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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia" (Cioran)



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A disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica: natureza e diferenças



1. As disposições afetivas trágica e pessimista


O conceito de afeto, tanto quanto o de disposição, cumprirá um papel importante no horizonte hermenêutico em que se inscreve este texto. Afeto é um conceito que encontramos na Ética de Spinoza. Nesse livro, afeto relaciona-se a pathos (paixão) e recobre a ideia de aquilo que nos põe em movimento, em relação com o mundo[1]. O afeto descreve certo modo de relação que estabelecemos com o mundo. Afeto “é, ao mesmo tempo, o sentimento e a impressão que causamos nos outros e o que os outros causam em nós” (Schöpke, 2010, p. 16). A categoria de afeto cumprirá a função de um dispositivo de interpretação com o qual buscaremos compreender as filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche como exercícios espirituais destinados a cunhar dois tipos vitais humanos radicalmente distintos.
O conceito de disposição, por seu turno, encontra registro na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesse livro, disposições se definem como “estados de caráter formados devido aos quais estamos bem ou mal dispostos em relação às paixões”[2]. Como no excerto aristotélico a “disposição” se define como ‘estados do caráter’, e o caráter, para os gregos, combina entre si os aspectos psicológico e moral, buscamos em Jung uma definição de disposição que não abriga em seu campo intensional qualquer referência à moral. A definição proposta por Jung tem a vantagem de ser descritivamente adequada à compreensão do que entendemos por disposição afetiva. Para Jung, “disposição é uma propensão da psique para realizar algo determinado, para agir e reagir em determinada direção. (...) Pode-se definir disposição como uma ordenação – quer inata quer resultante da experiência – dos elementos orgânicos ou dos elementos mentais, ou de ambos”. (ênfase nossa).[3] Duas “fatias” do significado de disposição nos interessam para efeito de aplicação à proposta interpretativa em curso neste trabalho: propensão para e ordenação. Tendo em conta a compreensão jungiana de disposição como propensão para e ordenação dos elementos orgânicos quer inatamente fixada, quer decorrente da experiência, propomos subsumir o conceito de disposição no de destino. Mas destino não deverá ser entendido como ‘poder mais ou menos personificado que determina de modo irremediável o curso dos acontecimentos’. Ao tomar disposição como destino, aproveitamos as noções de propensão para e ordenação orgânico-mental, para construir dois significados que se fundem no conceito de destino: 1) como destino, a disposição caracteriza certo modo de estar afetado pelo enviar-se, pelo destinar-se da vida, cuja dinâmica de forças produz tais ou quais efeitos psicofisiológicos sobre um corpo vital humano; 2) como destino, a disposição não está sob o nosso controle, no sentido de que não escolhemos ser constituído psicofisiologicamente de tal ou qual modo[4].
Vale dizer que do fato de que não escolhemos a disposição que nos constitui não resulta que seja ela absolutamente inalterável. Não obstante, a alteração de uma disposição não depende de um ato deliberativo da vontade. Para que a alteração da disposição se dê, necessário é que o enviar-se da dinâmica da vida nos afete de modo diferente, que as conformações do enviar-se da vida modifiquem a estrutura afetiva de nosso corpo.
Entenderemos, portanto, por disposição afetiva um modo de ordenação dos afetos que nos predispõem, que nos fazem propensos a sentir e a perceber o mundo em consonância com o modo como o destinar-se da dinâmica da vida nos afeta e incide sobre nós, vale dizer, sobre nosso corpo, enquanto totalidade psicofisiológica.
Crendo esteja esclarecido o conceito de disposição afetiva, vamo-nos debruçar sobre a apresentação das características distintivas, das quais nos dá testemunho Rosset (1989), das visões pessimista e trágica. O esclarecimento dessas características deverá contribuir para que não se confundam as duas visões de mundo, muito embora elas não se diferenciem absolutamente. Conquanto seja pertinente, do ponto de vista teórico e metodológico, a maneira como Rosset as diferencia, no que nos diz respeito, será mais importante sublinhar a forma distinta como as duas disposições afetivas – a disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica – respondem aos dois pressupostos básicos, os quais as cosmovisões pessimista e trágica compartilham entre si:

1º pp. uma produção enunciativa sobre o pior;
2º pp. o reconhecimento da inerência do sofrimento ou da dor à dinâmica da vida.

