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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“A magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos.” (Lord Owen Meredith)

                                                              



                                O feitiço do simbólico

 

Este texto poderia ostentar o título armário, que serviria como um frame para que eu começasse a discorrer sobre a experiência, bastante comum, que tive ao ajudar a desmontar um armário para dar lugar a um novo que também ajudei (indiretamente) a montar. O título “armário” representaria, assim, um modelo cognitivo da experiência de lida com as coisas, tão característica do senso comum. Enquanto eu estava ocupado com o desmonte do armário, eu habitava, por horas, o domínio intersubjetivo do modo de viver do senso comum. Meu corpo operava a fim de resolver problemas práticos, tais como o de saber que parte do armário deveria desaparafusar primeiro. Não que eu me dispensasse de pensar, mas o meu pensamento era orientado para a resolução de problemas de ordem prática. Nesse domínio de experiência, não faria sentido demorar-me em elucubrações metafísicas, filosóficas, em reflexões sobre o sentido do que fazia, sobre o que é um armário. O armário me vinha ao encontro como um estorvo, um problema prático que exigia solução. O relato sobre minha experiência de desmonte do armário configuraria, portanto, o frame a partir do qual eu me estenderia sobre como a leitura, os livros, a filosofia estruturam a minha vida diária. Agora, sinto que não era bem isso que eu queria dizer. A experiência do armário apenas seria uma espécie de “gatilho cognitivo” para que eu externasse um sentimento persistente e familiar que teria a seguinte formulação verbal: sinto que vivo transitando entre duas esferas, entre dois domínios de experiência, a saber, o domínio do senso comum, no qual ajo compartilhando com os outros (meus familiares, amigos) um mesmo “mundo”, e o domínio da experiência da filosofia, ou da leitura, que me faz ‘habitar’ outro mundo, um mundo mais significativamente profundo, um mundo à parte, um mundo que é mais complexo, mais vasto, um mundo que responde por anseios elevados, por necessidades psíquicas não satisfeitas pelas experiências comuns da vida diária, um mundo que me é acessível apenas pelos signos, pelos textos, porque é um mundo que se experiencia como mundo inteiramente textualizado. Viver, não raro, se me afigura como um esforço contínuo por fazer coexistir esses dois mundos, por fazer que se mantenham conciliados em alguma medida. A vida pode ser reduzida a este esforço: a conciliação entre o mundo da vida comum, no qual agimos conjuntamente com os outros e no qual estabelecemos com os outros relações de interdependência a fim de satisfazer necessidades práticas, emocionais, afetivas, no qual obramos, no qual nos esforçamos por obter os recursos materiais necessários à nossa subsistência, no qual sofremos uma série de perturbações imprevistas que quebram a rotina, no qual também fruímos alguns prazeres triviais, e o mundo da vida filosófica, da leitura, no qual a experiência que temos da realidade é profundamente transfigurada, é radicalmente transformada, no qual o espírito, absorto, frui prazeres mais prolongados. Assim, me apercebo como um sujeito esquizo, um esquizo-frênico. Não chego a sofrer, evidentemente, de esquizofrenia paranoide; mas tenho a experiência íntima de que a vida como leitor e como filósofo produz uma divisão, uma cisão, uma fissura (não chega a ser uma quebra, uma completa ruptura, o que constituiria um estado patológico) com o mundo tal como experienciado pelo senso comum. Já tive a oportunidade de falar sobre isso em outros textos. O filósofo também se orienta pelo senso comum, em sua vida diária, não como filósofo, mas como pai, filho, marido, cliente de banco, consumidor, paciente que busca assistência médica, etc. No entanto, o filósofo não se despe de seu modo de ser para assumir outros papéis; seu modo de ser está sempre disponível, sempre se intrometendo nos interstícios de sua experiência comum de mundo, o que, não raro, lhe traz algumas perturbações, algumas inconveniências, sempre que os modelos sociocognitivos ativados e compartilhados com o interlocutor não admitem a interferência de questionamentos profundos e elaborados . Não é que ele deixe de ser filósofo quando é pai, filho; porque a filosofia é seu modo de ser mais próprio. No entanto, ele sabe que, em sociedade, os indivíduos atuam como atores – são atores sociais -, e assumem papéis sociais institucionalmente fixados. Convém interromper o fio discursivo neste ponto, pois não quero trafegar por caminhos que me afastariam para bem longe das intenções iniciais me levaram a compor este texto. Espero que o que se seguirá não se apresente ao leitor tão transviado do motivo central que me incitou a escrever este texto.

