quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia" (Cioran)



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A disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica: natureza e diferenças



1. As disposições afetivas trágica e pessimista


O conceito de afeto, tanto quanto o de disposição, cumprirá um papel importante no horizonte hermenêutico em que se inscreve este texto. Afeto é um conceito que encontramos na Ética de Spinoza. Nesse livro, afeto relaciona-se a pathos (paixão) e recobre a ideia de aquilo que nos põe em movimento, em relação com o mundo[1]. O afeto descreve certo modo de relação que estabelecemos com o mundo. Afeto “é, ao mesmo tempo, o sentimento e a impressão que causamos nos outros e o que os outros causam em nós” (Schöpke, 2010, p. 16). A categoria de afeto cumprirá a função de um dispositivo de interpretação com o qual buscaremos compreender as filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche como exercícios espirituais destinados a cunhar dois tipos vitais humanos radicalmente distintos.
O conceito de disposição, por seu turno, encontra registro na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesse livro, disposições se definem como “estados de caráter formados devido aos quais estamos bem ou mal dispostos em relação às paixões”[2]. Como no excerto aristotélico a “disposição” se define como ‘estados do caráter’, e o caráter, para os gregos, combina entre si os aspectos psicológico e moral, buscamos em Jung uma definição de disposição que não abriga em seu campo intensional qualquer referência à moral. A definição proposta por Jung tem a vantagem de ser descritivamente adequada à compreensão do que entendemos por disposição afetiva. Para Jung, “disposição é uma propensão da psique para realizar algo determinado, para agir e reagir em determinada direção. (...) Pode-se definir disposição como uma ordenação – quer inata quer resultante da experiência – dos elementos orgânicos ou dos elementos mentais, ou de ambos”. (ênfase nossa).[3] Duas “fatias” do significado de disposição nos interessam para efeito de aplicação à proposta interpretativa em curso neste trabalho: propensão para e ordenação. Tendo em conta a compreensão jungiana de disposição como propensão para e ordenação dos elementos orgânicos quer inatamente fixada, quer decorrente da experiência, propomos subsumir o conceito de disposição no de destino. Mas destino não deverá ser entendido como ‘poder mais ou menos personificado que determina de modo irremediável o curso dos acontecimentos’. Ao tomar disposição como destino, aproveitamos as noções de propensão para e ordenação orgânico-mental, para construir dois significados que se fundem no conceito de destino: 1) como destino, a disposição caracteriza certo modo de estar afetado pelo enviar-se, pelo destinar-se da vida, cuja dinâmica de forças produz tais ou quais efeitos psicofisiológicos sobre um corpo vital humano; 2) como destino, a disposição não está sob o nosso controle, no sentido de que não escolhemos ser constituído psicofisiologicamente de tal ou qual modo[4].
Vale dizer que do fato de que não escolhemos a disposição que nos constitui não resulta que seja ela absolutamente inalterável. Não obstante, a alteração de uma disposição não depende de um ato deliberativo da vontade. Para que a alteração da disposição se dê, necessário é que o enviar-se da dinâmica da vida nos afete de modo diferente, que as conformações do enviar-se da vida modifiquem a estrutura afetiva de nosso corpo.
Entenderemos, portanto, por disposição afetiva um modo de ordenação dos afetos que nos predispõem, que nos fazem propensos a sentir e a perceber o mundo em consonância com o modo como o destinar-se da dinâmica da vida nos afeta e incide sobre nós, vale dizer, sobre nosso corpo, enquanto totalidade psicofisiológica.
Crendo esteja esclarecido o conceito de disposição afetiva, vamo-nos debruçar sobre a apresentação das características distintivas, das quais nos dá testemunho Rosset (1989), das visões pessimista e trágica. O esclarecimento dessas características deverá contribuir para que não se confundam as duas visões de mundo, muito embora elas não se diferenciem absolutamente. Conquanto seja pertinente, do ponto de vista teórico e metodológico, a maneira como Rosset as diferencia, no que nos diz respeito, será mais importante sublinhar a forma distinta como as duas disposições afetivas – a disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica – respondem aos dois pressupostos básicos, os quais as cosmovisões pessimista e trágica compartilham entre si:

1º pp. uma produção enunciativa sobre o pior;
2º pp. o reconhecimento da inerência do sofrimento ou da dor à dinâmica da vida.

Em outras palavras, tanto a cosmovisão pessimista quanto a cosmovisão trágica concordam em que: 1) é possível desenvolver um pensamento do pior; 2) a dor ou o sofrimento são experiências inerentes à dinâmica da vida.
Doravante, lancemos olhares sobre o modo como Rosset nos apresenta a distinção entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista. Rosset começa por notar que subjaz a todo pensamento filosófico um desejo; esse desejo reside na origem da filosofia. No caso particular da filosofia trágica, o filósofo é movido por algo que “quer o trágico”. Nietzsche é uma expressão paradigmática desse querer, pois seu querer assume a forma de um “sim” incondicional à vida. Não cabe aqui esclarecer o que significa, para Nietzsche, dizer sim incondicionalmente à vida. É forçoso protelar o tratamento desse ponto para que não nos desviemos demais do objetivo a que visamos nesta seção, qual seja, o de dilucidar a diferença entre as disposições afetivas pessimista e trágica. Não deixaremos, no entanto, de tecer considerações esclarecedoras no que toca ao caráter incondicionalmente afirmativo da filosofia trágica de Nietzsche.
Rosset prossegue afirmando que “a intenção trágica [sic.] não é comandada por uma visão pessimista do mundo”. (Rosset, 1989, p. 19). Disso não resulta que o pensamento trágico não seja expressão de uma visão de mundo “mais pessimista que qualquer pessimismo”. (ibid.). O que o pensamento trágico produz é uma interpretação deveras pessimista do real, mas essa interpretação não se encaminha no sentido da desaprovação do mundo, muito pelo contrário. O pensamento trágico, a despeito de pôr a nu o caráter doloroso da existência, a miséria da condição humana, a inexorabilidade do destino humano que, posto sob a consciência crítica, se revela irracional, sustentará uma aprovação jubilosa da existência.
Rosset se refere a duas diferenças maiores entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: a diferença de conteúdo e a diferença de intenção. Do ponto de vista da diferença de conteúdo, o pessimista supõe a existência de uma natureza, do ser, de uma ordem do real, a qual considerará má e insatisfatória. É nesse sentido que o pessimista afirma o pior. O pessimismo realça e condena a incoerência do já ordenado: o mundo deve ser desaprovado, porque sua ordem é má. Para Rosset, a filosofia pessimista é uma filosofia que, assumindo o ‘dado’, ou seja, o mundo já ordenado, dotado de uma “natureza” (essência), reputá-lo-á mau, tenebroso, um erro que não deveria ser. Por outro lado, o pensamento trágico, negando a existência do ‘dado’, isto é, do mundo ordenado, se constitui num pensamento do acaso. Nas palavras de Rosset,


Não somente o pessimista não acede ao tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo pessimismo, assim como a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico. O mundo do pessimista está constituído de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se escapa”. O mundo trágico não foi constituído; donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais” (...). (ibid. p. 20, ênfases no original).


Ainda segundo o autor, não é nem o humor, nem o afeto que distinguem entre os dois pensamentos. O pensador trágico e o pensador pessimista encontram-se em igualdade de humor e afetos.
Se não são os afetos nem o humor que estão na base da diferenciação entre o pensamento trágico e o pessimista, em que termos se deve expressar tal diferença? Do que se expôs, fica claro que a filosofia trágica e a filosofia pessimista se diferenciam relativamente à afirmação ou à recusa de uma ordem do mundo já dada. O pensamento trágico a recusa; o pensamento pessimista a supõe e afirma a irracionalidade dessa ordem dada. Assim, para o pensador pessimista, o que existe não é objeto adequado para o pensamento. Segundo Rosset, o pensamento pessimista é a grande filosofia do ‘dado’, isto é, a filosofia pessimista assume a existência de um mundo já ordenado, cuja natureza é má. O pessimismo filosófico, na medida em que é uma filosofia do ‘dado’ enquanto já ordenado, coincide com a filosofia do absurdo.
Deveríamos concluir do que precede que a categoria do absurdo é um traço distintivo importante na caracterização dos pensamentos pessimista e trágico? Será que estamos autorizados a dizer, a partir de Rosset, que a filosofia trágica nega a absurdidade da existência? Uma tal conclusão é autorizada por Rosset, consoante podemos ler no seguinte passo:



Esta filosofia do absurdo [a filosofia pessimista] não é tanto contrária ao pensamento trágico quanto sem relações com ele. Trata-se aí, com efeito, de uma absurdidade segunda, condicionada, que se sustenta no sentido uma vez constituído: mostra-se que os “sentidos” apresentados pelo mundo existente recobrem outro tanto de não-sentido em relação a tudo aquilo que o homem se pode representar em matéria de finalidade”. (ibid., p. 22-23, ênfase no original).


Devemos, pois, reter que o pensamento pessimista, porquanto supõe a existência de um mundo já ordenado, pressupõe que esse ordenamento está investido de um sentido já constituído. Mas esse sentido já constituído pelo fato mesmo de haver ‘ordem’, uma natureza do mundo, se imiscui com uma vasta facha de sem-sentido. Em outras palavras, por mais que o homem possa “ver” uma ordem teleologicamente constituída no mundo, há sempre uma grande parte dessa ordem que se mostra desprovida de qualquer sentido.
Para o pensador pessimista, o absurdo está aí, já constituído, já instalado nas formas como o sem-sentido irrompe na malha do sentido, de tal modo que o pretenso sentido da ordem do mundo não elide as tribulações do sem-sentido, sempre persistente e perturbador daquela ordem. Destarte, o pensamento pessimista, seguindo a compreensão que tem dele Rosset, assume um sentido dado, a partir do qual esse pensamento explorará a fragilidade, a insuficiência desse sentido. O pensador pessimista denuncia o caráter insensato da ordem ontológica vigente. A ordem do mundo, no entanto, vige, mesmo que se apresente como desordem, como absurda (isto é, sem sentido).
Por seu turno, o pensamento trágico afirma a inexistência de um sentido já dado, mesmo que o mais absurdo. O pensador trágico sustenta a insignificância de tudo. Sendo afirmação do acaso, o pensamento trágico “é não somente sem relações com a filosofia do absurdo, como ainda é incapaz de reconhecer o menor não-sentido; o acaso sendo, por definição, aquilo a que nada pode desobedecer”. (ibid., p. 23, grifos nossos).
Consideremos, agora, a diferença entre a filosofia pessimista e a filosofia trágica do ponto de vista da intenção. Em consonância com esse ponto de vista, a sabedoria pessimista se caracteriza pela constatação, resignação e sublimação mais ou menos compensatória. A sabedoria trágica, por outro lado, recusa a constatação, ou, melhor ainda, se orienta pela impossibilidade de constatação. Tampouco é uma sabedoria que se erige “ao abrigo da ilusão” (ibid.). Também não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid.). Segundo Rosset, o pensamento trágico busca “uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo”. (ib.id.). Façamos eco às palavras de Pascal, embebidas na loucura jubilosa do homem trágico, que cai no abismo dançando: “Nós somos tão necessariamente loucos que seria estar louco por uma outra espécie de loucura, não estar louco”. (...) “Alegria, alegria, lágrimas de alegria”. (apud. Rosset, p. 23-24).
Em que medida as considerações de Rosset sobre a diferença entre a sabedoria trágica e a sabedoria pessimista ajudam-nos a determinar a orientação diversa, não coincidente, das disposições afetivas a que já aludimos? Da compreensão de Rosset da diferença entre as duas sabedorias, colheremos as noções de acaso e absurdo, aprovação incondicional e desaprovação.
Em consonância com a lição de Rosset, diremos que a disposição afetiva trágica afirma e/ou celebra o júbilo na insignificância radical da existência, a coragem no enfrentamento do caráter deveniente da vida, a qual se revela como fluxo incessante que arrasta tudo que existe para o aniquilamento. A disposição afetiva trágica sustenta a aprovação jubilosa da existência.
A disposição afetiva pessimista, por sua vez, é movida pela resignação em face da crueldade do real, pela constatação do caráter insatisfatório, absurdo e aterrador da existência. A resignação pessimista pode vir acompanhada de uma proposta compensatória ou consoladora, animada, no entanto, pela negação da vida sem concessão, pela recusa da existência como irremediavelmente má, pela desaprovação da ordem do mundo considerada como desprovida de qualquer sentido último.
Acresce-se que as duas disposições afetivas afirmam o desespero, mas o fazem em sentidos diversos: a disposição afetiva trágica afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é. Para a disposição afetiva trágica, o devir, que caracteriza a impermanência de todas as coisas, que torna todas as coisas destituídas de densidade ontológica, não constitui razão para a negação do mundo. Por isso, o pensador trágico dará sua aquiescência ao fluxo incessante, ao destinar-se inexorável de tudo que existe ao aniquilamento. Um exemplo desse espírito trágico está muito claramente sumariado no seguinte trecho de Ecce Homo (2013, p. 107-108):



A afirmação do fluir e da destruição, elemento decisivo numa filosofia dionisíaca; o dizer “sim” à contradição e à guerra; o devir, com uma recusa radical do próprio conceito de “ser”- nisso tenho de reconhecer, em qualquer circunstância, o que está mais próximo de mim dentre o que até agora se tem pensado.



