
"O fanatismo é a morte da conversa. Não se consegue tagarelar com um candidato a mártir". Cioran.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
"Na língua, só existem diferenças" (Saussure)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Trabalho apresentado como requisito para a aprovação na disciplina EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LINGUÍSTICO no curso de doutoramento / 2010
1. Introdução
“(...) é o
ponto de vista que cria o objeto”
(Saussure)
As reflexões que se estenderão ao longo destas páginas se orientam pela
admissão de que a pluralidade teórica da Linguística é necessária e inevitável,
porquanto seu objeto de estudo – a linguagem – é heterogêneo, multifacetado e
heteróclito. Rechaçamos, portanto, qualquer visão teórica que se pretenda
reducionista ou radical e nos baseamos na lição de Neto, em Ensaios de
Filosofia da Linguística (2004), segundo a qual cada teoria opera um
recorte sobre a realidade, instaurando, assim, seu objeto observacional,
o qual constitui “a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e
é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis” (p. 35). É na base do
estabelecimento de seu objeto observacional que se erigirá o objeto
teórico; este se define por um conjunto de entidades básicas, de
pressupostos e de objetivos, além de se fundamentar numa metodologia
específica. Veja-se, a título de esclarecimento, o seguinte passo de Neto:
“Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um
objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer
entidades básicas, predicados e relações no objeto observacional”.
(p. 37)
Das palavras do eminente linguista, pode-se depreender que o objeto
observacional diante do qual estão os gerativistas e os funcionalistas, por
exemplo, é o mesmo, a saber, a linguagem. No entanto, o modo como ela será
concebida, o aparato conceitual e metodológico de que lançarão mão para
estudá-la, os objetivos perseguidos, os pressupostos em que se apóiam serão
determinantes da diferença entre dois objetos teóricos – o dos
gerativistas e o dos funcionalistas. Destarte, gerativismo e funcionalismo não
se ocupam do mesmo objeto teórico. E devemos reconhecer, eticamente, que isso
não constitui problema algum; problema há quando se notam atitudes que
engendram rivalidades e menosprezo pelo trabalho do outro.
Conquanto nos alinhemos com a perspectiva funcionalista, acreditamos ser
equivocada qualquer atitude ou posição que ignore a herança formalista da qual
a Linguística moderna, desde Saussure, é devedora. Que a língua seja um sistema
de signos, uma estrutura, um sistema de frases, um sistema simbólico
responsável por estruturar a realidade, uma atividade intersubjetiva
socialmente fundada, etc. – disso não temos dúvida. Resta avaliar as vantagens
que nos proporciona a escolha de uma ou outra concepção.
1.2. Objetivo
Nosso intento é discutir de que modo as abordagens formalista e
funcionalista se diferenciam, tendo como parâmetro orientador o conceito de
competência.
Evidentemente, dada a natureza desta exposição, não se empreenderá uma
discussão exaustiva; vamo-nos cingir aos aspectos fundamentais da distinção
entre as duas abordagens, que estejam intrinsecamente relacionados ao conceito
de competência.
Visto que os rótulos formalismo e funcionalismo recobrem
um vasto espectro de teorias ou abordagens, será necessário fazer algum tipo de
abstração. Como representante da abordagem formalista, consideraremos, para
efeito de discussão, o gerativismo, tal como foi desenvolvido e propalado pelo
seu maior expoente – Noam Chomsky (1957)[1]; por outro lado, vamo-nos ater
ao funcionalismo desenvolvido e divulgado por Halliday.
2. Formalismo e Funcionalismo: uma breve discussão
Entendendo ser toda teoria um conjunto sistemático de enunciados e
conceitos, portanto, um todo coeso e coerente, é lícito afirmar que cada
conceito terá sua validade dentro do universo teórico específico no qual é
desenvolvido. Ademais, a reflexão sobre um dado conceito permite-nos apontar
caminhos que nos levarão ao reconhecimento das bases em que se estabelece a
distinção entre duas (ou mais) correntes teóricas.
Para o que nos compete aqui, o conceito de competência é um grande
indicador da distinção entre uma e outra corrente teórica. Vamo-nos ocupar, num
primeiro momento, em defini-lo no interior do gerativismo; posteriormente,
traremos à baila o modo como ele foi reinterpretado e desenvolvido na abordagem
funcionalista.
2.1. A competência linguística no gerativismo
Em Estruturas Sintáticas (1980)[2], Chomsky se refere à
competência linguística da seguinte forma:
“(...) capacidade de um falante do inglês para produzir e compreender
novos enunciados rejeitando, simultaneamente, outras sequências novas como não
pertencentes à língua”.
