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domingo, 12 de abril de 2020

“O que foi dito sobre deus é ou ininteligível ou perfeitamente contraditório; e por esta razão deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso.” (Paul Henri Holbach)


Arte Barroca - Características, vertentes do Barroco e principais ...


Deus – um problema de lógica
O argumento da impossibilidade


Ponho-me a escrever este texto num período histórico em que o mundo enfrenta a pandemia de covid-19, enquanto o homem comum, tão habituado que está a acolher, de modo acrítico, os significados culturalmente compartilhados, dá novo vigor aos seus costumeiros apelos a Deus, a quem pede misericórdia e proteção. Por mais indiferente que eu procure ser ao comportamento religioso padrão desse tipo humano, custa-me silenciar meu espanto em face da incapacidade que tem esse tipo humano em aceitar raciocínios simples que colocam suas alegações de fé no conjunto das crenças falsas acerca do mundo. Um exemplo de raciocínio simples e completo, para cuja aceitação a maioria dos indivíduos que professa sua fé no Deus teísta parece inapta, é o silogismo. O silogismo é um raciocínio completo, explícito e composto de três juízos, dos quais dois são premissas; e o terceiro, a conclusão. Um exemplo de silogismo é o que se segue:

1. Todos os pernambucanos são brasileiros.  (premissa maior)

2. João é pernambucano.  (premissa menor)

3. João é brasileiro.  (conclusão)

 

Escusando-me de me deter em explicações especializadas, chamo a atenção para o fato de que, se assumirmos que 1 e 2 são verdadeiros, somos obrigados a aceitar como verdadeira a conclusão 3. Ora, se todos os pernambucanos estão inseridos no grupo dos indivíduos que são brasileiros, e se João é pernambucano, então (logo, portanto), João é brasileiro. Creio não haver dificuldade para a compreensão desse raciocínio, que é bastante simples. Agora, busquemos ver se uma das alegações sobre Deus passa no teste silogístico. Note-se este outro silogismo:

1. Todas as coisas que existem na natureza foram criadas por Deus.

2. Vírus são coisas que existem na natureza.

3. Vírus foram criados por Deus.

 

Se eu aceito a verdade de 1 e 2, então tenho de aceitar a verdade de 3. Trata-se de um raciocínio válido do ponto de vista lógico. Não obstante, ele acarreta um problema desconcertante para a fé no Deus teísta – problema este de base empírica: o problema do Mal. Sabemos que vírus são microrganismos patogênicos, ou seja, são capazes de causar doença e sofrimento. Como, então, explicar que um Deus sumamente bom e onipotente possa ter criado tais microrganismos que causam dor e sofrimento? É o paradoxo de Epicuro (341-270 a.C), posteriormente ampliado por Hume, sobre o problema do mal que se deixa ouvir aqui:

1. Deus quer eliminar o mal, mas não pode; 2) Deus pode eliminar o mal, mas não quer; 3) Deus não pode e nem quer; 4) Deus pode e quer. Se aceitamos 1), então Deus não pode ser onipotente; se aceitamos 2), então Deus não é bom; se aceitamos 3), então Deus é mau; se, finalmente, aceitamos 4), somos forçados logicamente a explicar por que há tanto sofrimento gratuito no mundo. Epicuro quer-nos mostrar que qualquer uma das alternativas é indesejável.

Não será, contudo, o Problema do Mal que tomarei para escopo de minhas reflexões. Sobre este problema já dissertei alhures, e vários textos dedicados ao tratamento dessa questão se topam neste blog. O que me interessa neste texto é mostrar a ilogicidade, a contraditoriedade inerente ao conceito do Deus teísta, ou seja, do Deus das três “Religiões do Livro”: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Essas três tradições de fé monoteísta compartilham um único texto sagrado (a Bíblia hebraica); e o cristianismo e o islamismo proclamam ainda livros adicionais, a saber, o Novo Testamento e o Alcorão. Estes livros são considerados como revelações da palavra de Deus. Tais textos, associados a séculos de crença popular e reflexão teológica, formaram o conceito que vêm à mente para mais da metade dos crentes quando ouvem a palavra “Deus”. O termo teísmo, usado desde o século XVII, designa a crença num Deus como Ser que é o princípio originário de todas as coisas. O Deus teísta é o Ser como causa do mundo, segundo Kant. Ao me ocupar em explicitar a ilogicidade intrínseca das tramas semânticas do conceito do Deus teísta, sinto-me obrigado a delimitar o domínio teórico à luz do qual a ideia de ‘conceito’ será pensada. A questão premente e inicial será então: o que estou entendendo por ‘conceito’ ao me referir ao ‘conceito de Deus’?