Consoante afirma Rosset (2000, p. 35), a sabedoria trágica enuncia “(...) uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real”.
A disposição afetiva pessimista afirma o desespero como desesperança desorientadora, quanto à possibilidade de encontrar qualquer sentido último para a existência. Esse desespero aterrador inspira no espírito pessimista o pensamento de recusa do real tal como é, ao mesmo tempo em que lhe inspira a força com que denuncia o caráter insatisfatório, contraditório e mau da existência. O desespero pessimista orienta-se sempre no sentido da negação do mundo: desespero-me de buscar um sentido para a existência – diz o pessimista -, logo a existência é um inconveniente, um desastre, um acontecimento absurdo ao qual só posso dar minha desaprovação. A lenda do rei Midas, relatada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, e referida antes por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, merece ser evocada aqui como um exemplo paradigmático do espírito pessimista, vale dizer, da negação da existência que caracteriza fundamentalmente o pensamento pessimista. Escreve Nietzsche:



(...) Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (Nietzsche, 2007, p. 33).


       
             2. A influência de Schopenhauer na formação do pensamento de Nietzsche


Escapa à alçada desta exposição discorrer em pormenores sobre a influência que a filosofia de Schopenhauer exerceu sobre o pensamento de Nietzsche. Nosso intento é mais modesto: queremos apenas assinalá-la de tal modo, que se torne possível o conhecimento da dívida que o pensamento de Nietzsche tem, sobretudo nos anos de juventude desse autor, para com a filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia de Schopenhauer sobre a formação do pensamento nietzschiano não deve ser interpretada de modo reducionista como a presença de marcas, de “pegadas” schopenhauerianas que sinalizam uma reapropriação e ressignificação pelo pensamento de Nietzsche de domínios de significado do pensamento de Schopenhauer. A influência se deixa ver também nos pontos claros de desacordo entre esses dois filósofos, na insistência com que Nietzsche cita Schopenhauer para censurá-lo, para marcar os pontos de discordância entre seu pensamento (de Nietzsche) e o pensamento desse filósofo pessimista.  Assim, a marca de influência de um pensador e/ou autor sobre outro se deixa ver não apenas nos rastros de continuidade que podemos identificar, mas também nos rastos de ruptura, de dissensão entre os dois pensamentos.
A descoberta da filosofia de Schopenhauer por Nietzsche se dá quando da leitura que este faz do livro O Mundo como Vontade e Representação. Àquela altura, Nietzsche frequentava os cursos de filologia do professor Ritschl, mestre a quem acompanha ingressando na universidade de Leipzig, em 1865.
Na leitura de O Mundo (publicado em 1819), Nietzsche se dá conta do sentido filosófico da tragédia. Ele não deixa de se admirar da concepção schopenhaueriana de mundo como manifestação de uma Vontade cega, sem finalidade e irracional. Em grande medida, é na filosofia schopenhaueriana que Nietzsche encontrará a matriz de sua metafísica trágica[5]. Consoante Rosset (1989), essa visão trágica já se deixa ver no pensamento schopenhaueriano. Recorde-se que a Vontade em Schopenhauer é o fundamento sem fundamento da existência. Essa “verdade trágica” será radicalizada por Nietzsche na elaboração de sua experiência dionisíaca de mundo, “cuja descoberta não suportaríamos sem o socorro da arte e das aparências”. (Rocha, 2003, p. 46).
O leitor familiarizado com o pensamento nietzschiano pode discordar – não sem razão – de que haja uma metafísica em Nietzsche. É verdade que um pensamento que toma o mundo como destituído de ser é ele mesmo antimetafísico. Não resta dúvida, portanto, de que “[a] concepção de existência como desprovida de ser atravessa toda a obra de Nietzsche”. (Rocha, 2003, p. 45). Não obstante, em O Nascimento da Tragédia, obra que se situa entre os escritos de juventude de Nietzsche e onde é mais flagrante a influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, há uma concepção metafísica que se expressa na admissão de uma essência dionisíaca subjacente às aparências. Todavia, nota Rocha (ibid.), essa essência não deve ser tomada como fundamento do mundo, “mas, ao contrário, é uma instância privada de toda medida e inteligibilidade”. Se a filosofia do jovem Nietzsche pode ser considerada “metafísica”, isso se deve à preservação do horizonte de interpretação do mundo à luz do qual este é explicado a partir da postulação de uma instância subjacente às aparências. Não obstante, a metafísica que aí se afigura é “intrinsecamente paradoxal, já que esta instância é desprovida de todos os atributos que se supõem caracterizarem uma essência”. (p. 46). Paradoxal ou não essa metafísica, deixando de lado as sutilezas semânticas envolvidas nos termos linguísticos que entram a fazer parte da discussão, acreditamos que, sob a influência schopenhaueriana, a esta altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, ainda está presente o dualismo ‘aparência x essência’ que caracteriza o modo de pensar metafísico (dualismo que Nietzsche tratará de superar ao longo da produção posterior de sua obra).
A influência de Schopenhauer sobre o pensamento de Nietzsche não se reduz à apropriação que este faz do termo Vontade, cujo conceito divergirá, no entanto, completamente do conceito schopenhaueriano de Vontade. Nietzsche admirou Schopenhauer por ter este produzido um pensamento superior, que nada devia às influências de poder. A admiração nietzschiana por Schopenhauer é de tal vulto que a este um texto é dedicado. A terceira consideração intempestiva, que recebe o título Schopenhauer Educador, é um elogio ao filósofo de Dantzig, reputado por Nietzsche como um filósofo exemplar, que representou o modelo de homem lúcido, altivo e idealista, capaz de subverter as convenções e de lançar por terra as ilusões ao abrigo das quais a maioria dos homens vive. O trecho a seguir nos dá testemunho do tom elogioso com que Nietzsche fala de Schopenhauer:



O que eu relato é somente a primeira impressão, de algum modo fisiológica, que sobre mim produz Schopenhauer (...). Ele é probo porque fala e escreve para si mesmo; é alegre porque conquistou pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode não sê-lo. Sua força cresce vigorosamente e sem esforço, como uma chama no ar calmo, segura de si, sem tremular, sem inquietude”. (Nietzsche, 2008, p. 29-30).


Outro ponto de aproximação entre Nietzsche e Schopenhauer reside no reconhecimento de que ambos os filósofos conceberam a Vontade como constitutiva tanto do homem quanto da existência em geral, fora de uma perspectiva espiritualista. Ainda que sejam inegáveis as diferenças que se deixam ver quando cotejamos entre si os pensamentos desses dois filósofos, é igualmente inegável que ambos se notabilizaram como grandes perscrutadores da existência, “do fundo sombrio e doloroso da vida”. (Brum, 1998, p. 18).




2.1. Diferenças fundamentais entre a filosofia de Nietzsche e a de Schopenhauer


O pensamento de Nietzsche se pretende afirmador de uma única verdade: a verdade trágica, a qual, por sua vez, esteia-se na afirmação da inexistência do Ser. A afirmação da inexistência do Ser faz da filosofia de Nietzsche uma negação da metafísica, a saber, uma antimetafísica que ensina a inexistência de um fundamento que confere sentido e finalidade à existência.
O pessimismo de Schopenhauer, considerando como absurdo o mundo, que é espelho de uma Vontade obscura e inconsciente, oferece como saída para uma existência intrinsecamente dolorosa - a negação da vontade. Nietzsche, ao contrário, embora também considere o sofrimento como o fundo da existência, oferece a possibilidade de uma afirmação da vida no tempo. Nietzsche é aqui o antípoda de Schopenhauer. Para Nietzsche, “o homem trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto”. (Nietzsche, 2011a, § 483).
Ainda que Schopenhauer explique o sofrimento, a dinâmica dolorosa da vida como um efeito necessário da afirmação do querer-viver, ele continua vinculado ao horizonte de compreensão cristã do mundo, à luz do qual o sofrimento torna a vida indesejável, uma experiência da qual devemos querer escapar, uma experiência que, maculada pela dor e sofrimento, a vontade deve recusar. A filosofia experimental de Nietzsche, por outro lado, “quer antes penetrar até o contrário, até o dionisíaco sim do mundo, tal qual é, sem desfalque, sem exceção e sem escolha, quer o eterno movimento circular: as mesmas coisas, a mesma lógica e o mesmo ilogicismo do encadeamento”. (Nietzsche, 2011a, § 476).
Contra o pessimismo schopenhaueriano, que vê a vida como uma catástrofe, um erro que não deveria ser, Nietzsche oferece seu dionisíaco sim à existência: “Estado superior que o filósofo pode atingir: ser dionisíaco em face da existência. Minha fórmula para tanto é o amor fati”. (ib.id.).
Nietzsche não se limita, como faz Schopenhauer, a admitir o caráter doloroso da existência como uma necessidade (Schopenhauer, aliás, o admite para, em seguida, oferecer uma fuga). Nietzsche o considera não só necessário, como também desejável, “como o lado mais potente, o mais fértil, o mais verdadeiro da existência” (ibid.). Schopenhauer ainda se movimenta num horizonte hermenêutico de justificação do mal, do sofrimento. Nietzsche, ao contrário, afirma o “pessimismo da força”, segundo o qual “o homem agora não tem mais necessidade de justificação do mal”; ele “condena precisamente a justificação: usufrui do mal puro e cru, acha o mal sem razão mais interessante”. (Nietzsche, 2011, § 461).  Nietzsche ousa ainda mostrar a radicalidade de sua transvaloração: é o bem que precisa ser justificado, que “precisa possuir um fundo mau e perigoso” (ibid.), sob pena de ser “uma grande tolice”.
Schopenhauer se movimenta ainda num horizonte de compreensão metafísica do mundo: ele busca o incondicional em face do condicional, a saber, seu pensamento opera segundo a crença em que o que é relativo (o mundo fenomênico) deve repousar sobre o absoluto (a Vontade como coisa-em-si). Schopenhauer é um herdeiro da tradição metafísica ocidental, na medida em que explica o devir, a impermanência, recorrendo à coisa-em-si, ao Ser.
Nada mais estranho ao pensamento de Nietzsche do que esse modo de pensar o real. Para Nietzsche, o mundo carece de substancialidade; o mundo é um fluxo de forças agonístico. Só existe o mundo do devir, caracterizado pela dinâmica agonística das vontades de poder: “o mundo – escreve Nietzsche – não é absolutamente um organismo; é o caos”. (ibid., § 316).
A filosofia de Nietzsche pode ser entendida como uma ontologia negativa[6], porquanto pensa o mundo como desprovido de Ser.  Na tradição, o ser se diz daquilo que é necessário em contraste com o que é apenas contingente; o ser se diz também daquilo que permanece idêntico a si mesmo e que, por isso, serve de suporte ao devir (o ser se diz substrato do devir); finalmente, o ser designa o que é em si mesmo e para si mesmo, independentemente do aparecer dos entes. Ora, a metafísica baseia-se no mecanismo de duplicação do real, o qual consiste em superpor ao mundo sensível, deveniente, o mundo inteligível, da necessidade e da permanência. Assim, em toda metafísica, a aparência só “é” na medida em que é suportada por uma essência da qual toma seu ser e a qual lhe dá consistência ontológica.
É precisamente essa duplicação do real em mundo sensível e mundo do Ser que Nietzsche rejeita. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, antiplatônico, antimetafísico. Nietzsche recusa um tal desdobramento metafísico do mundo. Mesmo quando ele fala em “essência”, ela se esgota no seu aparecer. Em suma, como metafísica negativa, o pensamento de Nietzsche nega:

1)       A hipótese de que há um mundo sensível e que esse mundo é expressão de uma essência;
2)       O fluxo do devir como manifestação do Ser;
3)       O mundo sensível como uma duplicação do mundo suprassensível;
4)       Que as interpretações sejam a representação de um mundo previamente constituído.

