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sábado, 11 de outubro de 2025

"(...) sobre um fundo de acaso, nada se destaca; a pura opacidade de cada fato, não interpretável e inexplicável, é acaso sobre acaso, vazio: carece de relevo, tudo é insignificante" (Cioran)

 


                               TEXTO DE MINHA TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA


O convite à futilidade e a experiência

da Lucidez e do Essencial

 

       O percurso de nossa análise do niilismo na filosofia de Cioran recobre as cinco tendências comumente identificadas pelos seus comentadores: o pessimismo, o niilismo, o ceticismo sem epoché, o cinismo e a mística. (cf. Menezes, 2016). Como pano de fundo de nossa discussão sobre as três variantes de niilismo, anteriormente discriminadas – o niilismo contemplativo, o niilismo místico e o niilismo gnóstico – apresentar-se-á o pessimismo metafísico, o pessimismo antropológico e a antropologia teológica, trazendo à luz o horizonte de sentido que eles instauram e que forma a contextura a partir da qual se destacam e se desenvolvem as três variantes de niilismo subsumidas no domínio do niilismo metafísico. Na discussão sobre essas três formas de niilismo, ficarão claras aquelas quatro principais tendências que perpassam a obra de Cioran e que concorrem para torná-la multívoca, multidimensional e complexa. Cioran foi um pensador que cumulou negação sobre negação, que assumiu a negação como modo de vida, como exercício filosófico. Todavia, sua filosofia é um exercício espiritual[1] orientado para o “Despertar”, no sentido místico-gnóstico do termo. Por meio da inspeção do caráter terrível e mau do mundo e da existência e, sobretudo, da essência pecaminosa e má do ser humano, Cioran acredita ser possível descerrar um caminho para o despertar desse animal enfermo, libertando-o de sua condição de autoengano e de ilusão sobre o mundo e a existência. No caminho para o Despertar, aberto pela filosofia cioraniana, dois conceitos se revelam teoricamente fundamentais, quais sejam, o conceito de “Lucidez” e o conceito de “o Essencial”. Nos vários momentos em que Cioran se declara espiritualmente ressequido, espiritual e fisiologicamente esgotado, por tanto ocupar-se do Insolúvel, das questões últimas e fundamentais da vida e da morte, por perseguir obcecadamente um Absoluto de todo inatingível, esse teólogo herético confessa ter compreendido o que chama de “o Essencial”. Não convém aqui antecipar o que significa essa experiência decisiva de cunho místico, já que dela nos ocuparemos alhures. No entanto, pode-se dizer, desde já, que tendo sido afetados pela experiência do Essencial, vemos abrir-se-nos o caminho para a imersão na futilidade da vida. Cioran pensara ser possível a imersão na futilidade por meio do ceticismo, embora reconhecesse que “abolir a seriedade é a coisa que o cepticismo por si próprio não consegue”.[2] A futilidade de que fala Cioran é uma futilidade consciente, adquirida e voluntária. Em outras palavras, a imersão na futilidade vem acompanhada da lúcida consciência de que tudo, em última instância, carece de seriedade, na ausência de um sentido metafísico para a vida. O trecho que referimos acima é parte do texto intitulado Carta a propósito de certos impasses, no qual Cioran aconselha um amigo que conseguira publicar seu primeiro livro. Trata-se de um alvitre de Cioran contra a vaidade, a superestima de nossos feitos. Insistimos em que não devemos ler Cioran apenas como um pensador que se limitou a lançar anátemas sobre a vida, que fez de seu pensamento uma espécie de testamento de sucessivas negações luciferinas da vida. Ele mesmo admitia ser impossível tanto a negação quanto a afirmação. Ele mesmo admitiu ser fisiologicamente dotado de uma natureza paradoxal, que o fazia ter paixão e ódio pela vida ao mesmo tempo. Numa de suas entrevistas, ele confessa:

 

O paradoxo de minha natureza é que eu tenho uma paixão pela existência, mas, ao mesmo tempo, todos os meus pensamentos são hostis à vida. Desde sempre, eu adivinhei e senti o lado negativo da vida, que tudo é vazio. Eu sofria, fundamentalmente, de tédio profundo[3]. (tradução nossa).

 

 

           A imersão na futilidade da vida se faz pela “busca de mil pequenos prazeres da vida, reuniões de amigos e festas, sorrisos e risos de conveniência, mil pequenos prazeres gastronômicos e noológicos”[4]. Morin, de certo modo, concorda com Cioran quanto ao fato de o homem ser um homo demens, mas adverte que “não podemos escapar à dialógica sapiens/demens a partir da qual se tece a condição humana”[5]. Para Morin, o destino do homem é entretecido pelo jogo dialógico que combina entre si racionalidade e afetividade, prosa e poesia. Cioran, talvez, não discordasse completamente de Morin nesse tocante; afinal,

 

A angústia humana pode ser sublimada na paixão do jogo, nas múltiplas participações, no Amor – “forte como a morte” -, nos mitos, ritos, religiões, pode ser transfigurada na poesia, nos romances, filmes, mas sem jamais ser verdadeiramente liquidada. Que os seres humanos se consagrem à diversão, ao consumo, à perdição, à adoração do invisível, à exaltação, tudo isso pode ser considerado como um gasto improdutivo desprovido de funcionalidade social. Mas o esbanjamento, o consumo, o dispêndio constituem expressões da complexidade individual e da complexidade social[6].

 

         No esforço por pensar a visceral e fisiológica negatividade do niilismo em Cioran, rechaça-se, desde o início, o pressuposto de que é possível ver, em sua filosofia, o niilismo como curso ao longo do qual ou ao cabo do qual o homem pode criar novos valores afirmativos da existência. Essa é uma trilha que nos parece vedada a todo aquele que se dedique a refletir sobre a questão na filosofia cioraniana. Cioran via em Nietzsche um utópico, qualidade esta que ele recusa terminantemente para si. Daí não se segue que Cioran não tenha admitido que o homem está condenado a criar, a ser criador, por estar irremediavelmente atado à teia do simbólico e separado radicalmente da natureza. Segundo o filósofo-teólogo Cioran, “criador de valores, o homem é o ser delirante por excelência, vítima da crença de que algo existe” [7]. O homem ignora que o que chama de real é uma criação de seus excessos, de suas desmesuras e desvarios. Cioran não pretende refrear no homem essa sua disposição congênita e fatal para criar, mas busca despertá-lo para o fato de que ele não deve dar excessivo valor aos produtos de sua criação, os quais não resistem à erosão pelo tempo ou  pelo silêncio imposto pela morte.

           Não podendo esperar de Cioran quaisquer novas tábuas de valores, o percurso niilista que conduz ao Despertar, em seu pensamento, culmina com um convite a que nos deixemos imergir na banalidade, na futilidade do viver na certeza de que, nessa condição habitual e comum, apenas conseguimos escapar, temporariamente, às tensões do espírito, aos paroxismos que carreia a ruminação do Insolúvel, do inconveniente da queda no Tempo, do tormentoso mergulho na aventura da Criação, do Mal de que está impregnado inteiramente o cosmos. Não é, contudo, na imersão na banalidade da vida que o homem encontrará alguma forma de salvação; nesse estado existencial comum, o homem tão somente encontra oportunidade para o relaxamento das tensões de seu espírito, para a fuga à consciência do caráter insignificante da vida, do Mal como a verdade primeira.

         Tanto a Lucidez quanto o Essencial descrevem duas experiências que, para nós, são fundamentais da dimensão niilista do pensamento de Cioran. Ademais, a interpretação desses dois conceitos, realizada por Savater, mais do que corroborar a preocupação permanente de Cioran em Despertar o homem para a gravidade de sua condição existencial, para o pior dos mundos possíveis, para o Mal como princípio ontológico, lança luzes sobre um aspecto da experiência da Lucidez e da revelação do Essencial, que, tendo, certamente, um lastro místico, consiste em fazer ver que não existe uma relação especular entre nossos discursos e o mundo.  Cioran nos mostrará quão falhos e ineficazes são, por vezes, os mecanismos imaginário-simbólicos em que se estruturam nossas experiências na vida em sociedade.