 

1. A visão clássica de conceito

 

Conceito, segundo Aristóteles, é uma ideia substancial, expressa por um substantivo, à qual se associa uma série de categorias ou acidentes. De acordo com a concepção clássica, o conceito visa à essência das coisas, ou seja, àquilo pelo qual as coisas não podem ser diferentes do que são. Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam o conceito como lógos que circunscreve a substância ou essência necessária de um ser. Essência  é aquilo que permanece o mesmo, independentemente das mudanças ou acidentes. A essência é o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é ou o que faz dela aquilo que é.

Além de abrigar uma ideia substancial, ao conceito se predem acidentes ou categorias. Aristóteles distinguiu 10 categorias, entre as quais estão a de ação, hábito, lugar, quantidade, paixão. Assim, ao conceito [CAVALO] pode-se associar a categoria [trotar], numa relação predicativa como “cavalos trotam”. Na visão clássica, os conceitos têm uma natureza binária: ou bem o conceito aplica-se a um ente, ou bem não se aplica. Se dois entes quaisquer são exemplares de um conceito, eles o são de modo igualmente apropriado, isto é, um conceito não se aplica mais ou melhor a um ente que a qualquer outro. Destarte, por conceito entende-se uma lista de propriedades necessárias e suficientes. Os conceitos são, portanto, absolutamente precisos. Assim, se todos os homens são mortais, não há nenhum homem mais mortal ou tipicamente mortal que qualquer outro. Na concepção clássica, os conceitos consistem em conjuntos de atributos ou propriedades individualmente necessários e conjuntamente suficientes. Destarte, para ser representado num conceito, um ente deve possuir cada uma das propriedades que o constituem e a posse de todas essas propriedades deve ser suficiente para que o ente seja um exemplar desse conceito. Por exemplo, uma vez que [animal] e [racional] são atributos ou traços semânticos do conceito [homem], para que um ente seja considerado “homem”, é necessário que seja animal e racional. Na concepção clássica, os conceitos são estáveis. Eles são constitutivos de nosso conhecimento – do conhecimento conceitual. Conceitos são ferramentas com as quais pensamos. Também é sobre conceitos que recai o ato da reflexão. No ato da reflexão, tornamos os conceitos mais eficazes, mais adaptados para seus fins, uma vez que é na reflexão que eles são transformados, passando a fazer parte de nós mesmos como sujeitos do conhecimento.

A concepção clássica de conceito é, contudo, insuficiente para dar conta do processo sócio-cognitivo-interacional de construção de conceitos. Ademais, a concepção clássica não reconhece que a cognição é o resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Por conseguinte, o que entenderemos por “conceito” se alinha com o Realismo Experiencilista associado com a abordagem sociocognitivo-interacional da linguagem.

 

2. Realismo experiencialista: conceitos como modelos cognitivos

 

O realismo experiencialista enfatiza a experiência humana e assume a centralidade do corpo humano nessa experiência a fim de explicar o funcionamento da cognição humana. De acordo com esta teoria, a investigação da mente humana não pode ser separada do corpo. A experiência, a cognição e a realidade são concebidas a partir da ancoragem corporal. De acordo com esta perspectiva filosófica, os conceitos são produtos de uma construção sócio-interacional-cognitiva de significados. Os conceitos são dinâmicos; formam-se e mudam em consonância com as diversas formas de interação humana com objetos de ação, de conhecimento, com signos e significados culturais; e, sobretudo, formam-se e mudam nas relações intersubjetivas, em situações sócio-históricas de construção coletiva de significados e de negociação interpessoal desses significados. Os conceitos, portanto, existem sempre numa contextualidade, a qual recobre as práticas discursivas, os domínios de conhecimento e de cultura. Todo conceito é dotado de uma materialidade (é parte de textos, suportes, instituições, atividades, práticas linguísticas historicamente condicionadas).

A cognição, por seu turno, é um fenômeno situado. Não há limite claro entre o que acontece dentro e fora da mente. Os processos cognitivos resultam de relações complexas entre ações sociais e atividades mentais internas. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com exigências socialmente fixadas. A emergência e desenvolvimento dos conceitos se dão nas atividades nas quais os homens se engajam com vistas a construir sentidos para a suas experiências de mundo.

O corpo não só delimita a experiência, mas também estrutura a cognição. Conceitos rudimentares como o de ‘contato’, ‘contêiner’, ‘equilíbrio’ resultam da experiência pré-conceitual. Tais conceitos não são meras abstrações, mas constituem esquemas imagéticos derivados de experiência sensório-motora.