Instalados, na maior parte do tempo e na maioria das vezes, no senso comum, os indivíduos não se deixam afetar pela experiência do espanto, da admiração. O senso comum, sendo o modo espontâneo, “natural”, familiar, imediato de eles se relacionarem com o mundo, de o perceberem e o compreenderem fornece-lhes sempre esquemas práticos de simplificação, de superficialização das experiências que eles têm das ocorrências do real. No senso comum, a linguagem mesma não é sequer um objeto de problematização, de questionamento para eles. Instalado no senso comum, o homem usa a linguagem como mero instrumento de comunicação de seus pensamentos, de seus sentimentos, de suas ideias, crenças, opiniões, valores. Ao servir-se dela, com o propósito de exteriorizar os conteúdos de sua consciência, o homem comum acredita que a linguagem lhe dá acesso ao mundo já dado, objetivo, cuja existência é anterior à linguagem. Assim, a relação entre a linguagem e o mundo se resolve em termos de ajustes, acordos, correspondências objetivas entre o signo e o real, entre os enunciados que ele produz e a ordem já dada de uma realidade que a ordem simbólica apenas reflete, expressa, traduz (na verdade, a ordem simbólica não é sequer uma ordem que se sobrepõe à ordem do mundo; ela é identificada com a própria ordem do mundo; é subsumida nessa ordem, de modo que o mundo se organiza, se estrutura do modo como está estruturado e expresso na sintaxe da linguagem). A verdade é simplesmente um efeito da correspondência entre o enunciado e o mundo, entre as palavras, de um lado, e as coisas, de outro, entre o pensamento e a realidade exterior. Os desacordos, as desavenças, tão frequentes entre os interactantes nos usos da língua seriam, assim, sintomas de um descuido, de uma imperícia, de uma falta, de um erro, nas tentativas que fazem os interactantes de ajustar, de adequar suas produções linguísticas à realidade objetiva, previamente existente e estruturada.