        Comecemos por reiterar que a Lucidez é, em Cioran, algo de que padecemos. Cioran nos fala da Lucidez como um não saber, uma visão obscura, sombria do caráter absurdo do mundo. A Lucidez não é uma forma de pedagogia. Ela não nos ensina a bem viver. Para Savater, a pedagogia tem sempre uma meta, um objetivo bem definidos. A Lucidez, ao contrário, é privada de qualquer meta e “se assemelha uma espécie de revelação abrupta”[8] (tradução nossa). Ainda que possamos admitir que haja certa gradação no desenvolvimento da Lucidez, os despertares reveladores e a intensificação da percepção, que, por meio deles, se alcança, não decorrem do acúmulo de conhecimentos positivos. Se a Lucidez supõe algum tipo de desenvolvimento progressivo, ele se dá “por sucessivos desprendimentos e não por acumulação: avança mutilando, privando de coisas preciosas aquele que, por vício ou acaso, se torna sua presa”[9] (tradução nossa). Se a pedagogia exige conteúdos; a Lucidez, por outro lado, os destrói Se pedagogia se caracteriza por dar origem a ações, por orientá-las, fundamentando-lhes a necessidade, lhes esclarecendo os objetivos e fornecendo os métodos adequados à realização delas, a Lucidez, por sua vez, não favorece ação algum, embora não a impeça. Como nota Savater, “[...] a lucidez corrói as razões para agir, mas talvez não a ação em si, pois ela tende à indeterminação e ao acaso ou, para dizê-lo mais misteriosamente, ao destino”[10] (tradução nossa).  Em suma, se a pedagogia, por vezes, visa a uma doutrinação e se realiza numa aprendizagem, a Lucidez, por sua vez, se realiza como experiência.

        Faz-se mister também não confundir a Lucidez, em Cioran, com o esclarecimento da razão. A Lucidez não é um esclarecimento do tipo iluminista. O iluminista não está mais apto para chegar à clarividência que um analfabeto. A Lucidez é uma forma de experiência mística, sem salvação[11]. A salvação, todavia, almejada pelo místico implica uma completa perda de si, um completo desapego ao “eu”, ou mesmo a dissipação do eu individualista (o “ego”, para as tradições de pensamento orientais). Para Cioran, essa dissipação do “eu”, essa aniquilação dos desejos do eu não chega a ser alcançada na experiência da Lucidez. O homem lúcido não experiencia, portanto, salvação alguma; ele está permanentemente ameaçado pelo cansaço do vazio. A Lucidez é uma plenitude do Nada. Não encontrando sentido algum em sua vida, o homem lúcido sacrificaria a própria vida por uma ilusão convincente. Como bem observa Savater, alundindo à condição do homem lúcido e do próprio Cioran, “o desengano já não pode deslocar-se da lucidez; místico fracassado, não é incapaz de orientar seus êxtases para coisa alguma, está condenado a ver”[12]. (tradução nossa)

          Como a Lucidez é um estado transitório entre acessos de febre, não resta àquele que a alcançou senão esperar que as crises cessem, certo, porém, de que este consolo é enganoso, pois que o homem lúcido já é outro diferente do que era, uma espécie de desesperado sem consolo. Assim, jamais dispomos da Lucidez, mas somos sempre possuídos por ela. O homem lúcido não pode contar sequer com a ilusão de esperar algo desse estado de desilusionamento. Tampouco deve orgulhar-se de não ser possuído pelas ilusões habituais de que se servem os demais indivíduos para viver e para se proteger das garras do desespero, para evitar as tensões orgânicas, o desequilíbrio espiritual. Nas palavras de Savater, “Tal como o místico, o clarividente alcança seus cumes - ou seus abismos - de lucidez, através de certas experiências que ocorrem em momentos únicos: desejo, dor, terror em face da morte são algumas das principais”[13] (tradução nossa). O medo da morte é um exemplo paradigmático de experiência de Lucidez.

 

[...] quem, no ápice do horror de qualquer noite, vislumbrou o que significa cessar, além de qualquer imagem dramática ou macabra, sofrerá um choque impossível de esquecer ou minimizar; pressentirá que, a partir daí, terá que construir sua vida ocultando de si o que percebeu naquela noite, pois ninguém pode viver sob a sombra letal do inevitável. Esta experiência pode, assim, se tornar uma espécie de ruído surdo, inconsciente, que serve de pano de fundo para o seu cotidiano, conferindo-lhe uma inexplicável ansiedade; mas também pode vir a iluminar tudo, com sua luz predatória, roubando a solidez e a maior parte de tudo o que existe, o Ser em si, infectando cada palavra e cada justificação com a névoa da vacuidade que introduziu o horror naquela noite[14]. (tradução nossa).


       Consoante Savater, deve-se aproveitar o horror em que está embebida a tomada de consciência do que significa realmente morrer, para favorecer o desenvolvimento da disposição para a Lucidez. Quem nunca sentiu necessidade fisiológica de negar a si mesmo, de negar tudo, de negar em cada coisa o seu ser ou seu deixar de ser, o vazio ofensivo de suas pretensões, a futilidade cruel da vida, quem nunca amaldiçoou, entre soluços, a consciência e a impotência da carne não está predisposto para a Lucidez. Somente a ignorância tem futuro; somente o engano e o autoengano gozam a serena felicidade da tradição. Tudo o que não é ilusão é dádiva; e a dádiva é o acaso, o abismo, o terror. Ainda que tenha alcançado, alguma vez, o estado de desengano, o homem, com frequência, recai no estado de delírio, comumente chamado de “senso comum”. Não obstante, se alguma vez, por um instante que seja, um indivíduo foi atravessado por um grau mínimo de Lucidez, jamais deixará de ser um nostálgico do desengano, “dos véus rasgados e dos templos que se agitam, da noite, da negação e de sua irreprimível gargalhada”[15] (tradução nossa).

      Se o lúcido é aquele que está livre do delírio ou da loucura, a Lucidez é, porém, uma condição instável; “é somente uma ilhota luminosa na condição sombria do delirante”[16] (tradução nossa). Lembra Savater que cada momento de Lucidez pode ser nosso último. O delírio é, decerto, a condição normal em que nos instalamos. A Lucidez, por seu turno, é penosa e inquietante; não podemos permanecer nessa condição por longo tempo, de modo que “a principal e indubitável certeza que o lúcido alcança é que deixará de sê-lo”[17] (tradução nossa). Não se deve confundir a Lucidez com a consciência. A Lucidez representa a culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo, de sorte que “o discurso do mundo e o discurso do discurso - o espírito - são acomodados sem atrito, até que a lucidez marque a descontinuidade entre cada um deles e si mesmo, uma vez demonstrado que ambos são idênticos”[18] (tradução nossa). Para Cioran, nossos sentidos não mentem; é apenas quando se dá a interpretação de seus dados, no momento em que estes são codificados no sistema da língua, que aqueles podem nos enganar e nos enganam.  O homem vive sob o feitiço da palavra que o domina e o define, “mas a vida mesma, tal como a experienciamos, está envolvida nesse feitiço”[19] (tradução nossa). Insurgindo-se contra o feitiço da língua, a Lucidez encontra a vida, a vida desnuda, e se ocupa dela. Todavia, a tentativa de enfrentar o feitiço das palavras com as palavras, ou seja, por meio do discurso, está sempre sob a ameaça de recair no encantamento da língua. Ao usar a língua, acreditamos que a estrutura de nossos enunciados, os estados de coisas neles designados, refletem exatamente a ordem, a estrutura da realidade mesma. O homem comum, geralmente, assume existir uma relação natural entre a palavra e a “coisa” designada; quase sempre se esquece de que a relação entre o significante e o significado no signo, e deste com o seu referente, é resultado de uma convenção[20]. A Lucidez se encarrega de mostrar haver nessa relação uma “fissura”, momento em que, dando-se conta de que o laço que une o significante ao significado, o signo à coisa designada, é uma ficção imaginária, ou é determinada por uma imaginário-simbólico instituído socialmente, realiza-se a ruptura entre o espírito e o mundo e se revela o funcionamento da ficção. Assim, “o delírio se desvanece por uns instantes e o homem lúcido é separado do mundo; mas, sobretudo, ele é separado dos outros homens”[21] (tradução nossa).

