Mostrando postagens com marcador Teologia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Teologia. Mostrar todas as postagens

sábado, 20 de novembro de 2021

"A teologia dá respostas incompreensíveis para perguntas sem sentido" (Voltaire).

 



A verborreia teológica

 

 

Segundo Orígenes, Deus é uno, simples, inefável e perfeito. Apesar de uno e simples, Deus é Pai, Verbo e Espírito Santo. Orígenes diz que essas três hipóstases, no entanto, não impedem que Deus seja uno. (A lógica aqui é estuprada). Escusa dizer que Orígenes, sem conseguir asfixiar completamente a razão, permanece embaraçado no problema das relações entre aquelas três pessoas divinas. E, se Deus é inefável, como pretender dizer algo sobre ele? (os místicos, ao menos, respeitavam os princípios doutrinários previamente estabelecidos; toda teologia é uma verborragia sem sentido, que pretende ocupar-se de algo que é, por definição, indizível e incognoscível). Segundo Orígenes, Deus é perfeito (a tradição metafísica consagrou o preconceito segundo o qual perfeição diz daquilo que é imutável: só o que é imutável é perfeito; Deus é imutável, logo Deus é perfeito). Mas o que significa perfeição como atributo do divino? Pensar o conceito é uma prática a que a filosofia e somente ela nos habitua; é uma prática que o senso comum não exercita, por isso coabitam nele as contradições mais grosseiras, coexistem as ideias mais estranhas entre si. Perfeição é a qualidade daquilo que se perfez, que se completou; diz-se daquilo que não apresenta lacuna, falha; mas também perfeição pode significar excelência no mais alto grau. Assim, Deus é o Ser em sua máxima excelência, autossuficiente, de nada carecido. Ora, mas se Deus não carece de nada, se é autossuficiente, por que criou o mundo e o homem, dois termos que designam a imperfeição? Contrariando os próprios pressupostos da definição de Deus, a teologia cristã reza que Deus criou o homem para a Sua glória; em outros termos, por pura vaidade e necessidade de autopromoção , de reconhecimento de seus magníficos poder e natureza. Claro, conclui o bom senso, se não existissem os animais humanos, quem mais daria notícias da existência de Deus? Os primatas, nossos parentes mais próximos, o ignoram; sequer dão sinais de possuir religião. No Princípio, o Verbo era mudo, Deus estava imerso em sua impenetrável solidão cósmica. Era necessário (ele carecia, portanto) criar o homem dotado das faculdades cognitivas adequadas para que Deus viesse à luz, para que ele “existisse” deveras. Resta evidente que, se não existissem os seres humanos, Deus não “existiria”, não se faria ouvir, não se faria objeto de pensamento, de discurso. A conclusão irrecusável, porque razoável, é que primeiro existe o homem como criador e depois surge Deus como sua criação, seu constructo, como uma ideia sua. A teologia é uma expressão da inversão ideológica, que Feuerbach, antes de Marx, soube bem examinar: põe no começo justamente aquilo que se situa no termo, no fim; põe a conclusão na frente da premissa; deduz da ideia a realidade; toma o objeto (Deus) pelo Sujeito (homem). Deus passa a ser o sujeito (o substrato) a partir do qual o mundo e o homem se tornam conhecidos, a partir do qual homem se conhece e conhece o mundo. E até hoje pagamos um alto preço histórico por essa enfermidade, esse adoecimento do animal humano. Mas devemos aqui lembrar que a teologia e a metafísica, que lhe é subjacente, são sintomas de uma mente que se desenvolveu por um processo natural que, a rigor, é indiferente à verdade e à lógica. A seleção natural favorece as características que auxiliam os genes do portador a serem transmitidos à próxima geração, e isso é tudo. Se falsidades favoreceram a realização desse objetivo, durante a evolução de nossa espécie, a mente humana encorajará naturalmente essas falsidades. A confusão sistemática e a desrazão não são sintomas da mente primitiva; são hábitos que se desenvolveram no processo evolutivo do cérebro humano; são hábitos em que esse cérebro incorre continuamente ainda hoje. O mesmo cérebro que causa admiração e maravilhamento aos seus portadores é também capaz de cometer as falhas mais absurdas, os erros mais estúpidos. Perfeição é, definitivamente, uma ideia, um conceito da imaginação produzida por um cérebro naturalmente inclinado ao erro, à estupidez, e não uma realidade do processo evolutivo que lhe deu origem. Portanto, antes de que acusemos o animal humano por sua insistente falta de bom senso, recordemo-nos de que o homem é uma espécie de mamífero, um organismo que traz no corpo as marcas de um passado evolutivo que o faz ser, biologicamente falando, apenas a forma de uma célula germinativa produzir outra célula germinativa, tal como acontece na barata e no repolho. Contra a vaidade teológica que fez o homem acreditar que ocupa um lugar metafisicamente privilegiado no universo, devemos afirmar que a mente humana não é o poder que impele o universo. Se isso não nos fizer mais tolerantes com este ser megalomaníaco e risível, talvez nos faça mais cúmplices de sua condição existencialmente precária e delirante. Os seres humanos, eu e você, criamos, através da cultura, passatempos mentais que tornam essa breve passagem pela vida, antes do retorno inexorável ao caos e ao silêncio do inorgânico, mais agradável ou tolerável. A arte, a ciência, a religião, os jogos, toda uma indústria de entretenimento são criações, passatempos culturais que nos ajudam a suportar o caráter cruel da realidade, que tornam para nós mais respirável a crueza da vida, que afastam de nossa consciência a representação e o sentimento de nossa insignificância cósmica radical, que nos faz viver na autoilusão acerca do que somos em face da irrecusável indiferença do Universo para com nossos projetos, nossos anseios, nossas rixas e intrigas tão pequenas e sem sentido último. Quem quer que ouse se aprofundar nessas reflexões, provavelmente terá de suportar o sentimento ou fugir a ele, de que a existência humana e toda a sua atarefada exteriorização histórica é um edifício de símbolos e significados que se mantém sobre uma teia tecida pelo acaso e estendida sobre um insondável abismo; e toda a constituição fisiológica, biológica do homem é um grito exasperante para que ele se aperceba de sua condição animal, para que ele se aperceba de que vive por um tempo, cuja extensão é finita e incerta, para, então, retornar ao seio da natureza, onde se reunirá aos elementos mínimos do cosmo. E isso é tudo!