quinta-feira, 25 de novembro de 2021

"Brasil, condenado à esperança". (Millôr Fernandes)

 

                                                        



                                                   Flutuações do humor

 

A depender de meu estado de espírito, posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como “referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis, a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as alegações das religiões instituídas e  com seus fiéis que as reduzem comumente à busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar. Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.






                                        FIM DA CORRUPÇÃO 


Tem uma moçada aí que pede o fim da corrupção como se pôr fim à corrupção no Brasil fosse como encerrar as atividades de uma empresa por falência. Até apareceu por estas bandas cabralistas um tal de Messias populista prometendo pôr fim à bandalheira dos congressistas, inaugurando uma nova era em que no Brasil já não mais se ouviria falar de corruptos de colarinho branco. Daí resolvi estudar para entender de onde vem este nosso costume abjeto de favoritismo dos poderosos, de corrupção dos administradores do Estado. E descobri que esse costume se enraizou neste solo castigado pela escravidão de negros e indígenas desde o período colonial. Desde muito cedo, no Brasil, o serviço judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. Os Sermões de Padre Antônio Vieira davam testemunho disso. A prevaricação de magistrados no período colonial era corrente. Para comprová-lo, basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII. Em 22 de janeiro de 1725, Vasco Fernandes Cézar de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de Portugal contando à Sua Majestade sobre “as desordens e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos...a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis”. No Brasil, desde o período colonial, consagrou-se, assim, um velho costume que persiste inquebrantável e vigoroso até hoje: a dualidade dos ordenamentos jurídicos. Há um ordenamento jurídico oficial, que vige, no entanto, apenas formalmente, e há outro ordenamento jurídico efetivo, nunca oficialmente promulgado, que em tudo corresponde aos interesses próprios do grupo oligárquico. E por falar neste, a oligarquia brasileira não é a oligarquia tradicional, em que o poder supremo se concentra exclusivamente nas mãos de uma minoria de abastados, mas sim uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, que une entre si a classe rica e os principais agentes do Estado, deixando o povo à margem de todas as decisões políticas. A privatização do poder político se estabeleceu entre nós no período colonial. Essa privatização é o objetivo perseguido pelo capitalismo. Ela deu origem à longeva tradição do patrimonialismo de Estado, tão comum na América Latina. Essa tradição arraigada em nossa cultura favorece as práticas de corrupção sistêmica no trato com a coisa pública. Outra vez Padre Antônio Vieira se queixava à Sua Majestade da corrupção generalizada dos funcionários enviados às colônias portuguesas. Nas colônias, incluindo o Brasil, os administradores, sempre aparentando obedecer às autoridades d’além-mar, continuavam a servir aos seus interesses próprios sem que fossem importunados. Também nesses tempos remotos mas atuais, era comum que os Governadores, na qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar às boas graças dos desembargadores, acrescentando-lhes aos ordenados gratificações extraordinárias conhecidas como “propinas”. E, como era de esperar, a fiscalização, que deveria ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionários em exercício por aqui, deixava muito a desejar, porque até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre Lisboa e o Brasil. A corrupção sempre grassou no serviço judiciário português , quer na metrópole, quer nas colônias. Desde Platão, aprendemos que os costumes não se mudam por leis, ao que Rousseau acrescentou outra lição amarga para nós: a verdadeira constituição do Estado são os costumes. A conclusão eu deixo a cargo do leitor. Por fim, antes de pedir o fim da corrupção aos próprios agentes corruptores, busquemos estudar a nossa história, a história da formação de nossa sociedade e de nosso Estado. Talvez assim, se não conseguirmos debelar tal costume tão familiar entre nós, ao menos não nos deixaremos seduzir por populistas que se apresentam como ovelhas do pastoreio da Redenção com pele de lobo que frequenta os salões onde se refastela junto de sua alcateia, há anos, no banquete dos cofres públicos. No Brasil, moçada pedinte, desde muito cedo, o poder de mando, de dominação política e econômica, se concentrou na aliança formada entre os agentes estatais - governadores, magistrados, membros do Ministério Público, altos funcionários - e os potentados privadas - o grande empresariado, donos do capital. Aqueles, no exercício de suas funções oficiais atuam a serviço dos interesses destes, enquanto estes, fingindo submissão aos poderes oficiais, pressionam aqueles, quando não os corrompem simplesmente, em todos os níveis - legislação, administração, prestação de justiça. E quanto ao povo? O povo que se lasque! A notícia amarga e desoladora é que a coligação oligárquica soberana não dá sinais de que um dia chegará ao fim no Brasil. Para isso acontecer, o povo teria de deter realmente o poder soberano, o que significa dizer que teríamos de instituir uma verdadeira democracia no Brasil. Mas entendam isto, pelo amor de Deus! NÓS NÃO VIVEMOS NUMA PLENA DEMOCRACIA. O que temos aqui é uma pseudodemocracia, um simulacro de democracia, um arremedo de democracia. Como ensinou Aristóteles (sempre a filosofia - essa inutilidade tão necessária ou mais necessária do que todas as inutilidades), a democracia é o regime em que o povo soberano goza de relativa igualdade de condições de vida; mas o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, o que torna ainda mais favorável a perpetuação da coligação oligárquica, cujo poder inviabiliza a realização de uma autêntica democracia no Brasil, é o fato de que a mentalidade da população menos favorecida é mais facilmente inclinada a obedecer do que a mandar ou a tomar iniciativas. A educação política do povo é necessária, mas ela não pode ser de responsabilidade, pelo menos não inicialmente, do Estado, pois o poder oligárquico a ela se oporá.