Longe de negar que exista um mundo físico objetivo independente de nós, o realismo experiencialista mantém que o acesso à realidade é limitado por nosso ambiente biofísico e pela natureza de nossa estrutura corporal. Destarte, a radiação infravermelha, por exemplo, emitida por alguns corpos é invisível ao  olho humano, porquanto o comprimento de onda dessa radiação é maior do que o da luz que somos capazes de enxergar. Quando consideramos a percepção da cor, sabemos que o sistema visual humano tem três tipos de fotorreceptores, os quais diferem daqueles de animais como esquilos e coelhos (que apresentam dois tipos) e de pombos (que têm quatro tipos). Essa diferença influencia nossa experiência no tocante às cores a que temos acesso no espectro cromático. Ademais, enquanto temos dificuldade para enxergar à noite, as cascavéis realizam atividades noturnas, como a caça. Esses animais conseguem detectar visualmente o calor emitido por outros organismos, porque são capazes de enxergar a faixa infravermelha. Tais exemplos patenteiam que as características do aparelho visual dos seres humanos – um dos aspectos de sua estrutura corporal – determinam a natureza e a extensão de sua experiência nesse domínio.

Em consonância com o realismo experiencialista, a linguagem não reflete a realidade, mas interage com os sistemas perceptuais e cognitivos moldados pelas práticas culturais na construção humana da realidade. O realismo experiencialista mantém que a forma e a configuração de nossos corpos e cérebro determinam necessariamente uma perspectiva particular - entre várias possíveis – sobre o mundo. 

Na abordagem sociocognitiva, conceitos são um feixe de modelos cognitivos dotados de uma estrutura interna. Cada expressão linguística põe em evidência um aspecto do conceito em consonância com o contexto sociocognitivo. Na produção e desenvolvimento dos conceitos, destaca-se a importância do background cultural, que consiste na forma de vida da sociedade – forma de vida que inclui mudanças de costumes e mudanças tecnológicas.

O que torna possível a compreensão do que é o conceito ou dos aspectos do conceito instanciados pela expressão linguística é a experiência que o indivíduo tem, enquanto sujeito sócio-histórico, em sua vida cotidiana, com os diferentes aspectos do ente designado pelo conceito (p. ex.,  o conceito de ‘água’ será resultado da experiência que o indivíduo terá com  a fluidez, a clareza, a impureza desse elemento, ou com o fenômeno da chuva, etc.). Muitos de nossos processos cognitivos têm por base a percepção e a nossa capacidade de atuação sensório-motora no mundo. Portanto, há processos cognitivos que acontecem em sociedade e não exclusivamente ‘na mente’ dos indivíduos.

Em síntese, são três os postulados do Realismo experiencialista:

 

1) O pensamento enraíza-se no corpo, de modo que as bases de nosso sistema conceitual são a percepção, o movimento corporal e as experiências físicas e sociais;

 

2) O pensamento é imaginativo, de sorte que os conceitos que não são diretamente ancorados em nossa experiência física empregam metáforas, metonímias e imagética mental, que não mantém uma relação especular com a realidade;

3) O pensamento tem propriedades gestálticas, o que significa dizer que os conceitos apresentam uma estrutura global não atomística, ou seja, não se limitam à mera reunião de traços de significados organizados segundo regras específicas.

 

As palavras ou os signos de modo geral são o meio para a formação dos conceitos; mas, como não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo, essa relação é sempre mediada pela arquitetura cognitiva dos actantes sociais, tendo em conta as restrições e características dessa arquitetura. Assim, segundo o realismo experiencialista, a razão humana não é um componente transcendental, mas algo que se constitui a partir da natureza de nosso organismo biológico e dos fatores que contribuem para a nossa experiência individual e coletiva, tais como herança genética, características do ambiente, a natureza de nosso comportamento e modo de ser sociais, etc.

O realismo experiencialista, assentado na hipótese da base corpórea da cognição, mantém que as experiências vividas pelos indivíduos através de seus corpos em ação servem de fundamento para a cognição, influenciando as atividades cognitivas tais como a percepção, a formação de conceitos, a imagética mental, a memória, o raciocínio, a linguagem, as emoções e a consciência.

Assim, por exemplo, considerando um esquema imagético como versões esquemáticas de imagens, concebidas como representações de experiências corporais, tanto sensoriais quanto perceptuais em nossa interação com o mundo, formamos os conceitos de dentro-fora, que, em conjunto, constitui um esquema imagético. Na base desse esquema está o domínio “contêiner”. Domínios são experiências perceptuais, conceitos, complexos conceituais e sistemas elaborados de conhecimento. Domínios como ‘contêiner’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’ são responsáveis pela estruturação da experiência ancorada no corpo. É com base nesses domínios que é possível formular frases como “Ele jogou o lixo fora” e “Guardei o carro na garagem”.