(p. 26)
Dispensando o fato de que neste trabalho, na medida em que constitui uma
descrição do inglês, o autor trate da competência relativamente a uma
comunidade linguística específica – a dos falantes de inglês, importa notar que
esse conceito envolve duas espécies de conhecimento: um operacional; outro
avaliativo. Assim, é a competência linguística de que todo falante nativo
dispõe que lhe permitirá produzir (e compreender) enunciados em sua língua
materna, bem como avaliar as construções dessa língua relativamente ao conjunto
de regras previstas pela sua gramática.
Destarte, serão consideradas gramaticais as
construções que resultaram da aplicação das regras previstas pela gramática de
sua língua materna; e agramaticais, as que não resultaram dessa
aplicação. Evidentemente, a gramaticalidade não se resolve em polos opositivos,
mas sobre uma gradação em termos de aceitabilidade.
Em Linguagem e Linguística – uma introdução (1987),
Lyons apresenta aquilo que será um aspecto determinante da diferença de
compreensão do conceito de competência nas abordagens gerativa e funcionalista.
“A competência linguística de um falante é um conjunto de regras que ele
construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição
da linguagem aos dados linguísticos que ele ouviu à sua volta na infância
(...)”.
(p. 173)
Note-se que o autor alude à relação entre a competência linguística e a
hipótese inatista da aquisição da linguagem, segundo a qual a criança nasce com
um programa, geneticamente determinado, chamado de Gramática Universal,
que lhe permitirá, por um processo de desenvolvimento e maturação, o
conhecimento e domínio de sua língua materna. A Gramática Universal é a própria
faculdade da linguagem e constitui um conjunto de princípios e parâmetros, na
base dos quais a criança irá operar com vistas a se tornar um falante
competente em sua língua materna[3]. Os princípios constituem as
regras “gerais”, isto é, comuns a todas as línguas; os parâmetros são as regras
(ou valores) específicas de uma dada língua. Cabe à criança selecionar, a
partir de um input (um conjunto determinado de produções
linguísticas a que ela está exposta), a forma que um dado parâmetro tomará na
língua em cuja aquisição ela se empenha.
Acrescente-se que a Gramática Universal pode ser vista como uma espécie
de programa computacional, responsável pela produção dos enunciados
linguísticos. Consoante essa perspectiva, a língua passa a ser considerada um
conjunto de sentenças resultantes da operação das regras dessa gramática.
A competência linguística se desenvolve, portanto, na base de uma
aptidão inata para a aquisição da linguagem. Na perspectiva gerativista, não é
possível pensar a competência sem postular a existência de uma gramática
universal inata que está inscrita na mente/cérebro do falante nativo. Nisso
residem a coesão e a coerência a que nos referimos anteriormente: não podemos
discutir o conceito de competência sem pensá-lo em sua relação com outros
conceitos e sem situá-lo na totalidade do quadro teórico de que se origina. É a
essa tarefa que nos dedicaremos doravante.
O conceito de competência linguística evoca o conceito de performance ou
desempenho. A relação entre competência e desempenho, na forma como Chomsky a
apresenta, deve ser pensada dicotomicamente. De um ponto de vista heurístico, a
dicotomia competência/ desempenho tem o mesmo valor da dicotomia
saussureana langue/ parole: visa a delimitar o objeto
de estudo e, portanto, a determinar a área de interesse da ciência linguística.
Tanto a parole saussureana quanto o desempenho chomskiano
constituem domínios que estão fora da alçada da Linguística. Lyons dá-nos a
saber a definição de desempenho.
“Desempenho (...) é o
comportamento linguístico; e é determinado não apenas pela competência
linguística do falante, mas também por uma variedade de fatores não
linguísticos que incluem, por um lado, convenções sociais, crenças acerca do
mundo, as atitudes emocionais do falante em relação ao que está dizendo, seus
pressupostos sobre as atitudes de seu interlocutor, etc. e, por outro lado, o
funcionamento de mecanismos psicológicos envolvidos na produção de enunciados”.
É interessante ver a cisão entre o que diz respeito propriamente ao
conhecimento do sistema de regras da língua (da sua gramática) e o que diz
respeito ao uso desse sistema. O objeto de estudo do gerativismo será, pois, a
competência linguística, e os modelos teóricos ou as gramáticas produzidas
constituem hipóteses que visam a descrever e explicar essa forma de
conhecimento inato e específico que todo falante nativo tem de sua língua
materna.
