sábado, 22 de maio de 2021

"O homem trágico afirma ainda o mais acerbo sofrer: ele é forte, pleno, divinizante o bastante para isso". (Nietzsche)

                                                                


                                             Viver de verdade

 

 

A certa altura, depois que tematizou a questão da tirania, Schöpke assevera: “o que se deve temer, mais do que tudo, é não viver de verdade”. É neste instante que ao leitor se lhe apresenta a questão, que lhe perturba o silêncio: o que significa “viver de verdade”? Como sujeito de leitura, sou instado, pois, a significar. Viver de verdade significa, em primeiro lugar e antes de tudo, viver de modo verdadeiramente livre. Viver de verdade, ou seja, viver verdadeiramente livre, é viver sem temer vida, é viver liberto da angústia provocada pelos medos imaginários, que nos tiranizam e nos despotencializam. Viver de verdade é também afirmar continuamente nossa potência de viver, nossa alegria de viver, nosso querer viver incondicional e inapelavelmente. O viver de verdade é um viver potencializado, é o modo mesmo como nossa vontade se efetiva como potência, isto é, como alegria inquebrantável, alegria que renuncia às seduções da concessão, às tentações da apelação em face das intempéries, dos sofrimentos que sobre nós recaem. Viver de verdade é aprovar a vida incondicional e integralmente, é dizer sim a ela com a firmeza da vontade que quer seu eterno retorno, que, em face de uma dor atroz, da impermanência de todas as coisas, não recua em seu amor fati, em seu querer o real tal como é, em toda sua crueldade - nos dois sentidos em que por crueldade entende Rosset. Viver de verdade é renunciar a valer-se dos disfarces metafísicos, que nos prometendo o consolo da felicidade num além-mundo, tornam a vida suportável, sem torná-la amável e desejável. Nesse sentido, viver de verdade é recusar-se a viver no autoengano, tiranizado pelos embustes metafísicos e/ou religiosos. Em suma, viver de verdade é suportar “um “sim” sem mais senões ou meias vontades, sem mais trapaças e covardias”.  (Schöpke)

sexta-feira, 21 de maio de 2021

“(...) para que moral?, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” - não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo? ... " (Nietzsche)






 

A NOSSA RESISTÊNCIA

 por uma desmitificação niilizante do homem

 

No curso de minhas reflexões sobre o fenômeno multívoco, heterogêneo, polimórfico do niilismo, para a produção de minha segunda tese de doutorado, a questão da crença na linguagem, tal como abordada por Nietzsche no contexto de sua análise destrutiva da metafísica e da moral platônico-cristã, impõe-se a mim como uma tarefa pedagógica de uma vida inteira, pois que, enquanto professor e estudioso da linguagem, tenho de lidar com a insistência com que o macaco pelado, que é o homem, crê na relação especular entre a linguagem e o mundo, crê na correspondência entre as palavras e as coisas. É com base nessa crença que o animal humano criou o mundo simbólico - o mundo da cultura -, esse outro mundo entretecido pelos signos. A crença na linguagem é o fundamento da crença na verdade. É por manter uma relação metafísica com a linguagem que o animal humano cria, sem que o saiba, um mundo de ficções metafísicas a serviço da negação da vida (Deus, Ser, Identidade, Verdade, Razão). Ora, a própria ideia de Deus é produto da metafísica da linguagem. Como diz Nietzsche, em O Anticristo:

“Todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural - contra a realidade! - é a expressão de um profundo descontentamento com o real”.

Sim, de fato, o perigo não reside propriamente no caráter ficcional, na invenção, que Nietzsche, com razão, diz serem condições necessárias à sobrevivência desse animal fabulador que é o homem. Há ficções úteis à vida. O perigo repousa no fato de que as ficções criadas por ele são tomadas como critérios de verdade, de uma verdade que lhe dá supostamente acesso a um “mundo verdadeiro”. E essa crença no “mundo verdadeiro” fundamenta e orienta ainda hoje a existência do homem comum, que dorme e acorda nutrido pela crença de que goza de um privilégio ontológico relativamente a tudo mais que existe no Universo.... E nem mesmo o coronavírus conseguiu curar o animal humano de sua loucura.

O homo sapiens é homo demens!

quinta-feira, 13 de maio de 2021

“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.” (Isaac Newton)

                                                              



 

                                 O Véu de MĀYĀ

                                                                                    A realidade não é o que parece

 

 

1. Introdução

 

A cada nascimento, um indivíduo é lançado ao desconhecido. Nascer é o começo de uma experiência bastante perturbadora: aperceber-se como um “eu” lançado num mundo estranho e incompreensível, sem razão e casualmente. Assim, o indivíduo, tendo atingido certo grau de consciência reflexiva, não poderá ignorar que a experiência da vida é semelhante àquela de alguém que, abruptamente, começa a sonhar. Tanto a relação entre a vida e o sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são consistentes com os ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do hinduísmo e do budismo. Schopenhauer, fazendo eco a essas tradições, postulou que a vida é um sonho do qual a morte é o despertar. Ora, nós não conferimos realidade aos nossos sonhos, e só, ao despertar, descobrimos que esta realidade era enganosa? E se a realidade percebida não passar de uma espécie de sonho? Esta é uma questão na qual convido o leitor a meditar, com seriedade e cuidado, ao longo da leitura deste texto. Ao contrário do que podemos pensar, não há diferença intrínseca entre percepção e alucinação, e toda percepção carreia uma porção alucinatória.

