Nietzsche e a verdade oculta no homem

Começo
notando que nossa concepção de verdade
– a do pensamento ocidental – formou-se a partir de três fontes: a grega, a
latina e a hebraica. Vou referir e comentar, para os meus propósitos, apenas a
concepção grega. Assim é que, em grego, a verdade se diz alétheia, que significa “o não esquecido”. Por extensão de sentido,
alétheia passou a recobrir as noções
de “não-escondido”, “não-dissimulado”. A verdade é, portanto, a
automanifestação do ser ou da realidade, é seu desocultamento, seu
desvelamento. Segundo Chauí (2008: 95), “a verdade é o que vemos numa
contemplação, o que se manifesta, o que se mostra para os olhos do corpo e do
espírito”. Alcançamos a verdade, quando atingimos a essência das coisas pelo
entendimento. Quando a essência dos seres se revela, dizemos estar de posse da
verdade. A verdade é, portanto, o desvelamento do ser, de tal sorte que
identificamos a verdade com o ser e a falsidade com o parecer ou a aparência.
Os antigos gregos nos ensinaram, então, que o verdadeiro é o ser e o falso o
parecer (o que aparenta ser o que não é) (Chauí, 2008: 96).
Tão
cara aos gregos tanto quanto a nós hoje, particularmente aos que se dedicam às
ciências, é o conceito de evidência,
intimamente ligado ao de verdade. Na realidade, só dizemos que atingimos a
verdade, quando estamos de posse das evidências. A evidência é a manifestação
clara da essência das coisas e do ser. É o desvelamento do ser das coisas.
Desse modo, a evidência é o critério da verdade. A respeito da evidência,
podemos ler, em Metodologia científica
(2007), de Cervo et.al., o seguinte:
“(...) Evidência é manifestação
clara, é transparência, é desolcultamento e desvelamento da natureza e da
essência das coisas. A respeito daquilo que se manifesta das coisas, pode-se
dizer uma verdade”.
(p. 11)
A esta
altura, convém distinguir evidência de certeza.
A certeza pressupõe um estado de espírito, portanto implica a adesão de alguém
a um determinado ponto de vista ou a uma verdade. Quem diz ter certeza não teme
o engano. A certeza surge quando o espírito dispõe de evidências. A certeza é
dependente das evidências.
Opiniões, por sua vez, que são um tipo de
crenças, têm caráter subjetivo e resultam de uma avaliação superficial das
coisas ou dos fatos. Quem opina, não dispondo de certezas, teme o engano.
Opiniões não pressupõem um exame cuidadoso sobre a realidade a que se ligam.
Elas dispensam um exame crítico e justificativas teóricas e são relativas a
quem as exprime. Quem opina considera algo como verdadeiro, sem, contudo, estar
certo de que alcança a verdade. Platão – e nesse tocante, o acompanhava
Aristóteles - via as opiniões (doxa) como produtos dos sentidos, portanto,
sujeitas à variação, à ilusão e ao erro. Nesse sentido, as opiniões se opõem ao
conhecimento, ao pensamento racional e à ciência.
Há
três teorias de verdade muito conhecidas: a da verdade como correspondência, a
teoria pragmática de verdade e a da verdade como coerência. Na verdade, poderia
apontar uma quarta, a da verdade como redundância. É a primeira que me
interessará aqui, no entanto. A teoria da verdade como correspondência reza que
a verdade resulta da correspondência ou de alguma espécie de fidelidade
descritiva do pensamento/proposição com a realidade. Dito de outro modo, a
verdade é produto da correspondência entre a proposição e o fato. Na Idade
Média, Tomás de Aquino entendia ser a verdade a adequação da coisa ao
intelecto. Atualmente, é preferível falar em proposição. A verdade é a
correspondência da proposição com a realidade que ela descreve ou representa.