Na medida em que é feita a separação rigorosa entre competência e
desempenho, o primeiro conceito ganha coerência na sua relação com a ideia de
um falante nativo ideal inserido numa comunidade linguística homogênea. A
preocupação repousa em descrever a competência desse falante abstraído do
contexto sócio-cultural; não de um falante concreto e específico, mas do
falante-modelo concebido para representar a perfeição atribuída à competência
linguística.
Sabe-se que o gerativismo privilegia o estudo da forma em detrimento do
uso da língua, o que justifica o fato de ser considerado uma corrente
representante do formalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a forma
(estrutura) é estudada de um ponto de vista interno, o que o diferencia, em
parte, do estruturalismo, que se apóia num ponto de vista externo. Assim é que
a estrutura da língua resulta da operação das regras da gramática internalizada
do falante. A preocupação gerativista recairá sobre o componente subjacente,
implícito, não-verificável imediatamente. É claro que não se pode ter acesso à
competência linguística do falante nativo senão por meio de suas produções; mas
tais produções não exibem tudo que é necessário para descrever e explicar essa
competência. Para tanto, os linguistas gerativistas postulam a existência de um
nível subjacente, chamado estrutura profunda[4], sobre a qual
é calcada a estrutura superficial, dotada de configurações
fonético-fonológicas e imediatamente perceptível auditiva ou visualmente.
Como não seja nosso objetivo fazer densa incursão nas especificidades da
abordagem gerativa, cuidamos ser necessário retomar a questão central em torno
da qual nossa discussão se desenvolve. A esta altura, cumpre notar que o modelo
gerativo surge como reação à visão reducionista e mecanicista de linguagem
comum aos behavioristas, dos quais o linguista Leonard Bloomfield foi um
representante.
O conceito de competência linguística foi a solução encontrada por
Chomsky para as dificuldades que permeavam a explicação da aquisição da
linguagem pelos behavioristas. Tratava-se de uma explicação de base
mecanicista, orientada por um modelo do tipo estímulo-resposta, com o qual era
explicado também o comportamento de certos animais. Com o conceito de
competência, Chomsky fez ver à comunidade científica a importância da criatividade no
processo de aquisição da linguagem; e mais ainda: a criatividade, segundo o
eminente linguista, é uma propriedade basilar que distingue os homens dos
animais (e das máquinas).
Gostaríamos de pôr termo a essa seção insistindo em que a separação
rigorosa entre competência e desempenho implica a necessidade de pensar o
conhecimento linguístico inato como algo desvinculado de outras capacidades
cognitivas humanas. Assim, cremos não incorrer em erro ao afirmar que a
competência linguística é considerada uma forma de conhecimento autônomo.
2.2. A competência linguística no funcionalismo:
uma perspectiva estendida
No artigo intitulado de Language, Context, and Text: Aspects of
Language in a Social-semiotic Perspective (1989), Halliday e Hasan
suscitam a questão sobre o conceito de função. Note-se o que
nos ensinam os autores:
“In the
simplest sense, the word ‘function’ can be thought of as a synonym for the
word ‘use’, so that when we talk about functions of language, we may mean no
more than the way people use their language, or their languages if they have
more than one”.
(p. 15)
Como se vê, função identifica-se com uso.
Pensar em função é pensar na finalidade com que a linguagem é usada, no papel
que ela desempenha para os seres humanos. Para os autores, “people do
different things with their language” (ib.id.).
Em An Introduction to Functional Grammar (1994),
Halliday, no capítulo Clause as exchange, apresentará as quarto
funções do discurso que considera primárias: offer (oferta), command (ordem), statement (declaração)
e question (pergunta) (p. 69). Pensar a função é, então,
pensar o que fazemos quando usamos a língua.
Num estudo exaustivo e minucioso, intitulado de A Gramática
Funcional (2004), Neves, discutirá, no primeiro capítulo, a questão
das funções da linguagem, preocupando-se, inicialmente, em nos oferecer um
quadro sintético, mas não menos esclarecedor, das diferentes formas de se
entender o conceito de função. Segundo a autora,
“(...) função pode
designar as relações:
a) entre uma forma e outra (função
interna);
b) entre uma forma e seu significado
(função semântica);
c) entre o sistema de formas e seu contexto
(função externa)”.