Sem chegar a um veredito sobre a referida questão, este texto brota do solo de minha estupefação, de meu espanto costumeiro, de minhas inquietações espirituais e tem como fito dar ao leitor comungar dessas mesmas inquietações. Este texto se estrutura em torno da seguinte hipótese: a física moderna, nomeadamente a física quântica, parece confirmar a intuição fundamental das sabedorias indianas, qual seja, a de que a realidade aparente ou percebida não exaure a realidade mesma. Há uma realidade fundamental que funciona de modo radicalmente diferente da realidade comum da vida cotidiana. A física quântica ensina-nos que a realidade não é tal como a conhecemos, tal como aparece a nós em nossa experiência ordinária. Não me será possível fazer uma aproximação minuciosa entre a sabedoria védica e as lições da física quântica, e não pretendo sugerir que a física quântica confirme tudo que essa sabedoria bimilenar ensina. Por exemplo, a física quântica não compartilha a crença de que o Universo é dotado de consciência, ou de que a realidade última e fundamental seja o Eu ou a Consciência Infinita, identificada com Deus. Não obstante, a física quântica, tal como as sabedorias da Índia, parece dizer a nós, em tom de advertência, o que Hamlet consagrou na memória discursiva do senso comum: “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

Quiçá seja escusável dizer que o autor deste texto é declaradamente ateu e que, portanto, acredita que a morte é simplesmente o retorno ao inorgânico. Acredito, portanto, que, quando morrermos, nosso corpo voltará à temperatura das coisas inanimadas ao nosso redor, que, uma vez mortos, entramos em equilíbrio com o ambiente, que nos tornamos, em suma, pó, poeira novamente. Não creio, portanto, que temos uma alma imortal que sobreviverá à morte de nosso corpo. Também não pretendo dar a entender que estarei sustentando o vitalismo, ou seja, uma doutrina segundo a qual a vida surge a partir de um princípio ou força vital que permeia o Cosmo e que transcende o domínio da química e da física. No entanto, enquanto ateu, rejeitando uma solução simples e problemática como a da fé na existência do Deus metafísico das três religiões do Livro, pretendo aceitar o Mistério, sem deixar de me confrontar com ele, interrogando-me sobre ele. Como bem diz Morin (2020, p. 19), “não apenas o mistério escapa ao conhecimento como está no coração do conhecimento. O desconhecido é o enigma; o incognoscível é o mistério”.

 

2. A ilusão de Maya

 

Ilusão provém do latim illusio-onis, que, em retórica, equivalia a ironia. A ilusão ou ironia consistia numa estratégia do discurso por meio da qual o orador zombava de um adversário, fingindo dizer algo diferente daquilo que, na realidade, estava dizendo. A forma latina illusion-onis deriva do verbo iludo, que, por sua vez, provém de ludo, que significa ‘jogo’. Illudo é ‘divertir-se’, ‘recrear-se’, mas também ‘burlar’, ‘enganar’. De iludo originou-se o nosso “iludir”, mas também “lúdico”, “eludir”, “prelúdio”, “alusão”. Iludir é enganar, causar uma impressão enganosa, suscitar uma interpretação enganosa. Ilusão significa, então, engano, coisa efêmera, interpretação enganosa ou errônea.

A doutrina vedanta, tal como sistematizada e ensinada por Sankara, reza que Maya recobre o caráter insubstancial e fenomênico do mundo por nós percebido. Todas as coisas existentes que percebemos e com as quais temos contato através de nossos cinco sentidos carecem de densidade ontológica, estão submetidas à ilusão de Maya. Também as faculdades conscientes e subconscientes de nossa personalidade são efeitos da ilusão de Maya. Mas devemos rechaçar a conclusão de que o mundo externo e o nosso eu são inexistentes, porque tal conclusão seria um sinal de incompreensão da doutrina. Deveras, Maya é um enigma inquietante. Maya é uma espécie de “feitiço cósmico”, que nos faz acreditar que a realidade percebida é a única e verdadeira realidade. Permita-me o leitor fazer aqui uma digressão para esclarecer o que significa dizer que, sob o Véu de Maya, o mundo fenomênico é desprovido de substancialidade. Em filosofia, substância (ousía) é aquilo que existe em si mesmo, é a realidade de algo como suporte dos atributos, qualidades, acidentes. A substância, é, assim, a quididade, isto é, aquilo que a coisa é por si e em si mesma, por sua realidade própria. A substância tem uma existência independente. A substância é independente de suas qualidades, permanecendo sempre o que é; ela é imutável. A substância é tanto o ser enquanto existente, quanto a essência, ou seja, a natureza desse ser.