Por conseguinte, se digo “Está chovendo”, enuncio uma verdade se e somente se
de fato estiver chovendo. Quando digo “está chovendo”, eu assumo que “é verdade
[que está chovendo]”. Nesse momento, surge o problema do portador da verdade. A
verdade se acha nas pessoas? Nos fatos? Nas proposições? Parece razoável
admitir, em princípio, que apenas proposições podem ser verdadeiras ou falsas;
seres e coisas podem ser reais ou irreais. Mas não segue daí que as proposições
portariam a verdade; a verdade se acha no sentido
delas, no que dizemos por meio delas, mas não sem o concurso da realidade. Não
basta dizermos que “fantasmas existem” para daí concluir que é verdadeiro que
eles existem. Isso seria absurdo. Só poderíamos aceitar a declaração “é verdade
[que fantasmas existem]” se dispuséssemos de evidências para tanto. Proposições
como estas em que se predica de coisas de cuja existência duvidamos ou cuja
existência rejeitamos nos levam a considerar a posição dos coerentistas.
A
teoria da verdade como coerência reza que a verdade depende de que haja
coerência entre as crenças, ou entre as proposições dentro de um sistema de
crenças específico. Para que se obtenha a verdade, é necessário que nenhuma
crença entre em contradição com uma outra crença ou com um conjunto de crenças;
as crenças precisam estar harmonizadas entre si. Teorias coerenciais da verdade
se baseiam na concepção de Hegel, para quem a verdade é o todo. Destarte, uma proposição é verdadeira se estiver de acordo com nossos sistemas de crenças
sobre o modo como o mundo funciona. Claro é que tais sistemas de crenças são
construídos em nossas experiências socioculturais, de modo que grupos culturais
diversos podem alegar ser detentores de verdades claramente inaceitáveis ou não
reconhecidas como tais por outros grupos. Uma tribo africana pode assumir que é
verdade que o pajé cura as doenças causadas pelos maus espíritos e nós,
indivíduos do mundo “civilizado”, imersos numa cultura tributária da visão
cientificista de mundo, e que compartilham outros sistemas de crenças (ainda
que metafísicos), tenderíamos a considerá-los completamente enganados. Os
coerencistas precisam lidar com algumas objeções, tais como o reconhecimento de
que não basta haver coerência entre as proposições e as crenças para a obtenção
da verdade; a realidade também precisa se pronunciar, caso contrário teríamos
de assumir que as proposições de um contos de fada são verdadeiras, pelo simples
fato de que elas são coerentes entre si, no interior da narrativa.
Eu
gostaria de estender essas reflexões para o âmbito das teorias científicas e
compreender nesse domínio em que medida podemos dizer que as teorias produzidas
pela ciência podem revelar alguma verdade. Isso, todavia, me levaria muito além
dos meus propósitos, de modo que deixarei muitas questões em aberto.
Disse
que a realidade também precisa se pronunciar... Mas o que é a realidade? Ela
pré-existe aos homens? Deve-se falar em uma ou muitas realidades? A realidade é
algo dado, já classificado, pronto para ser compreendido? Ou é algo que se
constrói, algo que é produzido num complexo de relações entre os seres humanos?
Já tive a oportunidade de escrever sobre isso. A realidade é fabricada na
inter-relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade humana
é, fundamentalmente, uma realidade simbólica, entretecida de significados. Tanto
a verdade quanto a realidade são construídas em processos intersubjetivos de
produção de significados. Convém ponderar nas palavras do linguista Marcuschi
(2005):
“As pessoas concordam
intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma parecida
quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a verdade, a
categorização etc., surgem como fruto de uma triangulação entre dois indivíduos
e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com mundo e sim a
coerência na relação com o mundo.”
(pp.58-59)
Que
fique claro que não se está negando a existência de um mundo exterior à mente,
de um mundo acessível à experiência sensorial (ainda que possa ser aí, muita
vez, distorcido). Este mundo dos objetos, das coisas que nos cercam existe, mas
ele não é dado, não está organizado, pronto a
priori. Marcuschi corrobora esta ideia, notando que:
“Não nego que exista certa relação entre linguagem e
algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a
mesma para todo o sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de
algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma
atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a
concordância geradora do consenso é o ponto de interseção que produz a crença
objetiva.