  

2.1. O conceito de Deus como uma forma de modelo cognitivo

 

O conceito do Deus teísta se formou e se ainda desenvolve, com certa dinâmica reflexiva, em práticas intersubjetivas e institucionais, discursiva e historicamente condicionadas, com base em experiências individuais e coletivas delimitadas por relações com o entorno biofísico e pelo background cultural dos indivíduos que são socialmente posicionados como autoridades na promoção da fé em Deus. Como a constituição do conceito de Deus só indiretamente está ancorada em experiências físicas com o mundo, visto que não se tem experiência sensível de Deus, assumo que o conceito canônico de Deus foi gestado pela imaginação, a qual é condicionada por experiências sócio-históricas dos hebreus com guerras, exílio, impérios, deuses estrangeiros, artefatos culturais (como a escrita, por exemplo) e experiências físico-corpóreas com o ambiente natural, como, por exemplo, com o deserto. Como bem lembra Debray (1004, p. 38), “Deus é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente”. A roda diminui, em certo grau, a dependência do homem em relação ao espaço; e a escrita, em relação ao tempo. Ainda segundo Debray, “o homem descende do símio, mas Deus descende do signo” (ibid., p. 39).

 Embora o que os crentes saibam a respeito de Deus tenha sido sedimentado por uma tradição bíblica e teológico-filosófica ao longo de séculos, o conceito de Deus, como todo conceito, é marcado por uma contextualidade e dinamicidade, de modo que pode sofrer algum tipo de customização. Por exemplo, em nossas sociedades de mercado, os fiéis, muitas vezes, vivenciam sua fé como alguém que participa de uma relação mercantil. Com base  no modelo cognitivo das relações de mercado, Deus é imaginado como um mercador com quem o fiel negocia favores e milagres. A relação imaginária entre o crente e seu Deus fica regulada por motivos e interesses pragmáticos.

Uma vez que eu tenha assumido que a imaginação desempenha um papel importante na formação do conceito de Deus, parece-me imperioso justificar por que lhe confiro esse estatuto. É o que farei doravante.

Vimos que um dos postulados do realismo experiencialista é que o pensamento é imaginativo, de sorte que muitos conceitos que não se formam pela ancoragem corporal diretamente dependem, para se constituir, de metáforas, metonímias e imagens mentais. O pensamento imaginativo parece, então, está essencialmente implicado na constituição do conceito da divindade de um modo geral. Escusa lembrar que o Deus bíblico é referido na Bíblia com o emprego de metáforas. Diz o salmista “o Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador, o meu Deus é o meu rochedo...” (Salmos 18:2). As metáforas da “rocha”, da “fortaleza” e do “libertador” se baseiam nas experiências hebraicas tanto com o ambiente biofísico quanto com o jugo e o exílio.  Em Isaías (40:11), Deus é representado como “pastor” que cuida do seu rebanho. É a experiência com o modo de vida pastoril, tão comum nas sociedades antigas do Oriente Próximo, que é ativada para a constituição desse modelo cognitivo de Deus. Deus é o pastor de seu povo. Ele tem a missão de reunir o gado e impedir sua dispersão. Deus prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa. Jeová é para o homem o que o homem é para seus animais. Aqui o esquema imagístico para Deus funda-se no modelo pastoril. Modelos constituem simplificações ou idealizações da experiência e se formam levando ao extremo caracteres ou atributos dos objetos empíricos. Assim, “cada povo cria deuses à sua própria imagem”, como ensina Debray:

 

“(...) um povo de oradores inventa um Olimpo eloquente e rixoso. Um povo de pastores escolhe como instrumento de coesão e independência, um grande pastor celeste, substituído, nos planos inferiores, por pastores de carne e osso, profetas e monarcas, Moisés e Davi. A metáfora pastoril dos poderes supremos era corrente nas sociedades antigas, o Egito e a Assíria. O povo hebreu parece ter adotado o sistema de metáfora, adequado a pastores de pequenos rebanhos”. (ibid., p. 73).

 

 

Armstrong (2008, p. p. 94) também salienta o poder do pensamento imaginativo na formação do conceito de Deus, quando nos ensina que “(...) a concepção de Deus foi muitas vezes um exercício de imaginação. Os profetas refletiam sobre sua experiência e achavam que podiam atribuí-la ao se que chamavam de Deus”. É oportuno aqui lembrar que os profetas de Israel não eram adivinhos. Eles não falavam de acontecimentos de um futuro distante, como sugerem algumas interpretações correntes e historicamente inadequadas em nossos dias. Vale reiterar que os profetas bíblicos lidavam com o futuro imediato e não prediziam o que iria acontecer muitos séculos depois. Eles estavam tão só levando a palavra de Deus a pessoas que viviam em sua própria época. Os profetas também falavam dos sofrimentos de seus contemporâneos e forneciam uma justificação para eles sem pretender que ela se convertesse num princípio explicativo universal. A profecia hebraica tinha como propósito fazer uma crítica social e religiosa. Para os profetas, Deus é que punia o seu povo com sofrimentos sempre que esse povo se afastava Dele.