Coube a Aristóteles tratar sistematicamente da noção de substância (ousía) a partir de três planos: o lógico, o físico e o metafísico. Do ponto de vista lógico, a substância é recobre aquilo que não é afirmado de um sujeito. A substância, portanto, não é um predicado. Em “A neve é branca”, o adjetivo “neve” não é substância, porque não designa uma realidade que existe independentemente. Ao contrário, é um predicado, porque designa aquilo que se diz do sujeito (neve). Assim, a ousía é o sujeito lógico, aquilo do qual alguma coisa é predicada. Situada no domínio físico, a substância, porque é sujeito, suporte da predicação, é concreta. Na experiência, só nos é dado sujeito concreto, sensível, que pertence à natureza e que é objeto da ciência. Aqui Aristóteles chama a substância de matéria, que é considerada a substância universal. É na substância material ou física que ocorre a mudança. A substância física permite a explicação da geração e corrupção. A partir daí, se desenvolve a teoria hilemórfica de Aristóteles, segundo a qual toda substância física é composta de matéria (hýle) e forma (morphé). Do ponto de vista metafísico, a substância pode ser estudada a partir de quatro pontos de vista. Do ponto de vista da quididade, caso em que a substância é aquilo que a coisa é por si e em si mesma, independente de qualquer qualidade atribuída a ela. A substância é uma existência independente. Do ponto de vista do universal (kathólou) e do gênero (génos), caso em que a substância, enquanto essência, é comum a todos os seres que admitem a mesma definição. Por exemplo, a animalidade é a substância ou essência comum a vacas, bois e homens. Por fim, a substância é o substrato, ou sujeito (hypokeímenon), o que subjaz. Essa noção atrela-se à de quididade, porquanto a substância é independente de suas qualidades. Porque permanece sempre o que é, não muda. A substância, como substrato, é a sede, o sujeito das qualidades (os acidentes: symbebekóta) e da mudança. A despeito de toda essa classificação e subclassificação, Aristóteles conclui que a verdadeira substância é aquela que possui a quididade, ou seja, que existe em si e por si mesma, que tem uma realidade própria e independente. A substância, portanto, é tanto o ser enquanto ser, quanto essência, isto é, a natureza de um ente.

Dizer, portanto, que Maya recobre o caráter não substancial da realidade aparente é dizer que essa realidade percebida, que cremos existir independentemente de nós, como uma coisa objetiva e sólida, não tem quididade, não existe em si e por si mesma. Como pondera Zimmer (2020, p. 33), ““Tudo isto à minha volta... meu próprio ser...”: eis a rede de liames chamada maya, a potência criadora do mundo. Maya manifesta sua força através do universo mutante e das formas evolutivas do mundo”. Maya, cuja raiz ma- significa ‘formar’, ‘produzir’, ‘medir’, designa o poder de um deus ou demônio de produzir ilusões. Esse deus muda de forma e aparece sob máscaras enganosas. Daí deriva o sentido de “magia”. Na filosofia vedanta, Maya recobre a ilusão que, como um véu, é sobreposta à realidade como efeito da ignorância humana. Todo o universo visível e perceptível é, portanto, Maya.

A sabedoria indiana busca ensinar o indivíduo humano a compreender como opera Maya, a fim de que ele possa transcendê-lo, libertando-se do seu feitiço cósmico. A maior parte dos ensinamentos, dos escritos indianos consagra-se à meta do supremo libertar-se da ignorância e das paixões provenientes da ilusão do mundo fenomênico (o mundo ilusório de Maya). Destarte, a meta última que deve ser alcançada é a redenção ou libertação espiritual, que os hindus chamam Moksa. Moksa é a emancipação final da alma (atma). Consoante ensina Zimmer (ibid., p. 40), “Moksa deriva da raiz muc: “desatar, livrar, soltar, libertar, liberar, deixar em liberdade, sair de, abandonar, largar””.

 

 

Moksa é a metafísica posta em prática. Moska aponta para além das estrelas. (...) Moska é a técnica para transcender os sentidos, a fim de descobrir, conhecer e permanecer identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. (ibid., p. 43-33).

 

 

Maya parece expressar, numa linguagem metafísico-esotérica, o que a filosofia e as ciências ocidentais, nomeadamente a física moderna, as neurociências, a sociologia, antropologia e linguística nos ensinam: nossa percepção da realidade não é direta. Como assinala Morin (ibid., p. 22), “nossa percepção do mundo exterior é coproduzida pelas forças organizadoras do cérebro”. Nosso cérebro recria em hologramas (imagens com relevo) uma realidade feita de ondas de frequência. Se pensamos na realidade sócio-histórica, fica patente seu caráter de constructo, de construção resultante do concurso do simbólico no imaginário, socialmente constituídos. Nesse tocante, Morin observa:

 

(...) a realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas e nas nossas percepções, como também pela e na nossa linguagem, pelas e nas nossas teorias ou filosofias, pelas e nossas culturas e sociedades. (ibid., p. 23).

 

 

Se a doutrina de Maya subtrai ao mundo fenomênico a sua substancialidade, será que a física quântica confirma, mesmo que noutro registro, o que reza esta doutrina? É este o problema que nos ocupará na próxima seção.

 

 

3. A física quântica ou a loucura quântica

 

Guitton, em seu livro Deus e a Ciência (1992), escrito na forma de um diálogo com os cientistas Grichka Bogdanov e Igor Bogdanov, nos dá testemunho da verdadeira revolução levada a efeito pela física quântica:

 

A teoria quântica nos diz que, para compreender o real, é preciso renunciar à noção tradicional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detectada em dois lugares ao mesmo tempo. Que a realidade fundamental não é cognoscível. (ibid., p. 16).