(p. 69)
Trata-se,
para Marcuschi, de colocar a objetividade como produto da intersubjetividade.
Nietzsche chamaria essa objetividade de ficção. Portanto, uma ficção produzida
nas relações culturais entre sujeitos situados historicamente. Assim é que “o
mundo, dirá Marcuschi, não é um grande supermercado com gôndolas universais
divinamente mobiliados” (p. 67), e aos homens não cabe apenas mobiliá-lo. Tampouco a linguagem é um instrumento
transparente, preciso, claro pelo qual o mundo seria revelado a nós. Ao
contrário, ela é caracterizada pela opacidade (de modo que o sentido não é
auto-evidente, não está na superfície do discurso, como algo de que poderíamos
nos apropriar imediatamente); ela não permite o acesso transparente ao mundo;
tampouco a uma verdade absoluta.
Se
levarmos em conta o que nos ensina Marcuschi, seremos forçados a concluir que as
verdades são produções discursivas, produções elaboradas nas práticas
intersubjetivas pelo uso da linguagem, muito embora tendo o mundo como
interseção e as mentes, constituídas de tal modo que podem operar em relações
intersubjetivas.
Não
espero tenha esgotado todas as questões aí envolvidas; longe disso. Preciso,
contudo, me apressar em trazer à cena discursiva o filósofo Nietzsche, o
protagonista de minha discussão sobre o tema da verdade. Começarei,
apresentando-o.
1. Quem foi Nietzsche?
Friedrich
Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão (nascido na Prússia), é considerado um
dos pensadores mais originais do século XIX e bastante influente na
modernidade. Sua obra toma como ponto de partida uma reflexão sobre a cultura
grega antiga e sobre sua influência no pensamento ocidental. Vale reiterar: é
precisamente da filosofia grega que Nietzsche parte para construir todo um novo
modo de pensar a história, a arte, a vida e o homem.
Um
crítico feroz do passado, Nietzsche também pode ser considerado um profeta de
um mundo novo, de um mundo renovado, de uma história futura depurada dos
entulhos de séculos e milênios. Um dessacralizador dos valores tradicionais,
Nietzsche considerava-se um genealogista, por arvorar-se em crítico ferrenho da
origem dos valores morais e das categorias filosóficas que mascaram tais
valores com vistas a satisfazer interesses particulares. Como tal, propunha uma
“transvaloração”, ou melhor, “uma transmutação de todos os valores”. Para ele,
os valores predominantes eram os dos fracos, os dos decadentes e sua criação
negava a vida, o “querer-viver”. Por conseguinte, Nietzsche se notabilizou
formulando uma crítica profundamente causticante e radical aos valores
tradicionais da cultura ocidental, ao conservadorismo, ao cristianismo e à
visão burguesa de mundo. Considerado o mestre da suspeita, ele desenvolveu uma
filosofia demolidora. Dizia ser necessário filosofar com um martelo.
Em
Nietzsche, não encontraremos fatos, apenas interpretações. Para ele, não há
fatos, apenas interpretações. Não há transcendência; tão-só imanência e
aparência que, no mais, se identifica com o ser. A lógica, uma ficção, não é
senão produto dos instintos. Não há um ‘eu’ indiviso, senhor de si, tampouco
sujeito, autônomo e livre.
Ao
revisitar a filosofia grega e refletir sobre sua influência decisiva no
pensamento ocidental, Nietzsche identifica dois elementos que a fundamentam: o
espírito apolíneo (de Apolo), que representa a ordem, a harmonia, a razão; e o
espírito dionisíaco (de Dionísio), que representa o sentimento, a emoção, a
ação. Segundo Nietzsche, entre nós, o primeiro espírito teria predominado asfixiando
tudo que fosse “afirmativo da vida”.