 

sábado, 20 de novembro de 2021

"A teologia dá respostas incompreensíveis para perguntas sem sentido" (Voltaire).

 



A verborreia teológica

 

 

Segundo Orígenes, Deus é uno, simples, inefável e perfeito. Apesar de uno e simples, Deus é Pai, Verbo e Espírito Santo. Orígenes diz que essas três hipóstases, no entanto, não impedem que Deus seja uno. (A lógica aqui é estuprada). Escusa dizer que Orígenes, sem conseguir asfixiar completamente a razão, permanece embaraçado no problema das relações entre aquelas três pessoas divinas. E, se Deus é inefável, como pretender dizer algo sobre ele? (os místicos, ao menos, respeitavam os princípios doutrinários previamente estabelecidos; toda teologia é uma verborragia sem sentido, que pretende ocupar-se de algo que é, por definição, indizível e incognoscível). Segundo Orígenes, Deus é perfeito (a tradição metafísica consagrou o preconceito segundo o qual perfeição diz daquilo que é imutável: só o que é imutável é perfeito; Deus é imutável, logo Deus é perfeito). Mas o que significa perfeição como atributo do divino? Pensar o conceito é uma prática a que a filosofia e somente ela nos habitua; é uma prática que o senso comum não exercita, por isso coabitam nele as contradições mais grosseiras, coexistem as ideias mais estranhas entre si. Perfeição é a qualidade daquilo que se perfez, que se completou; diz-se daquilo que não apresenta lacuna, falha; mas também perfeição pode significar excelência no mais alto grau. Assim, Deus é o Ser em sua máxima excelência, autossuficiente, de nada carecido. Ora, mas se Deus não carece de nada, se é autossuficiente, por que criou o mundo e o homem, dois termos que designam a imperfeição? Contrariando os próprios pressupostos da definição de Deus, a teologia cristã reza que Deus criou o homem para a Sua glória; em outros termos, por pura vaidade e necessidade de autopromoção , de reconhecimento de seus magníficos poder e natureza. Claro, conclui o bom senso, se não existissem os animais humanos, quem mais daria notícias da existência de Deus? Os primatas, nossos parentes mais próximos, o ignoram; sequer dão sinais de possuir religião. No Princípio, o Verbo era mudo, Deus estava imerso em sua impenetrável solidão cósmica. Era necessário (ele carecia, portanto) criar o homem dotado das faculdades cognitivas adequadas para que Deus viesse à luz, para que ele “existisse” deveras. Resta evidente que, se não existissem os seres humanos, Deus não “existiria”, não se faria ouvir, não se faria objeto de pensamento, de discurso. A conclusão irrecusável, porque razoável, é que primeiro existe o homem como criador e depois surge Deus como sua criação, seu constructo, como uma ideia sua. A teologia é uma expressão da inversão ideológica, que Feuerbach, antes de Marx, soube bem examinar: põe no começo justamente aquilo que se situa no termo, no fim; põe a conclusão na frente da premissa; deduz da ideia a realidade; toma o objeto (Deus) pelo Sujeito (homem). Deus passa a ser o sujeito (o substrato) a partir do qual o mundo e o homem se tornam conhecidos, a partir do qual homem se conhece e conhece o mundo. E até hoje pagamos um alto preço histórico por essa enfermidade, esse adoecimento do animal humano. Mas devemos aqui lembrar que a teologia e a metafísica, que lhe é subjacente, são sintomas de uma mente que se desenvolveu por um processo natural que, a rigor, é indiferente à verdade e à lógica. A seleção natural favorece as características que auxiliam os genes do portador a serem transmitidos à próxima geração, e isso é tudo. Se falsidades favoreceram a realização desse objetivo, durante a evolução de nossa espécie, a mente humana encorajará naturalmente essas falsidades. A confusão sistemática e a desrazão não são sintomas da mente primitiva; são hábitos que se desenvolveram no processo evolutivo do cérebro humano; são hábitos em que esse cérebro incorre continuamente ainda hoje. O mesmo cérebro que causa admiração e maravilhamento aos seus portadores é também capaz de cometer as falhas mais absurdas, os erros mais estúpidos. Perfeição é, definitivamente, uma ideia, um conceito da imaginação produzida por um cérebro naturalmente inclinado ao erro, à estupidez, e não uma realidade do processo evolutivo que lhe deu origem. Portanto, antes de que acusemos o animal humano por sua insistente falta de bom senso, recordemo-nos de que o homem é uma espécie de mamífero, um organismo que traz no corpo as marcas de um passado evolutivo que o faz ser, biologicamente falando, apenas a forma de uma célula germinativa produzir outra célula germinativa, tal como acontece na barata e no repolho. Contra a vaidade teológica que fez o homem acreditar que ocupa um lugar metafisicamente privilegiado no universo, devemos afirmar que a mente humana não é o poder que impele o universo. Se isso não nos fizer mais tolerantes com este ser megalomaníaco e risível, talvez nos faça mais cúmplices de sua condição existencialmente precária e delirante. Os seres humanos, eu e você, criamos, através da cultura, passatempos mentais que tornam essa breve passagem pela vida, antes do retorno inexorável ao caos e ao silêncio do inorgânico, mais agradável ou tolerável. A arte, a ciência, a religião, os jogos, toda uma indústria de entretenimento são criações, passatempos culturais que nos ajudam a suportar o caráter cruel da realidade, que tornam para nós mais respirável a crueza da vida, que afastam de nossa consciência a representação e o sentimento de nossa insignificância cósmica radical, que nos faz viver na autoilusão acerca do que somos em face da irrecusável indiferença do Universo para com nossos projetos, nossos anseios, nossas rixas e intrigas tão pequenas e sem sentido último. Quem quer que ouse se aprofundar nessas reflexões, provavelmente terá de suportar o sentimento ou fugir a ele, de que a existência humana e toda a sua atarefada exteriorização histórica é um edifício de símbolos e significados que se mantém sobre uma teia tecida pelo acaso e estendida sobre um insondável abismo; e toda a constituição fisiológica, biológica do homem é um grito exasperante para que ele se aperceba de sua condição animal, para que ele se aperceba de que vive por um tempo, cuja extensão é finita e incerta, para, então, retornar ao seio da natureza, onde se reunirá aos elementos mínimos do cosmo. E isso é tudo!