 

 

A física quântica pede-nos que, para compreender o real, em sua natureza íntima, em sua essência, por assim dizer, renunciemos ao modo familiar pelo qual nos relacionamos com o mundo. Nesse sentido, também para a doutrina vedanta de Maya, o conhecimento verdadeiro do  mundo supõe a libertação da teia de Ilusão tecida por Maya sobre toda a realidade fenomênica. Guitton, no entanto, vai mais longe e ajunta que “(...) a física quântica toca de modo surpreendente a Transcendência” (ibid., p. 10). É nesse momento que Guitton faz sobressair o cristão que era sobre o filósofo que foi. É bastante problemático afirmar que a física quântica admita, de algum modo, uma realidade transcendente. Antes de tentar demonstrar por que penso que a física quântica não toca a Transcendência, preciso dizer algumas palavras sobre o que significa transcendência na história do pensamento ocidental. De modo geral, transcendência designa a condição de algo que pertence a outra natureza radicalmente diferente, que é radicalmente exterior, que é de ordem superior. No teísmo, por exemplo, diz-se que Deus é transcendente em relação ao mundo e aos homens. Isso significa dizer que Deus é radicalmente superior e exterior ao mundo e aos homens. Chamo a atenção para o fato de Guitton grifar a palavra transcendência com “T” (maiúsculo), talvez para sugerir que a Transcendência se identifica com o próprio Deus teísta. Ao menos me parece que Guitton concebe a transcendência como “princípio divino, condição do Ser além de toda experiência humana”. Não creio que a física quântica acene a uma Transcendência no sentido pretendido pelo autor. Os físicos e astrofísicos, muito provavelmente, relutariam em admitir que a física quântica seja o reconhecimento de que há algo muito além do Universo conhecido que se identificaria com algum princípio divino ou espiritual. Talvez possamos dizer que a única transcendência postulada pela física quântica seja a da existência de uma realidade fundamental que, mesmo sendo inacessível à experiência humana ordinária e até mesmo ininteligível pelos padrões dessa experiência, e, portanto, superior a ela, não implica a suposição de que essa realidade tem algo de divino ou sobrenatural. Todavia, se a física quântica não parece implicar uma Transcendência divina como causa explicativa do mundo, ela seria permeável a investigações metafísicas? Em outras palavras, será que no afã de investigar como o mundo funciona no nível subatômico, determinando quantas e quais seriam as partículas elementares do universo, os físicos não estariam adentrando o domínio das investigações metafísicas? Parece-me que sim, e direi o porquê. Consideremos, em primeiro lugar, que Metafísica é a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. Aristóteles definia-a como a filosofia primeira, pois que ela se ocupa dos princípios e causas primeiras da phýsis. Na tradição escolástica, a metafísica divide-se em metafísica geral, que examina o conceito geral do ser e a realidade em seu sentido fundamental e transcendente; em metafísica especial, que compreende domínios específicos do real. A metafísica especial se subdivide em cosmologia ou filosofia natural, a qual, por seu turno, se ocupa do mundo e da essência da realidade material; em psicologia racional, ou tratado da alma, de sua natureza e propriedades; e em teologia racional ou natural, que recobre o conhecimento de Deus e das provas racionais de sua existência (sem o recurso à fé). Foi no pensamento moderno, sobretudo com Kant, que a metafísica deixa de ocupar um lugar central no pensamento filosófico, já que a filosófica crítica de Kant vai fixar limites às pretensões da metafísica de conhecer o mundo. Devemos a Kant a acepção da metafísica com a qual estamos mais familiarizados hoje em dia. Kant entendia por metafísica toda pretensão a um conhecimento que busque ultrapassar os limites da experiência possível, ou seja, é metafísica toda investigação que pretende ultrapassar o mundo fenomênico, o mundo da representação, das coisas tais como nos são dadas sob as formas da intuição (formas puras que, para Kant, são o tempo e o espaço). A metafísica ousa ir além das formas puras da intuição para dizer algo sobre o incondicionado, o em-si das coisas. Em outras palavras, fazemos metafísica quando nos interrogamos sobre o que se oculta, o que está por trás da natureza, da realidade sensível.

Do ponto de vista metodológico, os físicos podem alegar que muitas de suas especulações e hipóteses ensejadas pela imaginação criadora não chegam a perturbar a zona da cientificidade das teorias já comprovadas pela observação empírica. Físicos podem (e o fazem com certa frequência) formular muitas hipóteses que poderiam ser encaradas como metafísicas, sem que isso tenha alguma validade científica, pois que teorias científicas precisam ser, segundo Popper, refutáveis, ou testadas pela verificação. Em todo caso, se entendemos por metafísica o estudo das causas e princípios primeiros do mundo, então a física quântica adentra o terreno da metafísica. Quando os físicos assumem a existência de uma realidade fundamental diversa da realidade macroscópica de três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo em que vivemos, eles fazem metafísica. Nesse sentido, a Teoria das Cordas ou Supercordas, que não foi ainda comprovada empiricamente, embora seja uma solução consistente e elegante para articular a Relatividade Geral à mecânica quântica, ilustra um caso de especulação metafísica no interior da cosmologia.

O mundo desvelado e explicado pela física quântica é um mundo como campo de interações mediadas por bósons. Acredita-se que no mundo subatômico existam centenas de partículas elementares. Existem quatro partículas estáveis no mundo subatômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Mas, segundo Igor Bogdonov (Guitton, ibid., p. 77), “quando mergulharam no cerne do núcleo [do átomo], os físicos descobriram o imenso oceano dessas partículas nucleares, deste então, chamadas hádrons”. Os hádrons decompõem-se em partículas menores, chamadas de quarks. Assim, consoante nota Guitton, “o que chamamos de realidade não é outra coisa senão uma sucessão de descontinuidades, flutuações, contrastes e acidentes de terreno que, em seu conjunto, constituem uma rede de informações”. (ibid., p. 84). As partículas subatômicas como quarks, elétrons, bósons, neutrinos, entre outras, foram primeiramente formuladas como hipóteses matemáticas, para, posteriormente, se revelarem como elementos da realidade fundamental.