Considerado
“irracionalista”, politicamente suspeito, Nietzsche foi um poeta notável,
embora tenha sofrido uma crise de loucura (não se sabe se devido ou não a
sífilis), alternando momentos de profunda lucidez com momentos de incoerências
e contradições. Não cessou de denunciar a inanidade dos valores humanistas, dos
direitos humanos, da igualdade democrática. Sua obstinação no ataque aos
“ídolos” da religião, da ciência foi marcante em sua empresa filosófica.
Segundo Luc Ferry (2010),
“Ele surge como o primeiro, para
não dizer o único, a responder aos desafios de uma existência “humana, humana
demais”, de uma vida, enfim, liberta das miragens da fé em algum ideal
superior. Uma filosofia não mais do céu, mas da terra (...)”.
(p. 63)
Admirá-lo,
sim, pelo menos naquilo que soube celebrar: a
afirmação da vida, o humano demasiado humano! Mas jamais endeusá-lo!
Estudá-lo para tentar compreender a profundidade e originalidade de seu
pensamento, sem deixar de identificar aquilo que o torna nocivo, desconfortante
para nós – ou pelo menos para os que dentre nós acolhemos os valores democráticos
e humanistas. Sim, porque Nietzsche foi um antidemocrático. Como humano,
demasiado humano, também escreveu tolices e cometeu erros. Em O Crepúsculo dos Ídolos, no capítulo em
que ele se dedica ao problema de Sócrates, se topa um trecho em que podemos
encontrar todos os elementos de uma posição claramente fascista, o que
explicaria a sedução que seu pensamento exerceu sobre os nazistas.
“Sócrates pertencia, por sua
origem, à mais baixa camada do povo: Sócrates era o populacho. Sabe-se, vê-se
ainda como era feio... Afinal, Sócrates, era grego? A feiúra é frequentemente a
expressão de uma evolução cruzada, entrevada pela mestiçagem... Com Sócrates, o
gosto grego se altera em benefício da dialética. O que acontece exatamente?
Antes de tudo, é um gosto distinto
que é derrotado. Com a dialética, o povo consegue levar vantagem... O que
precisa ser demonstrado para convencer não vale grande coisa. Em todo lugar
onde a autoridade ainda é de bom-tom, em todo lugar em que não se “raciocina”,
mas se ordena, a dialetização é uma espécie de polichinelo. Riem dele, não o
levam a sério. Sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser levado a sério...”
Confesso
que, em algumas ocasiões em que li Nietzsche, experimentei um profundo
desgosto, decepcionei-me. E questionava: como pode ser tão lúcido em vários
momentos e em outros tão moralmente ultrajante? Luc Ferry, comentando este
trecho de Nietzsche, escreve:
“É difícil, hoje, ignorar o que um
discurso como esse pode ter de desagradável. Todos os ingredientes da ideologia
fascista parecem estar aí entrelaçadas: culto da beleza e da “distinção” do
qual o “populacho” está por natureza excluído, classificação dos indivíduos
segundo suas origens sociais, equivalência entre povo e feiúra, valorização da
nação, no caso, a Grécia, suspeitas dolorosas de uma impossível mestiçagem,
supostamente explicativa não se sabe de que decadência... Não falta nada. Não fique,
contudo, com essa primeira impressão. Não que ela seja – que pena! –
inteiramente falsa. Como aliás, já lhe disse, não foi por acaso que os nazistas
retomaram Nietzsche”.
