo deixa de ser um lar protetor e se torna ameaçador. No tédio, experienciamos o nada da realidade. Nossa relação normal com o mundo, com as coisas se rompe. O nada do tédio parece atrair completamente nossa atenção; só o nada do tédio nos interessa. No tédio, o significado das coisas é destruído, de modo que elas nos aparecem como efêmeras e vazias.
Cabe perguntar o que, então, resta ao Dasein? O Ser. Mesmo imerso completamente em nada, o Dasein é; e o ser pode, portanto, se revelar para o Dasein com toda a sua nudez insignificante. No estado inautêntico de ser, o verdadeiro caráter de ser é encoberto. Uma vez que se rompa a relação inautêntica e sem significatividade do Dasein com o mundo, somos despertados para uma relação autêntica com nós mesmos.
É mediante o colapso de todo significado estruturante de mundo que o Dasein se liberta de sua dependência de outros seres.  Ao menos, duas questões se nos apresentam prementes na abordagem heideggeriana do tédio – trata-se de questões que o próprio Heidegger não resolve: 1) De onde provêm os recursos que freariam a tendência do Dasein a cair no mundo?; 2) Será que o tédio pode nos permitir uma compreensão abrangente e profunda “do significado do Ser”?  Finalmente, poderíamos perguntar se não seria o tédio um problema que diz respeito à nossa vida concreta.






[1] Todo este trecho se acha no texto O domínio do simbólico, publicado neste blog. Nesse texto, empreendi uma discussão mais pormenorizada sobre questões que, nesta nova oportunidade, merecerão tão-só um tratamento tangencial.
[2] http://www.contioutra.com/depressao-um-enfrentamento-insuportavel-com-a-verdade/
[3] PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 50.