A Teoria das Cordas, desenvolvida no interior da física quântica, se propõe ligar a Relatividade Geral à física quântica. Assim, ela funciona como um elo entre uma teoria que explica o funcionamento do mundo numa escala grande e o funcionamento do mundo numa escala pequena. De acordo com essa teoria, se fosse possível observar microscopicamente o interior das partículas fundamentais da matéria (elétrons, quarks, etc.), o que encontraríamos não seria um ponto, mas uma corda em forma de laço (um laço de corda). As partículas interagiriam entre si mediante diversos padrões de vibração desses laços. Embora os físicos não ousem afirmar que as cordas são as partículas fundamentais e indivisíveis do universo, o que é preciso fazer ver é que, cada vez mais, a física moderna assume uma realidade fundamental radicalmente diferente do mundo macroscópico do espaço-tempo.

 

3.1. A granularidade da matéria

 

A mecânica quântica não nos permite mais pensar a matéria como algo sólido, tangível. A matéria é granular e a realidade não é feita de coisas, mas de relações, de eventos. A física quântica não descreve como as coisas são, mas como elas acontecem. Como ensina Rovelli (2017, p. 132),

 

Não descreve onde está uma partícula, mas onde a partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das coisas existentes é reduzido ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida à interação. A realidade é reduzida à relação.

 

 

São as relações que dão origem às coisas. Nós, como todas as coisas existentes, somos processos, fluxos de eventos “que, por um breve tempo são monótonos” (ibid., p. 133). A física quântica permitiu a descoberta de três aspectos do mundo: 1) Granularidade: o mundo é uma sucessão de eventos quânticos granulares; 2) Indeterminismo: o futuro não é determinado univocamente pelo passado; 3) Relação: os eventos naturais são sempre relações, interações. A física quântica, segundo Rovelli, nos ensina a não pensar o mundo como um conjunto de “coisas” que estão neste ou naquele estado, e sim como um campo de processos, de interações. Um processo é a passagem de uma interação a outra. E as propriedades das “coisas” se manifestam como granulares apenas no momento da interação, isto é, nas bordas do processo, “e são tais apenas em relação a outras coisas, e não podem ser previstas de modo unívoco, mas apenas de modo probalístico. (ibid., p. 134). Um elétron não se acha em lugar algum quando está em interação. Assim, a física quântica esteia-se no postulado do aspecto relacional de todas as coisas. Os elétrons não existem sempre, mas “existem apenas quando interagem” (ibid.).

 

Materializam-se em um lugar quando se chocam contra outra coisa. Os “saltos quânticos” de uma órbita a outra são a única maneira para tornar-se reais: um elétron é um conjunto de saltos de uma interação a outra. Quando ninguém o perturba, um elétron não está em lugar algum. (ibid.).

 

Bizarro este mundo? Mas este é o Universo de cuja trama ígnea surgimos como uma faísca do acaso. A loucura quântica ensina-nos que a realidade observada é dependente do ponto de vista do observador. Grchka Bogdanov alerta-nos sobre o seguinte:

 

(...) o sucesso da teoria quântica é o de se ter edificado à margem da razão ordinária e quase sempre contra ela. É por isso que há algo de “louco” nessa teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem que o saibamos ainda claramente, é nossa representação de mundo que está em jogo e começa a balançar irresistivelmente. (ibid., p. 99).

 

Decerto, o mundo como representação, para falar como Schopenhauer, desmorona, a nossa maneira habitual de perceber e compreender a realidade é radicalmente abalada na mecânica quântica. Assim, se uma flor é colocada num lugar fora do alcance da nossa observação, aceitamos que ela não deixa de existir. Isso sabemos por experiência. Mas a física quântica mantém que, se nós nos detivermos a observar essa flor a partir do nível atômico, sua realidade profunda e existência estarão intimamente ligadas ao modo pelo qual a observamos. Portanto, não podemos assumir a existência objetiva de uma partícula elementar num ponto definido do espaço. Uma partícula só existe sob a forma de um ponto definido no espaço e no tempo, quando a observamos diretamente. Como enfatiza Grichka, “não deixa de ser perturbador constatar que a realidade observada está ligada ao ponto de vista adotado pelo observador”. (ibid., p. 104). Mas o que há de perturbador não é o simples fato de que o mundo percebido exista na dependência de quem o percebe, mas no fato de que o observador afeta o comportamento de suas partículas elementares no momento em que as observa.

 

3.2. A granularidade do espaço

 

O espaço também é granular em pequena escala. Os fótons se encontram no espaço, mas os quanta são eles mesmos o espaço. Os quanta de espaço são o lugar. Em uma escala muito pequena, o espaço não é contínuo, mas tecido por elementos finitos interconectados. Segundo Rovelli, “o espaço físico é o tecido resultante do pulular contínuo dessa trama de relações” (ibid., p. 170). A estrutura do espaço é um efeito do encontro entre dois grãos de espaço. O espaço não é, como costumamos imaginar, um recipiente amorfo onde as coisas se situam, aparecem. Com a gravidade quântica, as coisas não se situam no espaço, mas sim habitam a vizinhança umas das outras, e o espaço “é o tecido de suas relações de vizinhanças”. (ibid., p. 171). Novamente, devemos enfatizar que o mundo não é um conjunto de coisas, mas uma trama de eventos. As coisas não são; elas acontecem. O mundo não é constituído de entes, de coisas que existem, mas é um pulular flutuante de eventos, acontecimentos, processos. A mudança no mundo é onipresente. O mundo é puro devir. Consoante lembra Rovelli, “as próprias “coisas” são apenas acontecimentos que são monótonos por um tempo, antes de retornar ao pó. Porque, cedo ou tarde, tudo sempre retorna ao pó”. (ibid., p. 85, grifo meu). Se este mundo nos causa um sentimento de profundo assombro quando o contemplamos à luz da física quântica, como não experienciar espanto em face da raridade da vida num Universo tão enigmático?