(p. 207)
Luc
Ferry prosseguirá buscando estimular seu leitor a permanecer nas páginas de seu
livro a fim de compreender o pensamento de Nietzsche, não obstante o desagrado
que a passagem referida cause nele e no leitor. E passagens como estas não
rareiam na obra do insigne filósofo alemão, infelizmente. No entanto, não nos
apressemos em fazer delas razão suficiente para rejeitar toda a filosofia de
Nietzsche; elas apenas nos advertem de que mesmo as mais brilhantes mentes
foram capazes de produzir disparates. Filósofos não são imunes aos preconceitos
de sua época, muito embora nos sintamos justificados em esperar que eles sejam
os mais habilitados a percebê-los, criticá-los e rejeitá-los. De qualquer modo,
o que devemos ter em conta é que os filósofos também erram, como errou Tomás de
Aquino ao escrever contra as mulheres... É preciso lê-los, portanto, com senso
crítico aguçado antes mesmo de admirá-los; examiná-los e compreendê-los, antes
de condená-los. Não precisamos ser sempre condescendentes com suas ideias e
visões de mundo. Devemos discordar deles, sempre que as ideias e crenças
sustentadas ferirem o sentimento predominante de nossa época, os valores que
nos são caros, as virtudes que admiramos, a ética por cuja elaboração e
manutenção lutamos. Como antidemocrático, Nietzsche simpatizava com os valores
aristocráticos. Se, por um lado, ele se opunha ao igualitarismo e à emancipação
das mulheres, condenava o movimento anti-semita então crescente na Europa à
época.
É
preciso que compreendamos que Nietzsche nunca esteve interessado em buscar ou
descobrir uma racionalidade no caos que é o mundo (ele entendia o mundo como um
caos). O universo ou a Vida, para ele, é um complexo tecido de forças
contraditórias. Nietzsche as identifica chamando-as de forças reativas e forças
ativas. No domínio intelectual, as forças reativas se encarnam na ciência e na
filosofia clássica (para ser mais exato, se encarnam “na vontade de verdade”
que as anima). As forças ativas, por sua vez, atuam na arte e se revelam no
espírito aristocrático. Proponho, então, que tenhamos em conta essa oposição,
doravante.
A esta
altura, sinto necessidade de encontrar uma chave para começar a desbravar as
florestas densas do pensamento de Nietzsche, sem pretender a exaustão. A chave
que escolherei será a linguagem. Começarei, portanto, considerando como
Nietzsche entendia a linguagem para, então, a partir desse domínio de
reflexões, dar a saber como ele pensou a verdade, o homem, a história, a
ciência e a arte. Não custará ao leitor perceber que esses temas estão
interligados.
Enceto
esta seção, evocando a lição de Saussure sobre a natureza arbitrária do signo
linguístico. Como se verá, não é propriamente dessa relação que se ocupa o
pensamento de Nietzsche, mas a lição de Saussure nos ajuda a situar o problema
da linguagem em Nietzsche.
Ferdinand
Saussure nos ensinou, no início do século XX, que o signo é resultado de uma
relação dicotômica entre duas faces: o significante e o significado. O
significante, para o mestre genebrino, se definia como “a imagem acústica do
som”, a impressão psíquica do som, não o som em si; o significado não mais era
do que o conceito. Em filosofia, sem pretender considerar as nuances que toma
nos pensamentos dos filósofos, o conceito se define como uma representação
mental dos objetos de nossa percepção. Pelo conceito, designamos os ‘dados’ de
nossa experiência sensorial. Saussure, então, entendia que a ligação entre o
significante e o significado era arbitrária. Melhor seria dizer, notariam os
estudiosos da Escola de Praga, convencional. De qualquer forma, com a
qualificação “arbitrária” queria dizer Saussure que não havia um vinculo
natural entre o significante e o significado; na verdade, esse vínculo era
estabelecido pelos homens na base de um consenso social. Assim, por exemplo,
não há nada na palavra “cavalo” que me leve a inferir, por uma relação natural,
o significado ‘equino’, tampouco, a princípio, há algo que impediria que “cavalo”
designasse o que entendemos por “árvore” (o que impede é a convenção social
estabelecida em torno da ligação entre o significante e o significado; o indivíduo
sozinho não pode romper radicalmente com esse laço determinado por convenção).
Destarte, não obstante ter Saussure estabelecido como objeto de estudos para a
então ciência nascente, a Linguística, a língua tomada em si e por si mesma,
sem qualquer relação com o social, não deixou de reconhecer ser ela uma realidade social. Mas deixemos Saussure e retomemos a Nietzsche.