Cumpre acrescentar que, se Nietzsche rejeita a existência do mundo suprassensível – chamado por ele de mundo-verdade -, o faz não por uma razão teórica, visto que a inexistência desse mundo não pode ser demonstrada, mas por razões práticas. Nietzsche rejeita a existência do mundo verdade (mundo das Essências imutáveis) pelas consequências que a crença nesse mundo acarreta: o niilismo e a condenação da vida, a qual é desvalorizada em favor da vida além-mundo, em favor do mundo suprassensível, o qual realizaria a verdadeira vida (como creem, por exemplo, os cristãos). A crítica nietzschiana à metafísica açambarca uma crítica à moral, à religião e ao racionalismo, os quais são entendidos como expressão da crença em um mundo-verdade. Aqui é oportuno lembrar que Nietzsche também criticará o que chama de “vontade de verdade” que está na raiz da crença de que o mundo tem um sentido já dado, que cabe ao homem tão-só descobrir.



[1] Por afetos, entende Espinosa (2011, p. 98) “as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”.  O afeto se distingue da paixão pela possibilidade de podermos, no caso do afeto, nos conceber como a causa de uma afecção.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru: SP, 2013, p. 74.
[3] CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 87.
[4] Nada obsta a que a disposição possa ser pensada à luz do registro do ser espinosista como recoberto pela dinâmica dos encontros, pelas relações entre os corpos, pela dinâmica relacional caracterizada por encontros potencializadores ou despontencializadores de meu corpo com outros corpos. Nessa perspectiva teórica, a disposição afetiva poderia ser pensada como uma espécie de ‘marca’ piscofisiológica resultante da forma como se dão aqueles encontros.
[5] Conforme ficará claro adiante, a “metafísica trágica” caracteriza um momento do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche: em uma palavra, o período em que vem a lume O Nascimento da Tragédia, obra onde a influência schopenhaueriana é flagrante. A esse respeito, Rocha (ibid.) faz uma observação que suprime qualquer margem de dúvida quanto ao domínio de referência a que se aplica o emprego do termo metafísica quando se fala de Nietzsche: “(...) podemos considerar que o termo metafísica deve ser entendido aqui de um modo muito particular: se o que o define é a concepção de uma essência subjacente às aparências, então a obra do jovem Nietzsche é efetivamente metafísica. Mas se o que define é a crença em um fundamento ou uma razão para a existência, então a filosofia de Nietzsche é desde o início rigorosamente antimetafísica”.
[6] Seguindo aqui a interpretação de Rocha (ibid., p. 44).




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           REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




             CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006.


            NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo: Escala, 2008.

___________________. Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.



___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013b.

ROCHA, Silvia. P.V. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SPINOZA, Ética. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2011.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Não se faça mais professores de português como antigamente!


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Que não se faça mais professores de português como antigamente
O pronome se: reflexividade, pseudopassividade e indeterminação



Os pronomes se e si do português provieram da tríade latina de pronomes reflexivos sui (genitivo), se (acusativo) e sibi (dativo/ ablativo). O pronome se conservou sua forma original no português; a forma si, no entanto, é produto de síncope regular do –b-  intervocálico de sibi. A forma resultante sii se reduziu a si por efeito de crase. O se, em português, conservou a função de objeto direto (acusativo em latim). Mas se é um objeto direto que equivale ao próprio sujeito, por isso um elemento linguístico é reflexivo quando a ação praticada pelo sujeito recai sobre o próprio sujeito.
 Eu pretendo, na elaboração deste artigo, passar em revista as construções de que o se entra a fazer parte, com vistas a destacar os aspectos semântico-sintáticos que tornam possível distinguir quatro usos que fazemos do pronome se no português brasileiro (doravante, PB), a saber, se como pronome reflexivo, se como marcador de reciprocidade, se como marcador de espontaneidade acional (pseudoagentivo) e se como índice de indeterminação. Ao examinar as condições semântico-sintáticas dessas ocorrências do pronome se, terei em vista um objetivo bastante específico, qual seja, mostrar quão inconsistente com a realidade linguística é a insistência com que, ainda hoje, professores de português ensinam a seus alunos que existe uma voz passiva sintética e que, portanto, eles devem fazer concordar o verbo com o núcleo do sintagma nominal que se lhe segue, se quiserem expressar-se em conformidade com a norma culta. Em construções como “vende-se relógios nesta loja”, o emprego do verbo no singular já está incorporado à norma culta do português. Tais construções se encontra fartamente registradas nos textos escritos mais monitorados. Não há, portanto, razão para condená-las como formas desviantes, ou pior ainda, como “formas erradas”.
Gostaria, então, de firmar, desde já, meu acordo com Bagno (2011, p. 581), ao observar que:

A voz passiva se constrói, no PB, única e exclusivamente de forma analítica. A insistência da TGP [Tradição Gramatical do Português] e de seus seguidores em postular a existência de uma “voz passiva sintética” é uma irracionalidade que vem sendo provada e comprovada por filólogos e linguistas desde o início do século XX. Não existe voz passiva sintética no PB. O que existe, sim, são construções ativas em que o clítico se exerce o papel sintático de sujeito e o papel semântico [indeterminado]. (grifo no original).



Duas são as concepções de gramática que vão orientar o desenvolvimento desta exposição: gramática internalizada e gramática descritiva. Em consonância com a primeira concepção, “gramática corresponde ao saber linguístico que o falante de uma língua desenvolve dentro de certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em condições apropriadas de natureza social e antropológica” (Franchi, 2006, p. 25). Quando se concebe a gramática, portanto, como conhecimento intuitivo e prático da língua que qualquer falante possui, saber gramática “não depende, pois, em princípio, da escolarização, ou de quaisquer processos de aprendizado sistemático, mas da ativação e amadurecimento progressivo (ou da construção progressiva), na própria atividade linguística, de hipóteses sobre o que seja a linguagem e de seus princípios e regras” (ibid.). A gramática internalizada recobre, portanto, a competência linguística de que dispõe o falante e que o habilita para a produção e compreensão de enunciados em sua língua materna. Essa forma de conhecimento não é apenas de ordem operacional, mas também de ordem nocional, pois que o capacita para avaliar a gramaticalidade das construções linguísticas produzidas nessa língua.
Em consonância com a segunda concepção de gramática (gramática descritiva), a gramática resulta do trabalho do linguista levado a efeito a partir da observação sistemática do que se diz ou se escreve no uso real da língua. As gramáticas descritivas constituem hipóteses, cientificamente elaboradas, à luz das quais se descreve e se explica a estrutura e o funcionamento de uma dada língua ou variedade de língua, em um dado momento de sua existência. A gramática descritiva visa a mostrar como uma língua se organiza estruturalmente e como funciona para permitir a expressão e a compreensão dos sentidos.
Do ponto de vista pedagógico, insisto na importância de se elaborar um trabalho de reflexão sobre a língua à luz tanto da concepção de gramática de uso, a qual diz respeito à gramática internalizada, que é, pois, como já disse, a gramática inscrita na mente/cérebro do falante nativo na forma de um conhecimento intuitivo das regras e princípios que lhe permite produzir e compreender enunciados em sua língua materna, quanto da concepção de gramática reflexiva, a qual pressupõe atividades de reflexão sobre o mecanismo gramatical da língua, com vistas a tornar consciente o conhecimento intuitivo e implícito que todo falante nativo tem de sua língua materna. Evidentemente, esse trabalho com a gramática reflexiva deve estender-se sobre as variedades linguísticas que o falante ainda não domina.
Inspirando-me nos objetivos propostos por Perini (2010), pontuo, a seguir, as diretrizes pedagógicas com as quais este texto se alinha:

1) Rejeita-se as falsas promessas, como a de que é necessário o estudo de gramática para melhorar as competências de leitura e escrita dos alunos;

2) Assume-se uma atitude científica em face do fenômeno da linguagem, o que significa admitir o questionamento, a dúvida, a necessidade de justificar as afirmações feitas;

3) Rejeita-se a crença ingênua e equivocada de que a gramática do português brasileiro é um sistema plenamente conhecido e que sua descrição já está pronta e disponível na literatura especializada. Nunca se atinge o estudo completo de uma língua;

4) Insiste-se na necessidade de desenvolver atividades que incluam observação e trabalho com os fatos da língua, com vistas à constituição de hipóteses sobre eles;

5) Assume-se que fazer gramática é estudar os fatos da língua, é ocupar-se com a descrição das ocorrências da língua em uso, e não fixar um cânone de regras e proibições que devem conformar o comportamento linguístico dos usuários a um padrão ideal de uso da língua, que justamente por ser ideal não corresponde às ocorrências reais da língua falada e escrita pelos seus falantes nativos.

Neste texto, enfatizo que o uso do “se” de indeterminação do agente com verbos transitivos faz parte do vernáculo geral de todos os falantes brasileiros, ou seja, dos usos linguísticos que aparecem na fala de todos os brasileiros, sendo, portanto, aquilo que é nosso, aquilo que nos identifica mais como falantes do PB contemporâneo.  Por vernáculo, entende-se “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao monitoramento da fala”. O vernáculo compreende a fala mais espontânea, menos monitorada, que se manifesta nas interações verbais em que é menor o grau de formalidade.

1. O que dizem as gramáticas

Vejamos, inicialmente, como se desenvolve o tratamento do pronome se em três gramáticas normativas: a Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001), de Rocha Lima, a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara. Em último lugar, trarei à baila a lição do professor José Carlos de Azeredo, em sua Gramática Houasis, de orientação descritiva.

1.1. Rocha Lima

Na Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima, lemos, à página 320, o que segue:

São reflexivos os pronomes átonos (...) quando pertencem à mesma pessoa do sujeito da oração: o agente e o paciente são um só, porque o sujeito executa um ato reversivo sobre si mesmo.


Os exemplos oferecidos por Lima são os seguintes:


(1) Os empregados se despediram
(2) Eles se arrogam o direito de vetar


Em (1), é graças ao “se” que sabemos que a ação de “despedir” tem como agente e paciente “os empregados”: eles despediram a si mesmos (=se). Em (2), o sujeito realiza uma ação verbal cuja transitividade recai sobre si mesmo: são “eles” que dão a si mesmos o direito de vetar.
Ainda na mesma página, um pouco adiante, observa Lima:


Quando, porém, o ato não emana do sujeito, que é apenas o paciente, temos, no pronome que o representa, a partícula apassivadora.