       O hiato mais profundo e perturbador é o que se instala entre o homem lúcido e o delirante. Cotidianamente, o homem lúcido continuará a reproduzir os mecanismos imaginário-simbólicos que sustentam a vida em sociedade, mas estes se  lhes apresentarão falhos e ineficazes. Se a normalidade plena parece condená-lo a uma condição de estranhamento em relação à existência, ao mundo, “somente o engano, a comédia imita uma vida cujos prazeres deprecia e de cujos fins descrê, podem preencher,  ironicamente e sempre falsamente, a descontinuidade que afasta o homem lúcido do resto dos homens”[22] (tradução nossa). A Lucidez aqui se apresenta como sinônimo de desengano. Ela produz o desengano pleno, completo. A tal desengano pleno pode-se chamar “despertar”. O Todo, isto é, a totalidade do mundo experienciado pelo homem, do universo conhecido, é um mecanismo, e devemos saber desmontar esse mecanismo. O mecanismo do Todo é um complexo de artifícios, de truques, de ficções, de operações imaginário-simbólicas. Como experiência do despertar, em sentido místico, a Lucidez  se determina pela resposta que viermos a dar à questão: até onde se chegou na percepção da irrealidade? Conforme lembra Savater,

 

“[...] Se trata, novamente, de nos purificarmos do feitiço que a vigente explicação do mundo nos colocou: o artificial é apresentado como natural, o fabricado como espontâneo, o arbitrário como necessário, a argumentação que sustenta a coisa toda como um simples reflexo da realidade”[23]. (tradução nossa).

 

 

          É preciso, contudo, entender que aquele que despertou não abriu os olhos para uma realidade objetiva; o homem desperto é capaz de perceber, com mais clareza, “os vazios que perfuram o texto do mundo”[24] (tradução nossa). O homem desperto não é um embriagado de luz, mas aquele que se tornou sensível à irrealidade fundamental que o mundo da experiência comum, das nossas vivências ordinárias, mascara. O desperto deixa de estar enganado, porquanto despertar é perceber até que ponto a explicação do mundo escamoteia uma desculpa; e toda coerência, uma falácia. As palavras que o homem lúcido ou desperto usa para dissipar a ilusão não são mais seguras nem mais bem fundamentadas que aquelas com as quais a ilusão cotidiana se enuncia; todavia, se apresentam como pura negação das palavras correntes da vida diária; tendo, por isso, menos pretensão de durar. A Lucidez se encarrega de desnudar as raízes das teorias, a articulação das consequências de cada pensamento. Destarte, segundo Savater, “quem alcança a lucidez é imediatamente despojado da paixão pelo remédio, o resultado mais óbvio do discurso lúcido é o diagnóstico, mas um diagnóstico que exclui ou zomba da idéia de cura”[25] (tradução nossa). Na experiência da Lucidez, a trama verbal se desfaz e a realidade, antes sólida, se torna frágil e porosa. A suspeita e a dúvida precedem o diagnóstico que assinala a deficiência do manto verbal sob o qual experienciamos o mundo. O diagnóstico da Lucidez é sempre negativo, visto que serve de obstáculo tanto para uma ruptura total entre o espírito e o mundo quanto para uma solidariedade inquebrantável entre eles. A fidelidade ao negativo confere à Lucidez seu caráter ingovernável.

         Consideremos, doravante, o que significa o “Essencial”, na obra de Cioran. O Essencial não é intuído; ele se nos revela. A despeito de buscarmos elucidar seu significado, o primeiro aspecto distintivo do Essencial é, segundo Cioran, como vimos, a indeterminação. O Essencial nega todo objeto, ideia, sentido e conteúdo. O Essencial só se atinge na dimensão profunda de nosso ser, que se abstrai do mundo e da história. O conhecimento do Essencial é a versão cioraniana da gnose. Nesse sentido, é uma forma de salvação por meio de um não saber, uma salvação que é, ao mesmo tempo, aniquilamento. O Essencial não é fundamento de nada, não serve de fundamento ao que quer que seja. Ele faz desvanecer os fundamentos e as causas primeiras. O Essencial não se deixa capturar pelas tramas verbais, simbólicas, discursivas, lógicas com as quais organizamos nossa experiência de mundo. O Essencial não se deixa conhecer quando, imersos no viver comum, conservamos o hábito de tomar o real como coextensivo a esse mundo fabricado imaginária e simbolicamente, cujo conhecimento é textualmente fundado. O Essencial está para além de nossas lógicas, de nossa obsessão metafísica de buscar as causas primeiras, o fundamento último de tudo que existe. O Essencial é a dissipação da coerência linguístico-cognitiva. Todas as suas características são negativas, como negativos são os nomes com que podemos designá-lo. Quem quer que tenha sido afetado pela revelação do Essencial não descobre um fundamento metafísico do mundo; ao contrário, vê que todos os fundamentos metafísicos, que até então foram propostos, são risíveis por tão pretenciosos. Assim, segundo Savater, “[...] o intento mesmo de fundamentar o real – seja pela Vontade, o Espírito, a Matéria, a História ou qualquer outra ilusão verbal – deriva desse delírio do qual a revelação do essencial nos desperta”[26] (tradução nossa). Quem compreende o Essencial “se cura dos discursos que explicam o mundo, que o justificam ou fundamentam sua realidade”[27] (tradução nossa). A revelação do Essencial é uma espécie de antídoto contra a mania pedagógica e contra a fascinação do espetáculo da existência. O que o Essencial nos revela é a inanidade do ser. Uma vez revelada a inanidade do ser, redundam supérfluas todas as teorias, tornam-se inapropriadas e inconsistentes as explicações, as quais só podem ser julgadas a partir do campo da estética ou do humor. Inanidade significa ausência de substancialidade, futilidade, vanidade ou ausência de fundamento. O que se revela no Essencial é o Vazio (ou a Vacuidade) – “Vazio, em primeiro lugar, do real, que não tem mais substância do que aquela que nossos arrebatamentos lhe emprestam”[28] (tradução nossa). Mas é também o Vazio das palavras, o vazio dos discursos que reproduzem e justificam os valores social e culturalmente atribuídos ao mundo, que se revela, pois, ilusório. O Essencial revela-nos não haver natureza (essência) das coisas. Imerso no vazio real e verbal, o pensamento se abisma. A inanidade do ser priva o homem da ideia de natureza, entendida como substância, o que existe em si e por si mesmo e que constitui o substrato real de forças e produções que existiriam independentemente da vontade e da atividade humana.

 

Por um lado, a idéia de naturalidade desaparece, pois todas as características supostamente naturais são vistas como não tendo outra base além do delírio ou desejo humano; por outro lado, o discurso legislador baseado nele perde seu apoio ao tornar claro como é arbitrária qualquer escolha de regularidades e como é ilusório supor que elas tenham outra base além de nossa própria preferência[29]. (tradução nossa).

                                                       

          Vazio, revelação do Essencial e Lucidez são expressões cujo poder purgador, extático só pode ser mensurado no contexto crítico em que elas se inscrevem; fora desse contexto, elas não passam de simples formas nominais para designar a ilusão da qual pretendíamos nos libertar.

       Resta ainda examinar a seguinte questão: qual é a superstição que a revelação do Essencial combate? O Vazio combate a crença ilusória de que há uma substância, de que há um “em si” por trás das aparências. Esse “em si” pode ser a natureza, princípios de ordem mais ou menos divinos, ou qualquer outro princípio que, uma vez descoberto , nos permitiria mostrar que, para além da totalidade cósmica, há uma ordem ou desígnio. Dizer que existe um “ser” por detrás das aparências é dizer que há algo antes, na origem, algo que se pode rastrear. Dizer, portanto, que o ser é inane (vazio, fútil, insubstancial), afirmar a inanidade do ser é dizer que o ser é esvaziado de fundamento, que não é sequer um substrato que deve ser pensável. O ser vazio é da ordem do puro acaso. Sendo esvaziado de substancialidade, o ser não se presta a uma explicação causal. Assim, “o acaso é, de fato, outro nome para o ‘vazio’”[30] (tradução nossa).

       O que apavora, na revelação do Essencial, é justamente o fato de que ela esvazia o todo de significado, priva a existência de qualquer sentido último. Segundo Savater, todo pensamento busca o único, o singular, mas a irrelevância do ser inane lhe parecerá intoleravelmente tediosa. Somos aqui arremessados na experiência do ennui, ou do súbito esvaziamento de sentido e de conteúdo de tudo, de modo que experimentamos o vazio dentro e fora de nós. O ser vazio não tem qualquer ponto de referência privilegiado, isto é, faltam-lhe os marcos pelos quais o espirito possa se orientar. O que desaparecem, no momento da revelação do Essencial, são as razões que dão um sentido à vida – “a vida perde seu significado na epifania da inanidade do ser: se torna insignificante”[1] (tradução nossa). Num primeiro momento, o acaso desvelado na experiência do Essencial devolve a cada coisa sua irrepetível diferença e diversidade; todavia, posteriormente, ao fazer desaparecer o princípio causal que a explicava, reduz à inanidade, à nulidade do ser as tentativas mesmas de dar explicação. Como afirma Savater, “[...] só o acaso garante a existência dessas ‘diferenças livres’ de que fala Deleuze [...], porém o fundo sobre o  elas qual se recortam e com o qual acabam por confundir-se é o invariável vazio”[2] (tradução nossa).