Em outras palavras, tanto a cosmovisão pessimista quanto a cosmovisão trágica concordam em que: 1) é possível desenvolver um pensamento do pior; 2) a dor ou o sofrimento são experiências inerentes à dinâmica da vida.
Doravante, lancemos olhares sobre o modo como Rosset nos apresenta a distinção entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista. Rosset começa por notar que subjaz a todo pensamento filosófico um desejo; esse desejo reside na origem da filosofia. No caso particular da filosofia trágica, o filósofo é movido por algo que “quer o trágico”. Nietzsche é uma expressão paradigmática desse querer, pois seu querer assume a forma de um “sim” incondicional à vida. Não cabe aqui esclarecer o que significa, para Nietzsche, dizer sim incondicionalmente à vida. É forçoso protelar o tratamento desse ponto para que não nos desviemos demais do objetivo a que visamos nesta seção, qual seja, o de dilucidar a diferença entre as disposições afetivas pessimista e trágica. Não deixaremos, no entanto, de tecer considerações esclarecedoras no que toca ao caráter incondicionalmente afirmativo da filosofia trágica de Nietzsche.
Rosset prossegue afirmando que “a intenção trágica [sic.] não é comandada por uma visão pessimista do mundo”. (Rosset, 1989, p. 19). Disso não resulta que o pensamento trágico não seja expressão de uma visão de mundo “mais pessimista que qualquer pessimismo”. (ibid.). O que o pensamento trágico produz é uma interpretação deveras pessimista do real, mas essa interpretação não se encaminha no sentido da desaprovação do mundo, muito pelo contrário. O pensamento trágico, a despeito de pôr a nu o caráter doloroso da existência, a miséria da condição humana, a inexorabilidade do destino humano que, posto sob a consciência crítica, se revela irracional, sustentará uma aprovação jubilosa da existência.
Rosset se refere a duas diferenças maiores entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: a diferença de conteúdo e a diferença de intenção. Do ponto de vista da diferença de conteúdo, o pessimista supõe a existência de uma natureza, do ser, de uma ordem do real, a qual considerará má e insatisfatória. É nesse sentido que o pessimista afirma o pior. O pessimismo realça e condena a incoerência do já ordenado: o mundo deve ser desaprovado, porque sua ordem é má. Para Rosset, a filosofia pessimista é uma filosofia que, assumindo o ‘dado’, ou seja, o mundo já ordenado, dotado de uma “natureza” (essência), reputá-lo-á mau, tenebroso, um erro que não deveria ser. Por outro lado, o pensamento trágico, negando a existência do ‘dado’, isto é, do mundo ordenado, se constitui num pensamento do acaso. Nas palavras de Rosset,


Não somente o pessimista não acede ao tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo pessimismo, assim como a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico. O mundo do pessimista está constituído de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se escapa”. O mundo trágico não foi constituído; donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais” (...). (ibid. p. 20, ênfases no original).


Ainda segundo o autor, não é nem o humor, nem o afeto que distinguem entre os dois pensamentos. O pensador trágico e o pensador pessimista encontram-se em igualdade de humor e afetos.
Se não são os afetos nem o humor que estão na base da diferenciação entre o pensamento trágico e o pessimista, em que termos se deve expressar tal diferença? Do que se expôs, fica claro que a filosofia trágica e a filosofia pessimista se diferenciam relativamente à afirmação ou à recusa de uma ordem do mundo já dada. O pensamento trágico a recusa; o pensamento pessimista a supõe e afirma a irracionalidade dessa ordem dada. Assim, para o pensador pessimista, o que existe não é objeto adequado para o pensamento. Segundo Rosset, o pensamento pessimista é a grande filosofia do ‘dado’, isto é, a filosofia pessimista assume a existência de um mundo já ordenado, cuja natureza é má. O pessimismo filosófico, na medida em que é uma filosofia do ‘dado’ enquanto já ordenado, coincide com a filosofia do absurdo.
Deveríamos concluir do que precede que a categoria do absurdo é um traço distintivo importante na caracterização dos pensamentos pessimista e trágico? Será que estamos autorizados a dizer, a partir de Rosset, que a filosofia trágica nega a absurdidade da existência? Uma tal conclusão é autorizada por Rosset, consoante podemos ler no seguinte passo:



Esta filosofia do absurdo [a filosofia pessimista] não é tanto contrária ao pensamento trágico quanto sem relações com ele. Trata-se aí, com efeito, de uma absurdidade segunda, condicionada, que se sustenta no sentido uma vez constituído: mostra-se que os “sentidos” apresentados pelo mundo existente recobrem outro tanto de não-sentido em relação a tudo aquilo que o homem se pode representar em matéria de finalidade”. (ibid., p. 22-23, ênfase no original).


Devemos, pois, reter que o pensamento pessimista, porquanto supõe a existência de um mundo já ordenado, pressupõe que esse ordenamento está investido de um sentido já constituído. Mas esse sentido já constituído pelo fato mesmo de haver ‘ordem’, uma natureza do mundo, se imiscui com uma vasta facha de sem-sentido. Em outras palavras, por mais que o homem possa “ver” uma ordem teleologicamente constituída no mundo, há sempre uma grande parte dessa ordem que se mostra desprovida de qualquer sentido.
Para o pensador pessimista, o absurdo está aí, já constituído, já instalado nas formas como o sem-sentido irrompe na malha do sentido, de tal modo que o pretenso sentido da ordem do mundo não elide as tribulações do sem-sentido, sempre persistente e perturbador daquela ordem. Destarte, o pensamento pessimista, seguindo a compreensão que tem dele Rosset, assume um sentido dado, a partir do qual esse pensamento explorará a fragilidade, a insuficiência desse sentido. O pensador pessimista denuncia o caráter insensato da ordem ontológica vigente. A ordem do mundo, no entanto, vige, mesmo que se apresente como desordem, como absurda (isto é, sem sentido).
Por seu turno, o pensamento trágico afirma a inexistência de um sentido já dado, mesmo que o mais absurdo. O pensador trágico sustenta a insignificância de tudo. Sendo afirmação do acaso, o pensamento trágico “é não somente sem relações com a filosofia do absurdo, como ainda é incapaz de reconhecer o menor não-sentido; o acaso sendo, por definição, aquilo a que nada pode desobedecer”. (ibid., p. 23, grifos nossos).
Consideremos, agora, a diferença entre a filosofia pessimista e a filosofia trágica do ponto de vista da intenção. Em consonância com esse ponto de vista, a sabedoria pessimista se caracteriza pela constatação, resignação e sublimação mais ou menos compensatória. A sabedoria trágica, por outro lado, recusa a constatação, ou, melhor ainda, se orienta pela impossibilidade de constatação. Tampouco é uma sabedoria que se erige “ao abrigo da ilusão” (ibid.). Também não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid.). Segundo Rosset, o pensamento trágico busca “uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo”. (ib.id.). Façamos eco às palavras de Pascal, embebidas na loucura jubilosa do homem trágico, que cai no abismo dançando: “Nós somos tão necessariamente loucos que seria estar louco por uma outra espécie de loucura, não estar louco”. (...) “Alegria, alegria, lágrimas de alegria”. (apud. Rosset, p. 23-24).
Em que medida as considerações de Rosset sobre a diferença entre a sabedoria trágica e a sabedoria pessimista ajudam-nos a determinar a orientação diversa, não coincidente, das disposições afetivas a que já aludimos? Da compreensão de Rosset da diferença entre as duas sabedorias, colheremos as noções de acaso e absurdo, aprovação incondicional e desaprovação.
Em consonância com a lição de Rosset, diremos que a disposição afetiva trágica afirma e/ou celebra o júbilo na insignificância radical da existência, a coragem no enfrentamento do caráter deveniente da vida, a qual se revela como fluxo incessante que arrasta tudo que existe para o aniquilamento. A disposição afetiva trágica sustenta a aprovação jubilosa da existência.
A disposição afetiva pessimista, por sua vez, é movida pela resignação em face da crueldade do real, pela constatação do caráter insatisfatório, absurdo e aterrador da existência. A resignação pessimista pode vir acompanhada de uma proposta compensatória ou consoladora, animada, no entanto, pela negação da vida sem concessão, pela recusa da existência como irremediavelmente má, pela desaprovação da ordem do mundo considerada como desprovida de qualquer sentido último.
Acresce-se que as duas disposições afetivas afirmam o desespero, mas o fazem em sentidos diversos: a disposição afetiva trágica afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é. Para a disposição afetiva trágica, o devir, que caracteriza a impermanência de todas as coisas, que torna todas as coisas destituídas de densidade ontológica, não constitui razão para a negação do mundo. Por isso, o pensador trágico dará sua aquiescência ao fluxo incessante, ao destinar-se inexorável de tudo que existe ao aniquilamento. Um exemplo desse espírito trágico está muito claramente sumariado no seguinte trecho de Ecce Homo (2013, p. 107-108):



