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quinta-feira, 5 de março de 2020

"A vida só tem um charme verdadeiro, é o charme do Jogo. Mas se nos é indiferente ganhar ou perder?" (Baudelaire)


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                                     Inquietações empedernidas


Eu tenho horror à mediocridade. Do latim mediocritas.atis, “mediocridade” quer dizer meio, medida e diz-se das pessoas que carecem de talento ou têm pouco valor. Se restava algum receio de que um dia os idiotas viriam a dominar o mundo por se sobressaírem aos demais homo sapiens em quantidade, me parece inegável admitir que os medíocres são suficientemente numerosos para constituírem verdadeiros impérios. A maior parte da humanidade é medíocre – isso me parece estar fora de questão! E os 7,7 bilhões de pessoas que ocupam o globo terrestre são cosmologicamente irrelevantes. Cada novo indivíduo que nasce para integrar esse quantitativo de irrelevância cosmológica é um mero acidente. No entanto, tanto os idiotas, que são, de fato, bastante numerosos, quanto os medíocres, cuja quantidade quiçá seja ainda maior, são ou ineptos demais ou covardes para atingir tal nível de lucidez.

Meu horror à mediocridade como modo de vida se deve ao fato de que o medíocre é como um camelo cuja vida é limitada a carregar carga; no caso dos medíocres, a carga é a da tradição, dos costumes, dos valores e modos de pensar com os quais se habituaram e os quais se limitam a reproduzir por força das condições socioculturais em que nasceram. Como esteja submetida às maneiras comuns como vivem e pensam os indivíduos pertencentes a um grupo ou sociedade, a vida medíocre é uma vida à qual falta uma liberdade mais fundamental: a liberdade do pensamento (e não de pensamento!). Os medíocres podem até se crer livres e podem até o ser do ponto de vista político-jurídico, mas não o são num nível mais elementar, porque vivem e se comportam como membros de rebanhos. Os medíocres são animais de rebanho. Por isso, não é de admirar que se tornem facilmente aduladores de uma personalidade carismática, como a de um líder político, e passem docilmente a defender, com unhas e dentes, essa personalidade, por mais estúpida que ela seja, acreditando estar assim exercendo seu papel como membro de uma comunidade política. Que a política seja inevitável para a garantia da coexistência dos homo sapiens não resta dúvida, mas a política traz em si um grande perigo, qual seja, o de reforçar e animar, com frequência, nossa tendência instintual e primitiva para sermos animais de rebanho. O animal politikón é, naturalmente, um grex animalis. (...)

Meus estudos sobre a obra de Cioran me permitiram compreender melhor esse pensador... Posso dizer, seguramente, que, hoje, compreendo melhor seu pensamento do que há alguns anos. E, mais do que compreender o pensamento de Cioran, encontro-me em ressonância de sentimento com o modo como Cioran sente a vida e experiencia o mundo. Esse místico sem deus recusou qualquer forma de salvação e confessou ter compreendido o Essencial. Tendo atingido tal grau de Lucidez, Cioran deu adeus à filosofia. Não porque teria se tornado sábio, mas porque a filosofia, para ele, tendo procurado dar razão, apresentar justificação, deixou de ter importância. Cioran reconheceu o Insolúvel. Sinto-me mais aparentado ao pensamento cioraniano. Também eu chego à conclusão de que compreendi o Essencial. O Essencial beira o inefável, mas vale o esforço por dar-lhe um investimento verbal. O Essencial significa reconhecer que o nada é primordial, que, por isso, no fundo, tudo é nada, ou seja, o ser é nada. Eros ou a vida se faz; a consciência é derivada.

 

(...)

O poeta que um dia ousei ser está morto. Mas me crer poeta me parece hoje exagerado... uma petulância. Nunca fui verdadeiramente um poeta. Meus poemas são sintomas de uma doença, são abortos de um tempo remoto em que eu cultivava o adoecimento. Estranhamente, porém, tenho saudade desse tempo cadavérico. Eu cultuava o sofrimento, hábito que agora me parece pueril e irrelevante. Quiçá o cultuava porque o sofrimento tinha certo gosto epifânico. O que se me revelava nesse doentio hábito? A estética da profundidade, abismos psicológicos...

Eu sempre nutri uma aversão às vidas superficiais, aos modos de viver das superfícies... Outrora, sentia-me deslocado, descompromissado com minha época, com esta forma histórica da modernidade que a tudo superficializa, que transforma o trivial em produto de consumo, que espetaculariza o cotidiano para o deleite de um rebanho espiritualmente anestesiado (hoje, em face dessa maciça espetacularização da realidade, característica marcante da modernidade tadia, experimento enfado nauseante...). Quando à lembrança me vêm como fumaça os escritos que destilavam tão impertinente lirismo, não consigo esquivar-me de me perguntar o que pretendia eu, tendo sido muito ingênuo – até mesmo ridículo – com eles? Ser compreendido... Talvez, a única pessoa que deveras me compreendeu até hoje tenha sido minha terapeuta... Mas, que importa isso agora? Já não sou mais aquele paciente padecente das misérias de um lirismo exacerbado e inapropriado, porque démodé.