      Importa enfatizar que a revelação do Essencial nos priva daquilo que consideramos valioso, do que supomos dar sustentação à nossa frágil existência. Assim, a Lucidez se volta contra nós e se encarrega de dificultar ainda mais a já árdua tarefa de viver. Tendo esvanecido o substrato, o ser que cada coisa ocultava, para quem acreditava na substância, a inanidade do ser só pode nos revelar a repetição e a monotonia de todo existente. Tudo é repetição; não há novidade. Assim, “sobre um fundo de acaso, nada se destaca; a pura opacidade de cada fato, não interpretável e inexplicável, é acaso sobre acaso, vazio: carece de relevo, tudo é insignificante”[3] (tradução nossa).

     Decerto, uma vez que não há razão última para a existência, não temos nenhuma obrigação de continuar a viver. Flertar com o suicídio é, pois, uma consequência razoável. Porém, quem recusa a necessidade de existir deve, segundo Cioran, em compensação, evitar estabelecer condições e um sentido para viver. Como escreve Savater, “a vida não poderia tolerar um sentido, um fim preciso, uma direção; é precisamente sua sagrada incoerência o que a faz tolerável”[4] (tradução nossa). As pessoas se matam não porque a vida não tem sentido, mas porque, não raro, nutriam a convicção insustentável de que a vida tem de ter, objetivamente, um sentido. O suicídio é, quase sempre, uma recusa de uma condição decepcionante: a de que a vida deveria ter um sentido metafísico, um sentido último. Mas, no momento em que aceitamos a absurdidade que urde os acontecimentos do mundo, a grande faixa de sem sentido que nos abisma, que expõe a fragilidade dos mecanismos imaginário-simbólicos que mantêm a existência sobre uma rede de sentidos humanos, o suicídio é um ato vão, inútil, também ele sem sentido algum.

        Pode-se dizer, em resumo, que a revelação do Essencial combina o horror com o júbilo: horror em face da perda dos esteios metafísicos que tornavam significativa e sustentável a existência; júbilo na constatação de que a vida continua a reproduzir-se em cada novo organismo na plena futilidade de ser. Ao nos revelar que o ser é vazio, que o ser é o nada, o Essencial é o próprio despertar desse sonho dogmático dos grandes sistemas e das justificações filosóficas que insistem em nos convencer de que o Irremediável (a Morte, a Existência, a Finitude) tem um sentido para além das práticas de semiotização humanas. No horizonte do Essencial, a sabedoria trágica de Cioran ensina-nos que não há “ser” por trás das aparências, que toda a nossa existência está permeada pelo Nada, pelo vazio, que é também acaso. Se, portanto,  tudo o que existe é Vacuidade, se não há “em si” como suporte do vir-a-ser, nossas valorações, quer positivas, quer negativas, carecem de sustentação. Numa superfície casual e desprovida de pontos de referência, elas se demonstram vãs e ilusórias. Nossas próprias avaliações em face da vacuidade do ser são também sem sentido e sem importância. No âmago do desespero, o Essencial nos torna despertos para a nossa condição delirante, à qual insistimos em retornar: “[...] despertos, inequívoca e irreversivelmente despertos, ansiamos por nosso longo sono, nossos discursos desimportantes e injustificados, a estabilidade perdida das grandes palavras que não escondem mais nada” [5] (tradução nossa).



[1] O texto a que a tradução corresponde é: “La vida perde su significación en la epifaní de la inanidad del ser: se hace insigficante”. (Ibidem, p. 83).

 

[2] O texto a que a tradução corresponde é: “Sólo el azar garantiza la existencia de essas 'diferenças libres' de que habló Deleuze [...], pero el fondo em el que se recortan y com el que terminan por confundirse es el invariable vacío”. (Ibidem, p. 82).

 

[3] O texto a que a tradução corresponde é: “Sobre um fondo de azar, nada se destaca; la pura opacidad de cada hecho, ininterpretable e inexplicable, es azar sobre azar, vacío: carece de relieve, todo es irrelevante”. (Ibidem, p. 83).

 

[4] O texto a que a tradução corresponde é: “La vida no podría tolerar un sentido, un fin preciso, una dirección: es precisamente su sagrada inconsistência lo que la hace tolerable”. (Ibidem, p. 84).

 

[5] O texto a que a tradução corresponde é: “ [...]despiertos, inequívoca e irreversiblement despiertos, añoramos nuestro largo sueño, nuestras injustificadas palinodias, la estabilidad perdida de las grandes palabras que ya no ocultan nada”. (Ibidem, p. 86).


 



[1] É no sentido com que Pierre Hadot emprega o termo “exercícios espirituais” que falamos da filosofia de Cioran como um tipo de exercício espiritual. Para Hadot (2014), a filosofia é originária e fundamentalmente exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser e de viver. A filosofia, enquanto exercício espiritual, congrega práticas, quer de ordem física, como regime alimentar, quer discursiva, como diálogo e meditação, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas elas destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que se dedica a nela exercitar-se numa entrega que mobiliza não só a cognição, mas também sua disposição afetiva. Essa compreensão da filosofia é extensiva também ao às filosofias de Schopenhuaer e de Nietzsche, contempladas no presente estudo. (cf. HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Tradução de Flavio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2014. (Coleção Filosofia Atual).).

[2] A tentação de existir,  Carta a propósito de certos impasses, p. 87.

 

[3] O texto a que corresponde a tradução é: “Le paradoxe de ma nature est que j’ai une passion pour l’existence mais qu’en même temps toutes mês pensées sont hostiles à la vide. I’ ai depuis toujours deviné et ressenti le côté négatif de l avie, que tout est vide. J’ai souffert fondamentalement de l’ennui”. ( Entretien avéc Helga Perz. In: Entretiens, p. 32.)

 

[4] MORIN, 2018, p. 26.

 

[5] Ibidem, p. 30. (ênfase no original).

[6] Idem.

 

[7] Breviário de decomposição, p. 27.

[8] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] se asemeja a uma espécie de brusca revelación”. (Savater, 2018, p. 47).

[9] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] por sucesivos despojamientos y no por acumulación: avanza mutilando, privando de cosas preciosas a quien, por vicio o azar, se convierte em presa suya”. (Idem).

 

[10] O texto a que a tradução corresponde é: “[...]a lucidez corroe las razones para actuar, pero quizá no la acción misma en cuanto entrega a la indeterminación y al azar o, por llamaarlo más misteiorsamente, al destino”. (ibidem, p. 48).

 

[11] Savater hesita em identificar a Lucidez com a experiência mística, alegando que, ao contrário desta, a Lucidez não encerra crença nem fé. Como vimos, todavia, Cioran entende que a mística não exige, necessariamente, fé nem adesão a dogmas. Se Savater afirma que o místico pode renunciar a todas as ilusões, exceto a de salvar-se, não deixa de reconhecer que a mística e a Lucidez se assemelham em Cioran, não só porque ambas nos levam a libertar-nos de nossas ilusões habituais, como também porque a Lucidez se define por meio dos memsos vocábulos com que se define a experiência mística no Ocidente e no Oriente: ‘despertar’, ‘ver’, ‘revelação’, ‘experiência’, ‘desenganar-se’, etc. Não acompanhamos Savater em sua hesitação. Para nós, não resta dúvida de que, em Cioran, a Lucidez é tematizada no horizonte da mística heterodoxa, ou seja, se uma mística sem salvação. Por isso, entendemos ser a Lucidez definida por Cioran polissemicamente, de sorte que um dos seus múltiplos sentidos se liga ao campo da mística.

[12] O texto a que a tradução corresponde é: “El desengaño ya no puede moverse de la lucidez; místico bloqueado, no puede orientar su éxtases hacia nada, está condenado a ver”. (ibidem, p. 51-52).

 

[13] O texto a que a tradução corresponde é: “Tal como el místico, el clarividente alcanza sus cumbres - ou seus abismos - de lucidez a  favor de ciertas experiencias que se poducen em momentos únicos; el deseo, el dolor, el pánico a la muerte son algunas de las principales”. (ibidem, p. 52).