A afirmação do fluir e da destruição, elemento decisivo numa filosofia dionisíaca; o dizer “sim” à contradição e à guerra; o devir, com uma recusa radical do próprio conceito de “ser”- nisso tenho de reconhecer, em qualquer circunstância, o que está mais próximo de mim dentre o que até agora se tem pensado.



Consoante afirma Rosset (2000, p. 35), a sabedoria trágica enuncia “(...) uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real”.
A disposição afetiva pessimista afirma o desespero como desesperança desorientadora, quanto à possibilidade de encontrar qualquer sentido último para a existência. Esse desespero aterrador inspira no espírito pessimista o pensamento de recusa do real tal como é, ao mesmo tempo em que lhe inspira a força com que denuncia o caráter insatisfatório, contraditório e mau da existência. O desespero pessimista orienta-se sempre no sentido da negação do mundo: desespero-me de buscar um sentido para a existência – diz o pessimista -, logo a existência é um inconveniente, um desastre, um acontecimento absurdo ao qual só posso dar minha desaprovação. A lenda do rei Midas, relatada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, e referida antes por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, merece ser evocada aqui como um exemplo paradigmático do espírito pessimista, vale dizer, da negação da existência que caracteriza fundamentalmente o pensamento pessimista. Escreve Nietzsche:



(...) Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (Nietzsche, 2007, p. 33).