 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“A magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos.” (Lord Owen Meredith)

                                                              



                                O feitiço do simbólico

 

Este texto poderia ostentar o título armário, que serviria como um frame para que eu começasse a discorrer sobre a experiência, bastante comum, que tive ao ajudar a desmontar um armário para dar lugar a um novo que também ajudei (indiretamente) a montar. O título “armário” representaria, assim, um modelo cognitivo da experiência de lida com as coisas, tão característica do senso comum. Enquanto eu estava ocupado com o desmonte do armário, eu habitava, por horas, o domínio intersubjetivo do modo de viver do senso comum. Meu corpo operava a fim de resolver problemas práticos, tais como o de saber que parte do armário deveria desaparafusar primeiro. Não que eu me dispensasse de pensar, mas o meu pensamento era orientado para a resolução de problemas de ordem prática. Nesse domínio de experiência, não faria sentido demorar-me em elucubrações metafísicas, filosóficas, em reflexões sobre o sentido do que fazia, sobre o que é um armário. O armário me vinha ao encontro como um estorvo, um problema prático que exigia solução. O relato sobre minha experiência de desmonte do armário configuraria, portanto, o frame a partir do qual eu me estenderia sobre como a leitura, os livros, a filosofia estruturam a minha vida diária. Agora, sinto que não era bem isso que eu queria dizer. A experiência do armário apenas seria uma espécie de “gatilho cognitivo” para que eu externasse um sentimento persistente e familiar que teria a seguinte formulação verbal: sinto que vivo transitando entre duas esferas, entre dois domínios de experiência, a saber, o domínio do senso comum, no qual ajo compartilhando com os outros (meus familiares, amigos) um mesmo “mundo”, e o domínio da experiência da filosofia, ou da leitura, que me faz ‘habitar’ outro mundo, um mundo mais significativamente profundo, um mundo à parte, um mundo que é mais complexo, mais vasto, um mundo que responde por anseios elevados, por necessidades psíquicas não satisfeitas pelas experiências comuns da vida diária, um mundo que me é acessível apenas pelos signos, pelos textos, porque é um mundo que se experiencia como mundo inteiramente textualizado. Viver, não raro, se me afigura como um esforço contínuo por fazer coexistir esses dois mundos, por fazer que se mantenham conciliados em alguma medida. A vida pode ser reduzida a este esforço: a conciliação entre o mundo da vida comum, no qual agimos conjuntamente com os outros e no qual estabelecemos com os outros relações de interdependência a fim de satisfazer necessidades práticas, emocionais, afetivas, no qual obramos, no qual nos esforçamos por obter os recursos materiais necessários à nossa subsistência, no qual sofremos uma série de perturbações imprevistas que quebram a rotina, no qual também fruímos alguns prazeres triviais, e o mundo da vida filosófica, da leitura, no qual a experiência que temos da realidade é profundamente transfigurada, é radicalmente transformada, no qual o espírito, absorto, frui prazeres mais prolongados. Assim, me apercebo como um sujeito esquizo, um esquizo-frênico. Não chego a sofrer, evidentemente, de esquizofrenia paranoide; mas tenho a experiência íntima de que a