Agora, se nos depara o ponto que mais nos interessa nesta exposição: o uso do “se” nas construções da chamada, tradicionalmente, voz passiva sintética. É importante ter em conta o que se entende por vozes verbais. A voz, em gramática, “é a forma sintática que o predicado assume para atribuir um papel semântico ao sujeito” (Azeredo, 2008, p. 270). Em outras palavras, as vozes do verbo indicam as formas que o verbo assume para determinar o tipo de papel semântico desempenhado pelo sujeito. Assim, por exemplo, na voz ativa, o verbo “comprar” seleciona, para a posição de sujeito, um constituinte que desempenha, no estado-de-coisas designado, o papel semântico de [AGENTE]; e, para a posição de objeto direto, seleciona um constituinte que desempenha o papel semântico de [OBJETO][1]. Quando usado na voz passiva, o verbo “comprar” assume a forma de particípio e se combina com o verbo “ser”: ‘ser + comprado’ (cf. A mochila já foi comprada) e estabelece para o sujeito o papel semântico de [OBJETO]. Na forma passiva, o que, na construção ativa, era objeto direto torna-se sujeito, e o que era sujeito torna-se “agente da passiva” (que pode ser omitido). Assim, à frase “Meu pai já comprou a mochila” corresponde a construção passiva “A mochila foi comprada pelo meu pai”. Na construção passiva, o constituinte “meu pai”, que era sujeito na construção ativa, passa a integrar o sintagma preposicional (SP) introduzido pela preposição “por” no papel semântico de [AGENTE]. O que, na construção ativa, cumpria o papel de [Objeto], na função sintática de objeto direto, mantém, na voz passiva, o papel de [Objeto], mas na posição de sujeito. Mesmo que eu prefira aplicar o papel semântico de [OBJETO] e não de [PACIENTE] ao sujeito de comprar na voz passiva, a escolha não muda o fato de que, na voz passiva, o sujeito não desempenha o papel de [AGENTE] ou [CAUSADOR] do processo verbal.
O exemplo que encontramos em Lima é ilustrativo do tipo de problema que nos ocupa neste texto. Veja-se o exemplo dado pelo autor:

(3) Despediram-se os empregados faltosos e admitiram-se alguns dos antigos candidatos.

Esse exemplo ilustra o caso típico da chamada “voz passiva sintética”, na qual usamos o pronome “se” atrelado a um verbo transitivo direto que, segundo a Gramática Normativa, deve concordar com o constituinte que se lhe segue à direita, já que se trata de seu sujeito. Esquematicamente, temos a seguinte construção na chamada voz passiva sintética.

          X-se  (vtd.)  Y (sujeito)

X é o verbo transitivo direto ao qual está ligado o pronome “se”, dito "apassivador”, que deve concordar com o constituinte que se encontra à sua direita, já que, segundo a tradição gramatical, esse constituinte é o seu sujeito. Essa interpretação é simplesmente descabida, conforme mostrarei.
Lima também se refere ao uso do pronome “se” para marcar reciprocidade. Nesse caso, o verbo se emprega necessariamente no plural, já que seu sujeito é representado por um substantivo [+ humano] no plural. A reciprocidade de uma ação implica necessariamente mais de um participante. Assim, na frase “Eles se abraçaram”, o pronome “se” indica ação recíproca, ou seja, indica que, pelo menos, dois indivíduos abraçaram um ao outro.
O caso que deve nos interessar mais é o dos verbos chamados pronominais, pois que integram o grupo dos verbos aos quais se ligam pronomes átonos de modo inseparável. Segundo Lima, esses pronomes “(...) se tornam partes integrantes deles [dos verbos], como suicidar-se, condoer-se, apiedar-se, ufanar-se, queixar-se, vangloriar-se, etc.”. Lima acrescenta que “são pronomes sem função, fossilizados”. De fato, com esses verbos o pronome “se” deve ser considerado como uma parte integrante de uma unidade semicristalizada, na qual a reflexividade se perdeu. A despeito de integrar uma unidade semicristalizada, o pronome “se” pode ser, nas variedades menos monitoradas do PB, apagado nessas construções. Assim, a par da variante de prestígio (4) ocorre também a variante (4a):

(4) Todos se queixaram de você ontem.
(4a) Todos queixaram de você ontem.

É interessante notar que o apagamento do pronome “se” nessas construções pseudorreflexivas é comum na fala, por exemplo, de jornalistas e narradores esportivos, que são, evidentemente, falantes que dominam as variedades de prestígio do PB. O uso do verbo “classificar” ilustra bem o caso de apagamento do “se” no domínio do discurso jornalístico. Pode-se, sem muito custo, ouvir, durante a transmissão de um jogo da TV Globo, o narrador dizer algo como:

(5) Se o Flamengo ganhar hoje, classifica.

Note-se que, em (5), o verbo "classificar" que, nas variedades mais monitoradas, figura com o “se”, foi empregado sem esse pronome (cf. Se o Flamengo ganhar hoje, se classifica).





1.2.  Celso Cunha

Na Nova Gramática do Português Contemporâneo (2001), Cunha & Cintra lembram que o pronome “se” é “SÍMBOLO DE INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO (junto à 3ª pessoa do singular de verbos intransitivos ou de transitivos tomados intransitivamente)”. (p. 306). Embora tenha silenciado sobre o uso de “se” para indeterminar o [AGENTE] com verbos transitivos indiretos, Cunha & Cintra insistem, a título de observação, que, em frases como “Vendem-se casas” e “compram-se móveis”, “consideram-se casas e móveis os sujeitos das formas verbais vendem e compram, razão por que na linguagem cuidada se evita deixar o verbo no singular” (p. 307.).
Cunha & Cintra também aludem à ocorrência de “se” como “parte integrante de certos verbos que geralmente exprimem sentimento, ou mudança de estado” (ibid.). Entre esses verbos, os autores citam: admirar-se, arrepender-se, atrever-se, indagar-se, queixar-se, congelar-se, derreter-se, etc.



1.3. Evanildo Bechara

Em sua Moderna Gramática Portuguesa (2002, p. 177), Bechara trata de modo indistinto a voz passiva e a voz média. Ao citar o exemplo “O banco só se abre às dez horas”, Bechara comenta:

No presente exemplo, banco é um sujeito constituído por substantivo que, por inanimado, não pode ser agente da ação verbal; por isso, a construção é interpretada como “passiva”: é o que a gramática chama voz “média” ou “passiva com se”.


Vou considerar, em primeiro lugar, a interpretação que Bechara faz da frase citada como um caso de construção na voz passiva com “se”. A característica semântica da construção passiva é que o sujeito não é jamais o agente ou causador da ação verbal. Na frase “O banco só se abre às dez horas”, que é análoga à frase “A porta se abriu”, o sujeito é representado por um substantivo dotado do traço [- animado]. Ora, o papel semântico de [AGENTE] só se aplica a substantivos que comportam os traços [+ animado] e [+ intencionalidade]. Esses traços sêmicos caracterizam o papel semântico de [AGENTE]. Como nem “banco” nem “porta” preenchem essa condição, segue-se que as construções das quais esses termos fazem parte não pertencem à voz reflexiva. Mas, se não são construções de voz reflexiva, seriam de voz passiva, como quer Bechara?
Para responder a questão, temos de considerar a existência de uma voz intermediária entre a voz ativa e passiva, a chamada voz média. A voz média recobre as construções com “se” em que o sujeito não é o [AGENTE] que desencadeia o processo verbal. O substantivo que preenche a posição de sujeito nas construções de voz média pode comportar o traço [+ humano] ou [- animado]. Mesmo quando comporta o traço [+ humano], não é o sujeito o [AGENTE]. Todos os exemplos referidos abaixo são típicos da voz média:

(6) Ana não se incomoda com nada.                                                                         
(7) As crianças se divertem com as piruetas dos macacos
(8) A porta se abriu.
(9) A cortina se rasgou de velha.

Em (6) e (7), a despeito de o sujeito ser preenchido por um substantivo [+ humano], ele não é o [AGENTE] que controla a situação verbal. Se não é o [AGENTE], não causa uma ação que incide sobre o próprio agente. Não há reflexividade em (6) e (7). Em (8) e (9), a reflexividade é rejeitada pelo simples fato de que nem “porta” nem “cortina” podem causar a ação de abrir e rasgar respectivamente. Observe-se que (9) e (9) apresentam as variantes sem o “se”:

(8a) A porta abriu
(9a) A cortina rasgou de velha

A tradição gramatical analisa (8a) e (9a) como construções cujo verbo é intransitivo e seus respectivos sujeitos comportam o papel semântico de [PACIENTE]. Mas, basta que (8a) e (9a) se produzam como (10) e (11) para a tradição gramatical propor outra análise. A incongruência é ainda mais inaceitável quando a mesma tradição vê o “se” de (10) como índice de indeterminação do sujeito; e o “se” de (11), como partícula apassivadora.


(10) Aqui se vive bem.
(11) O vaso se quebrou.

Se modificarmos a ordem de (11) para a ordem sintática ‘se + V + SN’, veremos que a interpretação do “se” como índice de indeterminação do agente se impõe: “se quebrou o vaso”. Ora, a ordem sintática deixa claro que o falante marca com “se” a indeterminação do agente. Essa é uma função semântico-pragmática do “se”. Sintaticamente, esse pronome ocupa a posição de sujeito. O constituinte “o vaso” cumpre a função de objeto direto do verbo “quebrar”. Essa análise se estende ao caso (10) em que o “se” indetermina o agente. A diferença em (10) é que o verbo “viver” recusa complemento (é um verbo intransitivo).
Voltando ao exemplo de Bechara – “O banco só se abre às 10 horas” -, a interpretação tradicional, inspirada no latim vulgar, põe sob foco o objeto-paciente da ação (o banco), mas ignora o agente responsável pela ação. O que os falantes nativos do português brasileiro estão fazendo é seguir sua intuição linguística quando põem sob foco da interpretação o agente responsável pela ação, agente semântica e pragmaticamente indeterminado, marcado sintaticamente pelo “se” na função de sujeito. O caráter apassivador do ser é inconsistente com a atual sincronia do português brasileiro. Só vale para um estágio do latim vulgar, em que o pronome reflexivo passou a expressar também a passividade.
Penso, contudo, que o “se” que acompanha “abrir” nem sempre marca a indeterminação do agente e, nesse tocante, discordo da análise de Bagno (2011), que parece sugerir que o “se” em todas as construções em que figura um verbo da classe semântica de “abrir” cumpre a função de indeterminação. Essa função de indeterminação só é possível quando o complemento do verbo “abrir” é semanticamente compatível com um agente. Em muitos outros casos em que essa compatibilidade não é possível, o “se” é um pseudorreflexivo. Um exemplo que dá testemunho do uso do “se” como pronome pseudorreflexivo é o título da canção gospel de Léa Mendonça “O céu se abriu”, em que o “se” apenas parece marcar reflexividade, mas, como o SN sujeito é semanticamente incompatível com a ideia de reflexividade (já que o sujeito não é [AGENTE]), o “se” marca a espontaneidade da ação, ou seja, a qualidade de a ação de “abrir” ocorrer naturalmente, sem a intervenção de um agente, como sucede com as batidas do coração. Vejamos alguns exemplos, colhidos do Corpus Brasileiro, do CETEMpúblico (corpus que reúne amostras de uso do português em jornais impressos) e do Corpus Obras Brasileiras, que abriga textos literários.   Dividirei os exemplos em dois grupos: no primeiro grupo, o “se” é um pseudorreflexivo e marca a espontaneidade da ação; no segundo, ele é um índice de indeterminação do agente.

GRUPO 1 – Uso do “se” como pseudorreflexivo

CORPUS BRASILEIRO
(12) Bush e os generais querem, pelas armas, fechar a grande ferida narcísica que se abriu no corpo da América .


(13) : De repente, a porta do avião se abriu a quatro mil metros e eu quase fui chupado para fora, não fosse a rápida ajuda do sargento .


(14) : A seguir, uma costela foi quebrada com um alicate e, pelo buraco que se abriu, o bife foi introduzido no interior da caixa torácica .

(15) O túmulo se abriu, e o vivo seguiu o morto.


Corpus CETEMpúblico

(16) par=ext27198-opi-98a-1: Depois da experiência decepcionante no Jordão, teve uma espantosa surpresa do Céu, que se abriu para lhe dizer que era um filho muito amado.


Corpus Obras Brasileiras

 (17) id="Amar,_verbo_intransitivo Prosa:romance MdAndrade 1927 modernismo": amar, verbo intransitivo idílio a meu irmão a porta do quarto se abriu e eles saíram no corredor

(18) De repente, a porta se abriu e entrou um anãozinho muito esquisito .


 (19) : Nesse instante a porta se abriu e ele entrou .

  (20) : Mas naquele mesmo dia, a porta se abriu repentinamente e ele entrou.