Como
Nietzsche entendia a palavra (que em Saussure identificava-se com o signo,
muito embora signo não seja redutível a esse estrato gramatical)? Nas palavras
do filósofo, em Sobre Verdade e Mentira lemos:
“O que é uma palavra? é a
reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas deduzir do estímulo nervoso uma
causa fora de nós é já o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do
princípio da razão”.
(p. 30)
A
preocupação de Nietzsche repousa em saber se a designação revela, de fato, as
coisas do mundo. Em outras palavras, se a linguagem diz o mundo tal como é
realmente. A resposta de Nietzsche é negativa e a justificará notando que a
linguagem opera na base de metáforas. A primeira metáfora é a própria
reprodução de um estímulo nervoso em uma imagem; a segunda é a transformação
desta em som. Embora estejamos acostumados, por força da tradição escolar, a
pensar na metáfora como uma figura de linguagem, um recurso de linguagem que
caracteriza estilos literários, já foi mostrado, nos estudos linguísticos, que
as metáforas estão na base dos processos semânticos da linguagem. Digamos, em
termos filosóficos, a essência da linguagem é ser metafórica (bem como polissêmica,
e Nietzsche bem o notara). Veja-se a quantidade de formas metafóricas que
impregnam a nossa linguagem do dia-a-dia (p.ex. abra seu coração, tenha a mente
aberta, ver uma luz no fim do túnel, pescar ideias, não cair a ficha, luz da
vida, etc.). Por metáfora, Nietzsche entenderá, portanto, essa transformação de
uma coisa captada pelos sentidos em uma imagem e desta em som.
2. Verdade, ciência, arte em Nietzsche
Assim,
dirá Nietzsche, que a linguagem é uma metáfora para as coisas e que ela não
espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos
homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento, acredita ser capaz de
atingir a verdade através da linguagem. A verdade é fruto desse esquecimento.
Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque
serve à sobrevivência.
De que
esquecimento se trata, perguntará o leitor? Aquele segundo o qual são os homens
que produzem as metáforas (palavras). Iludidos, os homens acreditam haver uma
relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se uma
mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e
sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de
designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de
rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do
engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de
conduta dentro das comunidades.
A
verdade em si, portanto, é inacessível ao intelecto humano, justamente porque
ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base
de suas abstrações (conceitos).
Nietzsche
reconhece nos homens um desejo de verdade; ele admite que os homens precisam
buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em
estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a “vontade de verdade” mascara
uma face moral (e Nietzsche gostava de pôr a nu justamente o que está
encoberto) que se define pela oposição entre verdade e aparência. Essa oposição
leva a que se afirme uma vida além-mundo e se negue a vida mesma vivida neste
mundo. A verdade é tomada, assim, como um valor superior e a ciência se torna a
expressão mais alta dessa busca pela verdade, tomada como absoluta e à espera
para ser descoberta.
A
ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona através de
leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas, dirá Nietzsche,
que o mundo é um caos, que a lógica não se acha no mundo, mas nos homens. São
eles que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre
os acontecimentos do mundo. A ciência está fundada na crença na vontade de
verdade, de tal modo que a verdade ganha um valor superior, o que levou
Nietzsche a reconhecer que a ciência não conseguiu liquidar Deus. A ciência tem
seu Deus e ele se expressa na busca a todo custo pela verdade. A ciência
professa uma fé no valor metafísico da verdade. A verdade é divina no domínio
de referência científico. A ciência, ou melhor, os cientistas (note o processo
metonímico aí: usar “ciência” para designar ‘aqueles que fazem ciência’)
tendem, sem se darem conta disto, a endeusar a verdade, a tratá-la como algo
transcendente (no sentido comum), embora acessível pelo método científico.
Em A vontade de Potência, lemos o seguinte:
“A vontade de verdade é uma crença – crença na
superioridade da verdade – e é nela que a ciência se funda. Não há ciência sem
o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso,
de que a verdade tem mais valor do que a aparência, a ilusão”.