No primeiro livro de Samuel, Deus é referido como “Senhor dos Exércitos”, uma metáfora cunhada com base na experiência bélica dos hebreus com os filisteus. Os dois livros de Samuel recobrem o período que vai de aproximadamente 1030 a.C até o final do reino de Davi (972.a.C). Todo o segundo Livro é dedicado ao reinado de Davi, a cuja descendência o profeta Nathan promete uma Aliança eterna. Os Livros do profeta Samuel reúnem documentos diversos, possivelmente compilados a partir do início do século VII, conquanto somente um século depois tenham sido incorporados na forma definitiva em que se encontra na Bíblia. Conta-se que os israelitas, sob o comando do rei Saul, escolhido por Samuel, organizou um pequeno exército com apenas 3.000 homens para expulsar os filisteus. Como Deus é intervencionista, conta-se que ele causou o pânico entre os filisteus, quando um grupo de filisteus abandonou seu acampamento depois que Jônatas e seu escudeiro mataram vinte homens filisteus. A crença dos autores bíblicos na participação de Deus no curso da história é flagrante também quando se relata que Saul fica aborrecido com o silêncio de Deus, depois que lhe pediu orientação para continuar na luta contra os filisteus em fuga.

Também a experiência com o Deserto constitui um esquema imagético para a composição do conceito de Deus no Antigo Testamento. O Deus que aprecia as naturezas hostis, as temperaturas extremas e as pedras é símbolo da confiança na superação dos limites. Como pondera Debray,

 

“(...) se olharmos um mapa histórico, veremos que o Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não configuram um meio uniforme e sim abstrato. Ele rejeita as baixas planícies, as margens pantanosas dos rios (...)” (ibid., p. 69)

 

 

 

Deus anuncia-se “lá onde nada separa o céu da terra. Onde o homem, exilado dos seus mundos familiares, descobre-se nu e quase supérfluo, insignificante”. (ibid.). É na desolação do deserto que “os céus nos contam a glória de Deus” e “as insignificâncias das glórias humanas, a comédia dos pontetados, o destino dos impérios”. (ibid.). A experiência dos hebreus com o caráter inóspito do deserto é o domínio com base no qual o esquema imagético de Deus como o Único, o Grande Unificador Federativo será constituído. Deus é, então, “o único ser capaz de costurar um tecido social mais exposto do que em outras partes às rupturas e até à divisão tribal”. (ibid., p. 70).

Tendo em vista o exposto,  a imaginação entra a fazer parte na constituição do conceito do Deus judaico não sob a forma grosseira de conjunto de sintomas delirantes, mas incrustada em experiências concretas, corpóreos e históricas, com a pedra, com o deserto, com as guerras, etc. É preciso ter em conta o fato de que por imaginação, desde Aristóteles, entende-se a faculdade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se refere. Sartre a pensará como “consciência desrealizante”, porquanto a imaginação se dirige a um objeto não real. A imaginação, para ele, transcende o existente em direção ao ausente e elabora um mundo alternativo. Kant, por sua vez, pensará a imaginação como uma faculdade reprodutiva, que traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior. Não estou, portanto, negando à imaginação a função transgressora e criadora, “poetizante”, da qual nos lembram Baudrillard, Deleuze e Guattari. Decerto, a imaginação é o estímulo para que o pensamento conceitual pense mais além, é o estímulo sem o qual o conhecimento filosófico ficaria engessado no momento presente. Sem embargo, é igualmente certo que a tradição definiu, de modo geral, a imaginação como a faculdade criativa do pensamento mediante a qual se produzem imagens (representações mentais) de objetos inexistentes, entre os quais incluo Deus. A tradição distinguiu entre imaginação reprodutiva, que produz imagens daquilo que percebemos e a imaginação criadora, que produz imagens do que jamais vimos. Deus é um complexo conceitual produzido pela imaginação criadora. A imagem não é cópia do objeto real, mas seu processo de formação é um processo mimético da percepção. Quando, por exemplo, formamos o conceito canônico de Deus, ou seja, do Deus judaico-cristão, a imagem que produzimos se compõe de elementos de objetos reais. Os cristãos falam em um Deus pessoal, num Deus que é pai, num Deus capaz de amor, num Deus que se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, etc. O divino no imaginário judaico-cristão é antropomorfizado. O conceito de Deus é, pois, produzido pela imaginação criadora, sempre condicionada por experiências históricas concretas, cujo modelo último é o homem e seus modos de ser no mundo. As experiências que os homens fazem de si mesmos com base nas relações de seus corpos com o entorno biofísico e histórico são o cadinho donde eles recolhem as qualidades imaginariamente projetadas e combinadas para compor o conceito de Deus. Como a imaginação se caracteriza por transcender os limites da experiência possível, em Deus, as qualidades humanas são representadas de modo superlativizado, superdimensionado.

