Preleções sobre política
Uma contribuição para o
enfrentamento
do analfabetismo político
brasileiro
PARTE 1
1.
Bolsonaro: o sintoma de um passado perverso
Em seu livro O
Brasil dobrou à direita (2020), Jairo Nicolau apresenta-nos um recorte da
conjuntura sociopolítica que poderia explicar a escolha de Jair Bolsonaro, um
parlamentar medíocre, para ocupar o cargo de Chefe de Estado, nas Eleições de
2018. Deve-se ressaltar que esta é a conjuntura sociopolítica construída pelo
discurso hegemônico, de ampla projeção na mídia. Na verdade, a perplexidade e
as várias explicações para a eleição de Bolsonaro ocupam ainda hoje as análises
dos estudiosos da política, que, quiçá, estejam de acordo quanto a um fato:
“uma das mudanças mais profundas de 2018 é a vitória de um candidato de direita
sobre o PT entre os eleitores de baixa e média escolaridade. Isso não acontecia
desde a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1998.” (Nicolau, 2020, p. 52).
A conexão entre os resultados da Lava Jato e a
vitória de Bolsonaro é apresentada no discurso corrente de maneira
relativamente simples: 1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte
expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como
algo endêmico, aumentando a rejeição aos partidos tradicionais; 3) os eleitores
buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma
das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o
padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em
2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro. Nesse caso, pouco
importava o fato de ele ter sido deputado federal por 28 anos, ter trocado
muitas vezes de legenda e ter sido um parlamentar medíocre.
Sem considerar as motivações que
levaram grande parte do eleitorado brasileiro a eleger Bolsonaro, Nobre (2020)
não se esquiva de dar a sua explicação para o acontecimento. Segundo o
filósofo, a eleição de Bolsonaro foi um efeito de uma coalizão por conveniência,
que não deixou de ter impacto sobre o resultado das urnas. Para ele, essa
coalizão se formou pelo acordo entre grupos muito diferentes entre si:
evangélicos, lavajatistas e militares.
Mas mostram bem como a coalização que elegeu
Bolsonaro foi uma coalizão de conveniência sem ter sido de maneira alguma
casual. O sentimento de exclusão da arena política – em graus certamente muito
distintos e por razões muito distintas também – que os uniu veio justamente com
a possibilidade que viram de se estabelecerem (ou se restabelecerem, no caso
dos militares) como atores políticos incontornáveis. (Nobre, 2020, p. 37).
Entre
as razões correntes dos eleitores e a coalização orquestrada na cena política,
não se pode olvidar o papel sobremaneira importante desempenhado pela grande
mídia e pelas redes sociais no recrudescimento do antipetismo e no
fortalecimento no senso comum da
necessidade de eleger um ator político que endurecesse as medidas de combate à
corrupção e que – é claro – não estivesse ele mesmo envolvido em algum esquema
de corrupção. E assim Bolsonaro foi eleito Chefe do Executivo, sem que grande
parte do eleitorado conhecesse minimamente seu projeto político.
Não
pretendendo, de modo algum, dar por encerrado o tema dos fatores que foram
decisivos para a eleição de Bolsonaro, gostaria de me deter um pouco no perfil
do eleitorado brasileiro que o elegeu, a fim de lançar por terra, de antemão, a
crença de que a baixa escolaridade de grande parte desse eleitorado foi
determinante para a escolha de um parlamentar que passou 28 anos de sua vida
como deputado federal, tendo apenas dois projetos aprovados, o que, para um
parlamentar que ficou tanto tempo ganhando dinheiro à custa dos pagadores de
impostos que sobrevivem nestas terras com muito suor e lágrimas pelos seus que
nelas vêm morrendo aos milhares cotidianamente, o faria ser rejeitado nos
processos de seleção de meritocratas. Ora, o fato de ter ficado tanto tempo
gozando das benesses de um cargo político sem fazer quase nada o credencia para
ocupar um lugar na lista extensa do parasitismo político que contribui para
inchar ainda mais a nossa já dispendiosa máquina pública.