 

É uma surpreendente coincidência que o universo seja do jeito que ele é. Os cientistas tendem a não se sentirem confortáveis com as coincidências, e a interpretação de muitos mundos oferece uma saída. Se o cenário de muitos mundos é verdade, talvez haja muitos universos diferentes lá fora, com constantes diferentes. Alguns entram em colapso num milissegundo. Alguns quase não têm matéria. Nós simplesmente habitamos um que é adequado à vida. (Seife, 2007, p. 227).

 

 

3.3. O presente não existe

 

Quando a física quântica mantém que o presente não existe, deve-se entender que ela nega a existência de um presente objetivo universal. A forma como nossas línguas ocidentais segmentam a experiência do tempo em passado, presente e futuro é enganosa. As relações temporais entre os eventos são, deveras, mais complexas do que supomos. Há mudança no mundo, mas ela não ocorre de acordo com uma ordem universal. A física quântica descobriu a indeterminação, de sorte que não é possível prever com exatidão onde um elétron vai estar amanhã. O espaço-tempo também flutua. A distinção entre presente, passado e futuro é flutuante e indeterminada, de modo que um acontecimento pode estar, ao mesmo tempo, antes e depois de um outro. Assim, segundo Rovelli (2018, p. 149),

 

 (...) o presente comum a todo o universo não existe. Os acontecimentos não são todos ordenados em passados, presentes e futuros: são apenas “parcialmente” ordenados. Existe um presente próximo de nós, mas não algo de “presente” numa galáxia distante. O presente é uma noção local, não global.

 

Ainda segundo o autor, subtraindo-se os efeitos quânticos, “tempo e espaço são aspectos de uma grande gelatina móvel na qual estamos imersos”. (ibid., p. 149). O autor ajunta, no entanto, que “na gramática elementar do mundo não existem espaço nem tempo: apenas processos que transformam quantidade físicas umas nas outras, cujas probabilidades e relações podemos calcular”. (ibid.). Como se vê, no nível mais fundamental de realidade que se pode conhecer atualmente, resta muito pouco do tempo que ordena nossa experiência habitual de mundo. Porque o tempo não é uniforme em todo o Universo? Por que temos a experiência da passagem do tempo no mundo de nossa experiência sensível, mas o tempo tanto quanto o espaço deixam de existir no mundo subatômico? Aqui como em outros casos, estamos imersos no Mistério. Considere-se, doravante, a realidade do vácuo ou o vazio.

 

3.4. O vazio na origem de tudo

 

No budismo, o vazio ou a vacuidade recobre a ideia da interdependência da existência de todas as coisas. O vazio não é o nada. Tudo que existe é permeado pelo vazio. O mundo fenomênico depende do vazio para existir. A vacuidade é, portanto, a realidade suprema, imperecível, imutável. Está além da vida e da morte. Para o budismo, a vacuidade é ausência de existência inerente. O budismo reza que os fenômenos carecem de densidade ontológica, ou seja, não existem em si, mas sua existência depende do observador. Em última instância, o mundo fenomênico é uma construção de meu cérebro.

 Também a física quântica nega que o vazio seja o nada, seja ausência total de existência. Ao contrário, o vazio ou o vácuo é cheio, ele fervilha de atividade. Grichka Bagadanov diz que não há lugar do espaço-tempo onde não se encontre “nada”: “em toda parte encontramos campos quânticos mais ou menos fundamentais” (ibid., p. 93). Portanto, pode-se depreender daí que o “nada” como possibilidade ôntica é uma ilusão. O vácuo é um palco de acontecimentos permanentes, de flutuações incessantes, de violentas tempestades quânticas, nas quais se criam novas partículas subatômicas que são, quase sempre, imediatamente, aniquiladas. Seife nos dá testemunho de sua perplexidade em face do caráter paradoxal do vácuo no seguinte passo:

 

Parece uma contradição dizer que o vácuo é o fenômeno mais complexo do universo. A própria definição do vácuo é a ausência de tudo, um espaço cheio de coisa alguma. Na década de 1930, entretanto, os físicos quânticos descobriram, para a sua grande surpresa, que o vácuo não está sempre realmente vazio. Ele fervilha de atividade, cheio até a borda de partículas e energia. (ibid., p. 189).

 

Num aspecto, a física quântica e o budismo concordam: o vazio é cheio, o vácuo não é o nada. É claro que isso não significa dizer que a vacuidade búdica signifique a mesma coisa que o vácuo da física. A vacuidade búdica se inscreve num registro ético que é estranho ao vácuo de que tratam os físicos. Mas tanto o vazio búdico quanto o vazio do Universo físico está impregnado de Mistério, esconde um segredo. Segundo Seife, atualmente, os físicos acreditam que o vácuo – “o vazio no espaço profundo” - abriga o segredo da mais recente dúvida da cosmologia: o que é a misteriosa força antigravitacional que achata o Universo e acarreta o afastamento das galáxias? Como o vazio é constituído de partículas e energias virtuais que, depois de se atualizarem, teriam produzido a deflagração térmica chamada de Big Bang, não é sem espanto que os físicos acreditam que “o que parece menos real, o vazio, teria sido a origem da nossa realidade” (Morin, ibid., p. 29). Se for possível dizer que o vazio é um vazio originário, então a sabedoria oriental e a física quântica encontram-se novamente em acordo, pois o budismo também crê no vazio originário, no vazio como realidade última.