Embora habituado a frequentar a orla dos abismos, embora tendo sido absorvido num tormentoso infernal abismo, consegui assomar à superfície e pôr-me a caminhar na companhia de todos os riscos...

Meu ingresso formal na vida filosófica constitui um marco em minha biografia (se é que posso chamar assim uma existência tão comum e banal que sequer foi narrada)... A filosofia operou uma transformação radical em meu modo de ser... Isso soa como um clichê, mas não deixa de expressar uma experiência subjetivamente decisiva... A filosofia me desvirginou, libertou-me da escravidão da inocência... Tornou-me mais aborrecido, mais enfastiado... Tendo sepultado o último facho de fé, expôs-me o fétido sepulcro de Deus.

Ainda não chegou o tempo em que poderei lograr o privilégio de dar adeus à filosofia, tal como o fez Cioran... Se bem que a filosofia de gabinete, a filosofia sistemática praticada com fins puramente acadêmicos não me interessa... A filosofia nasceu da mais íntima e profunda necessidade humana de fazer ruído no vasto silêncio imperturbável de um universo indiferente... A institucionalização da filosofia é sua enfermaria.

 

Pausa:

Escreve Baudelaire:

Há momentos da existência onde o tempo e o entendimento soam mais profundos, e o sentimento da existência ampliada imensamente.”

 

“Levar sua lucidez até o êxtase” – pontua Camus. Isso me parece inconveniente, terminantemente dispensável...

Ao concatenar esses apontamentos eivados de vivências impressionistas, não pretendo eu fazer-me compreender... Jamais se totaliza, se esgota o sentido; quanto mais se diz mais se silencia, mais se fazem aberturas, sulcos cavos para os mal-entendidos, para as incompreensões, para as inconsistências de toda sorte, para outros tantos sentidos imprevistos... Dizer é sempre silenciar; é pontuar silenciamentos.

Por que devo temer o fracasso? O fracasso nos humaniza, nos revela a miserabilidade de nossa condição humana... Já fracassei tantas vezes... Depois de frequentar tantos filósofos, depois de visitar e revisitar filósofos com cujo pensamento sinto-me mais aparentado, tudo me parece, em última instância, insignificante, sem importância. Há uma solidão visceral, mais íntima: a solidão da Lucidez – é preciso habitá-la; é ao que nos convida Cioran. “O deserto interior está sempre fadado à esterilidade”.

 

Eric Fromm admirou-se do fato de o número de pessoas loucas não ser maior, já que a existência é um fardo terrível – mas, se tivesse considerado a diferença entre a loucura de hospício e a loucura normal, talvez reconhecesse que a maioria esmagadora dos homens é fisiologicamente protegida contra os perigos da Lucidez e do Desespero total.

Para quem não está empregado, dizer que se manteve ocupado com os livros soa a outrem afrontoso. As pessoas, em geral, não veem o estudo como uma forma de ocupação, como uma forma de trabalho... Acontece que nunca me relacionei com os livros como quem se relaciona com meros utensílios... Nunca estabeleci com eles uma relação instrumental e esporádica. Ler não é para mim um passatempo ou uma atividade a cuja realização me obrigo para atender a certas exigências institucionais... Tampouco ler é um meio para a obtenção de conhecimentos úteis segundo os padrões de organização de nossas sociedades técnico-científico-informacionais. A leitura, tendo atingindo certa maturidade, sempre se impôs como uma necessidade existencial, isto é, uma necessidade que comporta a mesma pressão com que sobre mim recaem as necessidades básicas da sede e da fome. Receio não conseguir externar adequadamente, por meio de imagens, o que significa, para mim, a prática da leitura. Sei, no entanto, que viver privado dos livros seria, para mim, uma morte em vida. Encontrar-me-ia amputado de todos os meus membros, caso fosse privado de frequentar os livros.

Custa-me – devo confessar – compreender como podem tantas pessoas viver divorciadas dos livros... Não posso evitar de considerá-las como animais de carga a arrastar uma vida empobrecida e supérflua (ainda que, quando consideradas de uma perspectiva existencialmente radical, todas as vidas são supérfluas!). Não obstante, cuido que aqueles que vivem apartados da experiência da leitura são facilmente cativos das condições históricas que, nutrindo de sentido as suas vidas, as submetem continuamente a processos de normatização.

Certa feita escrevi, ainda num tempo em que a inocência poética se me aninhava no espírito, que há sempre um livro entre mim e o outro... Presunção de um diletante? Quiçá!

Não obstante, um testemunho de refinado gosto.