O
eleitorado brasileiro é formado por uma grande faixa de pessoas de baixa
escolaridade. Nessa faixa, se topam indivíduos analfabetos, indivíduos que
sabem ler e escrever ou que passaram poucos anos na escola, sem conseguir
completar o ensino fundamental. Entre os que não conseguiram completar o ensino
fundamental, se encontram, em grande proporção, indivíduos com mais de sessenta
anos, que cresceram em um período da história do Brasil em que o acesso à
escola era mais limitado. Por outro lado, é inegável que o eleitorado
brasileiro vem-se tornando cada vez mais escolarizado. Em parte, isso se deve
ao aumento do acesso à escola promovido pelas políticas de FHC e,
especialmente, do PT, mormente nos dois mandatos do presidente Luís Inácio Lula
da Silva; mas também se deve ao alistamento eleitoral de jovens com um nível de
escolaridade mais alto (em geral, com o fundamental completo ou cursando o
ensino médio). Estes jovens se beneficiaram do maior acesso das crianças à
escola a partir da década de 1990. Houve também um declínio do número de
eleitores analfabetos ou que cursavam apenas as primeiras séries do ensino
fundamental. Uma vez que os eleitores menos escolarizados estão concentrados
entre os cidadãos mais velhos, há uma tendência de redução gradativa desse
grupo no cadastro eleitoral, quer por morte, quer por simplesmente não comparecimento
às urnas (já que o voto é facultativo a partir dos sessenta anos).
Embora
ainda seja predominante o número de brasileiros com baixa escolaridade, o fator
escolaridade não foi decisivo para a eleição de Bolsonaro, porque ele venceu a
corrida eleitoral entre os eleitores de todos os três níveis: os de ensino
fundamental, os de ensino médio e os de ensino superior. A confusão e a perturbação
que pesam sobre os analistas políticos, envoltas numa atmosfera de perplexidade
em face das razões por que contribuímos, enquanto sociedade, para eleger um
candidato, então Presidente da República, tão politicamente medíocre e
abertamente autoritário, talvez demorem muito tempo para esvair-se, mas isso
não desencorajou os estudiosos de produzir inúmeros livros e artigos que
pudessem lançar luzes sobre o imponderável do devir político. Talvez, hoje, esteja
se formando um consenso na intelligentsia
de que o autoritarismo de Bolsonaro encontrou eco numa parcela considerável da
população que não conseguiu romper abertamente com o passado de violência, de
arbítrio, de racismo e hierarquização que nos constituiu como sociedade
histórica. Uma grande parcela da população brasileira permanece ainda servil a
uma tradição autoritária que consagrou a crença no uso da força, que a
acostumou ao medo da liberdade, que a deseducou com o ódio ao conhecimento, à
vida intelectual, que a adestrou para o convencionalismo (para a adesão rígida
aos valores da classe média, mesmo que contrários às conquistas
civilizatórias), que a habituou à simplificação da realidade (a contentar-se
com explicações simplistas e com ausência de reflexão), que a docilizou para a
submissão autoritária, tornando-a acrítica em face de autoridades idealizadas,
que lhe incutiu preconceitos contra personalidades intraceptivas (com pendor
para a criação imaginativa, para as artes, para os produtos abstratos da afetividade),
que a fez preocupar-se obsessivamente com a sexualidade alheia, que a tornou
propensa à projetividade (disposição para crer em ameaças cuja origem se
encontra em impulsos inconscientes). Num país que não conseguiu romper com o
imaginário
perverso que se formou por experiências repulsivas como a escravidão e a
ditadura militar, não surpreende ou não deveria surpreender que se escolhesse e
ainda se apoie um presidente manifestamente autoritário e antidemocrático.
Doravante,
concentrar-me-ei no que entendo ser o aspecto mais flagrante do bolsonarismo,
enquanto movimento populista e ideológico, a saber, seu autoritarismo de viés
fascista. Ao me ocupar desse aspecto, darei ênfase a um de seus modos de
expressão: a promoção da demissão do
pensamento. Além desta primeira parte, em que me devoto a discorrer sobre o
fenômeno do bolsonarismo, cingindo minha análise a seu aspecto mais refratário
ao conhecimento, ao pensamento crítico, este artigo inclui ainda outras duas
partes. Na segunda parte, volvo olhares sobre o fenômeno político, buscando
contribuir para a ampliação e aprofundamento do conhecimento raso que o senso
comum de nossa sociedade tem dele. Tendo me apercebido, há algum tempo, de que o
problema da política fica reduzido, no discurso do senso comum, à rejeição da
corrupção e à defesa de políticos que alimentam a propaganda do antipetismo,
meu propósito é descerrar a problematicidade do fenômeno político, fornecendo
ferramentais conceituais que nos permitam pensá-la para além destes
enquadramentos reducionistas. Nesta segunda parte, faço um retorno às origens
da filosofia política, recuperando as contribuições de Platão e Aristóteles
para a compreensão do que é a política. A terceira e última parte não é senão
outro momento deste mesmo propósito. Nessa parte, esclareço conceitos
fundamentais para uma sólida e fecunda discussão política e ilumino o contraste
entre a compreensão dos antigos e a dos modernos sobre as instituições
políticas. Ao cabo desse percurso, espero atingir o objetivo fulcral a que se
destina este texto, qual seja: contribuir
para esclarecer o debate político comumente toldado pelo analfabetismo político
do senso comum.