 

3. O argumento da impossibilidade

 

Passo, agora, a desenvolver, um dos argumentos ateus mais notáveis dentre os que visam a demonstrar a impossibilidade da existência do Deus teísta. O chamado argumento da impossibilidade busca mostrar que o conceito tradicional de Deus é marcado estruturalmente por contradições, de sorte que sua existência é logicamente impossível. Tradicionalmente, Deus é definido como um Ser necessário, onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Também é concebido como o Criador livre do mundo e se diz dele que é imutável e transcendente. Alguns argumentos da impossibilidade incidem sobre um só atributo do complexo conceito de Deus, por exemplo, tentando mostrar que a noção de onisciência é, em si mesma, logicamente incoerente; outros argumentos atacam a combinação de atributos, mostrando, por exemplo, que não é logicamente possível que um ser seja onisciente e criador livre. Se qualquer das formas de argumentação for bem-sucedida, poderei mostrar que não pode haver um Deus tal como imaginado na tradição teísta.

Uma observação se faz aqui necessária. É sempre possível ao teísta rejeitar o argumento da impossibilidade alegando que o Deus que se mostrou impossível não é o Deus em que ele acredita. Se o teísta acabar por defender um Deus que é capaz de conhecimento, sem ser onisciente, pode furtar-se a alguns argumentos, mas sob o preço de ficar com um Deus perculiarmente ignorante. Se o teísta, por exemplo, afirmar que seu Deus é poderoso, mas não é onipotente, esse Deus pode parecer cada vez menos digno de receber tal título honorífico. O teísta também pode optar pela vagueza; algumas vezes também pode apelar para concepções bastante abstratas de Deus, que chegam a beirar os modos como o divino é pensado na mística oriental. Uma reação bastante frequente, talvez, não é a redefinição do conceito de Deus, mas o refúgio na vagueza, no uso contínuo do termo “Deus” em flutuações semânticas que carecem de qualquer especificação. Mas recorrer à vagueza só consegue afastar as críticas ateístas à custa da diluição do conteúdo tratado. Se a noção que um crente tem de Deus for vaga o bastante para se furtar a todos os argumentos da impossibilidade, então nem para ele é claro o objeto de sua crença – nem se o que toma como uma crença pia tem realmente conteúdo.

 

3.1. A impossibilidade da Onipotência

 

O mais famoso argumento contra a crença na existência de um Deus onipotente é o argumento da pedra. O argumento se estrutura com base na seguinte questão: poderia Deus criar um pedra tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la? Devemos aqui recordar que a onipotência, como qualidade do conceito do Deus teísta, é definida como a capacidade que tem Deus de realizar tudo, de fazer tudo. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica (2000, p. 80-81), “(...) nada lhe é impossível e Ele dispõe à vontade de sua obra, Ele é o Senhor do universo, cuja ordem estabeleceu, ordem esta que lhe permanece inteiramente submissa e disponível”. Ou ainda: “Deus criou tudo, governa tudo e pode tudo”. (ibid., p. 81).

1) Se a resposta à referida questão for “sim”, ou seja, Deus pode criar tal pedra, então há algo que Deus não poderia fazer – não poderia levantar a pedra;

 

2) se a resposta for “não”, há algo que Deus não poderia fazer – não poderia criar tal pedra.

 

Em qualquer caso, a razão se vê diante de uma antinomia ao tentar elucidar a onipotência de Deus. Em qualquer caso, há algo que Deus não poderia fazer. Segue-se que há coisas que nenhum Deus pode fazer; nem ele nem qualquer outro ser (já que podemos substituir o signo “Deus” por qualquer outro) poderia ser onipotente. Se a onipotência designa a capacidade para fazer qualquer coisa, tudo, então há um argumento mais simples a favor da ideia de que não pode haver um ser onipotente. Bastaria dizer que nenhum ser, nem mesmo Deus, poderia criar um círculo quadrado, ou um número inteiro par maior que dois e menor que quatro. Como, logicamente, não pode haver tais coisas, então não poderia haver um ser que as pudesse fazer. Tomás de Aquino tentou invalidar esse aspecto do argumento alegando que a onipotência exige a capacidade para desempenhar tarefas logicamente possíveis. Criar um círculo quadrado sequer é uma tarefa, dada a contradição evidente que carreia. No entanto, o esforço de São Tomás para salvar a onipotência divina reforça o argumento de que o poder de Deus está submetido ao poder regulador da lógica humana. O argumento da pedra, todavia, pode facilmente especificar uma tarefa. Basta reformular a questão assim: poderia Deus criar uma pedra de betume tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la?

Se é impossível mudar o passado, a onipotência deve excluir de seu domínio semântico a possibilidade de mudar o que aconteceu. Se Deus não pode mudar o passado, ele tem limites; portanto, não pode ser onipotente.

  

3.2. A impossibilidade da onisciência

 

Diz-se que Deus é onisciente na medida em que é um ser capaz de conhecer tudo o que é conhecível ou tudo o que pode ser conhecido. A onisciência de Deus inclui a presciência: ele é capaz de saber o que vai acontecer no futuro.