GRUPO 2 – Uso do “se” como índice de indeterminação




Corpus CETEMpúblico

(21) par=ext8220-soc-92a-2: Atualmente, como sou candidata ao Nobel da Paz, já se abriu um espaço no país e penso voltar muito brevemente à Guatemala se, evidentemente, existir um mínimo de condições.

(22) par=ext45671-soc-95a-2: De acordo com Teresa Gouveia, o diploma aprovado na última reunião do Conselho de Ministros «visa regulamentar este novo mercado que se abriu aos agentes privados», acrescentando que no centro das preocupações do legislador estiveram as regras de transparência e de defesa do consumidor.

 (23) par=ext74557-pol-97a-2: O novo capítulo que se abriu em Oslo não criou uma lua-de-mel entre as partes, mas implicou uma mudança de «na guerra vale tudo» para «numa disputa, encontramo-nos a meio do meio caminho» .

(24) par=ext75365-soc-92a-1: Já sucedeu isso quando se abriu a primeira ponte.


Corpus de Obras Brasileiras


(25) id="Os_Sertões_I Prosa:prosa EdC 1902 ": Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império .


 (26) id="A_semana Prosa:crônica MdA 1892 ": " Não se abriu o Congresso por falta de número. "


Tome-se, para análise, o primeiro grupo de ocorrências. De (12) a (20), o “se” marca a espontaneidade da ação de “abrir”. Mas é preciso atentar para as diferenças que existem entre as estruturas semântico-sintáticas das orações em que se acha o verbo “abrir”.  Em (12), o que se abriu foi “uma grande ferida narcísica”. Evidentemente, trata-se de uma metáfora para o trauma experienciado pelos americanos em seu “amor próprio”. O abrir-se da ferida narcísica é espontâneo; não há um agente que cause a abertura da ferida. É essa espontaneidade da abertura da ferida, como se ela fosse a causa de si mesma, que o pronome pseudorreflexivo marca. No exemplo (13), a porta do avião abre espontaneamente, ou seja, sem a intervenção de um agente humano. Os exemplos (15), (17), (18), (19) e (20) são interessantes porque a oração em que figura o verbo “abrir” articula-se, por coordenação, a outra oração. Na oração coordenada pelo conectivo “e”, há um sujeito que desempenha o papel semântico de [AGENTE] da ação descrita pelo verbo dessa oração coordenada (cf. ...a porta se abriu, e entrou um anãozinho muito esquisito - Sujeito). Isso poderia nos levar a inferir que o agente que realiza a ação representada na oração coordenada é o mesmo agente que “abre” a porta ou, no caso de (15), que abre o túmulo. Mas, se o falante/escritor quisesse deixar claro a relação correferencial entre os dois agentes, ele daria outro torneio ao enunciado. Por exemplo, em (15), poder-se-ia produzir a versão: “o morto abriu o túmulo e seguiu vivo”, muito embora o efeito de sentido produzido com essa versão não seja o mesmo. Na versão original, o verbo “seguir” parece significar “tornar-se morto”, “transformar o que estava vivo em morto”. Assim, “o túmulo se abriu, e o vivo seguiu o morto” significa “... e o vivo tornou-se morto”. Mas é possível pensar que o morto foi quem seguiu de fato o vivo, quando saiu do túmulo; mas, nessa interpretação, teríamos de supor que o autor deliberadamente inverteu a ordem normal dos termos na oração: deslocou o sujeito (o morto) para depois do verbo e dispôs o objeto direto (o vivo) antes do verbo (cf. o vivo (obj) seguiu o morto (suj.)).  Seja como for, quem produziu (15) o fez usando o pronome “se” em lugar de especificar o agente de “abrir”. Em “o túmulo se abriu”, o que o enunciador parece querer dizer é que ‘o túmulo se abriu espontaneamente’. Não há um [AGENTE], porque “o túmulo”, salvo no domínio do discurso fantástico, não pode preencher esse papel. Não obstante, a espontaneidade da abertura do túmulo sugere que alguma força não humana, abriu naturalmente o túmulo, de modo que o túmulo apenas parece ter aberto a si mesmo. Não há indeterminação do agente nesse caso, porquanto os casos em que “se” indetermina o agente da ação são aqueles em que a agentividade constitui um traço previsto para o sujeito selecionado pelo verbo. Por exemplo, em “vendeu-se muitas frutas hoje”, o verbo “vender” designa uma ação que só pode ser desempenhada por seres humanos. O verbo “vender”, portanto, exige um sujeito cujo núcleo tem de ser um substantivo que comporta o traço sêmico [+ humano]. O caso do verbo “abrir” é diferente. Mesmo quando empregado com objeto direto, é possível que seu sujeito seja preenchido por um substantivo [- animado], como em “A chave da minha mãe abriu a porta”, em que “a chave da minha mãe” é um sintagma nominal cujo núcleo é o substantivo “chave”.  Essa característica de verbos como “abrir” ajuda-nos a entender que falar em “indeterminação do sujeito” ou, como prefiro, “indeterminação do agente” é reconhecer que o que fica indeterminada é a identidade de atores humanos, que podem ser codificados linguisticamente como participantes de estados-de-coisas na função semântica de [AGENTE] quase sempre. Parece-me lícito, por exemplo, admitir que o verbo “aceitar”, embora selecione para a posição de sujeito um substantivo, na maioria das vezes, [+ humano], a propriedade [agentividade] do seu sujeito se situa numa região cinzenta em que também se inscreve a [passividade]. Ora, o sujeito de “Nós aceitamos cartões de crédito” pode até desencadear a ação de “aceitar”, mas o faz na condição de [RECEPTOR], portanto, de participante passivo. Não obstante, em face de uma forma como “Aceita-se cartões de crédito”, os falantes não hesitariam em dizer que “quem” aceita, ou seja, a pessoa que aceita está indeterminada. Portanto, quando falamos em “indeterminação do agente”, não devemos querer dizer apenas “indeterminação do [AGENTE] gramatical”, mas indeterminação dos agentes humanos, dos atores sociais que o estado-de-coisas designado na oração supõe e/ou implica.
Cumpre ainda fazer uma observação importante: em todos os exemplos até então examinados o sujeito de “abrir-se” ocupa a posição que lhe é canônica, a saber, antes do verbo. Em outras palavras, em todos os casos então examinados até aqui, a oração em que figura o verbo “abrir” apresenta a ordem SV (sujeito-verbo intransitivo). A importância dessa observação consiste em permitir-me a elaboração da hipótese segundo a qual essa ordem sintática favorece a interpretação do “se”, juntamente com verbos da classe de “abrir” (quebrar, rachar, rasgar, etc.), como uma marca de pseudorreflexividade, ou melhor, como um índice que marca espontaneidade de uma ação não agentiva.
É preciso também salientar que todos os casos examinados autorizam o apagamento do “se”. Assim, o enunciador tem a opção de produzir um enunciado como “A porta se abriu e eles entraram” ou “A porta abriu e eles entraram”. A diferença é que, na primeira variante com “se”, marca-se a espontaneidade da ação de abrir, como se a porta abrisse a si mesma; na segunda versão, que é a versão não marcada, não se realça essa espontaneidade. Isso explica por que me parece - e talvez aos falantes nativos também pareça - que, se, em “A porta se abriu”, há um resquício de agentividade, há uma pseudoagentividade, pois sugere que a porta teria aberto a si mesma (ainda que saibamos que, na realidade, “portas” não podem deliberadamente abrir a si mesmas), em “A porta abriu”, o constituinte “a porta” cumpre o papel de [PACIENTE], no sentido de que “a porta” é que sofre a ação de abrir, sofre mudança de estado.
Passemos, agora, a considerar os exemplos do segundo grupo. Tome-se os exemplos (21), (22), (23) e (24). Os exemplos (21) e (24) apresentam o SN que funciona como objeto direto imediatamente após o verbo. A ordem canônica SVC parece ser mantida, embora o sujeito, aparentemente, não esteja realizado sintaticamente (digo, aparentemente, porque, veremos, que há sim sujeito!). Mas há, sem dúvida, uma diferença formal clara entre os exemplos do grupo 1 e os do grupo 2: nos exemplos do grupo 1, o sujeito se atualiza lexicalmente e ocupa a posição canônica; por outro lado, nos exemplos do grupo 2, o lugar do sujeito parece vazio: ‘X se abriu’   vs.   ‘se abriu X’. Em (22) e (23), a ocorrência do complemento antes do verbo é puramente determinada por uma condição da estruturação sintática, a saber, o uso da relativa com QUE (cf. ...este novo mercado QUE se abriu). Sem a oração relativa, nós teríamos: “se abriu este novo mercado”. Insisto que não podemos negligenciar a ordem em que estão dispostos os termos da oração: SN – V favorece a interpretação do “se” como marcador da espontaneidade da ação; a ordem V-SN é compatível com a interpretação do “se” como índice de indeterminação do agente. Mas isso só não basta. É preciso que o SN seja representado por um substantivo cujo referente pode ser associado à ação de um [AGENTE]. Assim, no exemplo (25), em “já se abriu um espaço no país”, o “se” indetermina as pessoas que produziram condições favoráveis (= que abriram um espaço no país). Em (22), “este novo mercado” é um SN a que podemos associar a ação de agentes humanos. Em outras palavras, alguém ou algumas pessoas abriram este novo mercado (cf. se abriu este novo mercado aos agentes privados). Em (23) e (24), o “se” marca também a indeterminação do agente: alguém abriu o novo capítulo em Oslo, isto é, alguém produziu  novas condições sociopolíticas e alguém abriu a primeira ponte, isto é, ciou, construiu ou liberou a passagem para o fluxo de automóveis[2] . No exemplo (25), se acha tanto o uso do verbo “abrir” quanto do seu correlato antônimo “fechar”. O “se” marca a indeterminação do agente que abre e fecha “o ciclo das providências legais”. Chama a atenção o uso de “se fizeram”, concordando com o suposto sujeito “providências legais”. O enunciador, nesse caso, segue o uso prescrito pela gramática tradicional, que exige a concordância do verbo com o sujeito quando o “se” é um pronome apassivador. Mas essa interpretação se apoia numa correspondência com “providências legais foram feitas”, que é inconsistente tanto do ponto de vista da construção da coerência textual quanto do ponto de vista pragmático. Insisto em que quem diz/escreve “Não se faz mais bons jogadores como antigamente” não leva o verbo para o plural porque não entende “bons jogadores” como sujeito, mas sim como objeto direto. O sujeito é sintaticamente preenchido pelo pronome “se”, o qual indetermina o agente, ou seja, aquele que é responsável por fazer ou formar bons jogadores. O falante nativo do PB operou aí uma reanálise desse tipo de construção: onde a tradição gramatical insistia em ver VS (Verbo-sujeito) e uma correspondência com “ser + particípio” (cf. não se fazem = não são feitos...) o falante nativo intui logicamente a ordem VC (verbo-complemento), não fazendo o verbo concordar com o SN que se lhe segue, porque esse SN não é o sujeito, mas o objeto direto (cf. não se faz mais bons jogadores como antigamente = não fazem mais bons jogadores como antigamente).
No exemplo (26), o “se” de “não se abriu o Congresso...” também indetermina o agente, já que Congresso designa uma instituição política cujo funcionamento se associa à atividade de atores humanos.
Portanto, o exemplo fornecido por Bechara – “O banco só  se abre às 10 horas” – não deve ser analisado por uma suposta correspondência com “O banco só é/será aberto às 10 horas”. O uso do “se”, a despeito da ocorrência de “o banco” antes do verbo “abrir”, marca indeterminação do agente. Assim, o SN “o banco” não é o sujeito de “se abre” (não há uma construção com um “se” pseudorreflexivo), mas sim um objeto direto topicalizado, ou seja, transposto para a posição inicial da oração. Na posição de tópico, é sobre “o banco” que recai a informação contida em “se abre às 10 horas”. Se déssemos outro torneio à frase, realçar-se-ia o valor de “se” como indeterminador do agente: “Só às dez horas se abre o banco”. Ora, “banco” é uma instituição cuja abertura e funcionamento depende necessariamente de agentes humanos. Uma “porta” , por outro lado, pode se abrir por força de um forte vento, mas um banco só pode abrir, isto é, funcionar, prestar serviços ao público, se os responsáveis, que são agentes humanos, o fizerem.