2. O autoritarismo bolsonarista e
a demissão do pensamento
Disposta
a compreender a ascensão do neoconservadorismo no Brasil a partir de 2015,
Lacerda (2019) advoga que é possível estabelecer uma relação de influência
entre o neoconservadorismo nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e o novo
conservadorismo no Brasil que culminou com a eleição de Bolsonaro.
Primeiramente, é preciso ter em conta o fato de que, segundo a autora, o
governo de Jair Bolsonaro, iniciado em janeiro de 2019, é o resultado eleitoral
do crescimento, no Brasil, de um neoconservadorismo ou de uma nova direita que
se formou em torno da coalizão contrária às políticas de bem-estar social e ao
avanço dos movimentos feministas e LGBTQIA+, e que arrebanhou uma parcela
majoritária do evangelismo, integrantes da direita secular do Partido
Republicano e intelectuais que apoiaram a eleição de Ronald Reagan em 1980. O
neoconservadorismo esteia-se na tríade militarismo,
absolutismo do livre mercado e família
tradicional (leia-se família
patriarcal). Além dessas características de base, o neoconservadorismo, de
que o bolsonarismo é a versão brasileira atual e majoritária, se caracteriza
também pelo idealismo punitivo e sionismo, o qual expressa a tendência
do grupo da direita cristã a enfatizar os textos do Antigo Testamento e a
apoiar o Estado de Israel em suas investidas contra a Palestina. Ademais, o
bolsonarismo está econômica e ideologicamente alinhado com a racionalidade
neoliberal. Aqui convém precisar o que devemos entender por neoliberalismo, no
domínio da presente discussão. Consoante Dardot & Laval (2016, p. 34), o
neoliberalismo “não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como
não é seu extravio nem sua traição”. Para os autores, o neoliberalismo não é
uma ideologia ou um sistema de crenças, “é um sistema de normas que hoje está
profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas
institucionais, nos estilos gerenciais”. (ibid., p. 30). O neoliberalismo
excede, portanto, a esfera mercantil e financeira, para estender a lógica do
mercado além das fronteiras do próprio mercado. O neoliberalismo produz
subjetividades que se convertem em dados contábeis, na medida em que submete os
indivíduos à concorrência sistemática. Como assinalam os autores, “o
neoliberalismo emprega técnicas de poder
inéditas sobre as condutas e as subjetividades”. (ibid., p. 21). Portanto, sem
que possamos reduzi-lo à expansão espontânea da esfera do mercado e do campo de
acumulação do capital, devemos compreendê-lo como uma forma de governamentalidade. Assim entendida, “a governamentalidade
neoliberal escora-se num quadro normativo
global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra
concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e
as práticas desses indivíduos”. (ibid., ênfase no original). Em suma, o
neoliberalismo não é uma doutrina, mas uma racionalidade
governamental que se expressa como o desenvolvimento da lógica do mercado
normatizadora e generalizada, que se estende da esfera do Estado até o âmago da
subjetividade.
Como
se pode depreender do que até aqui se expôs, uma discussão sobre política que
se pretende consistente, esclarecida e profunda não pode prescindir de
reconhecer a sua complexidade fenomênica, que não é senão reflexo da complexidade
do real. Demais, quem quer que queira compreender como opera o projeto
antipolítico de Bolsonaro, deve tanto renunciar ao hábito de repisar os
lugares-comuns, os slogans, os preconceitos, os despautérios da burrice
generalizada, quanto abster-se de considerá-lo burro ou louco. A advertência
que nos faz Nobre vem aqui a propósito:
É
fácil chamar Bolsonaro de burro ou louco, ou das duas coisas. Só que isso não
ajuda em nada a entender o que estamos vivendo. Pior, é uma maneira de dizer
que não há nada para entender, é uma maneira de se desobrigar de pensar. E
desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de
Bolsonaro. Não bastasse isso, o xingamento despolitiza: como todo político
autoritário, Bolsonaro se apresenta como não político. O xingamento diz que o
atual presidente de fato funciona segundo outra lógica que não a da
racionalidade política. (Nobre, ibid., p. 9).