Chegando ao fim do percurso destas minhas reflexões embebidas no espanto, reencontramos a imagem do mundo como um sonho mantido pela ilusão de Maya, na pena de Igor Bogdanov, que diz explicitamente que “nós sonhamos o mundo”.

 

Segundo a nova física, sonhamos o mundo. Nós o sonhamos como algo durável, misterioso, visível, onipresente no espaço e no tempo. Além dessa ilusão, todas as categorias do real e do irreal se esvaem. Assim como não podemos considerar que o gato de Schrödinger está vivo ou morto, também não podemos perceber o mundo objetivo como existente ou não existente. O espírito e o mundo formam uma única e mesma unidade. (ibid., p. 143, grifos meus).

 

 

Estaria a física quântica validando a tese do idealismo transcendental? Estaria admitindo um metarrealismo como a melhor abordagem do Universo? Guitton não hesitaria em dizer que esta é a melhor abordagem para tentar tornar menos misterioso o Mistério em que estamos mergulhados: “não podemos dizer que o espírito e a matéria simplesmente coexistem: eles existem um através do outro”. (ibid., p. 144).

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1. GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichkva; BOGDANOV, Igor. DEUS E A CIÊNCIA. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

2. MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

 

3. ROVELI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

______________. A ordem do tempo. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

 

4. SEFIE, Charles. Alfa e Ômega: a busca pelo início e o fim do universo. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

5. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudio Giovani Bozza, Adriana Franchini De Césare. São Paulo: Palas Atenas, 2020 (1986).

 

 

 

terça-feira, 11 de maio de 2021

"A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre." (Oscar Wilde)

 

                                                                        


 

 

A vida como destino para a morte

 

 “A Vida se transmite como uma lepra: criaturas demais para um só assassino.”

 Cioran

Eis o essencial:

           

 

A vida é um trabalho permanente (batimentos cardíacos, circulação sanguínea, respiração pulmonar) de consumo de energias durante o qual a vida é conduzida à morte. Morte e vida são inseparáveis. Como ensina Bichat, a vida é o conjunto das forças que resistem à morte. A vida é, portanto, também um trabalho permanente de luta contra a morte. A vida, ao consumir suas energias, carece de se alimentar. Assim, todos os seres vivos se esforçam para adquirir o alimento que reponha suas energias. A evolução dotou animais de nadadeiras, ou de patas para que alcançassem esse objetivo. Animais predadores consomem outros animais. A atividade da vida produz a morte a que tanto resiste aniquilando outras vidas. Nos seres pluricelulares, a morte inscreve-se em seu organismo na forma de aniquilação das células, as quais são substituídas por outras novas. Quanto mais complexa se tornou a vida, mais se fragilizou, mais se viu ameaçada pela morte, mais se organizou para lhe fazer resistência. A morte é o preço pago para viver. Na luta contra a morte, a vida devora a si mesma.

A vida é um fenômeno marginal e extraordinário no seio do mundo físico. A vida é inteligente, engenhosa, criadora, mas também incompreensível, absurda, insana e horrível. Se a organização dos seres vivos exibe espantosas engenhosidade e complexidade, a vida é loucura. Quando examinada nos detalhes e acuradamente, a vida não segreda nenhum sentido último. O sentido da vida é a morte e viver por viver é a finalidade que se esconde na absurdidade da vida.

 


 






  

A política do senso comum

 

 