 

[14] O texto a que a tradução corresponde é: “[...]quien, em alto horror de cualquier noche, há vislumbrado lo que significa cesar, más allá de cualquier imagen dramática o macabra, sufrirá un choque imposible de olvidar o minimizar; presentirá que, desde esse punto, deberá construir su vida de espaldas a lo que ha percebido esa noche, pues nada puede viver bajo la sombra letal de lo inevitable. Esa experiencia que puede convertise, de este modo, en una especie de ruido surdo, inconsciente, que sirva de fondo a su contidianidad, poniendo en ele un punto de inexplicable zozobra; pero también pudiera llegar a alumbrar cada coisa com su luz depredadora, robando la solidez y el bulto a todo lo existente, al Ser mismo, contagiando cada palabra y cada justificación de la niebla de vacuidad que introdujo el pânico em aquela noche”. (ibidem, p. 52-53).

[15] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] de los velos rasgados y de los templos que se tambalean, de la noche, de la negación y su irreprimible carcajada”. (ibidem, p. 54).

 

[16] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] es sólo un islote luminoso en la turbia condición del delirante”. (Ibidem, p. 40).

 

[17] O texto a que a tradução corresponde é: “La principal e indubitable certeza que alcanza el lúcido es que dejará de serlo”. (idem).

 

[18] O texto a que a tradução corresponde é: “El discurso del mundo y el discurso del discurso – o espíritu – se acomodan sin rechinamiento hasta que la lucidez marca la discontinuidad entre cada uno de ellos u sí mismo, uma vez demonstrado que ambos son idênticos”. (Ibidem, p. 41).

 

[19] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] pero la vida misma, tal como la padecemos, se cifra em esse embrujo”. (idem).

 

[20] Convém lembrar que, na perspectiva sociocognitivo-interacional da linguagem,em que nos baseamos, os “referentes” das expressões linguísticas não são vistos como “coisas” de um mundo extralinguístico, mas como objetos-de-dicurso, entidades sociocognitivas construídas discursivamente.

 

[21] O texto a que corresponde a tradução é: “El delírio se desvanece por uns momentos y el lúcido queda separado del mundo; pero, sobretodo, queda separado de los otros hombres”. (Ibidem, p 42).

 

[22] O texto a que a tradução corresponde é: “ Sólo el engano, la comedia que mimetiza una vida cuyos placeres deprecia y de cuyos fins descree, puede colmar, ironicamente y siempre en falso, la discontinuidad que aleja al lúcido del resto de los hombres”. (Ibidem, p. 43).

[23] O texto a que a tradução corresponde é: “Se trata, nevamente, de purgarnos del hechizo que la vigente explicación del mundo nos inflige: lo artificioso se apresenta como natural, lo preparado como espontâneo, lo arbitrário como necesário, la argumentación que sostiene todo el tinglado como el simple refejo de la realidad misma”. (Ibidem, p. 44).

 

[24] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] los vacíos que agujerean el texto del mundo”. (Idem).

 

[25] O texto a que a tradução corresponde é: “Quien alcanza la lucidez se despoja de imediato de la passion de remediar lo próprio del discurso lúcido, su resultado más evidente, es el diagnóstico, pero un diagnóstico que excluye o se burla de la ideia de curación”. (ibidem, p. 45).

[26] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] el intento mismo de fundamentar lo real - sea sobre la Vontade, el Espíritu, la Materia, la Historia o qualquer outra ilusión verbal - parte de esse delírio del que la revelación esencial despierta”. (Ibidem, p. 75-76).

 

[27] O texto a que a tradução corresponde é: “ [...] se cura de los discursos que explican el mundo, lo justifican o fundamentan su realidade”. (Ibidem, p. 76).

 

[28] O texto a que a tradução corresponde é : “Vacío, em primer término, de lo real, que no tiene más sustancia que la que nuestros arrebatos le prestan”. (Idem).

[29] O texto a que a tradução corresponde é: “En um primer aspecto, desaparece la ideia de naturaliza al verse todas las características supuestamente naturales carentes de otro fundamento que no sea el delírio o el deseo humano; por otra parte, el discurso legistalivo que, en ella se cimenta perde su apoyo al mostrarse lo arbitrário de cualquier eleccíon de regularidades y lo ilusorio suponerles otra base que nuesta preferencia”. (Ibidem, p. 77).

 

[30] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] azar es, de hecho, outro de los nombres para ‘vacío’”. (Ibidem, p. 80).

quinta-feira, 13 de maio de 2021

“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.” (Isaac Newton)

                                                              



 

                                 O Véu de MĀYĀ

                                                                                    A realidade não é o que parece

 

 

1. Introdução

 

A cada nascimento, um indivíduo é lançado ao desconhecido. Nascer é o começo de uma experiência bastante perturbadora: aperceber-se como um “eu” lançado num mundo estranho e incompreensível, sem razão e casualmente. Assim, o indivíduo, tendo atingido certo grau de consciência reflexiva, não poderá ignorar que a experiência da vida é semelhante àquela de alguém que, abruptamente, começa a sonhar. Tanto a relação entre a vida e o sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são consistentes com os ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do hinduísmo e do budismo. Schopenhauer, fazendo eco a essas tradições, postulou que a vida é um sonho do qual a morte é o despertar. Ora, nós não conferimos realidade aos nossos sonhos, e só, ao despertar, descobrimos que esta realidade era enganosa? E se a realidade percebida não passar de uma espécie de sonho? Esta é uma questão na qual convido o leitor a meditar, com seriedade e cuidado, ao longo da leitura deste texto. Ao contrário do que podemos pensar, não há diferença intrínseca entre percepção e alucinação, e toda percepção carreia uma porção alucinatória.

Sem chegar a um veredito sobre a referida questão, este texto brota do solo de minha estupefação, de meu espanto costumeiro, de minhas inquietações espirituais e tem como fito dar ao leitor comungar dessas mesmas inquietações. Este texto se estrutura em torno da seguinte hipótese: a física moderna, nomeadamente a física quântica, parece confirmar a intuição fundamental das sabedorias indianas, qual seja, a de que a realidade aparente ou percebida não exaure a realidade mesma. Há uma realidade fundamental que funciona de modo radicalmente diferente da realidade comum da vida cotidiana. A física quântica ensina-nos que a realidade não é tal como a conhecemos, tal como aparece a nós em nossa experiência ordinária. Não me será possível fazer uma aproximação minuciosa entre a sabedoria védica e as lições da física quântica, e não pretendo sugerir que a física quântica confirme tudo que essa sabedoria bimilenar ensina. Por exemplo, a física quântica não compartilha a crença de que o Universo é dotado de consciência, ou de que a realidade última e fundamental seja o Eu ou a Consciência Infinita, identificada com Deus. Não obstante, a física quântica, tal como as sabedorias da Índia, parece dizer a nós, em tom de advertência, o que Hamlet consagrou na memória discursiva do senso comum: “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

Quiçá seja escusável dizer que o autor deste texto é declaradamente ateu e que, portanto, acredita que a morte é simplesmente o retorno ao inorgânico. Acredito, portanto, que, quando morrermos, nosso corpo voltará à temperatura das coisas inanimadas ao nosso redor, que, uma vez mortos, entramos em equilíbrio com o ambiente, que nos tornamos, em suma, pó, poeira novamente. Não creio, portanto, que temos uma alma imortal que sobreviverá à morte de nosso corpo. Também não pretendo dar a entender que estarei sustentando o vitalismo, ou seja, uma doutrina segundo a qual a vida surge a partir de um princípio ou força vital que permeia o Cosmo e que transcende o domínio da química e da física. No entanto, enquanto ateu, rejeitando uma solução simples e problemática como a da fé na existência do Deus metafísico das três religiões do Livro, pretendo aceitar o Mistério, sem deixar de me confrontar com ele, interrogando-me sobre ele. Como bem diz Morin (2020, p. 19), “não apenas o mistério escapa ao conhecimento como está no coração do conhecimento. O desconhecido é o enigma; o incognoscível é o mistério”.

 

2. A ilusão de Maya

 

Ilusão provém do latim illusio-onis, que, em retórica, equivalia a ironia. A ilusão ou ironia consistia numa estratégia do discurso por meio da qual o orador zombava de um adversário, fingindo dizer algo diferente daquilo que, na realidade, estava dizendo. A forma latina illusion-onis deriva do verbo iludo, que, por sua vez, provém de ludo, que significa ‘jogo’. Illudo é ‘divertir-se’, ‘recrear-se’, mas também ‘burlar’, ‘enganar’. De iludo originou-se o nosso “iludir”, mas também “lúdico”, “eludir”, “prelúdio”, “alusão”. Iludir é enganar, causar uma impressão enganosa, suscitar uma interpretação enganosa. Ilusão significa, então, engano, coisa efêmera, interpretação enganosa ou errônea.