Enumerem-se,
pois, as três ideias importantes expressas nesse passo de Nobre: 1) o projeto
autoritário de Bolsonaro tem como um de seus objetivos desobrigar de pensar; 2)
o xingamento despolitiza, impede-nos de entender Bolsonaro como um autoritário,
como um não político; 3) o xingamento, ademais, libera Bolsonaro da
responsabilidade por seus atos e palavras, visto que burros e loucos não podem
ser responsabilizados pelas burrices e pelas loucuras que proferem ou fazem.
Segundo Nobre, também não devemos ignorar o fato de que Bolsonaro usa-se de uma
tática política que lhe é bastante conveniente: a culpa que recai sobre si ele transfere para o outro. Se queremos
compreender, portanto, adequadamente, o modo como Bolsonaro faz política,
devemos procurar entendê-lo nos termos da política da guerra e da morte que a
orienta. O que se espera de um cidadão crítico ou de qualquer pessoa a quem não
falte o bom senso é que se esforce por compreender como a própria política
virou guerra com a ascensão de Bolsonaro ao cargo de Chefe de Estado.
Se podemos dizer, com Nobre, que há
nas falas e atitudes de Bolsonaro signos que desencorajam o exercício do
pensamento, é que há nos silenciamentos que atravessam a sua fala a crença de
que o real é
simples e não problemático. Acontece que não conhecemos a realidade diretamente
e de modo transparente; nossa experiência do real já vem tramada pelos signos,
pelas significações, pelas imagens que a constituem, ou seja, é tramada pela
junção do imaginário com o simbólico. O mundo conhecido é um mundo significado,
já ordenado pela função de simbolização da linguagem; e essa ordem simbólico-imaginária
da realidade é complexa, se articula em muitos níveis de significação. Morin
(2015) nos adverte sobre a necessidade do exercício do pensamento complexo,
caso queiramos compreender a complexidade do real. Lembra o autor que complexus se diz do que é tecido junto.
A complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos intrinsecamente
ligados. Destarte, nas palavras do autor:
(...) a complexidade é efetivamente o tecido de
acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que
constituem nosso mundo do fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com
traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da
ambiguidade, da incerteza. (ibid., p. 13).
Esse tecido de acontecimentos de que
fala Morin, esse emaranhado é da ordem do imaginário e do simbólico. Esse
tecido é intertecido com significações, é feito da urdidura do imaginário-simbólico.
Ora, se o real é complexo, se é problemático (porque jamais transparente,
autoevidente, unívoco, seguro, posto como objeto de certeza), então
necessitamos do pensamento complexo, caso queiramos, deveras, compreendê-lo nos
níveis mais profundos e intricados de sua complexidade. Fazendo face ao modo de
ser simplificador da política, Morin propõe um conhecimento complexo, não sem
fazer a seguinte advertência:
A incapacidade de conceber a complexidade da
realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua
macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas
tragédias e nos conduz à tragédia suprema. Dizem-nos que a política “deve” ser
simplificadora e maniqueísta. Sim, claro, em sua concepção manipuladora que utiliza
as pulsões cegas. Mas a estratégia política requer o conhecimento complexo,
porque ela se constrói na ação com e contra o incerto, o acaso, o jogo mútiplo
das interações e retroações. (ibid., p. 13).
Decerto,
ser capaz de pensamento complexo é um atributo que Bolsonaro não tem e que se
recusa a tê-lo, preferindo confrontar-se com a complexidade da realidade
antropossocial recorrendo à munição dos destemperos de seu autoritarismo, o
mesmo autoritarismo com que insiste em simplificar justamente aquilo que não se
presta a simplificações: o real, a vida, o mundo.