vida como leitor e como filósofo produz uma divisão, uma cisão, uma fissura (não chega a ser uma quebra, uma completa ruptura, o que constituiria um estado patológico) com o mundo tal como experienciado pelo senso comum. Já tive a oportunidade de falar sobre isso em outros textos. O filósofo também se orienta pelo senso comum, em sua vida diária, não como filósofo, mas como pai, filho, marido, cliente de banco, consumidor, paciente que busca assistência médica, etc. No entanto, o filósofo não se despe de seu modo de ser para assumir outros papéis; seu modo de ser está sempre disponível, sempre se intrometendo nos interstícios de sua experiência comum de mundo, o que, não raro, lhe traz algumas perturbações, algumas inconveniências, sempre que os modelos sociocognitivos ativados e compartilhados com o interlocutor não admitem a interferência de questionamentos profundos e elaborados . Não é que ele deixe de ser filósofo quando é pai, filho; porque a filosofia é seu modo de ser mais próprio. No entanto, ele sabe que, em sociedade, os indivíduos atuam como atores – são atores sociais -, e assumem papéis sociais institucionalmente fixados. Convém interromper o fio discursivo neste ponto, pois não quero trafegar por caminhos que me afastariam para bem longe das intenções iniciais me levaram a compor este texto. Espero que o que se seguirá não se apresente ao leitor tão transviado do motivo central que me incitou a escrever este texto.

Instalados, na maior parte do tempo e na maioria das vezes, no senso comum, os indivíduos não se deixam afetar pela experiência do espanto, da admiração. O senso comum, sendo o modo espontâneo, “natural”, familiar, imediato de eles se relacionarem com o mundo, de o perceberem e o compreenderem fornece-lhes sempre esquemas práticos de simplificação, de superficialização das experiências que eles têm das ocorrências do real. No senso comum, a linguagem mesma não é sequer um objeto de problematização, de questionamento para eles. Instalado no senso comum, o homem usa a linguagem como mero instrumento de comunicação de seus pensamentos, de seus sentimentos, de suas ideias, crenças, opiniões, valores. Ao servir-se dela, com o propósito de exteriorizar os conteúdos de sua consciência, o homem comum acredita que a linguagem lhe dá acesso ao mundo já dado, objetivo, cuja existência é anterior à linguagem. Assim, a relação entre a linguagem e o mundo se resolve em termos de ajustes, acordos, correspondências objetivas entre o signo e o real, entre os enunciados que ele produz e a ordem já dada de uma realidade que a ordem simbólica apenas reflete, expressa, traduz (na verdade, a ordem simbólica não é sequer uma ordem que se sobrepõe à ordem do mundo; ela é identificada com a própria ordem do mundo; é subsumida nessa ordem, de modo que o mundo se organiza, se estrutura do modo como está estruturado e expresso na sintaxe da linguagem). A verdade é simplesmente um efeito da correspondência entre o enunciado e o mundo, entre as palavras, de um lado, e as coisas, de outro, entre o pensamento e a realidade exterior. Os desacordos, as desavenças, tão frequentes entre os interactantes nos usos da língua seriam, assim, sintomas de um descuido, de uma imperícia, de uma falta, de um erro, nas tentativas que fazem os interactantes de ajustar, de adequar suas produções linguísticas à realidade objetiva, previamente existente e estruturada.