1.5. José Carlos de Azeredo

Na sua Gramática Houasis (2008), à página 274, Azeredo nota que “uma importante diferença a ser destacada é que a construção passiva realça o paciente e permite a omissão do agente”. A frase referida pelo autor é Estas crianças foram abandonadas. Azeredo reconhece que o conteúdo desse exemplo pode ser expresso por abandonaram-se estas crianças – construção que atualiza a dita “voz passiva sintética”. Como, no entanto, nessa última construção, o agente fica obrigatoriamente indeterminado, na atual sincronia do português, “(...) este exemplo só pode ser interpretado como a versão passiva de Abandonaram estas crianças, formulação bem conhecida de construção de sujeito indeterminado” (ibid.). Veja-se que Azeredo subverte a correspondência feita pela tradição: a construção de voz passiva sintética deve corresponder, por força de recusar a atualização do agente, à construção “Abandonaram as crianças”, que constitui uma das formas de se indeterminar o sujeito. Ainda segundo Azeredo, “(...) o sentimento de indeterminação do agente prevalece sobre o caráter passivo da construção. O verbo, mesmo transitivo direto, é recategorizado sintaticamente como os demais verbos junto aos quais o se é um índice de indeterminação do sujeito” (ibid., p. 275, grifo meu). Não se trata, penso, de uma recategorização do verbo, já que ele continua sendo da classe dos verbos transitivos diretos, mas de uma reanálise sintática que o falante faz, intuitivamente, quando usa o verbo com “se” no singular. A tradição gramatical exige a concordância do verbo com o seu suposto sujeito posposto em construções como “abandonaram-se as crianças”, justamente porque o verbo é transitivo direto (quando o verbo é transitivo indireto, a concordância não se dá!). O que a tradição faz, ao exigir a concordância do verbo, contraria o conhecimento intuitivo que todo falante nativo de português tem, graças ao qual ele, muito justamente, interpreta o SN posposto ao verbo como objeto direto, ou seja, como a entidade afetada pela ação do verbo, e não o sujeito. A análise tradicional é inconsistente também sintaticamente, pois, ao fazer crer, a todo custo, que o SN posposto ao verbo transitivo com “se” é o sujeito, ela ignora completamente as condições previstas pelo preenchimento da estrutura valencial do verbo. Por exemplo, sabemos que o verbo ABANDONAR prevê em sua semântica uma estrutura bivalencial, ou seja, prevê em torno de si dois lugares vazios que devem ser preenchidos por dois argumentos: X ABANDONAR Y. O lugar de “X” deve ser ocupado por um substantivo [+ humano], que cumpre a função de argumento 1 ou sujeito; o lugar de Y, por sua vez, pode ser ocupado por um substantivo [+ animado] ou [- animado], que cumpre a função de argumento 2 ou objeto direto.

                                         X     ABANDONA           Y
                                     Sujeito                         Objeto direto
                                Os pais      abandonaram    as crianças

                                                   VOZ ATIVA
                    
Quando a gramática normativa e seus defensores exige (ou exigem) que, usado com o pronome “se”, o verbo “abandonar”, por exemplo, deve concordar com o SN que se lhe pospõe à direita, porque esse SN é seu sujeito (cf. Abandonaram-se as crianças), ela transforma em sujeito o que na construção sem o “se” é objeto direto. A pergunta que se deve fazer é: para onde foi o objeto direto então?. A análise tradicional fica ainda pior se colocarmos a oração “abandonaram-se as crianças” na ordem canônica em que figuram os termos oracionais em português SVC: as crianças abandonaram-se (ou se abandonaram?). Mas em “as crianças se abandonaram” (para manter a colocação usual do clítico em português brasileiro), a posição de sujeito é ocupada por um substantivo que designa um ente que exerce e sofre a um só tempo a ação de abandonar (teríamos um caso de voz reflexiva e não de voz passiva!). A análise tradicional que insiste em ver uma voz passiva sintética fratura, portanto, a estrutura sintática da oração, porque elimina o objeto direto previsto pela valência do verbo na medida em que toma como sujeito justamente o constituinte que, na oração sem o “se”, era o objeto direto. Mas, ao proceder a uma análise estrambótica como esta, a tradição gramatical fecha os olhos para a realidade linguística, para o uso real da língua, para o sentido que se quer, de fato, produzir quando, acertadamente, o falante emprega o verbo no singular: Abandonou-se as crianças. Como, sintaticamente, não se pode argumentar que o SN de “abandonou-se as crianças” é o sujeito (por duas razões evidentes, aliás: 1ª) não se sentiu a necessidade de concordar o verbo com o SN que se lhe segue; 2ª) o SN não ocupa a posição a que, canonicamente, se destina o sujeito; ao contrário, o SN preenche aí a posição típica de um complemento verbal (depois do verbo) – como, repito, é extremamente difícil senão impossível convencer qualquer falante ou aluno de que o SN que está depois do verbo é o sujeito com base exclusivamente na estrutura da frase, a tradição gramatical recorre a uma falsa analogia com a construção de voz passiva analítica, na qual a posição de sujeito é ocupada pelo que, na voz ativa, era objeto direto:  As crianças foram abandonadas.
O uso, no singular, de verbos acompanhados de “se” que exigem objeto direto é fartamente exemplificado na modalidade escrita de jornais e já frequenta as produções textuais dos mais célebres escritores de nossa literatura. Quero, portanto, enfatizar que construções como “vende-se sapatos”, “conserta-se relógios”, nas quais o “se” constitui um índice de indeterminação do agente já fazem parte do vernáculo geral dos brasileiros e já se encontra bem acolhidas na norma culta da língua.
Azeredo oferece o seguinte exemplo de Luís Fernando Veríssimo, que transcrevo abaixo. Note-se que o escritor usa “se aceite” no singular para marcar a indeterminação daquele ou daqueles que poderia(m) aceitar as teses. O uso do verbo no singular mostra que o enunciador reanalisa “todas as teses” como objeto direto, como aquilo que pode ser aceito. A interpretação adequada de “mesmo que se aceite todas as teses...” é “mesmo que alguma pessoa, qualquer pessoa, todas as pessoas aceite...”.

(27) Mesmo que se aceite todas as teses sobre o desvirtuamento do movimento dos sem-terras, a dimensão do movimento é uma evidência literalmente gritante do tamanho da iniquidade fundiária no Brasil
         [Veríssimo, L. F. O Globo, 3/07/2008]



Tornarei a mostrar, com base em outros exemplos de uso real da língua, quão inconsistente é a análise tradicional do uso do “se”. No entanto, convém dar a conhecer outros dois tipos de construção em que figura o pronome “se” e que não podem ser confundidas com as construções em que o “se” marca reflexividade e indeterminação do agente.
A primeira dessas construções, de que já falei brevemente, é a construção em que se atualiza a voz média. A voz média é uma construção pseudorreflexiva. Segundo Azeredo (ibid., p. 278), “essa designação tem a vantagem de caracterizar a construção pronominal como um meio termo entre a voz ativa e voz passiva”. Para Azeredo, a designação voz média é semanticamente mais abrangente que o termo “voz reflexiva”. Azeredo considera a voz reflexiva uma variedade da voz média. De fato, a voz média recobre todos os exemplos de que faz parte o verbo “abrir” (e correlatos), que examinei anteriormente, bem como muitos casos de verbos pronominais. A voz média se constrói com um “se” pseudorreflexivo que, quando usado com verbos com os quais forma uma unidade semântica, uma unidade semicristalizada, tais como batizar-se, comportar-se, envergonhar-se, esforçar-se, realça a afetividade implicada no estado-de-coisas descrito na oração. A estrutura de uma construção de voz média pode ser assim formalizada:


          S  [- AGENTE]             se  V ------     + ou – complemento preposicionado
              [+ HUMANO]
              [- ANIMADO]

Nas construções de voz média, o verbo pode selecionar um complemento preposicionado ou pode recusar qualquer complemento. Seu sujeito não desempenha o papel de [AGENTE], muito embora possa ser representado por um substantivo [+ humano] ou [- animado]. Constituem exemplos de voz média as frases abaixo nas quais figura um verbo tradicionalmente chamado “verbo pronominal” que denota, muitas vezes, estado emocional ou psicológico:


(28) Ela se assustava com tudo.
(29) O velho se queixava do persistente barulho.
(30) As crianças se divertem com as piruetas do macaco.
(31) Ele se arrependeu de não ter ido à festa.

Há casos de voz média com verbos pronominais que denotam outros tipos de circunstância ou estado, tais como ilustram as frases abaixo:

(32) Ela se chama Maria.
(33) Ela se batizou na Igreja Nossa Senhora da Cabeça.
(34) Ela se formou em engenharia

O caráter pseudorreflexivo da voz média tem levado, no PB, ao apagamento do clítico. Com alguns verbos, esse apagamento atrai ainda a reprovação por parte dos falantes das variedades linguísticas mais prestigiadas; mas com o verbo “operar” no sentido de ‘fazer uma cirurgia’ ou ‘submeter-se a uma cirurgia’, o apagamento do “se” já está incorporado ao vernáculo brasileiro. Vejamos alguns exemplos de apagamento do “se”:

(35) Quando vi aquele cachorrinho, apaixonei.
(36) Minha filha formou em Engenharia.
(37) O garoto reprovou em Física.
(38) Ela operou a hérnia
(39) Ela vai operar amanhã.
(40) Ela magoou (com você).

Os exemplos (35), (36) e (40) são avaliados negativamente pelos usuários das variedades mais prestigiadas do português brasileiro. Esses usuários tendem a usar com mais frequência, salvo em situações com baixo monitoramento, as formas correspondentes à norma culta: se apaixonou, se formou, foi reprovado, se magoou. O verbo “reprovar”, na acepção de ‘não se qualificar num exame’ tende a ser empregado, nas variedades prestigiadas, na construção de voz passiva (cf. Ele foi/ ficou reprovado). O uso do “se” levaria a atribuir um caráter agentivo e intencional ao sujeito de “reprovar” (fulano se reprovou), mas como reprovar a si mesmo, embora logicamente possível, constitui um comportamento socialmente mal avaliado, a solução encontrada é o uso de “reprovar” numa construção que só, aparentemente, parece com a da voz ativa; mas, na verdade, trata-se de uma construção ergativa. Logo considerarei as construções ergativas. Mas, antes, devemos atentar para as frases (38) e (39), acima referidas. Somente o contexto sociocognitivo partilhado pelos interlocutores pode determinar o significado dessas construções. O modo de configuração do estado-de-coisas e da predicação dessas orações depende de que os interlocutores compartilhem entre si alguns conhecimentos sobre a identidade da pessoa a que se refere o pronome “ela”. Se (38) é produzido para se referir a uma pessoa que se submeteu à cirurgia de hérnia, então o SN “ela” cumpre o papel semântico de [PACIENTE]. Assim, a pró-forma “ela” não se refere à pessoa que realizou a cirurgia de hérnia, mas à pessoa que se submeteu à cirurgia de hérnia, ao paciente mesmo. O caso de (39) também pode ser interpretado como o de (38). Se (38) e (39) fossem produzidos por uma médica ou se o sujeito “ela” se referisse à médica, então (38) e (39) comportariam um sujeito [AGENTE] – ‘alguém realiza uma cirurgia’. Na primeira interpretação, o sujeito é [PACIENTE], representa aquele que é submetido à cirurgia; na segunda interpretação, o sujeito é [AGENTE], a saber, aquele que realiza a cirurgia. No primeiro caso, temos uma construção ergativa; no segundo, uma construção de voz ativa.

X           OPEROU   (Y)
Agente                  Paciente         voz ativa     O doutor operou o paciente
Paciente                 (Objeto)         construção ergativa   o paciente operou (os rins).    

Vamos nos deter um pouco no exame das construções ergativas.