(p. 6)
(ênfase no original)
Claro está que a última concepção de função é a mais emblemática da
perspectiva funcionalista, uma vez que ela nos permite entrever a necessidade
de pensar a função em termos da relação entre língua e uso. Nessa relação é que
reside a pedra angular do funcionalismo, que se pode exprimir no seguinte
princípio: o uso exerce influência sobre a forma linguística. Na
perspectiva de um funcionalista, as línguas têm a forma que têm em virtude do
uso que delas é feito. Como o uso demanda a mobilização não só da competência
linguística, mas também de outras formas de competência ou capacidades, a forma
sofrerá pressões de ordem cognitiva e pragmática.
Convém ter em conta até aqui o deslocamento operado pela perspectiva
funcionalista: da ênfase sobre a forma passa-se para a ênfase sobre a função;
da preocupação com a forma passa-se para a preocupação com o uso. A forma passa
a ser um meio para a realização das funções. Destarte, o objeto de estudo do
funcionalismo é a língua em uso, ou seja, tomada na sua relação com o contexto
sócio-cultural e com as funções às quais ela serve. Não estamos mais diante de
um falante ideal, mas de um construtor linguístico social e culturalmente
situado. É de se esperar que o conceito de competência linguística ganhe outra
dimensão.
Em primeiro lugar, a preocupação com o uso linguístico e,
consequentemente, com os fatores contextuais que o determinam impõe a
necessidade de repensar o conceito de competência linguística. Os
funcionalistas observaram que o uso da língua demanda outras formas de
competências ou capacidades. Não basta ao falante nativo conhecer apenas as
regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir
e compreender enunciados nessa língua. Para ser bem-sucedido nas mais variadas
situações comunicativas de que participa, além do conhecimento das regras dessa
gramática, ele precisa utilizar suas produções linguísticas de modo adequado.
Em suma, dispensando-se pormenores, a competência linguística é reinterpretada
como competência comunicativa[5], a qual consiste na
capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins
comunicativos. A competência comunicativa pressupõe a competência linguística,
embora não exatamente nos termos como a concebe Chomsky; mas demanda dos
especialistas a percepção de que usar uma língua é muito mais do que saber
construir enunciados na base de um sistema de regras gramaticais.
A assunção do conceito de competência comunicativa implica o
reconhecimento da importância de levar em conta a habilidade do falante para
usar o seu conhecimento linguístico de acordo com as convenções sócio-culturais
ou pragmáticas implicadas num contexto. Assim é que a competência comunicativa
interage com outras formas de competências ou capacidades. Neves (id.),
baseando-se em Dik, apontará quatro capacidades às quais a competência
linguística está relacionada: a capacidade epistêmica, a capacidade lógica, a
capacidade perceptual e a capacidade social. Todas essas formas de capacidade
envolvem manutenção e mobilização de conhecimentos variados. A capacidade
social é, particularmente, interessante, por estar intrinsecamente relacionada
à competência comunicativa. Referimos o excerto em que Neves define essa
capacidade abaixo:
“d) a capacidade social: o usuário não somente sabe o que dizer mas
também como dizê-lo a um parceiro comunicativo particular, numa situação
comunicativa particular, para atingir objetivos comunicativos particulares”.
(p. 77)
Deve-se ficar claro, pois, que pensar sobre competência à luz das
abordagens formalista e funcionalista implica a necessidade de pensar o modo
como elas entendem a aquisição da linguagem. Na medida em que a abordagem
funcionalista contempla o papel do contexto e se preocupa com a descrição da
língua em uso, a sua concepção de aquisição da linguagem será diferente da
concepção formalista.
O paradigma formal advogará que a criança desenvolve sua competência
linguística na base de um input desestruturado e empobrecido -
trabalho este que será compensado pelo fato de ela ser habilitada inatamente
para fazê-lo. A criança é pré-disposta geneticamente a adquirir qualquer língua
com uma facilidade e rapidez notáveis. O paradigma funcional, a seu turno,
destacará a importância do ambiente, do entorno social na aquisição da
linguagem e, portanto, no desenvolvimento da competência linguística (entendida
como “competência comunicativa”). Para o funcionalista, o input compreende
um conjunto de dados linguísticos estruturado e adequado ao nível de
desenvolvimento da criança.
O processo de aquisição de linguagem, na perspectiva funcionalista, se
dá pelo desenvolvimento de necessidades e habilidades comunicativas da criança
em situações reais de interação com a sua língua. Assim é que a competência
linguística não constitui um conhecimento estanque, ou seja, não é separado de
todo o complexo cognitivo que permite a aprendizagem pela criança de outras
habilidades necessárias à sua vida social.