Há, contudo, várias dificuldades na onisciência que resultam de diferentes tipos de conhecimento. Outra ordem de dificuldades provém das mais sofisticadas descobertas da lógica contemporânea e da teoria dos conjuntos. Vou-me deter apenas nas dificuldades que resultam das diferentes maneiras de definir o conhecimento.

Quando falamos de conhecimento, podemos tomá-lo no sentido de:

 

1) conhecimento proposicional (saber que x é verdade)

 

2) saber como se faz algo (knowhow) (saber andar de bicicleta)

 

3) conhecimento de coisas e sentimentos por contato (eu sei o que é estar magoado).

 

Se Deus é onisciente, ele o é nas três acepções. Relativamente a 1), Deus, mesmo que detenha todo o conhecimento proposicional possível, não tem o saber como descobrir o conhecimento proposicional que não tem. Relativamente a 2), se Deus não tem corpo, já que é um ser incorpóreo, não pode saber fazer malabarismos, não pode saber o que é ter sensações. Relativamente a 3), Deus, não tendo imperfeições morais, não pode conhecer a luxúria, a inveja. Porque é perfeito, não pode conhecer o medo, a frustração nem o desespero.

Deus, não tendo ignorância, porque supostamente onisciente, não poderia conhecer o que é ignorância. Logo, não pode haver qualquer ser onisciente.

 

 

 

 

3.3. A impossibilidade de atributos combinados

 

Quando consideramos a relação entre os atributos de Deus, as ilogicidades são igualmente evidentes. Tomemos, em primeiro lugar, a combinação do atributo “criador livre” com o atributo da “onisciência”. O Catecismo diz que Deus é o Criador que mantém e sustenta a criação – “Deus cria livremente do nada” (p. 88). Deus dá o ser e a existência a sua criatura (o mundo todo existente) e “a sustenta a todo instante no ser” (p. 90). Seria a liberdade de Deus compatível com sua onisciência? A resposta é não. Não se pode fazer uma escolha livre entre A e B, se se souber com completa certeza antecipadamente que se toma o curso de ação A. Nesse caso, uma vez que um Deus onisciente saberia antecipadamente (e desde toda a eternidade) todas as ações que levaria a cabo, não pode haver qualquer momento no qual Deus possa fazer uma escolha genuína.

Vejamos agora se a onipotência é compatível com a perfeição moral. Um ser pode ser onipotente e, ao mesmo tempo, incapaz de fazer o mal, de pecar? Ora, se Deus não pode agir imoralmente (há algo que ele não pode fazer), é-lhe impossível enfrentar quaisquer escolhas morais genuínas. Deus não pode ser louvado por fazer escolhas corretas, e se Deus não é moralmente louvável, dificilmente se pode considerá-lo moralmente perfeito. A perfeição moral parece excluir precisamente a possibilidade da escolha entre o bem e o mal, que a perfeição moral exige.

Quando tomamos a intemporalidade e a imutabilidade de Deus conjuntamente com a onisciência, encontramos novas inconsistências. A intemporalidade e a imutabilidade são atributos inconsistentes com a onisciência relativamente a fatos conhecíveis apenas num momento particular do tempo; e a imutabilidade, em particular, é incompatível com a noção de um Deus criador, já que, ao criar, Deus muda seu estado de não-criador (que existia juntamente com o nada) num tempo t para criador num tempo t’, com todos os encargos e compromissos que este estado implica.

 

3.4. Contradições da Criação

 

 

Como um Deus, definido como imaterial, puro espírito, infinito e perfeito, poderia ter criado um mundo material imperfeito?

Lucrécio ensinou que, se os Deuses são perfeitos e se, ipso facto, encerram em si mesmos todas as realidades possíveis, como conceber uma realidade que ainda não existia antes da criação? Vamos esclarecer aqui os conceitos teológicos que estão implicados nesta etapa da argumentação. No sentido teológico, o infinito é aquilo que, para ser, não precisa de outro, sendo então ilimitado potência de ser. Assim, a infinidade de Deus consiste na ideia de que Deus não é limitado por nada em sua potência de ser, Deus não depende de nada além de si para ser. Deus é infinito porque sua natureza transcende todo e qualquer grau de perfeição. Perfeição significa aqui que Deus é a totalidade do Ser. A perfeição de Deus repousa na crença de que Deus possui totalmente o ser. Deus e o ser é o mesmo. Se Deus é sumamente perfeito, de nada carece, já que ele encerra todas as realidades possíveis, como lembra Lucrécio. Se Deus é o infinito em ato, nenhuma produção suplementar de existência será possível. Logo, a Criação é impossível.

No entanto, se Deus tem necessidade da Criação, ele é imperfeito porque tem necessidade. E toda necessidade é uma carência. Se Deus criou por suberabundância de amor, por que Deus ofereceu um mundo tão repleto de males e sofrimentos? Toda criação é, por natureza, finita; portanto, é imperfeita relativamente ao infinito (Deus). Como o infinito (Deus) conseguiu produzir o finito (inferior)? Se a perfeição conseguiu tão facilmente se degradar, é porque ela era imperfeita.