2. Diátese e Valência

A diátese constitui um tipo de construção. Cada diátese divide os verbos da língua em duas classes: os que podem e os que não podem ocorrer nela. Assim, a construção ergativa constitui uma diátese, porque há verbos que a aceitam e outros que a recusam. Enquanto o verbo “engordar” cabe na construção ergativa, os verbos matar, ler, estudar, beliscar, empurrar entre outros não aceitam essa construção.
Por valência de um verbo entende-se, portanto, o conjunto de todas as diáteses em que esse verbo pode ocorrer. Assim, por exemplo, a valência do verbo engordar inclui:

a) a diátese transitiva: O fazendeiro engordou os porcos.
b) a diátese ergativa: O fazendeiro engordou.
c) a diátese transitiva de objeto elíptico: Pizza engorda.

Toda diátese é uma construção, mas nem toda construção é uma diátese. Uma construção é uma unidade linguística resultante da estruturação de constituintes. A construção é a materialização de uma estrutura de constituintes. Assim, a palavra “atualização” é uma construção lexical da estrutura Rad. + Suf.v (sufixo verbal) + Suf.n (sufixo de nominalização).

Como se define, portanto, a diátese ergativa? Ela é um tipo de construção formalmente semelhante à construção intransitiva (ou transitiva direta, comum nas variedades coloquiais), mas desta difere por apresentar sujeito [PACIENTE]. Segundo observa Perini (2010, p. 246):

(...)embora todos os falantes do PB usem a ergativa, muitos usam a forma com reflexivo com certos verbos, de modo que a ergativa para eles tem uso mais restrito. A tendência parece ser generalizar a ergativa às custas da construção com reflexivo (...).


Para Perini, construções que ainda carreiam muita carga de estigmatização como Carolina arrependeu tenderiam a se generalizar em lugar de sua variante prestigiada Carolina se arrependeu.
Cumpre enfatizar que, na construção ergativa, o sujeito de um verbo transitivo na função de [AGENTE] é o paciente do estado-de-coisas descrito. Na construção ergativa, a posição do objeto direto, que na construção com verbo transitivo (cf. A funcionária abriu a janela), é preenchida por um substantivo [PACIENTE], fica vazia, porque o [PACIENTE] ocupa a posição de sujeito (cf. A janela abriu).
A forma ergativo provém do grego érgon, que significa ‘trabalho’. Nas construções ergativas, portanto, o sujeito parece agir, parece “trabalhar”, mas é ele quem sofre a ação do verbo. A construção ergativa pode ser formalizada da seguinte maneira:

Construção ergativa
SN                           V
PACIENTE              intransitivo (monovalente).
                               transitivo  (bivalente)

São exemplos de construções ergativas:

(41) O vaso quebrou.
(42) Guilherme engordou.
(43) Júlia emagreceu.
(44) Passe protetor solar para você não queimar.
(45) O feijão queimou.
(46) Esse sapato dói o meu pé.
(47) O carro furou o pneu.
(48) O celular descarregou a bateria.

Os exemplos (41), (42), (43), (45) encerram orações cujo núcleo é um verbo monovalente ou intransitivo e cujo sujeito tem o papel semântico de [PACIENTE]. O caso (45) difere dos anteriores apenas por apresentar um sujeito cujo núcleo é um substantivo [- animado]. Importa notar que, em todos os casos, a estrutura sintática parece corresponder à estrutura de voz ativa, embora não haja voz ativa porque o sujeito de cada uma das orações não realiza a ação descrita pelo verbo. Resta evidente que em (45) o  SN “feijão” não é causador da ação de queimar, mas representa ‘aquilo que foi superaquecido’. Em (47), não foi o “carro” que furou o pneu. Portanto, é claro que “o carro” não é o agente na estrutura semântica atualizada na oração, mas preenche o papel semântico de [TOTALIDADE], ou seja, representa a entidade da qual outra faz parte; “pneu”, por seu turno, representa semanticamente a PARTE, ou seja, a entidade que pertence a uma entidade maior. Qualquer falante nativo do português brasileiro interpreta (47) como “O pneu do carro furou”. Essa construção é uma variante ergativa largamente usada no vernáculo brasileiro.  O que se diz de (47) se estende ao caso (48). Nesse último exemplo, o SN “o celular” não constitui o [AGENTE]. Trata-se de uma variante ergativa da também ergativa “A bateria do celular descarregou”.
Azeredo propõe uma síntese dos usos do pronome “se”, que adapto para atender aos objetivos desta exposição. Vejamos, então, em quais construções ocorre o “se”. O quadro não pretende ser exaustivo, naturalmente; todavia, fornece um panorama pedagogicamente eficiente dos usos do pronome “se” no português brasileiro.

1) Voz média com cristalização

Recobre os verbos exclusivamente pronominais. Tais verbos, conforme vimos, se combinam com o pronome “se” para formar uma unidade lexical. Muitos deles expressam estados psicológicos ou emocionais. Nessa classe, se incluem também verbos que denotam mudança de estado psicológico.

(49) Eles se queixaram do calor
(50) Ele se arrependeu de não ter ido à festa.
(51) Como você se atreve a me desobedecer?
(52) Assustava-se com tudo.
(53) Não se impressionava com o que ele lhe dizia.
(54) Ela se emocionou com o poema.


2) Voz média com regras sintáticas

a) Com verbos que adquirem status lexical novo por força da pronominalização

(55) Desfizeram-se de alguns sapatos velhos quando viajaram.

O verbo “desfazer-se” não tem o mesmo significado de sua variante “desfazer” em:
 (56) Eles desfizeram os planos de viajar.

Note-se que a valência do verbo “desfazer” muda conforme o usemos com ou sem o pronome “se”.

(A) X se DEFAZ de Y       
(B) X  DESFAZ  Y

Enquanto (A) é a estrutura sintática que atualiza o significado ‘livrar-se de, deixar para trás’, (B) é a estrutura sintática que atualiza o significado ‘desmanchar o que foi feito’.

O verbo “comportar-se” também é um exemplo de verbo que se constrói de modo diferente segundo ocorra ou não com o pronome “se”.

(57) Ele se comportou bem hoje
(58) Essa regra comporta algumas exceções.

Na segunda frase, “comportar” significa ‘incluir, conter’.

b) com verbos que entram a fazer parte de construções nas quais resta algum vínculo semântico entre a forma pronominal e a forma sem o pronome.

Estão nesse caso os verbos lembrar-se, esquecer-se, abraçar-se, casar-se, apresentar-se entre outros.


(59) O rapaz lembrou o nome da antiga namorada.
(60) O rapaz se lembrou do nome da antiga namorada.
(61) Ele vai se apresentar esta noite abrindo o festival.

Alguns verbos aqui arrolados entre os que se constroem com voz média não atualizam voz média, se por voz média entendemos um tipo de construção sintática em que o sujeito não é o agente. Ora, na frase “O homem se abraçou ao poste enquanto ventava muito”, não se pode negar que o sujeito realiza uma ação, ele é o agente da ação de “abraçar”. Ao uso de “se” com o verbo “abraçar” corresponde a estrutura valencial  ‘X ABRAÇOU-SE a Y’. Quando empregado sem o pronome, “abraçar” prevê outra estrutura valencial, qual seja, X ABRAÇOU Y. Penso que, além de marcar a distinção entre as estruturas sintáticas, o uso do “se” com predicador “abraçar” parece acrescentar o significado de ‘insistência no dispor-se a, no disponibilizar-se para’ do agente na realização da ação.
O papel semântico de [AGENTE] caracteriza os argumentos que comportam os traços sêmicos: [+ animado], [+ controle]. O traço [+ controle] implica o traço [+ intencionalidade]. Ainda que possamos argumentar que, em “Ele se comportou bem”, o sujeito representa uma entidade que teve um tipo de experiência (é um [experienciador]?), parece-me indubitável que, em “desfizeram-se dos sapatos velhos”, ‘pessoas’ executam uma ação, que pode ser a de doar os sapatos ou os jogar fora. Mas, se há, no estado-de-coisas descrito nessa oração, um [AGENTE], então, por definição, não haveria voz média.
O verbo “perder”, por exemplo, admite a construção com “se” na voz média. Veja-se os seguintes exemplos:

(62) Júnior perdeu seus óculos fazendo trilha.
(62a) Júnior se perdeu na trilha.

Tanto em (62) quanto em (62a) o SN “Júnior” não é o agente. Em (62), o sujeito desempenha o papel semântico de ‘entidade privada de algo’; em (62a), o [PACIENTE], ou seja, aquele que sofreu a ação de ‘desorientar-se’. Naturalmente, ninguém interpreta (62a) como se Júnior se fizesse perder a si mesmo, como se ele causasse a ação de desorientar-se a si mesmo. O ‘perder-se’ é algo que lhe acontece, que ele sofre. Pode-se, então, com base na definição tradicionalmente aceita de voz média, dizer que (62) e (62a) constituem exemplos de voz média com um verbo que entra “a fazer parte de construções nas quais resta algum vínculo semântico entre a forma pronominal e a forma sem o pronome”.
O que se pode dizer é que o rótulo voz média não dá conta de todos os casos de construções em que figura o “se” pseudorreflexivo. Há casos, como se vê, em que o “se” recusa o significado ‘reflexividade’, embora continue a prender-se a verbos que selecionam sujeitos [AGENTE]. Veja-se, o caso do verbo “virar”. O verbo “virar” admite as seguintes diáteses:

(63) O copo virou.
(63a) O bebê virou o copo.
(63b) Pedro se virou para ver o que acontecia
(63c) Pedro virou a cabeça quando a moça passou
(63d) Pedro se vira como pode

Em (63), temos uma construção ergativa; em (63a) e (63c), há voz ativa; em (63b), temos voz reflexiva; em (63d), temos...uma voz média? Mas ‘quem se vira como pode’ não executa várias ações, não cumpre muitas tarefas, não desempenha o papel de agente também? Quem se vira como pode também não sofre, se cansa, se aborrece, “dá duro”, como se diz?
Não pretendo aqui sugerir novos conceitos para tratar das nuances que caracterizam as vozes do verbo. Apenas insisto em que as quatro vozes verbais descritas na tradição gramatical não dão conta da miríade de possibilidades de estruturação semântico-sintática das orações em português.

3) Voz reflexiva

a) Com verbos que denotam movimento corporal sem translação

 (64) Ele se sacode quando ri.
 (65) Maria se espreguiçou antes de levantar
 (66) Maria se levantou rápido quando seu pai chegou.

b) Com verbos que denotam movimento corporal translacional

(67) Os garotos, com medo, se afastaram da fogueira.
(68) A criança se aproximava demais do palco.

4) Construções ergativas

a) Com verbos que denotam mudança de estado físico

(69) Alguns copos quebraram no transporte.
(70) A porta abriu.
(71) Sacha queimou o dedo no tabuleiro.

Veja-se que nas construções ergativas os verbos constroem-se como verbos intransitivos ou monovalentes. As estruturas ergativas, cujo sujeito é o [PACIENTE], corresponde a estruturas transitivas cujo sujeito é o [AGENTE] (Cf. O menino quebrou o copo; o homem abriu a porta com o pé de cabra; Sacha queimou as cartas do namorado).


3. A afetividade como fator de transformação sintática

Bagno chama a atenção para a influência da propriedade semântica afetividade na reanálise sintática de construções com verbos pseudorreflexivos que denotam estados emocionais ou psicológicos. A afetividade é uma das formas de expressão da modalização na língua. O uso de verbos que denotam estados afetivos marca, no discurso, a valoração de afeto, ou seja, marca o envolvimento afetivo ou emocional do locutor no conteúdo do enunciado produzido.
Na reanálise operada nesse caso, privilegia-se a função sintática de sujeito em detrimento das funções de objeto direto e objeto indireto, ou a função semântica de experienciador em detrimento da função de receptor ou meta. Comparem-se as duas construções:

(72) O ocorrido o aborreceu
(72a) Ele se aborreceu com o ocorrido.

