O feitiço do simbólico
Este
texto poderia ostentar o título armário,
que serviria como um frame para que
eu começasse a discorrer sobre a experiência, bastante comum, que tive ao
ajudar a desmontar um armário para dar lugar a um novo que também ajudei
(indiretamente) a montar. O título “armário” representaria, assim, um modelo
cognitivo da experiência de lida com as coisas, tão característica do senso
comum. Enquanto eu estava ocupado com o desmonte do armário, eu habitava, por
horas, o domínio intersubjetivo do modo de viver do senso comum. Meu corpo
operava a fim de resolver problemas práticos, tais como o de saber que parte do
armário deveria desaparafusar primeiro. Não que eu me dispensasse de pensar,
mas o meu pensamento era orientado para a resolução de problemas de ordem
prática. Nesse domínio de experiência, não faria sentido demorar-me em elucubrações
metafísicas, filosóficas, em reflexões sobre o sentido do que fazia, sobre o
que é um armário. O armário me vinha ao encontro como um estorvo, um problema
prático que exigia solução. O relato sobre minha experiência de desmonte do
armário configuraria, portanto, o frame
a partir do qual eu me estenderia sobre como a leitura, os livros, a filosofia
estruturam a minha vida diária. Agora, sinto que não era bem isso que eu queria
dizer. A experiência do armário apenas seria uma espécie de “gatilho cognitivo”
para que eu externasse um sentimento persistente e familiar que teria a
seguinte formulação verbal: sinto que
vivo transitando entre duas esferas, entre dois domínios de experiência, a
saber, o domínio do senso comum, no qual ajo compartilhando com os outros (meus
familiares, amigos) um mesmo “mundo”, e o domínio da experiência da filosofia,
ou da leitura, que me faz ‘habitar’ outro mundo, um mundo mais
significativamente profundo, um mundo à parte, um mundo que é mais complexo,
mais vasto, um mundo que responde por anseios elevados, por necessidades
psíquicas não satisfeitas pelas experiências comuns da vida diária, um mundo
que me é acessível apenas pelos signos, pelos textos, porque é um mundo que se
experiencia como mundo inteiramente textualizado. Viver, não raro, se me afigura
como um esforço contínuo por fazer coexistir esses dois mundos, por fazer que
se mantenham conciliados em alguma medida. A vida pode ser reduzida a este
esforço: a conciliação entre o mundo da vida comum, no qual agimos
conjuntamente com os outros e no qual estabelecemos com os outros relações de
interdependência a fim de satisfazer necessidades práticas, emocionais,
afetivas, no qual obramos, no qual nos esforçamos por obter os recursos
materiais necessários à nossa subsistência, no qual sofremos uma série de
perturbações imprevistas que quebram a rotina, no qual também fruímos alguns prazeres
triviais, e o mundo da vida filosófica, da leitura, no qual a experiência que temos
da realidade é profundamente transfigurada, é radicalmente transformada, no
qual o espírito, absorto, frui prazeres mais prolongados. Assim, me apercebo como um sujeito esquizo, um esquizo-frênico.
Não chego a sofrer, evidentemente, de esquizofrenia paranoide; mas tenho a
experiência íntima de que a vida como leitor e como filósofo produz uma
divisão, uma cisão, uma fissura (não chega a ser uma quebra, uma completa
ruptura, o que constituiria um estado patológico) com o mundo tal como
experienciado pelo senso comum. Já tive a oportunidade de falar sobre isso em
outros textos. O filósofo também se orienta pelo senso comum, em sua vida
diária, não como filósofo, mas como pai, filho, marido, cliente de banco,
consumidor, paciente que busca assistência médica, etc. No entanto, o filósofo não
se despe de seu modo de ser para assumir outros papéis; seu modo de ser está
sempre disponível, sempre se intrometendo nos interstícios de sua experiência
comum de mundo, o que, não raro, lhe traz algumas perturbações, algumas inconveniências,
sempre que os modelos sociocognitivos ativados e compartilhados com o
interlocutor não admitem a interferência de questionamentos profundos e elaborados
. Não é que ele deixe de ser filósofo quando é pai, filho; porque a filosofia é
seu modo de ser mais próprio. No entanto, ele sabe que, em sociedade, os
indivíduos atuam como atores – são atores sociais -, e assumem papéis sociais
institucionalmente fixados. Convém interromper o fio discursivo neste ponto,
pois não quero trafegar por caminhos que me afastariam para bem longe das
intenções iniciais me levaram a compor este texto. Espero que o que se seguirá
não se apresente ao leitor tão transviado do motivo central que me incitou a
escrever este texto.