No entanto, quando examinamos mais acuradamente como se dá a relação entre o ser humano, a linguagem e a realidade, descobrimos ser uma miragem essa crença numa relação especular entre a linguagem e o mundo. Não vou me deter nos meandros complexos, intrincados e fascinantes desse problema. Quero apenas manifestar aqui meu espanto: os seres humanos, sem se darem conta disto, existem como seres capturados na teia do simbólico. Toda a sua existência é capturada, está emaranhada nessa teia de símbolos, signos, linguagens (basta atentar para os espaços sociais onde a nossa vida acontece: eles são povoados de signos, linguagens, sinais, outdoors, imagens; basta se aperceber do modo como nossa vida está imersa nesses ciberespaços da internet onde circulam incessantemente palavras, hipertextos, hipersignos, hipermídias, linguagens e imagens diversas). Mas, ao acreditarem que estão a falar do mundo, o que eles fazem não é senão produzir e negociar, nas práticas sociointeracionais por meio da língua, modelos públicos de mundo, versões semiotizadas da realidade. Ao acreditar que eles falam de coisas previamente existentes à ordem do simbólico, à ordem do discurso, o que eles, de fato, fazem é falar de objetos-de-discurso, de referentes que se constroem cognitivamente no discurso e que são modificados, estendidos, ressignificados, trasformados nas práticas discursivas. Nós vivemos como se estivéssemos irremediavelmente sob uma espécie de “feitiço” do símbolo, de encantamento da linguagem: acreditamos falar do mundo propriamente, quando, na verdade, falamos acerca dos modelos de mundo fabricados simbolicamente. E o que é mais espantoso: travamos brigas, disputas, contendas, odiamos, guerreamos e matamos em nome desses modelos de mundo simbolicamente fabricados. Não nos dando conta de que, nas práticas diárias de uso da linguagem, estamos constantemente negociando significados, estamos produzindo efeitos de sentido, estamos agindo sobre os outros, tentando convencê-los, persuadi-los, de modo a modificar-lhes o comportamento, acreditamo-nos portadores da chave que nos dá um acesso direto, verdadeiro, imediato à realidade. Acreditamos que possuímos um saber sobre a ordem do mundo em si, sobre como o mundo é em si mesmo, independentemente da linguagem, da cognição, da percepção, da práxis histórica e cultural, que constituem, em conjunto, os modos pelos quais a realidade se constrói e se torna acessível, inteligível, compreensível ao animal humano. Loucura da condição humana: acreditar na transparência da linguagem, deixar-se enganar pela crença metafísica na linguagem, acreditar no “em si” do mundo que a linguagem se encarregaria de simplesmente espelhar, expressar. Essa forma de loucura é a da normalidade, é nossa “loucura normal”. Ela difere do delírio da esquizofrenia justamente porque a loucura normal rejeita a autonomização absoluta do signo, enquanto o esquizofrênico é aquele que sofreu a completa captura na trama do simbólico, é aquele para quem o mundo dos símbolos, dos signos se absolutizou, é aquele que “reconheceu” que não há nada ‘lá fora’ além das construções simbólicas fabricadas pelo discurso. Dizemos comumente que o “esquizo-frênico” perdeu o contato com a realidade - bem entendida: com a realidade da experiência comum, da experiência socialmente aceita, compartilhada, estabelecida como “norma”. Mas, se o louco é aquele que rompe com a realidade considerada “normal” por uma comunidade humana, então o que é a realidade? Não prova o louco que essa realidade não é senão um constructo, um modelo cerebral (mental), cognitivo, linguístico, cultural dependente da práxis histórica, dependente de acordos, de consensos humanos em coletividades? O louco não prova que a realidade objetiva não é senão um efeito, uma ficção (criação, fabricação) de experiências intersubjetivas que fundam um mundo; que o mundo objetivo é uma construção de relações intersubjetivas mediadas e estruturadas pelos significados que são produzidos e negociados nas inúmeras interações sociais por meio da linguagem?

terça-feira, 6 de julho de 2021

"O animal é tão ou mais sábio do que o homem: conhece a medida da sua necessidade, enquanto o homem a ignora. (Demócrito)

 




                                           O Bufão e o dançarino

 


      Liberto das vãs esperanças e das cobiças da multidão, Demócrito de Abdera ria-se das tolices do homem. Seu riso era expressão não só de sua potência de existir, de sua alegria de viver, mas também era um ato consciente do caráter ridículo da condição humana. Nisso ele foi o antípoda de Heráclito - um misantropo que lamentava as misérias da vida humana. Heráclito lamentava e chorava o fato de os seres humanos viverem a vida como se estivessem dormindo sem saber que estão dormindo. Não que Demócrito não concordasse com Heráclito nesse tocante, mas, ao contrário deste, não vivia a se lamentar pela insignificante condição humana impregnada de tolices e loucuras, mas a rir dela. Segundo Sêneca, para evitar “a noite do coração” e a “escuridão diante dos olhos”, é preferível seguir Demócrito:

“Devemos nos esforçar para conseguir uma postura de não achar os vícios do populacho repugnantes, e sim ridículos, e nos aproximar mais de Demócrito do que de Heráclito, pois este sempre chorava quando estava entre as pessoas enquanto aquele ria. Para Heráclito, todos os nossos atos pareciam lamentáveis; já para Demócrito, eram tolos. Portanto, aceitemos tudo com leveza e suportemos tudo com alegria. É mais humano rir da vida do que se lamentar”.



         Todas as tolices humanas não faziam Demócrito chorar, mas rir. Ele ria não apenas como forma de resistir ao desespero, como também, sobretudo, como forma de advertir seus conterrâneos sobre a ridícula loucura que é a vida deles. Se Demócrito escolheu o riso para denunciar a estultícia dos homens, Nietzsche escolheu a dança como signo de leveza contra o ressentimento que envenena a vida, contra a opressão dos valores supremos que a tiranizam. Um dançarino que ri, imbuído de júbilo divino, é a expressão máxima de um sim inquebrantável a uma existência que se perfaz como um jogo de máscaras tragicômicas e farsa.