Antes
de descer a pormenores sobre a questão do autoritarismo e, mormente, do
autoritarismo do bolsonarismo, se faz mister fazer um recuo a fim de refletir
com mais acuro sobre o contexto sociopolítico-econômico em que se inscreve o
autoritarismo de nosso século. Consoante ensina Casara (2020a), “a
racionalidade neoliberal, que transforma tudo e todos em objetos negociáveis, e
só se preocupa com o lucro e a acumulação do capital, além de elevar o egoísmo
à condição de virtude, produz um fenômeno: a
dessimbolização, o desaparecimento dos valores e dos limites que
condicionavam a civilização”. (grifo meu, p. 57). A dessimbolização a que se
refere Casara designa, de um ponto de vista da psicanálise lacaniana, a perda
do Nome-do-pai, que simboliza a Lei, o interdito. Assim, o mundo, na medida em
que vai-se cada vez mais se dessimbolizando, torna-se um lugar onde valores
democráticos como “verdade” e liberdade” se tornam moedas de troca e limites
éticos e jurídicos lapidares do modo civilizado de vida são violados. Num mundo
dessimbolizado, naturalizam-se tendências anarcocapitalistas que estimulam a
absoluta livre concorrência, e a liberdade se reduz à liberdade de possuir, e
todos os direitos se reduzem ao direito de propriedade. A dessimbolização
liquidifica ou mesmo dissolve os laços de solidariedade social. Num mundo
dessimbolizado, cresce o fanatismo religioso oportuno aos seus simpatizantes e
propagandistas. Consoante Casara, “ a dessimbolização gera “assujeitos”, zumbis
demitidos da faculdade de julgar e propícias posturas perversas, quando não
psicóticas”. (ibid., p. 65). E ajunta: “a
dessimbolização, em resumo: gera o bolsonarismo”. (ibid.). A violação dos limites
civilizatórios torna-se objeto de gozo. Não raro, eles são ignorados em nome da
satisfação pessoal. O absurdo é naturalizado. A lei simbólica (o limite
externo) é substituída pela imagem construída individualmente da lei (lei
imaginária). A dessimbolização leva à identificação com a figura de um líder
carismático que passa a ocupar o lugar do Pai (sempre poderoso), a quem a
obediência vem acompanhada da promessa de liberar o gozo irrestrito. Assim, as
pessoas que o seguem anseiam por estar livres para expor seus preconceitos ou
para recusar os direitos fundamentais do outro, o qual aparece imaginariamente
como um concorrente ou inimigo a ser destruído. Segundo Casara, é a
dessimbolização que leva pessoas a quem interessam as políticas sociais
destinadas à redução da pobreza a votarem num candidato cuja agenda política se
alinha com o fim dessas mesmas políticas. É também a dessimbolização que
explica como mulheres que se afirmam feministas podem escolher votar em homens
em vez de noutras mulheres feministas. Como pontua Casara, “na eleição de Jair
Bolsonaro, a verdade perdeu importância diante de certezas, ainda que
delirantes, de seus eleitores”. (ibid., p. 59). Outra consequência da
dessimbolização, segundo Casara, é psicose social:
A
dessimbolização leva, portanto, a uma espécie de psicose social. No caso
brasileiro (como, antes, já tinha ocorrido nos Estados Unidos de Donald Trump),
uma psicose gerada por uma propaganda sem compromisso com a verdade, com
argumentos racionais ou com questões políticas concretas ou tangíveis, mas
baseada em cálculos emocionais, na manipulação de ressentimentos, ódios e
pulsões. Essa manifestação psicopolítica, capaz de produzir dominação sem que
os dominados/zumbis percebam, utiliza-se da reiteração e escassez de ideias,
frases feitas sem maiores complexidades, slogans e etiquetações que criam e
demonizam inimigos imaginários (construções que se distanciam da realidade dos
rivais políticos), ao mesmo tempo em que transforma o absurdo e o ridículo em
capital político. (ibid., p. 66).
A
hipnose social ou o que Casara também chama “zumbificação” é consequência da
liquidificação das relações entre pessoas, resultante do modus operandi da racionalidade neoliberal. É o laço social que se
dissolve à proporção que avança e domina todas as esferas da vida em comum o
imperativo do gozo ilimitado e o processo de reificação de todo o entorno
social que se reduz a mercadorias a serem consumidas. A esfera dialógica entre
sujeitos é suprimida, e eles se tornam meros objetos de uma lógica que opera
segundo interesses mercantis.
Para
Casara, o bolsonarismo é um sistema de pensamento paranoico, porquanto limitado
a produzir certezas delirantes, tais como o terraplanismo, o marxismo cultural
e a conspiração comunista que, no senso comum, se amalgamam com preconceitos e
xingamentos que reforçam a ignorância coletiva e a burrice desavergonhada.