A doutrina vedanta, tal como sistematizada e ensinada por Sankara, reza que Maya recobre o caráter insubstancial e fenomênico do mundo por nós percebido. Todas as coisas existentes que percebemos e com as quais temos contato através de nossos cinco sentidos carecem de densidade ontológica, estão submetidas à ilusão de Maya. Também as faculdades conscientes e subconscientes de nossa personalidade são efeitos da ilusão de Maya. Mas devemos rechaçar a conclusão de que o mundo externo e o nosso eu são inexistentes, porque tal conclusão seria um sinal de incompreensão da doutrina. Deveras, Maya é um enigma inquietante. Maya é uma espécie de “feitiço cósmico”, que nos faz acreditar que a realidade percebida é a única e verdadeira realidade. Permita-me o leitor fazer aqui uma digressão para esclarecer o que significa dizer que, sob o Véu de Maya, o mundo fenomênico é desprovido de substancialidade. Em filosofia, substância (ousía) é aquilo que existe em si mesmo, é a realidade de algo como suporte dos atributos, qualidades, acidentes. A substância, é, assim, a quididade, isto é, aquilo que a coisa é por si e em si mesma, por sua realidade própria. A substância tem uma existência independente. A substância é independente de suas qualidades, permanecendo sempre o que é; ela é imutável. A substância é tanto o ser enquanto existente, quanto a essência, ou seja, a natureza desse ser.

Coube a Aristóteles tratar sistematicamente da noção de substância (ousía) a partir de três planos: o lógico, o físico e o metafísico. Do ponto de vista lógico, a substância é recobre aquilo que não é afirmado de um sujeito. A substância, portanto, não é um predicado. Em “A neve é branca”, o adjetivo “neve” não é substância, porque não designa uma realidade que existe independentemente. Ao contrário, é um predicado, porque designa aquilo que se diz do sujeito (neve). Assim, a ousía é o sujeito lógico, aquilo do qual alguma coisa é predicada. Situada no domínio físico, a substância, porque é sujeito, suporte da predicação, é concreta. Na experiência, só nos é dado sujeito concreto, sensível, que pertence à natureza e que é objeto da ciência. Aqui Aristóteles chama a substância de matéria, que é considerada a substância universal. É na substância material ou física que ocorre a mudança. A substância física permite a explicação da geração e corrupção. A partir daí, se desenvolve a teoria hilemórfica de Aristóteles, segundo a qual toda substância física é composta de matéria (hýle) e forma (morphé). Do ponto de vista metafísico, a substância pode ser estudada a partir de quatro pontos de vista. Do ponto de vista da quididade, caso em que a substância é aquilo que a coisa é por si e em si mesma, independente de qualquer qualidade atribuída a ela. A substância é uma existência independente. Do ponto de vista do universal (kathólou) e do gênero (génos), caso em que a substância, enquanto essência, é comum a todos os seres que admitem a mesma definição. Por exemplo, a animalidade é a substância ou essência comum a vacas, bois e homens. Por fim, a substância é o substrato, ou sujeito (hypokeímenon), o que subjaz. Essa noção atrela-se à de quididade, porquanto a substância é independente de suas qualidades. Porque permanece sempre o que é, não muda. A substância, como substrato, é a sede, o sujeito das qualidades (os acidentes: symbebekóta) e da mudança. A despeito de toda essa classificação e subclassificação, Aristóteles conclui que a verdadeira substância é aquela que possui a quididade, ou seja, que existe em si e por si mesma, que tem uma realidade própria e independente. A substância, portanto, é tanto o ser enquanto ser, quanto essência, isto é, a natureza de um ente.

Dizer, portanto, que Maya recobre o caráter não substancial da realidade aparente é dizer que essa realidade percebida, que cremos existir independentemente de nós, como uma coisa objetiva e sólida, não tem quididade, não existe em si e por si mesma. Como pondera Zimmer (2020, p. 33), ““Tudo isto à minha volta... meu próprio ser...”: eis a rede de liames chamada maya, a potência criadora do mundo. Maya manifesta sua força através do universo mutante e das formas evolutivas do mundo”. Maya, cuja raiz ma- significa ‘formar’, ‘produzir’, ‘medir’, designa o poder de um deus ou demônio de produzir ilusões. Esse deus muda de forma e aparece sob máscaras enganosas. Daí deriva o sentido de “magia”. Na filosofia vedanta, Maya recobre a ilusão que, como um véu, é sobreposta à realidade como efeito da ignorância humana. Todo o universo visível e perceptível é, portanto, Maya.

A sabedoria indiana busca ensinar o indivíduo humano a compreender como opera Maya, a fim de que ele possa transcendê-lo, libertando-se do seu feitiço cósmico. A maior parte dos ensinamentos, dos escritos indianos consagra-se à meta do supremo libertar-se da ignorância e das paixões provenientes da ilusão do mundo fenomênico (o mundo ilusório de Maya). Destarte, a meta última que deve ser alcançada é a redenção ou libertação espiritual, que os hindus chamam Moksa. Moksa é a emancipação final da alma (atma). Consoante ensina Zimmer (ibid., p. 40), “Moksa deriva da raiz muc: “desatar, livrar, soltar, libertar, liberar, deixar em liberdade, sair de, abandonar, largar””.

 

 

Moksa é a metafísica posta em prática. Moska aponta para além das estrelas. (...) Moska é a técnica para transcender os sentidos, a fim de descobrir, conhecer e permanecer identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. (ibid., p. 43-33).

 

 

Maya parece expressar, numa linguagem metafísico-esotérica, o que a filosofia e as ciências ocidentais, nomeadamente a física moderna, as neurociências, a sociologia, antropologia e linguística nos ensinam: nossa percepção da realidade não é direta. Como assinala Morin (ibid., p. 22), “nossa percepção do mundo exterior é coproduzida pelas forças organizadoras do cérebro”. Nosso cérebro recria em hologramas (imagens com relevo) uma realidade feita de ondas de frequência. Se pensamos na realidade sócio-histórica, fica patente seu caráter de constructo, de construção resultante do concurso do simbólico no imaginário, socialmente constituídos. Nesse tocante, Morin observa:

 

(...) a realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas e nas nossas percepções, como também pela e na nossa linguagem, pelas e nas nossas teorias ou filosofias, pelas e nossas culturas e sociedades. (ibid., p. 23).

 

 

Se a doutrina de Maya subtrai ao mundo fenomênico a sua substancialidade, será que a física quântica confirma, mesmo que noutro registro, o que reza esta doutrina? É este o problema que nos ocupará na próxima seção.

 

 

3. A física quântica ou a loucura quântica

 

Guitton, em seu livro Deus e a Ciência (1992), escrito na forma de um diálogo com os cientistas Grichka Bogdanov e Igor Bogdanov, nos dá testemunho da verdadeira revolução levada a efeito pela física quântica:

 

A teoria quântica nos diz que, para compreender o real, é preciso renunciar à noção tradicional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detectada em dois lugares ao mesmo tempo. Que a realidade fundamental não é cognoscível. (ibid., p. 16).

 

 