(pp. 78-79)
A
crítica de Nietzsche é uma busca por um mundo mais humano. Se a ciência se
demonstrou incapaz de humanizar mais o homem, que alternativa poderia haver
para ele? Eis que surge a arte, tão valorizada no pensamento de Nietzsche. Para
ele, a arte não deixa de ser também uma mentira, mas uma mentira que confere
profundidade à vida humana, preterindo, para tanto, da lógica. A arte
transforma a visão que temos da vida. Ela causa um abalo, ensinará Nietzsche,
na percepção que temos do presente. A arte leva em conta a ignorância natural
do homem sobre si mesmo. Não tem ela pretensão de atingir alguma essência do
homem, mas tão só a sua superfície. Mas é justamente ao fazê-lo, que ela
aproxima o homem do homem. A arte torna a vida mais suportável.
Disse
que o espírito dionisíaco se expressa na arte. E Nietzsche se vale dele para
conduzir o homem a um retorno a si mesmo. Nietzsche se propôs a naturalizar o
homem, livrando-o das sombras de Deus e de suas ilusões da razão. O homem que
se reconhece no engano e reconhece o engano em que sua vida está imersa é um
homem livre de seus ídolos (Deus, a verdade, a ciência, a razão, a lógica...).
3. Em cena, a História
As
verdades são construções históricas. Nietzsche o reconhece. E um traço marcante
que diferencia os homens dos animais é que aqueles vivem de modo histórico, ao
passo que estes vivem de modo a-histórico. O homem tem consciência de seu
passado e não esquece os momentos que viveu; ao contrário, os animais não podem
recuperar o passado, eles estão completamente imersos no instante, no presente.
Ao
resgatar o passado, os momentos vividos, pela memória, os homens podem experienciar
profunda infelicidade. Para Nietzsche, a felicidade só poderia ser alcançada
vivendo o presente. Há três tipos de história identificados pelo filósofo: a
Monumental, a Antiquária e a Crítica.
A monumental
encerra a descrição de fatos que são exaltados, que são considerados
grandiosos. Nela, o passado é celebrado e a grandiosidade do presente depende
deste resgate do passado e de sua celebração. Para Nietzsche, isso impede o
progresso e faz com os homens depreciem o presente.
A
antiquária lança o homem como participante do passado, mantendo nele vivas as
lembranças dos instantes vividos. Mas aqui o passado é conservado no presente,
o que impede a busca pelo novo, a aventura em desvendar o desconhecido. Os
homens conservam a vida, mas não podem criá-la, isto é, buscar o novo. Nesse
sentido, só tem valor o que é passado e é ele o modelo para viver o presente.
O
sentido crítico da história, no entanto, é que permite o homem ser autêntico,
dispensando a máscara de que se serve para sobreviver. Somente o sentido
crítico da história o conduzirá adiante, a viver projetando-se para o futuro,
que se tornará presente. Nesse sentido, o homem não precisa mais retornar ao
passado monumental ou à sua forma antiquária para sentir-se plenamente
realizado e vivo.
Incrível conhecer um pouco disso tudo!
ResponderExcluirSó não concordo com a ideia nietzschiana de q o homem traz a lógica ao mundo, quando penso q, na vdd, nós q o tornamos mais caótico e complicado e incompreensível e insuportável e, principalmente, paradoxal, ao produzirmos arte nesse meio todo. rs
Mas, nossa... gostei muito! ao longo das suas referências, fui-me lembrando da minha monografia. Comentei sobre? Não tenho ctz... mas retomamos essa questão da linguagem e sua relação com o mundo. Fiquei - pq fico realmente - ao lado de Kaspar (caso sobre o qual escolhi falar na mono) no quanto de fabricação da realidade está muito mais em nós - apesar das interações sociais - do q externamente.
Q não busquemos tanto sentido para a vida, pq, afinal, o sentido é não o ter mesmo, né? ;)
Bjo, amigo!