Estas e outras criações do imaginário psicótico e paranoico do bolsonarismo
influenciam de modo significativo as decisões individuais e manipulam os
arranjos do campo político e das forças eleitorais. Resta evidente, ao menos
para mim, que os apoiadores de Bolsonaro são, em sua grande maioria,
analfabetos políticos. Muitos deles podem ser considerados “burros”, porque
defendem o indefensável e são incapazes de compreender as consequências danosas
dessa defesa, seja para a sociedade a que pertencem, seja para si mesmos.
2.1.
A personalidade autoritária e fascista
Ao
contrário da personalidade democrática, que aceita bem os limites impostos aos
seus desejos e ao exercício do poder, a personalidade autoritária recusa
qualquer limite aos seus desejos e ao seu projeto de dominação. O
autoritarismo culmina com o culto à violência, carreia o ódio aos direitos
humanos e ao conhecimento, dissemina e nutre o medo da liberdade, produz
inimigos imaginários e reproduz um pensamento estereotipado e empobrecido, que
se estrutura num discurso simplificador e repleto de clichês, slogans e frases
feitas. O autoritarismo ou a personalidade autoritária naturaliza os
preconceitos racial, social, de gênero, aceita de modo acrítico as fake news, mormente aquelas que
confirmam seus piores preconceitos e suas crenças mais absurdas. Sobretudo, a
personalidade autoritária não tolera qualquer limite legal, constitucional
imposto ao poder e aos seus desejos de poder. O autoritarismo odeia o
pensamento crítico. Odeia a razão, os direitos, os valores, as regras e
práticas civilizatórias que balizam a esfera de atuação do poder. O
autoritarismo também odeia os limites que lhes são fixados em seus desejos de
dominação. Conforme escreve Casara, “(...) não raro, o autoritário passa a
“defender o indefensável”, desde a
“prática de crimes para combater a criminalidade” à solução final
administrada pelos nazistas no século passado” (ibid., p. 85).
Em
seu estudo sobre o fascismo, Stanley observa o seguinte acerca do
anti-intelectualismo da política fascista:
A
política fascista procura minar o discurso público atacando e desvalorizando a
educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate
inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem
respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma
linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade. Quando a
educação, a especialização e as distinções linguísticas são solapadas, restam
somente poder e identidade tribal. (Stanley, 2020, p. 48).
A
propaganda fascista ataca as universidades e os sistemas educacionais que
poderiam contestar sua ideologia. As técnicas empregadas pelo fascismo recriam
a compreensão geral que a população tem da realidade, assim, construindo uma
irrealidade com base na qual as teorias da conspiração e as notícias falsas
ocupam o lugar do debate esclarecido e bem fundamentado. Em Como conversar com um fascista (2018),
Tiburi, escrevendo antes do pleito que levaria Bolsonaro a ocupar a cadeira de
Presidente da República, já denunciava o processo de destruição do outro e da
política, notável em 2015, época em que fora publicada a primeira edição do livro. Também aí Tiburi demonstra
preocupação com o risco de o ódio tornar-se um fenômeno estrutural, a saber, um
padrão normativo do que, nas práticas e relações sociais, se considera
aceitável:
Podemos
nos colocar a questão quanto ao risco de que o ódio se torne estrutural, que
venha a dar base a todas as nossas relações. Nesse contexto, a política é
destruída sistematicamente em duas linhas: pelos políticos que a transformam em
burocracia; pelo povo que a negligencia e se desinteressa dela. Talvez a
destruição da política seja a verdade oculta na razão de Estado atual. Todos
sabem, mesmo que não tenham palavras para expressar, que a política foi
transformada em burocracia e que os governantes garantem seu emprego eterno
estimulando o ódio nacional ao poder público. Não há maneira melhor de destruir
a política do que fazendo uso eficiente do ódio. (Tiburi, 2018, p. 29).
Urge
que o leitor que me acompanha até aqui atente para a transformação da política
em burocracia e para a perpetuação no poder dos governantes que incitam o ódio,
um modus operandis típico da política
brasileira. Essa representação da política como atividade burocrática e
oportunista corresponde bem à experiência vivida cotidianamente pela população
brasileira, em cujo imaginário, convive bem a repulsa às práticas de seus
governantes, ao “jogo sujo da política”, e a certeza de que a política um
emprego tão extremamente rentável quanto desejável.