Diz o ditado que “futebol, política e religião não se discute”, e não se discute porque tais temas, supostamente, mobilizam, nos interactantes, paixões exacerbadas, incendiárias, que poderiam levá-los facilmente a inimizades e, no limite, a agressões mútuas que encerrariam a discussão. Mas, no caso específico da política, o que a torna tão pouco discutível no domínio do senso comum é que os interactantes, geralmente, estão muito pouco capacitados para um debate equilibrado e fundamentado teoricamente. A política, enquanto área do saber humano, também tem seus especialistas (cientistas políticos, sociólogos, filósofos...), os quais dispõem das ferramentas conceituais para realizar uma análise crítica do fenômeno político. O fenômeno político, como todo fenômeno humano-histórico, é complexo e, por isso, demanda daqueles que ousam convertê-lo em tema ou em assunto de debate nos encontros casuais da cotidianidade mediana, certo repertório de saberes e conceitos que devem ser sistematizados e definidos na discussão. Mas é justamente deste repertório e desta competência para a sistematização e para a definição dos termos empregados que carece o senso comum. E essa carência é uma das razões por que me sinto desencorajado a me embrenhar em “discutir política” no domínio do senso comum. No domínio do senso comum, ao se levantar um tema político, os interactantes não especialistas fazem desfilar, em suas falas, uma série de dislates disfarçados de bazófias, que transformam o que deveria ser um debate num falatório de velhas rabugentas que, em certa altura, já não sabem mais sobre o que realmente estão discutindo. A sobriedade dos espíritos que reconhecem ser o real mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele é, quase sempre, asfixiada pelos dizeres balofos e enervados de certezas absolutas. Um professor de filosofia que tive, a quem admiro, certa feita, ensinou que filósofos devem fugir de debates, de discussões cujo propósito é decidir ao fim e ao cabo quem tem razão. Desde então, tomei esta lição como um princípio ético-metodológico. É que aos filósofos - ele ensinou - importa o pensamento, o exercício do pensamento. E a única coisa que não se exercita nas cenas cotidianas de “debate político” é o pensamento. Não, exercitar o pensamento não é vomitar lugares-comuns, preconceitos, crenças infundadas e ideologicamente orientadas típicas do imaginário coletivo, a fim de medir forças com o interlocutor para impor sua visão pessoal sobre um estado-de-coisas. O senso comum aspira ao monopólio da opinião correta, verdadeira, que deve ser tomada como dogma inquestionável. A tendência do senso comum é sempre simplificar uma problematicidade que, por definição, é complexa. O senso comum não admite a pluralidade de perspectivas (como nos ensina Nietzsche), os múltiplos olhares, a dúvida como princípio metodológico. O senso comum tem a presunção de saber tudo, de esgotar tudo o que se pode saber em algumas concatenações verbais semanticamente insuspeitas na aparência, mas grávidas de pressupostos equívocos. Em matéria política, o senso comum de nossa sociedade, confunde, com frequência, conceitos que não descrevem o mesmo fenômeno. Por exemplo, confunde Estado com Governo. E é comum que, se a questão formalmente socrática “o que é?” é levantada neste domínio do discurso, o silêncio predomine até o momento em que é entrecortado por dizeres evasivos de ataque pessoal ao interlocutor... E, se um dos interlocutores ousar definir os termos relevantes na discussão, atrairá sobre si as suposições de pedantismo. Chamar o outro de pedante, de pernóstico, de enfatuado é a estratégia comum da burrice que se institucionalizou neste país para desqualificar o contraditório. É difícil, eu sei, manter um silêncio monástico quando nossos ouvidos são atravessados e perturbados, e nosso espírito é afrontado por dizeres que carreiam tolices, clichês, preconceitos, despautérios, mas pretender lançar luzes sobre as avenidas escuras e os atalhos sinuosos do senso comum é arriscar-se na paralisia do pensamento, porque o senso comum é como um lodaçal onde o pensamento fica estagnado, atravancado, onde ele não consegue avançar, alçar voos, onde ele não encanta, não semeia o espanto, a admiração. O homem comum é o coveiro do pensamento, e o senso comum é seu cemitério.

 

 

 

 


quinta-feira, 6 de maio de 2021

"A oposição produz a concórdia. Da discórdia surge a mais bela harmonia." (Heráclito)

 

                        



                                  Um Universo sem Criador

 

 O universo é feito da cepa do trágico, quer isso dizer que sua dinâmica é heraclitiana: discórdia e concórdia, harmonia e desarmonia, em relações agonísticas, formam o tecido do mundo. As galáxias colidem; as estrelas explodem, e os cataclismos perturbam e destroem a ordem do mundo vivo. O universo é extraordinária potência de criação e de destruição. A história humana é não só a história do nascimento das civilizações, mas também de sua ruína e morte. A relação tensionada, conflitual entre ordem, desordem e organização carreia vida e morte ao mesmo tempo. Nascimento, inovação e criação são necessários à constituição do Universo, mas também são inevitáveis a desintegração, a degenerescência e a morte. O universo está sempre nascendo e morrendo. Um mundo perfeito é impossível, seria pura ordem imutável, monótona. O mundo precisa da imperfeição, isto é, da desordem; e isso bem entendido quer dizer: o mundo precisa ser impregnado de morte (Tânatos) que, num combate sem trégua com Eros, torna possíveis os arranjos dinâmicos e provisórios.  Eros se encarrega de unir, de compor, de formar arranjos, estruturas, enquanto Tânatos desune, decompõe, destrói descerrando o caminho para novas criações, e o jogo de criação-destruição-ordem-desordem é reiterado incessantemente. O universo não tem Criador; ele se autocria a partir da deflagração inicial. Por ser capaz de autocriação, o Universo gerou, nesse processo de autocriação, simultaneamente, as partículas, as ondas, o tempo e o espaço. O Universo se auto-organizou criando uma dinâmica agonística que se expressa na forma de relações ao mesmo tempo contraditórias e cooperativas entre ordem, desordem, interação e organização. A lei do Universo é a da complementaridade dos antagonismos.

Nós não fomos feitos à imagem e à semelhança do Criador, mas à imagem do Universo, pois cada um de nós carrega em si partículas nascidas nos primórdios do Universo. Cada um de nós traz em si, ou seja, na materialidade orgânica de nosso corpo, a história do Cosmo e a história da vida. Somos constituídos de átomos forjados no coração ardente de estrelas anteriores ao Sol, de moléculas formadas na terra ou trazidas por meteoritos. O Universo está em nós, e nós somos partes dele.

É certo que nosso universo chegará ao fim. Porque “tudo que nasceu merece morrer”, como disse Nietzsche. A desordem solapará a ordem, Tânatos triunfará sobre Eros. Será que o fim descerrará um novo Caos, isto é, potencialidades de ordem, desordem, de emergência de vida novamente? Quem sabe? Mas, se assim se der, será para garantir o retorno ao vazio nirvânico inicial. O Tao retorna ao seu contrário. O caminho que leva à vida é o mesmo que conduz à morte.