       
             2. A influência de Schopenhauer na formação do pensamento de Nietzsche


Escapa à alçada desta exposição discorrer em pormenores sobre a influência que a filosofia de Schopenhauer exerceu sobre o pensamento de Nietzsche. Nosso intento é mais modesto: queremos apenas assinalá-la de tal modo, que se torne possível o conhecimento da dívida que o pensamento de Nietzsche tem, sobretudo nos anos de juventude desse autor, para com a filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia de Schopenhauer sobre a formação do pensamento nietzschiano não deve ser interpretada de modo reducionista como a presença de marcas, de “pegadas” schopenhauerianas que sinalizam uma reapropriação e ressignificação pelo pensamento de Nietzsche de domínios de significado do pensamento de Schopenhauer. A influência se deixa ver também nos pontos claros de desacordo entre esses dois filósofos, na insistência com que Nietzsche cita Schopenhauer para censurá-lo, para marcar os pontos de discordância entre seu pensamento (de Nietzsche) e o pensamento desse filósofo pessimista.  Assim, a marca de influência de um pensador e/ou autor sobre outro se deixa ver não apenas nos rastros de continuidade que podemos identificar, mas também nos rastos de ruptura, de dissensão entre os dois pensamentos.
A descoberta da filosofia de Schopenhauer por Nietzsche se dá quando da leitura que este faz do livro O Mundo como Vontade e Representação. Àquela altura, Nietzsche frequentava os cursos de filologia do professor Ritschl, mestre a quem acompanha ingressando na universidade de Leipzig, em 1865.
Na leitura de O Mundo (publicado em 1819), Nietzsche se dá conta do sentido filosófico da tragédia. Ele não deixa de se admirar da concepção schopenhaueriana de mundo como manifestação de uma Vontade cega, sem finalidade e irracional. Em grande medida, é na filosofia schopenhaueriana que Nietzsche encontrará a matriz de sua metafísica trágica[5]. Consoante Rosset (1989), essa visão trágica já se deixa ver no pensamento schopenhaueriano. Recorde-se que a Vontade em Schopenhauer é o fundamento sem fundamento da existência. Essa “verdade trágica” será radicalizada por Nietzsche na elaboração de sua experiência dionisíaca de mundo, “cuja descoberta não suportaríamos sem o socorro da arte e das aparências”. (Rocha, 2003, p. 46).
O leitor familiarizado com o pensamento nietzschiano pode discordar – não sem razão – de que haja uma metafísica em Nietzsche. É verdade que um pensamento que toma o mundo como destituído de ser é ele mesmo antimetafísico. Não resta dúvida, portanto, de que “[a] concepção de existência como desprovida de ser atravessa toda a obra de Nietzsche”. (Rocha, 2003, p. 45). Não obstante, em O Nascimento da Tragédia, obra que se situa entre os escritos de juventude de Nietzsche e onde é mais flagrante a influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, há uma concepção metafísica que se expressa na admissão de uma essência dionisíaca subjacente às aparências. Todavia, nota Rocha (ibid.), essa essência não deve ser tomada como fundamento do mundo, “mas, ao contrário, é uma instância privada de toda medida e inteligibilidade”. Se a filosofia do jovem Nietzsche pode ser considerada “metafísica”, isso se deve à preservação do horizonte de interpretação do mundo à luz do qual este é explicado a partir da postulação de uma instância subjacente às aparências. Não obstante, a metafísica que aí se afigura é “intrinsecamente paradoxal, já que esta instância é desprovida de todos os atributos que se supõem caracterizarem uma essência”. (p. 46). Paradoxal ou não essa metafísica, deixando de lado as sutilezas semânticas envolvidas nos termos linguísticos que entram a fazer parte da discussão, acreditamos que, sob a influência schopenhaueriana, a esta altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, ainda está presente o dualismo ‘aparência x essência’ que caracteriza o modo de pensar metafísico (dualismo que Nietzsche tratará de superar ao longo da produção posterior de sua obra).
A influência de Schopenhauer sobre o pensamento de Nietzsche não se reduz à apropriação que este faz do termo Vontade, cujo conceito divergirá, no entanto, completamente do conceito schopenhaueriano de Vontade. Nietzsche admirou Schopenhauer por ter este produzido um pensamento superior, que nada devia às influências de poder. A admiração nietzschiana por Schopenhauer é de tal vulto que a este um texto é dedicado. A terceira consideração intempestiva, que recebe o título Schopenhauer Educador, é um elogio ao filósofo de Dantzig, reputado por Nietzsche como um filósofo exemplar, que representou o modelo de homem lúcido, altivo e idealista, capaz de subverter as convenções e de lançar por terra as ilusões ao abrigo das quais a maioria dos homens vive. O trecho a seguir nos dá testemunho do tom elogioso com que Nietzsche fala de Schopenhauer:



O que eu relato é somente a primeira impressão, de algum modo fisiológica, que sobre mim produz Schopenhauer (...). Ele é probo porque fala e escreve para si mesmo; é alegre porque conquistou pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode não sê-lo. Sua força cresce vigorosamente e sem esforço, como uma chama no ar calmo, segura de si, sem tremular, sem inquietude”. (Nietzsche, 2008, p. 29-30).


Outro ponto de aproximação entre Nietzsche e Schopenhauer reside no reconhecimento de que ambos os filósofos conceberam a Vontade como constitutiva tanto do homem quanto da existência em geral, fora de uma perspectiva espiritualista. Ainda que sejam inegáveis as diferenças que se deixam ver quando cotejamos entre si os pensamentos desses dois filósofos, é igualmente inegável que ambos se notabilizaram como grandes perscrutadores da existência, “do fundo sombrio e doloroso da vida”. (Brum, 1998, p. 18).