3. Conclusão
Coube-nos patentear, nesta exposição, a importância de se compreender
duas correntes teóricas, que, tradicionalmente, são avaliadas de uma
perspectiva antagônica, tendo em conta a articulação de seus conceitos com o
domínio teórico em que surgiram e se desenvolveram. Ademais, parece-nos
conveniente considerar o contexto histórico em que tais modelos apareceram, o
que implica também a consideração das motivações que os engendraram.
Destarte, o gerativismo surge como reação a um modelo teórico de base
behaviorista, predominante na primeira metade do século XX, que procurava
estudar a linguagem na base de um processo comportamental do tipo
estímulo-resposta, ou seja, a criança, num dado ambiente, adquiriria sua língua
materna por mera repetição (ou reprodução) dos dados linguísticos a que
estivesse exposta. O conceito de competência linguística tem o mérito de
apontar a importância da criatividade humana, mormente no que toca à aquisição
da linguagem. Chomsky observou que o modelo behaviorista não dava conta do fato
de a criança produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados que
nunca teria ocorrido antes em sua experiência linguística, donde se segue que,
para ele, a aquisição da linguagem independe de estímulo.
O funcionalismo, a seu turno, também surgirá por uma necessidade de dar
conta de certas dificuldades encontradas pelo modelo gerativo. Assim é que
muitas questões de que se ocupavam os gerativistas não poderiam ser explicadas
satisfatoriamente sem a consideração do uso e do contexto. A crítica basilar
dispensada pelos funcionalistas aos gerativistas repousa na tendência destes de
fazer completa abstração do uso da língua, operando suas análises em frases
apartadas de um contexto real de comunicação, de sorte que, não raro, tais
frases eram forjadas pelo próprio analista.
É neste deslocamento de enfoque – da ênfase sobre a forma para a ênfase
sobre a função (uso) – que devemos situar a compreensão do conceito de
competência, nas duas abordagens em tela. Cremos, assim, que esse conceito,
surgido no interior da abordagem gerativa, tem uma inegável importância para o
desenvolvimento posterior da Linguística. Disso não se segue que ele será
entendido do mesmo modo em outros modelos teóricos, que adotem, por exemplo,
uma visão sociointeracional.
O modo como o conceito será entendido dependerá dos pressupostos na base
dos quais a teoria foi construída. Na medida em que o funcionalismo adota a
concepção de língua como ‘instrumento de comunicação’ (preferimos “lugar de
interação”); na medida em que assume como escopo o uso, em que dá ênfase
especial às funções comunicativas, em que entende a forma como meio de
realizá-las; enfim, em que salienta a importância do contexto situacional e
cultural na descrição e explicação do uso da linguagem, é esperado que a sua
concepção de competência prescinda da natureza inatista reivindicada pelos
gerativistas e que seja compreendida relativamente a outras formas de
capacidade.
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4.
Referências Bibliográficas
CHOMSKY, Noam. Estruturas
Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980.
CUNHA, Angélica Furtado da.
Funcionalismo, in Manual de Linguística. Mário Eduardo Martelotta
(org.). São Paulo: Contexto, 2009.
HALLIDAY, M. A.K. . An
Introduction to Functional Grammar (2ª ed.). London: Edward
Arnold, 1994.
__________ HASAN, R. Language,
Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press,
1989.
HYMES, Dell. On communicative
Competence, in The Communicative Approach to Language Teaching. Brumft,
C.; Johson, K. (orgs.). Hong Kong: Oxford University Press,
1991.
LYONS, John. Linguagem e
Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
MUSSALIM, Fernanda; Anna Christina
Bentes. Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos (vol.
3). São Paulo: Cortez, 2005.
NETO, José Borges. Ensaios de
Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.
NEVES, Maria Helena de Moura. A
Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SANTOS, Raquel. A aquisição da
linguagem, in Introdução à Linguística: objetos teóricos. José Luiz
Fiorin (org.). São Paulo: Contexto, 2004.
TRASK, R. L. Dicionário de
Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2008.
[1] Ano em
que foi publicado seu trabalho revolucionário Syntactic Structures.
[2] Versão
portuguesa traduzida por Madalena Cruz Ferreira.
[3] Trata-se
da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981. apud. Santos,
2004: 221).
[4] Entende-se
por estrutura profunda “qualquer representação abstrata da
estrutura de uma sentença que os linguistas postulam para fins de análise”.
(Trask, 2008: 98). Atualmente, ela é considerada um expediente analítico com o
qual se podem expressar certas generalizações a partir da estrutura
superficial.
[5] O
conceito foi cunhado por Hymes (1991).