Instalados, na maior parte do tempo e na maioria das vezes, no senso
comum, os indivíduos não se deixam afetar pela experiência do espanto, da
admiração. O senso comum, sendo o modo espontâneo, “natural”, familiar,
imediato de eles se relacionarem com o mundo, de o perceberem e o compreenderem
fornece-lhes sempre esquemas práticos de simplificação, de superficialização
das experiências que eles têm das ocorrências do real. No senso comum, a
linguagem mesma não é sequer um objeto de problematização, de questionamento
para eles. Instalado no senso comum, o homem usa a linguagem como mero
instrumento de comunicação de seus pensamentos, de seus sentimentos, de suas
ideias, crenças, opiniões, valores. Ao servir-se dela, com o propósito de
exteriorizar os conteúdos de sua consciência, o homem comum acredita que a
linguagem lhe dá acesso ao mundo já dado, objetivo, cuja existência é anterior
à linguagem. Assim, a relação entre a linguagem e o mundo se resolve em termos
de ajustes, acordos, correspondências objetivas entre o signo e o
real, entre os enunciados que ele produz e a ordem já dada de uma realidade que
a ordem simbólica apenas reflete, expressa, traduz (na verdade, a ordem
simbólica não é sequer uma ordem que se sobrepõe à ordem do mundo; ela é
identificada com a própria ordem do mundo; é subsumida nessa ordem, de modo que
o mundo se organiza, se estrutura do modo como está estruturado e expresso na
sintaxe da linguagem). A verdade é simplesmente um efeito da correspondência
entre o enunciado e o mundo, entre as palavras, de um lado, e as coisas, de
outro, entre o pensamento e a realidade exterior. Os desacordos, as desavenças,
tão frequentes entre os interactantes nos usos da língua seriam, assim,
sintomas de um descuido, de uma imperícia, de uma falta, de um erro, nas
tentativas que fazem os interactantes de ajustar, de adequar suas produções
linguísticas à realidade objetiva, previamente existente e estruturada.
No entanto,
quando examinamos mais acuradamente como se dá a relação entre o ser humano, a
linguagem e a realidade, descobrimos ser uma miragem essa crença numa relação
especular entre a linguagem e o mundo. Não vou me deter nos meandros complexos,
intrincados e fascinantes desse problema. Quero apenas manifestar aqui meu
espanto: os seres humanos, sem se darem conta disto, existem como seres
capturados na teia do simbólico. Toda a sua existência é capturada, está
emaranhada nessa teia de símbolos, signos, linguagens (basta atentar para os
espaços sociais onde a nossa vida acontece: eles são povoados de signos,
linguagens, sinais, outdoors, imagens; basta se aperceber do modo como nossa
vida está imersa nesses ciberespaços da internet onde circulam incessantemente
palavras, hipertextos, hipersignos, hipermídias, linguagens e imagens
diversas). Mas, ao acreditarem que estão a falar do mundo, o que eles fazem não
é senão produzir e negociar, nas práticas sociointeracionais por meio da
língua, modelos públicos de mundo, versões semiotizadas da realidade. Ao
acreditar que eles falam de coisas previamente existentes à ordem do simbólico,
à ordem do discurso, o que eles, de fato, fazem é falar de objetos-de-discurso,
de referentes que se constroem cognitivamente no discurso e que são
modificados, estendidos, ressignificados, trasformados nas práticas
discursivas. Nós vivemos como se estivéssemos irremediavelmente sob uma espécie
de “feitiço” do símbolo, de encantamento da linguagem: acreditamos falar do
mundo propriamente, quando, na verdade, falamos acerca dos modelos de mundo
fabricados simbolicamente. E o que é mais espantoso: travamos brigas, disputas,
contendas, odiamos, guerreamos e matamos em nome desses modelos de mundo simbolicamente
fabricados. Não nos dando conta de que, nas práticas diárias de uso da
linguagem, estamos constantemente negociando significados, estamos produzindo
efeitos de sentido, estamos agindo sobre os outros, tentando convencê-los,
persuadi-los, de modo a modificar-lhes o comportamento, acreditamo-nos
portadores da chave que nos dá um acesso direto, verdadeiro, imediato à
realidade. Acreditamos que possuímos um saber sobre a ordem do mundo em si,
sobre como o mundo é em si mesmo, independentemente da linguagem, da cognição,
da percepção, da práxis histórica e cultural, que constituem, em conjunto, os
modos pelos quais a realidade se constrói e se torna acessível, inteligível,
compreensível ao animal humano. Loucura da condição humana: acreditar na
transparência da linguagem, deixar-se enganar pela crença metafísica na
linguagem, acreditar no “em si” do mundo que a linguagem se encarregaria de
simplesmente espelhar, expressar. Essa forma de loucura é a da normalidade, é
nossa “loucura normal”. Ela difere do delírio da esquizofrenia justamente
porque a loucura normal rejeita a autonomização absoluta do signo, enquanto o
esquizofrênico é aquele que sofreu a completa captura na trama do simbólico, é
aquele para quem o mundo dos símbolos, dos signos se absolutizou, é aquele que
“reconheceu” que não há nada ‘lá fora’ além das construções simbólicas
fabricadas pelo discurso. Dizemos comumente que o “esquizo-frênico” perdeu o
contato com a realidade - bem entendida: com a realidade da experiência comum,
da experiência socialmente aceita, compartilhada, estabelecida como “norma”.
Mas, se o louco é aquele que rompe com a realidade considerada “normal” por uma comunidade humana, então o que é a realidade? Não prova o louco que essa
realidade não é senão um constructo, um modelo cerebral (mental), cognitivo,
linguístico, cultural dependente da práxis histórica, dependente de acordos, de
consensos humanos em coletividades? O louco não prova que a realidade objetiva
não é senão um efeito, uma ficção (criação, fabricação) de experiências
intersubjetivas que fundam um mundo; que o mundo objetivo é uma construção de
relações intersubjetivas mediadas e estruturadas pelos significados que são
produzidos e negociados nas inúmeras interações sociais por meio da linguagem?