2.1. Diferenças fundamentais entre a filosofia de Nietzsche e a de Schopenhauer


O pensamento de Nietzsche se pretende afirmador de uma única verdade: a verdade trágica, a qual, por sua vez, esteia-se na afirmação da inexistência do Ser. A afirmação da inexistência do Ser faz da filosofia de Nietzsche uma negação da metafísica, a saber, uma antimetafísica que ensina a inexistência de um fundamento que confere sentido e finalidade à existência.
O pessimismo de Schopenhauer, considerando como absurdo o mundo, que é espelho de uma Vontade obscura e inconsciente, oferece como saída para uma existência intrinsecamente dolorosa - a negação da vontade. Nietzsche, ao contrário, embora também considere o sofrimento como o fundo da existência, oferece a possibilidade de uma afirmação da vida no tempo. Nietzsche é aqui o antípoda de Schopenhauer. Para Nietzsche, “o homem trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto”. (Nietzsche, 2011a, § 483).
Ainda que Schopenhauer explique o sofrimento, a dinâmica dolorosa da vida como um efeito necessário da afirmação do querer-viver, ele continua vinculado ao horizonte de compreensão cristã do mundo, à luz do qual o sofrimento torna a vida indesejável, uma experiência da qual devemos querer escapar, uma experiência que, maculada pela dor e sofrimento, a vontade deve recusar. A filosofia experimental de Nietzsche, por outro lado, “quer antes penetrar até o contrário, até o dionisíaco sim do mundo, tal qual é, sem desfalque, sem exceção e sem escolha, quer o eterno movimento circular: as mesmas coisas, a mesma lógica e o mesmo ilogicismo do encadeamento”. (Nietzsche, 2011a, § 476).
Contra o pessimismo schopenhaueriano, que vê a vida como uma catástrofe, um erro que não deveria ser, Nietzsche oferece seu dionisíaco sim à existência: “Estado superior que o filósofo pode atingir: ser dionisíaco em face da existência. Minha fórmula para tanto é o amor fati”. (ib.id.).
Nietzsche não se limita, como faz Schopenhauer, a admitir o caráter doloroso da existência como uma necessidade (Schopenhauer, aliás, o admite para, em seguida, oferecer uma fuga). Nietzsche o considera não só necessário, como também desejável, “como o lado mais potente, o mais fértil, o mais verdadeiro da existência” (ibid.). Schopenhauer ainda se movimenta num horizonte hermenêutico de justificação do mal, do sofrimento. Nietzsche, ao contrário, afirma o “pessimismo da força”, segundo o qual “o homem agora não tem mais necessidade de justificação do mal”; ele “condena precisamente a justificação: usufrui do mal puro e cru, acha o mal sem razão mais interessante”. (Nietzsche, 2011, § 461).  Nietzsche ousa ainda mostrar a radicalidade de sua transvaloração: é o bem que precisa ser justificado, que “precisa possuir um fundo mau e perigoso” (ibid.), sob pena de ser “uma grande tolice”.
Schopenhauer se movimenta ainda num horizonte de compreensão metafísica do mundo: ele busca o incondicional em face do condicional, a saber, seu pensamento opera segundo a crença em que o que é relativo (o mundo fenomênico) deve repousar sobre o absoluto (a Vontade como coisa-em-si). Schopenhauer é um herdeiro da tradição metafísica ocidental, na medida em que explica o devir, a impermanência, recorrendo à coisa-em-si, ao Ser.
Nada mais estranho ao pensamento de Nietzsche do que esse modo de pensar o real. Para Nietzsche, o mundo carece de substancialidade; o mundo é um fluxo de forças agonístico. Só existe o mundo do devir, caracterizado pela dinâmica agonística das vontades de poder: “o mundo – escreve Nietzsche – não é absolutamente um organismo; é o caos”. (ibid., § 316).
A filosofia de Nietzsche pode ser entendida como uma ontologia negativa[6], porquanto pensa o mundo como desprovido de Ser.  Na tradição, o ser se diz daquilo que é necessário em contraste com o que é apenas contingente; o ser se diz também daquilo que permanece idêntico a si mesmo e que, por isso, serve de suporte ao devir (o ser se diz substrato do devir); finalmente, o ser designa o que é em si mesmo e para si mesmo, independentemente do aparecer dos entes. Ora, a metafísica baseia-se no mecanismo de duplicação do real, o qual consiste em superpor ao mundo sensível, deveniente, o mundo inteligível, da necessidade e da permanência. Assim, em toda metafísica, a aparência só “é” na medida em que é suportada por uma essência da qual toma seu ser e a qual lhe dá consistência ontológica.
É precisamente essa duplicação do real em mundo sensível e mundo do Ser que Nietzsche rejeita. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, antiplatônico, antimetafísico. Nietzsche recusa um tal desdobramento metafísico do mundo. Mesmo quando ele fala em “essência”, ela se esgota no seu aparecer. Em suma, como metafísica negativa, o pensamento de Nietzsche nega:

1)       A hipótese de que há um mundo sensível e que esse mundo é expressão de uma essência;
2)       O fluxo do devir como manifestação do Ser;
3)       O mundo sensível como uma duplicação do mundo suprassensível;
4)       Que as interpretações sejam a representação de um mundo previamente constituído.

Cumpre acrescentar que, se Nietzsche rejeita a existência do mundo suprassensível – chamado por ele de mundo-verdade -, o faz não por uma razão teórica, visto que a inexistência desse mundo não pode ser demonstrada, mas por razões práticas. Nietzsche rejeita a existência do mundo verdade (mundo das Essências imutáveis) pelas consequências que a crença nesse mundo acarreta: o niilismo e a condenação da vida, a qual é desvalorizada em favor da vida além-mundo, em favor do mundo suprassensível, o qual realizaria a verdadeira vida (como creem, por exemplo, os cristãos). A crítica nietzschiana à metafísica açambarca uma crítica à moral, à religião e ao racionalismo, os quais são entendidos como expressão da crença em um mundo-verdade. Aqui é oportuno lembrar que Nietzsche também criticará o que chama de “vontade de verdade” que está na raiz da crença de que o mundo tem um sentido já dado, que cabe ao homem tão-só descobrir.



[1] Por afetos, entende Espinosa (2011, p. 98) “as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”.  O afeto se distingue da paixão pela possibilidade de podermos, no caso do afeto, nos conceber como a causa de uma afecção.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru: SP, 2013, p. 74.
[3] CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 87.
[4] Nada obsta a que a disposição possa ser pensada à luz do registro do ser espinosista como recoberto pela dinâmica dos encontros, pelas relações entre os corpos, pela dinâmica relacional caracterizada por encontros potencializadores ou despontencializadores de meu corpo com outros corpos. Nessa perspectiva teórica, a disposição afetiva poderia ser pensada como uma espécie de ‘marca’ piscofisiológica resultante da forma como se dão aqueles encontros.
[5] Conforme ficará claro adiante, a “metafísica trágica” caracteriza um momento do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche: em uma palavra, o período em que vem a lume O Nascimento da Tragédia, obra onde a influência schopenhaueriana é flagrante. A esse respeito, Rocha (ibid.) faz uma observação que suprime qualquer margem de dúvida quanto ao domínio de referência a que se aplica o emprego do termo metafísica quando se fala de Nietzsche: “(...) podemos considerar que o termo metafísica deve ser entendido aqui de um modo muito particular: se o que o define é a concepção de uma essência subjacente às aparências, então a obra do jovem Nietzsche é efetivamente metafísica. Mas se o que define é a crença em um fundamento ou uma razão para a existência, então a filosofia de Nietzsche é desde o início rigorosamente antimetafísica”.
[6] Seguindo aqui a interpretação de Rocha (ibid., p. 44).




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           REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




             CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006.


            NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo: Escala, 2008.

___________________. Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.



___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013b.

ROCHA, Silvia. P.V. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SPINOZA, Ética. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2011.