A física quântica pede-nos que, para compreender o real, em sua natureza íntima, em sua essência, por assim dizer, renunciemos ao modo familiar pelo qual nos relacionamos com o mundo. Nesse sentido, também para a doutrina vedanta de Maya, o conhecimento verdadeiro do  mundo supõe a libertação da teia de Ilusão tecida por Maya sobre toda a realidade fenomênica. Guitton, no entanto, vai mais longe e ajunta que “(...) a física quântica toca de modo surpreendente a Transcendência” (ibid., p. 10). É nesse momento que Guitton faz sobressair o cristão que era sobre o filósofo que foi. É bastante problemático afirmar que a física quântica admita, de algum modo, uma realidade transcendente. Antes de tentar demonstrar por que penso que a física quântica não toca a Transcendência, preciso dizer algumas palavras sobre o que significa transcendência na história do pensamento ocidental. De modo geral, transcendência designa a condição de algo que pertence a outra natureza radicalmente diferente, que é radicalmente exterior, que é de ordem superior. No teísmo, por exemplo, diz-se que Deus é transcendente em relação ao mundo e aos homens. Isso significa dizer que Deus é radicalmente superior e exterior ao mundo e aos homens. Chamo a atenção para o fato de Guitton grifar a palavra transcendência com “T” (maiúsculo), talvez para sugerir que a Transcendência se identifica com o próprio Deus teísta. Ao menos me parece que Guitton concebe a transcendência como “princípio divino, condição do Ser além de toda experiência humana”. Não creio que a física quântica acene a uma Transcendência no sentido pretendido pelo autor. Os físicos e astrofísicos, muito provavelmente, relutariam em admitir que a física quântica seja o reconhecimento de que há algo muito além do Universo conhecido que se identificaria com algum princípio divino ou espiritual. Talvez possamos dizer que a única transcendência postulada pela física quântica seja a da existência de uma realidade fundamental que, mesmo sendo inacessível à experiência humana ordinária e até mesmo ininteligível pelos padrões dessa experiência, e, portanto, superior a ela, não implica a suposição de que essa realidade tem algo de divino ou sobrenatural. Todavia, se a física quântica não parece implicar uma Transcendência divina como causa explicativa do mundo, ela seria permeável a investigações metafísicas? Em outras palavras, será que no afã de investigar como o mundo funciona no nível subatômico, determinando quantas e quais seriam as partículas elementares do universo, os físicos não estariam adentrando o domínio das investigações metafísicas? Parece-me que sim, e direi o porquê. Consideremos, em primeiro lugar, que Metafísica é a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. Aristóteles definia-a como a filosofia primeira, pois que ela se ocupa dos princípios e causas primeiras da phýsis. Na tradição escolástica, a metafísica divide-se em metafísica geral, que examina o conceito geral do ser e a realidade em seu sentido fundamental e transcendente; em metafísica especial, que compreende domínios específicos do real. A metafísica especial se subdivide em cosmologia ou filosofia natural, a qual, por seu turno, se ocupa do mundo e da essência da realidade material; em psicologia racional, ou tratado da alma, de sua natureza e propriedades; e em teologia racional ou natural, que recobre o conhecimento de Deus e das provas racionais de sua existência (sem o recurso à fé). Foi no pensamento moderno, sobretudo com Kant, que a metafísica deixa de ocupar um lugar central no pensamento filosófico, já que a filosófica crítica de Kant vai fixar limites às pretensões da metafísica de conhecer o mundo. Devemos a Kant a acepção da metafísica com a qual estamos mais familiarizados hoje em dia. Kant entendia por metafísica toda pretensão a um conhecimento que busque ultrapassar os limites da experiência possível, ou seja, é metafísica toda investigação que pretende ultrapassar o mundo fenomênico, o mundo da representação, das coisas tais como nos são dadas sob as formas da intuição (formas puras que, para Kant, são o tempo e o espaço). A metafísica ousa ir além das formas puras da intuição para dizer algo sobre o incondicionado, o em-si das coisas. Em outras palavras, fazemos metafísica quando nos interrogamos sobre o que se oculta, o que está por trás da natureza, da realidade sensível.

Do ponto de vista metodológico, os físicos podem alegar que muitas de suas especulações e hipóteses ensejadas pela imaginação criadora não chegam a perturbar a zona da cientificidade das teorias já comprovadas pela observação empírica. Físicos podem (e o fazem com certa frequência) formular muitas hipóteses que poderiam ser encaradas como metafísicas, sem que isso tenha alguma validade científica, pois que teorias científicas precisam ser, segundo Popper, refutáveis, ou testadas pela verificação. Em todo caso, se entendemos por metafísica o estudo das causas e princípios primeiros do mundo, então a física quântica adentra o terreno da metafísica. Quando os físicos assumem a existência de uma realidade fundamental diversa da realidade macroscópica de três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo em que vivemos, eles fazem metafísica. Nesse sentido, a Teoria das Cordas ou Supercordas, que não foi ainda comprovada empiricamente, embora seja uma solução consistente e elegante para articular a Relatividade Geral à mecânica quântica, ilustra um caso de especulação metafísica no interior da cosmologia.

O mundo desvelado e explicado pela física quântica é um mundo como campo de interações mediadas por bósons. Acredita-se que no mundo subatômico existam centenas de partículas elementares. Existem quatro partículas estáveis no mundo subatômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Mas, segundo Igor Bogdonov (Guitton, ibid., p. 77), “quando mergulharam no cerne do núcleo [do átomo], os físicos descobriram o imenso oceano dessas partículas nucleares, deste então, chamadas hádrons”. Os hádrons decompõem-se em partículas menores, chamadas de quarks. Assim, consoante nota Guitton, “o que chamamos de realidade não é outra coisa senão uma sucessão de descontinuidades, flutuações, contrastes e acidentes de terreno que, em seu conjunto, constituem uma rede de informações”. (ibid., p. 84). As partículas subatômicas como quarks, elétrons, bósons, neutrinos, entre outras, foram primeiramente formuladas como hipóteses matemáticas, para, posteriormente, se revelarem como elementos da realidade fundamental.

A Teoria das Cordas, desenvolvida no interior da física quântica, se propõe ligar a Relatividade Geral à física quântica. Assim, ela funciona como um elo entre uma teoria que explica o funcionamento do mundo numa escala grande e o funcionamento do mundo numa escala pequena. De acordo com essa teoria, se fosse possível observar microscopicamente o interior das partículas fundamentais da matéria (elétrons, quarks, etc.), o que encontraríamos não seria um ponto, mas uma corda em forma de laço (um laço de corda). As partículas interagiriam entre si mediante diversos padrões de vibração desses laços. Embora os físicos não ousem afirmar que as cordas são as partículas fundamentais e indivisíveis do universo, o que é preciso fazer ver é que, cada vez mais, a física moderna assume uma realidade fundamental radicalmente diferente do mundo macroscópico do espaço-tempo.

 

3.1. A granularidade da matéria

 

A mecânica quântica não nos permite mais pensar a matéria como algo sólido, tangível. A matéria é granular e a realidade não é feita de coisas, mas de relações, de eventos. A física quântica não descreve como as coisas são, mas como elas acontecem. Como ensina Rovelli (2017, p. 132),

 

Não descreve onde está uma partícula, mas onde a partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das coisas existentes é reduzido ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida à interação. A realidade é reduzida à relação.

 

 

São as relações que dão origem às coisas. Nós, como todas as coisas existentes, somos processos, fluxos de eventos “que, por um breve tempo são monótonos” (ibid., p. 133). A física quântica permitiu a descoberta de três aspectos do mundo: 1) Granularidade: o mundo é uma sucessão de eventos quânticos granulares; 2) Indeterminismo: o futuro não é determinado univocamente pelo passado; 3) Relação: os eventos naturais são sempre relações, interações. A física quântica, segundo Rovelli, nos ensina a não pensar o mundo como um conjunto de “coisas” que estão neste ou naquele estado, e sim como um campo de processos, de interações. Um processo é a passagem de uma interação a outra. E as propriedades das “coisas” se manifestam como granulares apenas no momento da interação, isto é, nas bordas do processo, “e são tais apenas em relação a outras coisas, e não podem ser previstas de modo unívoco, mas apenas de modo probalístico. (ibid., p. 134). Um elétron não se acha em lugar algum quando está em interação. Assim, a física quântica esteia-se no postulado do aspecto relacional de todas as coisas. Os elétrons não existem sempre, mas “existem apenas quando interagem” (ibid.).

 

Materializam-se em um lugar quando se chocam contra outra coisa. Os “saltos quânticos” de uma órbita a outra são a única maneira para tornar-se reais: um elétron é um conjunto de saltos de uma interação a outra. Quando ninguém o perturba, um elétron não está em lugar algum. (ibid.).

 

Bizarro este mundo? Mas este é o Universo de cuja trama ígnea surgimos como uma faísca do acaso. A loucura quântica ensina-nos que a realidade observada é dependente do ponto de vista do observador. Grchka Bogdanov alerta-nos sobre o seguinte:

 

(...) o sucesso da teoria quântica é o de se ter edificado à margem da razão ordinária e quase sempre contra ela. É por isso que há algo de “louco” nessa teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem que o saibamos ainda claramente, é nossa representação de mundo que está em jogo e começa a balançar irresistivelmente. (ibid., p. 99).

 

Decerto, o mundo como representação, para falar como Schopenhauer, desmorona, a nossa maneira habitual de perceber e compreender a realidade é radicalmente abalada na mecânica quântica. Assim, se uma flor é colocada num lugar fora do alcance da nossa observação, aceitamos que ela não deixa de existir. Isso sabemos por experiência. Mas a física quântica mantém que, se nós nos detivermos a observar essa flor a partir do nível atômico, sua realidade profunda e existência estarão intimamente ligadas ao modo pelo qual a observamos. Portanto, não podemos assumir a existência objetiva de uma partícula elementar num ponto definido do espaço. Uma partícula só existe sob a forma de um ponto definido no espaço e no tempo, quando a observamos diretamente. Como enfatiza Grichka, “não deixa de ser perturbador constatar que a realidade observada está ligada ao ponto de vista adotado pelo observador”. (ibid., p. 104). Mas o que há de perturbador não é o simples fato de que o mundo percebido exista na dependência de quem o percebe, mas no fato de que o observador afeta o comportamento de suas partículas elementares no momento em que as observa.