No entanto, quando examinamos mais acuradamente como se dá a relação entre o ser humano, a linguagem e a realidade, descobrimos ser uma miragem essa crença numa relação especular entre a linguagem e o mundo. Não vou me deter nos meandros complexos, intrincados e fascinantes desse problema. Quero apenas manifestar aqui meu espanto: os seres humanos, sem se darem conta disto, existem como seres capturados na teia do simbólico. Toda a sua existência é capturada, está emaranhada nessa teia de símbolos, signos, linguagens (basta atentar para os espaços sociais onde a nossa vida acontece: eles são povoados de signos, linguagens, sinais, outdoors, imagens; basta se aperceber do modo como nossa vida está imersa nesses ciberespaços da internet onde circulam incessantemente palavras, hipertextos, hipersignos, hipermídias, linguagens e imagens diversas). Mas, ao acreditarem que estão a falar do mundo, o que eles fazem não é senão produzir e negociar, nas práticas sociointeracionais por meio da língua, modelos públicos de mundo, versões semiotizadas da realidade. Ao acreditar que eles falam de coisas previamente existentes à ordem do simbólico, à ordem do discurso, o que eles, de fato, fazem é falar de objetos-de-discurso, de referentes que se constroem cognitivamente no discurso e que são modificados, estendidos, ressignificados, trasformados nas práticas discursivas. Nós vivemos como se estivéssemos irremediavelmente sob uma espécie de “feitiço” do símbolo, de encantamento da linguagem: acreditamos falar do mundo propriamente, quando, na verdade, falamos acerca dos modelos de mundo fabricados simbolicamente. E o que é mais espantoso: travamos brigas, disputas, contendas, odiamos, guerreamos e matamos em nome desses modelos de mundo simbolicamente fabricados. Não nos dando conta de que, nas práticas diárias de uso da linguagem, estamos constantemente negociando significados, estamos produzindo efeitos de sentido, estamos agindo sobre os outros, tentando convencê-los, persuadi-los, de modo a modificar-lhes o comportamento, acreditamo-nos portadores da chave que nos dá um acesso direto, verdadeiro, imediato à realidade. Acreditamos que possuímos um saber sobre a ordem do mundo em si, sobre como o mundo é em si mesmo, independentemente da linguagem, da cognição, da percepção, da práxis histórica e cultural, que constituem, em conjunto, os modos pelos quais a realidade se constrói e se torna acessível, inteligível, compreensível ao animal humano. Loucura da condição humana: acreditar na transparência da linguagem, deixar-se enganar pela crença metafísica na linguagem, acreditar no “em si” do mundo que a linguagem se encarregaria de simplesmente espelhar, expressar. Essa forma de loucura é a da normalidade, é nossa “loucura normal”. Ela difere do delírio da esquizofrenia justamente porque a loucura normal rejeita a autonomização absoluta do signo, enquanto o esquizofrênico é aquele que sofreu a completa captura na trama do simbólico, é aquele para quem o mundo dos símbolos, dos signos se absolutizou, é aquele que “reconheceu” que não há nada ‘lá fora’ além das construções simbólicas fabricadas pelo discurso. Dizemos comumente que o “esquizo-frênico” perdeu o contato com a realidade - bem entendida: com a realidade da experiência comum, da experiência socialmente aceita, compartilhada, estabelecida como “norma”. Mas, se o louco é aquele que rompe com a realidade considerada “normal” por uma comunidade humana, então o que é a realidade? Não prova o louco que essa realidade não é senão um constructo, um modelo cerebral (mental), cognitivo, linguístico, cultural dependente da práxis histórica, dependente de acordos, de consensos humanos em coletividades? O louco não prova que a realidade objetiva não é senão um efeito, uma ficção (criação, fabricação) de experiências intersubjetivas que fundam um mundo; que o mundo objetivo é uma construção de relações intersubjetivas mediadas e estruturadas pelos significados que são produzidos e negociados nas inúmeras interações sociais por meio da linguagem?

