A verborreia
teológica
Segundo Orígenes, Deus é uno,
simples, inefável e perfeito. Apesar de uno e simples, Deus é Pai, Verbo e
Espírito Santo. Orígenes diz que essas três hipóstases, no entanto, não
impedem que Deus seja uno. (A lógica aqui é estuprada). Escusa dizer que
Orígenes, sem conseguir asfixiar completamente a razão, permanece embaraçado no
problema das relações entre aquelas três pessoas divinas. E, se Deus é
inefável, como pretender dizer algo sobre ele? (os místicos, ao menos,
respeitavam os princípios doutrinários previamente estabelecidos; toda teologia
é uma verborragia sem sentido, que pretende ocupar-se de algo que é, por
definição, indizível e incognoscível). Segundo Orígenes, Deus é perfeito (a
tradição metafísica consagrou o preconceito segundo o qual perfeição diz
daquilo que é imutável: só o que é imutável é perfeito; Deus é imutável, logo
Deus é perfeito). Mas o que significa perfeição como atributo do divino? Pensar
o conceito é uma prática a que a filosofia e somente ela nos habitua; é uma
prática que o senso comum não exercita, por isso coabitam nele as contradições
mais grosseiras, coexistem as ideias mais estranhas entre si. Perfeição é a
qualidade daquilo que se perfez, que se completou; diz-se daquilo que não apresenta
lacuna, falha; mas também perfeição pode significar excelência no mais alto
grau. Assim, Deus é o Ser em sua máxima excelência, autossuficiente, de nada
carecido. Ora, mas se Deus não carece de nada, se é autossuficiente, por que
criou o mundo e o homem, dois termos que designam a imperfeição? Contrariando
os próprios pressupostos da definição de Deus, a teologia cristã reza que Deus
criou o homem para a Sua glória; em outros termos, por pura vaidade e
necessidade de autopromoção , de reconhecimento de seus magníficos poder e
natureza. Claro, conclui o bom senso, se não existissem os animais humanos,
quem mais daria notícias da existência de Deus? Os primatas, nossos parentes
mais próximos, o ignoram; sequer dão sinais de possuir religião. No Princípio,
o Verbo era mudo, Deus estava imerso em sua impenetrável solidão cósmica. Era
necessário (ele carecia, portanto) criar o homem dotado das faculdades
cognitivas adequadas para que Deus viesse à luz, para que ele “existisse”
deveras. Resta evidente que, se não existissem os seres humanos, Deus não
“existiria”, não se faria ouvir, não se faria objeto de pensamento, de
discurso. A conclusão irrecusável, porque razoável, é que primeiro existe o
homem como criador e depois surge Deus como sua criação, seu constructo, como
uma ideia sua. A teologia é uma expressão da inversão ideológica, que
Feuerbach, antes de Marx, soube bem examinar: põe no começo justamente aquilo
que se situa no termo, no fim; põe a conclusão na frente da premissa; deduz da
ideia a realidade; toma o objeto (Deus) pelo Sujeito (homem). Deus passa a ser
o sujeito (o substrato) a partir do qual o mundo e o homem se tornam
conhecidos, a partir do qual homem se conhece e conhece o mundo. E até hoje
pagamos um alto preço histórico por essa enfermidade, esse adoecimento do
animal humano. Mas devemos aqui lembrar que a teologia e a metafísica, que lhe
é subjacente, são sintomas de uma mente que se desenvolveu por um processo
natural que, a rigor, é indiferente à verdade e à lógica. A seleção natural
favorece as características que auxiliam os genes do portador a serem
transmitidos à próxima geração, e isso é tudo. Se falsidades favoreceram a
realização desse objetivo, durante a evolução de nossa espécie, a mente humana
encorajará naturalmente essas falsidades. A confusão sistemática e a desrazão
não são sintomas da mente primitiva; são hábitos que se desenvolveram no
processo evolutivo do cérebro humano; são hábitos em que esse cérebro incorre
continuamente ainda hoje. O mesmo cérebro que causa admiração e maravilhamento
aos seus portadores é também capaz de cometer as falhas mais absurdas, os erros
mais estúpidos. Perfeição é, definitivamente, uma ideia, um conceito da
imaginação produzida por um cérebro naturalmente inclinado ao erro, à estupidez,
e não uma realidade do processo evolutivo que lhe deu origem. Portanto, antes
de que acusemos o animal humano por sua insistente falta de bom senso,
recordemo-nos de que o homem é uma espécie de mamífero, um organismo que traz
no corpo as marcas de um passado evolutivo que o faz ser, biologicamente
falando, apenas a forma de uma célula germinativa produzir outra célula
germinativa, tal como acontece na barata e no repolho. Contra a vaidade
teológica que fez o homem acreditar que ocupa um lugar metafisicamente
privilegiado no universo, devemos afirmar que a mente humana não é o poder que
impele o universo. Se isso não nos fizer mais tolerantes com este ser
megalomaníaco e risível, talvez nos faça mais cúmplices de sua condição
existencialmente precária e delirante. Os seres humanos, eu e você, criamos,
através da cultura, passatempos mentais que tornam essa breve passagem pela
vida, antes do retorno inexorável ao caos e ao silêncio do inorgânico, mais
agradável ou tolerável. A arte, a ciência, a religião, os jogos, toda uma
indústria de entretenimento são criações, passatempos culturais que nos ajudam
a suportar o caráter cruel da realidade, que tornam para nós mais respirável a
crueza da vida, que afastam de nossa consciência a representação e o sentimento
de nossa insignificância cósmica radical, que nos faz viver na autoilusão
acerca do que somos em face da irrecusável indiferença do Universo para com
nossos projetos, nossos anseios, nossas rixas e intrigas tão pequenas e sem
sentido último. Quem quer que ouse se aprofundar nessas reflexões,
provavelmente terá de suportar o sentimento ou fugir a ele, de que a existência
humana e toda a sua atarefada exteriorização histórica é um edifício de
símbolos e significados que se mantém sobre uma teia tecida pelo acaso e
estendida sobre um insondável abismo; e toda a constituição fisiológica,
biológica do homem é um grito exasperante para que ele se aperceba de sua
condição animal, para que ele se aperceba de que vive por um tempo, cuja extensão é finita e incerta, para, então, retornar ao seio da natureza,
onde se reunirá aos elementos mínimos do cosmo. E isso é tudo!