Se Deus é puro espírito, como produziu a matéria? Ora, de modo geral, os filósofos definiram a matéria (hýle) como substância comum aos corpos. Por abstração, a matéria significa também a realidade sensível de que são feitas todas as coisas. Segundo Aristóteles, a matéria é phýsis (natureza), o universal do movimento e da mudança. É o ser em potência, que deve passar ao ato ao receber a forma (eidos). Tanto para Descartes quanto para Espinosa, matéria é extensão. É uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. Suas características principais são a divisibilidade e impenetrabilidade.  Matéria é o corpóreo, o sensível. Recobre a totalidade de tudo que existe no universo. Na física moderna, a matéria é granular, quando considerada em sua profundidade; é um aglomerado de átomos e está em constante movimento. É a própria energia. A matéria que tocamos e sentimos é, na verdade, uma imensa quantidade de energia “comprimida”. A energia é, portanto, a substância da qual todas as coisas são feitas, incluindo todas as partículas elementares, os átomos e as quatro partículas estáveis no mundo atômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Os físicos atualmente assumem a existência de um imenso oceano de partículas nucleares chamadas hádrons, as quais se decompõem em partículas menores: os quarks (que, no entanto, nunca foram observados). Em suma, o mundo é matéria em movimento, porque não existe matéria sem movimento e nem movimento sem matéria (Schöpke, 2009).

Tendo criado a matéria, que relações ela tem com Deus, o seu Criador? Se ela é independente dele, Deus deixa de ser onipotente e infinito: torna-se finito, limitado pela criação. Se a matéria é uma emanação da substância de Deus, então Deus tem de assumir a sua materialidade, a finitude e os seus defeitos. Se Deus criou a matéria, o fez porque sentiu-se carecido dela. Mas, nesse caso, Deus não é perfeito ou a materialidade sempre fez parte da perfeição. Vale lembrar que Plotino tentou resolver esse problema, de modo bastante insatisfatório, distinguindo a matéria inteligível, que é divina e eterna, da matéria sensível, que não tem essas qualidades. Na qualidade de substratum (hypokeímenon) físico, a matéria é o não-ser e, assim, ela é o mal.

 

3.5.  A impossibilidade divina

 

O filósofo Carnéades de Cirene notou que o conceito de Deus teísta é intrinsecamente contraditório. Como é impossível existir uma contradição de si mesmo, concluiu pela impossibilidade da existência de Deus. Para Carnéades, Deus não pode ser onipotente e também virtuoso, porque onipotência supõe um estado de eterna perfeição, mas virtude moral supõe imperfeição superada. Assim, por exemplo, a coragem é a virtude que consiste em dominar o medo em face de uma situação perigosa. Que sentido há em dizer que um Deus Todo-Poderoso, que presumivelmente, nada teme, já esteve em uma circunstância tal em que pudesse praticar a virtude da coragem? Se tomamos a alegação teísta segundo a qual Deus é onipotente e onisciente, podemos mostrar que tais atributos são inconsistentes entre si, alegando que, se Deus é onisciente, é capaz de antever tudo, inclusive seus atos futuros. Mas, sendo onipotente também, Deus pode anular tudo, tornando incertas todas as suas previsões, inclusive as previsões sobre seu próprio comportamento.

 

A título de conclusão, parece-me certo dizer que o conceito de Deus teísta, na medida em que se inscreve na história do pensamento ocidental como signo do divino submetido à razão discursiva, herda as tendências irracionais da própria razão. A suposta onipotência de Deus é frágil em face das contradições em que se vê enredada a razão humana, prova de que Deus não é senão um complexo de imagens hipostasiadas do pensamento imaginativo humano, cujo caráter selvagem a razão em si mesma não consegue domar. Como bem escreve Verret (1975, p. 58):

 

“O metafísico idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí com mais acuidade, dentro de seu pensamento. Define Deus segundo critérios da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a infinidade, a perfeição etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem contradições supostas não consegue pensar, senão ao preço da contradição! A contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é pura ideia, toda contradição na ideia de Deus recai em Deus”.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Catecismo da Igreja Catótilca. São Paulo: Loyola, 2000.

 

FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

 

GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichka; BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

MCKENZIE, Stven L. Como ler a Bíblia: História, profecia ou literatura. São Paulo: Edições Rosari, 2007.

 

SCHÖPKE, Regina. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009

 

SEIFE, Charles. Alfa e Ômega: a buscado pelo início e o fim do Universo. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

TRIGUEIRO, Edmac. História do Universo. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.

 

VERRET, Michel. Os marxistas e a religião. Lisboa: Prelo, 1975.

 

 

WALTERS, Kerry. Ateísmo: um guia para crentes e não crentes. São Paulo: Paulinas, 2015.