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação". (Rosset)

 



Um olhar filosófico sobre o trágico

 

 

 

A cantora Marília Mendonça, aos 26 anos, no auge do sucesso em sua carreira, morre em um acidente aéreo. Há vinte e cinco anos, o grupo Mamonas Assassinas também teve o mesmo destino “trágico”. Jovens rapazes morriam prematuramente infringindo a tal “lei natural da vida”, diziam a mídia e a vox populi. Naquela ocasião como nesta, a mídia aproveitou para ganhar pontos na audiência explorando o gosto sádico-masoquista e as inclinações à tanatofilia do grande público... pululavam também as referências ao “bom” Deus que decidiu “levar para junto de si” os vitimados ( o roteiro é o mesmo, só mudam os atores) ... como é de esperar nessas ocasiões, encontra-se aqui e ali um “desalmado” a lembrar que nos acidentes morreram pessoas que não tiveram a mesma visibilidade na mídia... e não tardarão a aparecer os médiuns, os sensitivos para nos dar notícias do além em algum programa de televisão... ao fim de um ou dois meses, a morte da cantora deixará de ocupar o lugar principal no horário nobre da grande mídia... em seis meses, a vida voltará a sua “normalidade”, porque, afinal, todo dia é dia para morrer... morre-se, e isso é tudo. Para a grande maioria do rebanho humano, o fato da morte não é em si objeto de angústia consciente... a quantos ocorre pensar que uma morte acidental e abrupta escancara a inanidade de ser, a absurdidade da existência? Deus? O apelo ao Altíssimo torna tudo ainda mais inexplicável, mais imponderável e insolúvel. Deus é o signo da tentativa humana de não sucumbir completamente à angústia e à loucura de hospício. O grande público, tão desacustamado de pensar, se contenta com as respostas mais simples, reconfortantes e logicamente insatisfatórias. O “Deus quis assim” é melhor do que admitir que o jogo de dados do acaso nos foi desfavorável desta vez. Trágica não é a morte violenta em um acidente. Trágico é o destino de seres que sabem que vivem para necessariamente morrer. Trágica é a vida que deve ser vivida a cada instante com a consciência vívida de que ela irá acabar, ou poderá acabar a qualquer momento. O pensamento trágico é o pensamento da afirmação por excelência. Mesmo em face da constatação do que há de problemático, obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o pensador trágico afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é, sem apelação. O afeto trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai acabar”. Segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com sabedoria o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p. 40-41).

A intensidade afetiva trágica encontra seu mais claro e vigoroso registro na afirmação: a medida da vida é viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.). O páthos trágico é o ter de jogar-se na vida como quem joga um jogo cujo resultado já está dado e no qual tudo está irremediavelmente perdido e, apesar disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição humana marcada pelo desamparo, em frente ao qual o homem realiza a sua tarefa, assume a responsabilidade de ser livre e de dar um sentido à sua vida. Camus, em O homem revoltado, nos lembra que a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da existência:

“todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”.

Entre a consternação e os apelos de consolação a um Deus abscôndito, o grande público, no entanto, vive a “normalidade” da vida reprimindo o afeto do trágico. O trágico é o modo próprio de constituição da condição humana. Nesse sentido, o trágico é uma categoria filosófico-hermenêutica com a qual a existência humana se converte em objeto para exame de uma filosofia trágica. Todo pensamento trágico quer “fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente” (Rosset). Segundo Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que Nietzsche viu e que Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é alegre. O trágico designa, para esses dois pensadores, a forma estética da alegria, que não sendo nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte todo pesar, toda tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em objeto de afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o caráter originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de causas e de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência: artificial no sentido de que afirma a independência da existência com relação a todo princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a fundamental imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a facticidade de todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a existência é aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou não há aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o trágico é uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação incondicional da existência. Mas essa afirmação incondicional não tem nada que ver com o indiferentismo do homem comum que suporta viver desde que encontre um apoio emocional na fé ou na esperança da vida eterna. A aprovação trágica é implacável e dura: querer incondicionalmente esta vida sem sentido metafísico no jogo irracional do acaso aqui e agora com a certeza de que o jogo está desde o princípio perdido irremediavelmente para os jogadores. O homem comum jamais chegará a endossar  tal sim jubiloso e louco, preferindo o conforto e o auxílio de suas bengalas metafísicas, os consolos de um além-mundo imaginário. Porque viver é demasiado pesado, é resistir a aproximar-se do abismo para evitar sofrer suas vertigens, é fugir para bem distante do desespero paralisante e da loucura de hospício. Somos todos loucos em alguma medida. É preciso alguma dose de loucura para viver e suportar a vida. A filosofia vem em socorro para tornar nossa loucura consciente de si.