 

3.2. A granularidade do espaço

 

O espaço também é granular em pequena escala. Os fótons se encontram no espaço, mas os quanta são eles mesmos o espaço. Os quanta de espaço são o lugar. Em uma escala muito pequena, o espaço não é contínuo, mas tecido por elementos finitos interconectados. Segundo Rovelli, “o espaço físico é o tecido resultante do pulular contínuo dessa trama de relações” (ibid., p. 170). A estrutura do espaço é um efeito do encontro entre dois grãos de espaço. O espaço não é, como costumamos imaginar, um recipiente amorfo onde as coisas se situam, aparecem. Com a gravidade quântica, as coisas não se situam no espaço, mas sim habitam a vizinhança umas das outras, e o espaço “é o tecido de suas relações de vizinhanças”. (ibid., p. 171). Novamente, devemos enfatizar que o mundo não é um conjunto de coisas, mas uma trama de eventos. As coisas não são; elas acontecem. O mundo não é constituído de entes, de coisas que existem, mas é um pulular flutuante de eventos, acontecimentos, processos. A mudança no mundo é onipresente. O mundo é puro devir. Consoante lembra Rovelli, “as próprias “coisas” são apenas acontecimentos que são monótonos por um tempo, antes de retornar ao pó. Porque, cedo ou tarde, tudo sempre retorna ao pó”. (ibid., p. 85, grifo meu). Se este mundo nos causa um sentimento de profundo assombro quando o contemplamos à luz da física quântica, como não experienciar espanto em face da raridade da vida num Universo tão enigmático?

 

É uma surpreendente coincidência que o universo seja do jeito que ele é. Os cientistas tendem a não se sentirem confortáveis com as coincidências, e a interpretação de muitos mundos oferece uma saída. Se o cenário de muitos mundos é verdade, talvez haja muitos universos diferentes lá fora, com constantes diferentes. Alguns entram em colapso num milissegundo. Alguns quase não têm matéria. Nós simplesmente habitamos um que é adequado à vida. (Seife, 2007, p. 227).

 

 

3.3. O presente não existe

 

Quando a física quântica mantém que o presente não existe, deve-se entender que ela nega a existência de um presente objetivo universal. A forma como nossas línguas ocidentais segmentam a experiência do tempo em passado, presente e futuro é enganosa. As relações temporais entre os eventos são, deveras, mais complexas do que supomos. Há mudança no mundo, mas ela não ocorre de acordo com uma ordem universal. A física quântica descobriu a indeterminação, de sorte que não é possível prever com exatidão onde um elétron vai estar amanhã. O espaço-tempo também flutua. A distinção entre presente, passado e futuro é flutuante e indeterminada, de modo que um acontecimento pode estar, ao mesmo tempo, antes e depois de um outro. Assim, segundo Rovelli (2018, p. 149),

 

 (...) o presente comum a todo o universo não existe. Os acontecimentos não são todos ordenados em passados, presentes e futuros: são apenas “parcialmente” ordenados. Existe um presente próximo de nós, mas não algo de “presente” numa galáxia distante. O presente é uma noção local, não global.

 

Ainda segundo o autor, subtraindo-se os efeitos quânticos, “tempo e espaço são aspectos de uma grande gelatina móvel na qual estamos imersos”. (ibid., p. 149). O autor ajunta, no entanto, que “na gramática elementar do mundo não existem espaço nem tempo: apenas processos que transformam quantidade físicas umas nas outras, cujas probabilidades e relações podemos calcular”. (ibid.). Como se vê, no nível mais fundamental de realidade que se pode conhecer atualmente, resta muito pouco do tempo que ordena nossa experiência habitual de mundo. Porque o tempo não é uniforme em todo o Universo? Por que temos a experiência da passagem do tempo no mundo de nossa experiência sensível, mas o tempo tanto quanto o espaço deixam de existir no mundo subatômico? Aqui como em outros casos, estamos imersos no Mistério. Considere-se, doravante, a realidade do vácuo ou o vazio.

 

3.4. O vazio na origem de tudo

 

No budismo, o vazio ou a vacuidade recobre a ideia da interdependência da existência de todas as coisas. O vazio não é o nada. Tudo que existe é permeado pelo vazio. O mundo fenomênico depende do vazio para existir. A vacuidade é, portanto, a realidade suprema, imperecível, imutável. Está além da vida e da morte. Para o budismo, a vacuidade é ausência de existência inerente. O budismo reza que os fenômenos carecem de densidade ontológica, ou seja, não existem em si, mas sua existência depende do observador. Em última instância, o mundo fenomênico é uma construção de meu cérebro.

 Também a física quântica nega que o vazio seja o nada, seja ausência total de existência. Ao contrário, o vazio ou o vácuo é cheio, ele fervilha de atividade. Grichka Bagadanov diz que não há lugar do espaço-tempo onde não se encontre “nada”: “em toda parte encontramos campos quânticos mais ou menos fundamentais” (ibid., p. 93). Portanto, pode-se depreender daí que o “nada” como possibilidade ôntica é uma ilusão. O vácuo é um palco de acontecimentos permanentes, de flutuações incessantes, de violentas tempestades quânticas, nas quais se criam novas partículas subatômicas que são, quase sempre, imediatamente, aniquiladas. Seife nos dá testemunho de sua perplexidade em face do caráter paradoxal do vácuo no seguinte passo:

 

Parece uma contradição dizer que o vácuo é o fenômeno mais complexo do universo. A própria definição do vácuo é a ausência de tudo, um espaço cheio de coisa alguma. Na década de 1930, entretanto, os físicos quânticos descobriram, para a sua grande surpresa, que o vácuo não está sempre realmente vazio. Ele fervilha de atividade, cheio até a borda de partículas e energia. (ibid., p. 189).

 

Num aspecto, a física quântica e o budismo concordam: o vazio é cheio, o vácuo não é o nada. É claro que isso não significa dizer que a vacuidade búdica signifique a mesma coisa que o vácuo da física. A vacuidade búdica se inscreve num registro ético que é estranho ao vácuo de que tratam os físicos. Mas tanto o vazio búdico quanto o vazio do Universo físico está impregnado de Mistério, esconde um segredo. Segundo Seife, atualmente, os físicos acreditam que o vácuo – “o vazio no espaço profundo” - abriga o segredo da mais recente dúvida da cosmologia: o que é a misteriosa força antigravitacional que achata o Universo e acarreta o afastamento das galáxias? Como o vazio é constituído de partículas e energias virtuais que, depois de se atualizarem, teriam produzido a deflagração térmica chamada de Big Bang, não é sem espanto que os físicos acreditam que “o que parece menos real, o vazio, teria sido a origem da nossa realidade” (Morin, ibid., p. 29). Se for possível dizer que o vazio é um vazio originário, então a sabedoria oriental e a física quântica encontram-se novamente em acordo, pois o budismo também crê no vazio originário, no vazio como realidade última.

Chegando ao fim do percurso destas minhas reflexões embebidas no espanto, reencontramos a imagem do mundo como um sonho mantido pela ilusão de Maya, na pena de Igor Bogdanov, que diz explicitamente que “nós sonhamos o mundo”.

 

Segundo a nova física, sonhamos o mundo. Nós o sonhamos como algo durável, misterioso, visível, onipresente no espaço e no tempo. Além dessa ilusão, todas as categorias do real e do irreal se esvaem. Assim como não podemos considerar que o gato de Schrödinger está vivo ou morto, também não podemos perceber o mundo objetivo como existente ou não existente. O espírito e o mundo formam uma única e mesma unidade. (ibid., p. 143, grifos meus).

 

 

Estaria a física quântica validando a tese do idealismo transcendental? Estaria admitindo um metarrealismo como a melhor abordagem do Universo? Guitton não hesitaria em dizer que esta é a melhor abordagem para tentar tornar menos misterioso o Mistério em que estamos mergulhados: “não podemos dizer que o espírito e a matéria simplesmente coexistem: eles existem um através do outro”. (ibid., p. 144).

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1. GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichkva; BOGDANOV, Igor. DEUS E A CIÊNCIA. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

2. MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

 

3. ROVELI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

______________. A ordem do tempo. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

 

4. SEFIE, Charles. Alfa e Ômega: a busca pelo início e o fim do universo. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

5. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudio Giovani Bozza, Adriana Franchini De Césare. São Paulo: Palas Atenas, 2020 (1986).