Tiburi
acrescenta que “para destruir o outro é preciso destruir a política. Para
destruir a política é preciso destruir o outro”. (ibid.). A destruição do outro
(da alteridade) é o meio eficaz de eliminar o sujeito de direitos e o direito
dos sujeitos. A tática de humilhação e de aviltamento de pessoas ou populações
inteiras inviabiliza a realização de uma sociabilidade e sociedade
democráticas, alicerçadas no princípio constitucional de inclusão de todos os
cidadãos. Tiburi lembra também que a personalidade fascista – e por extensão, a
personalidade autoritária – tem compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à
dominação. O fascista é submisso aos poderes e instituições, mas quer dominar
os outros e eliminar os que pensam e agem de modo diferente. O fascista não
está aberto ao diálogo e ao saber. Ele desconfia do conhecimento e nutre ódio
por quem quer que demonstre saber algo que o afronte ou que invalide suas
crenças. Sua conduta social se orienta pela ignorância e confusão. O fascista
não hesita em recorrer a crenças irracionais ou antirracionais, e em criar
inimigos imaginários, a fim de reforçar suas práticas de dominação.
Correlata
à simplificação da realidade é a simplificação
da linguagem característica do discurso autoritário. Em um de seus artigos
reunidos no livro Minha especialidade é
matar: como o Bolsonarismo tomou conta do Brasil (2020), o filósofo e
escritor Henry Bugalho observa que Bolsonaro e o então Ministro da Educação
Weintraub à época consideram que os cursos de Filosofia não servem senão para
formar “comunistas malévolos”. A ignorância e opinião refratária à filosofia de
Bolsonaro e Weintraub podem ser explicadas no passo abaixo de Bugalho:
Deveria
ser impossível, mas é fácil na verdade entender o desprezo que o governo
Bolsonaro nutre pela Filosofia. Temos um presidente que devolve respostas
simples para os mais complexos problemas do Brasil e do mundo, repostas que
satisfazem as inquietações de seus eleitores, hoje educados por meio de fake News no Whatsapp, sectários
youtubers e pela tal mídia alternativa, um eufemismo para um jornalismo tosco
que prescinde de um dos princípios mais elementares da ética jornalística:
fundamentar-se no que seja factual, ou seja, restringir-se aos fatos. (ibid.,
p. 37).
Ainda
segundo Bugalho, “neste universo de linguagem simplificada e rasa, qualquer
resposta sofisticada e problematizadora é descartada como uma excentricidade de
acadêmicos ideologicamente enviesados”. (ibid.). O autor lembra também o que eu
deixei claro em outro texto meu, publicado neste blog: Bolsonaro sustenta uma
retórica de governo “sem viés ideológico”, mas ignora que seus atos e falas são
ideologicamente orientados. Como enfatiza Casara, numa época em que o
empobrecimento da linguagem é uma das facetas do capitalismo digital, “tudo
deve se apresentar como simples e direto para evitar os conflitos, as dúvidas e
a percepção de que é possível ou necessário mudar” (ibid., p. 12).
O
discurso de Bolsonaro e de seus apoiadores se produz com um arranjo de explicações
demasiado simplistas dos acontecimentos humanos e do mundo. Essas explicações
superficiais e simplistas interditam as investigações, os questionamentos, as
reflexões detidas e profundas indispensáveis a uma compreensão refinada e
abrangente da complexidade dos fenômenos humanos e do mundo. No processo de
simplificação neoliberal da realidade, o bolsonarismo encontra um terreno
sólido e fecundo para reproduzir a “lógica do gado”, em consonância com a qual
a comunicação deve-se realizar por iguais e entre iguais num circuito cacofônico
no qual o igual responde ao igual. Assim, quem ousa falar ou pensar diferente
dos modos de produção do pensamento e da linguagem simplificadores, tem de ser
calado, amordaçado simbolicamente, porque, no imaginário empobrecido do
autoritarismo bolsonarista, o divergente, aquele que contradiz, que ousa
verdadeiramente pensar, é representado como um inimigo, um resíduo inoportuno
que precisa ser eliminado. Depreende-se daí ser forçosa a conclusão de que,
como afirma Casara, “o fenômeno Bolsonaro não seria possível sem o
empobrecimento subjetivo da população brasileira”. (ibid., p. 15).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUGALHO, Henry. Minha especialidade é matar: como Bolsonaro tomou conta do Brasil.
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