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"Eu adoro ver uma garota sair e conquistar o mundo pelas lapelas. A vida é escrota. Você tem que encarar e quebrar tudo." (Maya Angelou)

 

                          



                               A BIODIVERSIDADE

 

Quem atrever-se a pedir razoabilidade ao comportamento humano deveria consultar os anais da história para verificar que a loucura, a insanidade, a desrazão, a perversidade acompanham a evolução da espécie humana desde tempos remotos. Conta-se que, em Sodoma e Gomorra, a prática de infanticídio era comum no modo de vida dos cananeus, habitantes daquelas regiões. Escavações em Megido, Jericó e Gezer revelaram uma área inteira que teria sido um cemitério de crianças. Era comum o sacrifício dos alicerces naquele tempo: quando se construía uma casa, sacrificava-se uma criança e seu corpo era depositado em um alicerce, porque os habitantes da casa acreditavam que isso traria felicidade ao resto da família. Antropólogos, historiadores, arqueólogos dirão: felizmente os costumes mudam , o processo civilizatório tende a coibir tais práticas , a Lei as tipifica como crimes... mas o que me inquieta é que, algum dia, tenha sido possível praticar o infanticídio como parte de um ritual religioso, que, algum dia, grupos humanos tenham podido acreditar que, ao fazê-lo, tornaria feliz ou bem-aventurada a vida de seus familiares. Como não há uma autoridade metafísica e divina, que possa julgar os criminosos e a quem até possamos imputar a responsabilidade pela criação de seres tão insanos, desvairados e perversos, resta que dentre um grupo destes seres extravagantes, excêntricos subsistam alguns ajuizados, esclarecidos, que concluam que, se a prática de infanticídio se tornar uma prática generalizada e normal na comunidade como um todo, ao fim de 60 ou 70 anos, não sobrará mais ninguém para dar continuidade à espécie. Então, instituiu-se o interdito pela Lei proibindo que crianças sejam sistematicamente assassinadas, com punição aos perpetradores do assassínio. Talvez, a seleção natural tenha alguma participação nesse processo de esclarecimento gradual da humanidade. Talvez, a Natureza, mais sábia que estes macacos pelados ufanos, tenha contribuído, sem planejamento e intenção, para selecionar aqueles que poderiam pôr fim a uma barbárie, que, se não cessasse, levaria à extinção a espécie. A Natureza parece “saber” mais que o animal humano que a vida é que deve ser o valor maior a ser cultuado, cultivado, perpetuado em toda a sua diversidade. Que a morte só pode se dar na medida em que contribui para a eco-organização do todo. O excesso de morte responde ao excesso de vida. A oposição entre a fecundidade desenfreada ( que gera um crescimento exponencial da população) e a mortalidade sem peias desempenha o papel de regular mutuamente os níveis demográficos. Assim, a natureza opera por meio do processo de reorganização que é parte inerente ao processo de desorganização. A eco-organização é nutrida e regenerada não apenas pela vida, mas também pela morte, e é regulada pelo antagonismo entre os excessos de vida e de morte. Todos os ecossistemas tendem ao equilíbrio e parecem lutar contra as tendências do grande predador humano para causar sistematicamente o desequilíbrio, para arruinar a ordem, para deflagrar a morte em excesso. As sociedades humanas se instituem a partir deste princípio natural: a necessidade de se reorganizar, de produzir continuamente novas ordens em meio à irrupção necessária das desordens, das perturbações. Todo excesso seja para o lado da ordem (totalitarismos) , seja para o da desordem (entropia), deve ser combatido. Uma lição que os macacos pelados ainda não conseguiram aprender com a natureza é que a eco-organização é inseparável da constituição, da manutenção e do desenvolvimento da DIVERSIDADE BIOLÓGICA - diversidade, aliás, é um fato biofísico que esses animais doentes, loucos e desnaturados insistem em recusar no modo de organização de suas sociedades e culturas. É em virtude dessa insistência com que esses animais erram na aprendizagem da diversidade como um elemento vital constitucional da biocenose (o conjunto de todas as interações entre os seres vivos no meio geofísico) que ainda é preciso combater os preconceitos ( no sentido amplo do termo, tanto como pré-concepção enganosa ou falsa quanto como repúdio, aversão) contra o que é diferente, diverso de um padrão normativo, que eles mesmos criaram na vida comum, um padrão que não é algo dado (decretado, posto) nem por um deus, nem legitimado pela ordem natural. Felizmente, vivemos numa época histórica em que as vozes da diversidade em todas as suas legítimas manifestações clamam e lutam pelo direito de reconhecimento, de viver, de contribuir para a construção de sociedades mais democráticas e plurais. Esse movimento vital, essa agonística devem ser estimulados, devem ser intensificados contra as forças reacionárias, conservadoras, contra as mentalidades esclerosadas que persistem em reagir contra o modo de ser da vida, que se manifesta como pluralidade, diversidade e exuberância.

 

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Aquele caso de Sodoma e Gomorra se me deparou num livro que versa sobre o que diz a Bíblia sobre a homossexualidade. Não há, como já sabia, pois já havia lido outro livro dedicado ao tema, nenhuma condenação bíblica da homossexualidade, ao contrário do que acreditam o homem comum e os fundamentalistas... enfim... mas o que me deixa deveras estarrecido é como se pode ainda hoje tomar a Bíblia como referência para fundamentar a moral e os costumes. É claro que muita gente ignora que as morais modernas é produto de um longo processo de secularização. Nem tudo na Bíblia serve de parâmetro para normatizar o comportamento moral do homem moderno, pelo menos nas sociedades industrializadas ocidentais. Em Juízes 19, por exemplo, conta-se a história de homens que desejavam estuprar um homem estrangeiro hospedado na casa de um levita. Esse relato é semelhante ao caso de Sodoma e Gomorra. O hóspede deveria ser entregue aos homens para que fosse violentado sexualmente. Mas o senhor da casa se nega a fazê-lo e oferece sua filha virgem e sua concubina para que fossem estupradas no lugar do forasteiro. E assim elas foram abusadas “toda a noite até pela manhã”. Tal costume (o de oferecer mulheres para que fossem estupradas no lugar de um forasteiro) é simplesmente repulsivo às sensibilidades modernas. Todos nós sentimos repulsa a isso. E as mulheres hoje deveriam todas se sentirem escandalizadas e deveriam se recusar a admitir qualquer tentativa de usar a Bíblia para admoestá-las e moldar seu modo de viver, de ser, de pensar... enfim, sua conduta... Sabemos que a sociedade judaica dos tempos bíblicos era patriarcal; que o patriarcado é uma herança nefasta que herdamos das culturas que constituem o berço da civilização ocidental. No mundo antigo, as mulheres eram servas dos seus maridos. Essa condição de submissão, de servidão das mulheres é patente nos textos bíblicos.  Simplesmente os códigos morais vigentes à época – estamos falando de um período que cobre os séculos VIII e  VI a.C. – não são os nossos, não podem balizar nossas condutas nas sociedades modernas de hoje. Mas ainda encontramos milhares de mulheres ostentando a Bíblia, pregando a Palavra de Deus em favor da “Família Tradicional” (lê-se “família patriarcal”) a outras mulheres!... Eis aí um caso emblemático do oprimido que aceita a sua opressão por não se reconhecer como sujeito que vive em condições históricas de opressão... Não quero aqui suscitar discussões intermináveis sobre religião e Bíblia, embora muito me agradem... (sou ateu), mas não sou nenhum perseguidor de religiosos... Embora eu acredite que eles vivam num mundo construído por um imaginário-simbólico entretecido por suas fantasias (mas também sei que todos nós vivemos nossa relação com o real pela mediação da fantasia no sentido de Lacan... nós evitamos o confronto com o real como condição necessária para podermos suportar a existência (mas isso é outro tema)...

Está claro, para quem quer que se debruce sobre as Escrituras Sagradas, (particularmente, sobre o Antigo Testamento) que o que lá encontramos é uma literatura heterogênea que reflete os modos de viver, de pensar, de se organizar politicamente e de compreender o mundo, próprios de  comunidades humanas que viveram  do século VIII ao século VI a .C, e que tais condições históricas são muito diferentes das nossas. A Bíblia – não me canso de repetir – é uma obra humana, demasiado humana. É produto de acontecimentos socioculturais, políticos, econômicos que cobrem a extensão territorial que inclui hoje o Líbano, Israel, partes da Jordânia, Egito, Palestina e Síria. Em suma, toda uma região banhada pelos rios Tigre e Eufrates. Lá se encontra o berço da civilização ocidental (sem esquecer os gregos e romanos, evidentemente)... mas o bebê cresceu e deveria ser capaz, agora adulto, de emancipar-se definitivamente de seus pais e seus preconceitos milenares...