Em (72), a oração com o verbo “aborrecer” prevê a seguinte estrutura semântico-sintática:  X sujeito [- animado] ABORRECE Y objeto direto [+ animado]. Em outros termos, em (72), se diz que ‘alguma coisa aborrece alguém’. Outra possibilidade de construção seria usar o clítico “lhe” no lugar de “o”: O ocorrido lhe aborreceu. Nesse caso, a estrutura semântico-sintática seria: X sujeito [- animado] ABORRECE a Y objeto indireto [+ animado]. O que interessa, no entanto, é notar que (72a) tem uma estrutura semântico-sintática diversa de (72). O exemplo (72a) atualiza uma estrutura semântico-sintática em que o sujeito passa a ser representado por um SN cujo núcleo é um substantivo [+ humano]. Se em (72), o referente de “o” designava o [EXPERIENCIADOR], ou seja, aquele que teve a experiência do aborrecimento, em (72a), o [EXPERIENCIADOR] é representado pelo sujeito. Se, em (72), a [CAUSA] era representado pelo SN na posição de sujeito; em (72a), é representada pelo SP na posição de complemento relativo. A estrutura semântico-sintática da oração (72a) fica assim: X sujeito [+ humano] SE ABORRECE com (por causa de) Y complemento relativo [- animado]. Veja-se outros exemplos:

(73) Interessa-lhe saber que você está bem.
(73a) Ele se interessa em/por saber que você está bem.
(74) Me entristece ver você chorando.
(74a) Eu me entristeço em/de/por ver você chorando.

A reanálise operada sob a influência da propriedade semântica da afetividade dá testemunho da tendência cada vez maior de privilegiar-se a ordem sintática normal no PB: SVC (sujeito-verbo-complemento). Ademais, a afetividade favorece a tendência a atribuir a função sintática de sujeito a constituintes dotados do traço [+ humano], únicos capazes de desempenhar o papel de [EXPERIENCIADOR]. É o fator afetividade que nos permite explicar o uso já consagrado no vernáculo geral dos brasileiros da construção Custo a crer nisso. Do ponto de vista pragmático ou da função sociocomunicativa, a reanálise modifica a distribuição informacional da oração. Assim, se, em “custa-me aceitar a sua decisão”, o tópico é “custa-me”, e o comentário é “aceitar a sua decisão”; em “Eu custo a aceitar a sua decisão”, o tópico é “eu”, e o comentário é “custo a aceitar a sua decisão”.

4. O se como marca de indeterminação

Antes de pôr termo a este texto, gostaria de fornecer mais uma prova de que o pronome “se” não desempenha a função de apassivação mas de indeterminação do agente. É em virtude do processo de gramaticalização que o reflexivo “se” passou a ocupar a posição de sujeito, indeterminando, contudo, o agente humano suposto pelo verbo. Se os falantes nativos do PB, em construções como “Conserta-se sapatos”, usam o verbo no singular, é porque tomam o SN à direita do verbo como “complemento” e não como sujeito. O sujeito é representado por um substantivo [+ humano] que, embora suposto pelo estado-de-coisas designado pelo verbo, está indeterminado. O uso do verbo na 3ª pessoa do singular expressa o fato de que o verbo está concordando com o clítico “se”, que é o sujeito da oração. O que pode parecer contrariar um padrão sintático - a anteposição do sujeito ao verbo - pode ser explicado pela observação de que o uso  do “se” na posição enclítica em construções como “vende-se relógios” é estereotipado. Tais construções com “se” enclítico estão praticamente cristalizadas e seu uso, por ser tão contextualmente marcado, faz delas uma espécie de expressão formulaica.  O uso normal do clítico em PB é na posição de próclise (antes do verbo), condição esta que torna a análise do “se” como sujeito perfeitamente coerente com a ordem usual SVC do PB.
Vamos examinar a letra da canção de Luiz Gonzaga Que Nem Jiló, com vistas a observar como o autor fez largo uso de formas de indeterminação do agente, entre as quais se encontra o pronome “se”. Somente quando consideramos “se” como índice de indeterminação é que se garante a coerência do texto.

Se a gente lembra só por lembrar
O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer
Que é feliz sem saber
Pois não sofreu
Porém se a gente vive a sonhar
Com alguém que se deseja rever
Saudade, entonce, aí é ruim
Eu tiro isso por mim
Que vivo doido a sofrer
Ai quem me dera voltar
Pros braços do meu xodó
Saudade assim faz roer
E amarga qui nem jiló
Mas ninguém pode dizer
Que me viu triste a chorar
Saudade, o meu remédio é cantar


Notemos que o autor usa três vezes a forma de tratamento “a gente”, que constitui um dos recursos linguísticos de que dispõe o falante para a indeterminação do agente. A repetição do “a gente” é um recurso estilístico que expressa paralelismo sintático. O paralelismo se interrompe com o uso de “se” em “se deseja rever”, sem que a coerência textual seja prejudicada. Mas por quê? Porque o autor garantiu a manutenção do traço [+ indeterminação] do agente. Somente se consideramos “se” como índice de indeterminação da pessoa que “deseja” rever outra, podemos reconstruir uma continuidade de sentido para o texto. A análise tradicional para “alguém que se deseja rever” é simplesmente uma prática sem sentido. Se o “se” fosse uma partícula apassivadora, como pretende a gramática normativa, teríamos de operar com a equivalência com “é desejado rever (alguém)”, ou pior ainda, *“alguém que é desejado rever”. O bom senso deve aqui prevalecer em detrimento de uma análise inspirada na autoridade de seus defensores. O que o autor da canção fez (aliás, como todos os falantes nativos fazem) é indicar, por meio do uso do “se”, que a pessoa que representa o sujeito do verbo “desejar” está indeterminada. Assim, “alguém que se deseja rever” deve ser entendido como: “alguém que qualquer pessoa (se) deseja rever”.
O uso de “se” para indeterminar o agente é extremamente comum e já não é mais sentido como “erro” por ninguém em construções formadas por ‘preposição + infinitivo’, tais como “ Lugar bom de se morar”, “Lugar bom de se viver”, Livro difícil de se ler, etc. Em tais construções, o clítico “se” tem o mesmo valor de ‘a gente’, ‘alguém’. Assim, “ lugar bom de se morar” é entendido como “lugar bom de a gente morar”.
Definitivamente, está mais do que na hora dos professores (ou de os professores?) de português pararem de teimar em ensinar e cobrar um uso do “se” que tem cada vez mais menos acolhida na norma culta do PB, para reconhecerem, a partir da observação sem preconceitos dos fatos linguísticos, que não existe voz passiva sintética no PB, que o que os falantes nativos fazem, com bastante competência, é usar o “se” para indeterminar o agente, ou seja, para marcar o fato de que o acesso à identidade da pessoa a que se refere o sujeito não pode ser dado, quer porque a pessoa não pode ser identificada, quer porque o falante, atendendo a necessidades sociointeracionais diversas, não quer fazê-lo. Veja-se que o uso do “se” para indeterminar o [Experenciador] previsto pela valência do verbo “ver”, no excerto abaixo, serve para marcar o apagamento da presença do enunciador, conferindo ao texto uma aparência de objetividade.

(75) A boa notícia é que nunca se viu tantos carros nas ruas. A má notícia é que nunca se viu tantos carros na rua (O Globo – 2008/04/210).


A escolha pela indeterminação da pessoa que “vê” não é gratuita. O enunciador poderia ter feito outra escolha. Ele poderia, por exemplo, ter usado a forma “vimos” (nunca vimos tantos carros...). Mas o uso de “vimos” marcaria a presença do enunciador em seu enunciado, fazendo-o assumir certo grau de comprometimento com o que diz, com a avaliação que faz. O uso do “se” para indeterminar o [Experienciador] de “viu” (quem vê? Todo mundo...), mascara a subjetividade inerente a toda e qualquer enunciação, ao mesmo tempo que exime o enunciador de assumir expressamente um comprometimento, uma adesão ao ponto de vista que defende. É claro que ele, ainda assim, sustenta um ponto de vista, uma opinião, mas o faz, recorrendo ao que pensa ser uma evidência publicamente indiscutível: todos têm visto muitos carros nas ruas, ninguém há de negar esse fato.
Tendo o professor se convencido de que o clítico “se” marca a indeterminação do agente e tendo aceitado a farta evidência de seu uso na norma culta, ele passaria a se ocupar com o ensino das funções discursivas do emprego desse clítico como marca de indeterminação. Nesse caso, o professor se ocuparia de questões que excedem o nível estritamente sintático, oracional e que encontram ressonância e importância no domínio do discurso. É tarefa do professor mostrar aos alunos quais efeitos de sentidos são produzidos quando escolhemos usar uma construção em vez de outra. É tarefa do professor mostrar aos alunos que as escolhas linguísticas atualizadas textualmente não são aleatórias mas atendem a necessidades sociocomunicativas, a interesses e propósitos específicos do enunciador. Toda escolha linguística que fazemos é uma forma de significar e de nos significar no discurso. Nada é gratuito, nada está no texto por acaso.
O clítico “se” deve, então, integrar o conjunto de recursos linguísticos que servem à indeterminação do agente, entre os quais destaco os seguintes:

a) a forma de tratamento você, indicando referência genérica. Nesse caso, “você” significa “uma pessoa qualquer”. Trata-se de um uso bastante comum na modalidade falada menos monitorada.

(76) Onde eu trabalho há muita cobrança. Você chega cedo, você faz tudo, mas é sempre cobrado.
(77) Eu conheço bem esse tipo de pessoa. Ela asfixia você, ela manda em você; você é sempre errado pra ela.

b) pronome de terceira pessoa do plural “eles”. Há uma indeterminação parcial, já que só se recobre o universo das terceiras pessoas. Trata-se de um uso característico da modalidade falada com alto grau de informalidade.

(78) No capitalismo, eles querem que a gente compre o tempo todo.
(79) Lá na empresa, eles te colocam pra fazer tudo.


c) Verbo na terceira pessoa do plural.

(80) Jogaram alguém na piscina.
(81) Eu soube que falaram mal de você naquela repartição.
(82) Quando me disseram que você não viria, fiquei triste.

Insisto em que todas essas opções de indeterminação do agente devem ser estudadas à luz de seus efeitos de sentido no texto, considerando-se a que necessidades sociocomunicativas servem, a que propósitos e interesses atendem, quais as condições discursivas que tornam possível o uso dessas formas, etc. É, portanto, equivocada a crença de que se deve prescindir da gramática no ensino de PB. Tal crença indica apenas que aquele que a sustenta entende a gramática, de modo reducional. como uma disciplina destinada a práticas de análise estrutural da língua e de domínio de nomenclaturas.  Refletir sobre o uso da língua implica desenvolver atividades nas quais a gramática deve ser considerada uma atividade linguístico-cognitiva emergente do uso da língua,  implica refletir sobre como a gramática se põe a serviço da produção de sentidos no uso da linguagem. É este, portanto, o verdadeiro lugar da gramática no ensino de língua e, particularmente, no ensino do português brasileiro.



[1] Prefiro utilizar o nome [OBJETO] em vez de [PACIENTE] para designar o estatuto semântico do complemento do verbo “comprar”, porque a designação [PACIENTE] se aplica a participantes que, de fato, “sofrem a ação do verbo”, isto é, a participantes que são, de algum modo, modificados na sua constituição quando da incidência dessa ação, o que não ocorre com o constituinte que representa ‘aquilo que uma pessoa adquire na compra’. O verbo “comprar” constrói um estado-de-coisas no qual se distingue, pelo menos, dois participantes: a) aquele que realiza a ação de comprar (o AGENTE) e b) a coisa comprada. Há uma relação de transferência de um objeto que estava na posse de um participante A (vendedor) para um participante B (comprador). Tendo em conta essa relação transferencial deduzida da situação de compra, nada obsta a que possamos optar por usar outro papel semântico para designar ‘aquilo que é comprado’ (por exemplo, poderíamos atribuir-lhe o papel de [TRANSFERIDO]). Mas, se assim procedêssemos, estaríamos a acrescentar outro papel semântico no já vasto conjunto de papéis semânticos encontrado na literatura especializada. Uma das vantagens do uso do papel semântico [OBJETO] é o fato de ele já estar consagrado nessa literatura semântica. O papel semântico de [OBJETO], embora esteja envolvido em estados de coisas de mudança de estado, de condição, se distingue do papel de [PACIENTE] pelo fato de aplicar-se a entidades que não sofrem uma modificação material, substancial.
[2] Essa análise vale, caso entendamos “abrir a ponte” como “construir a ponte” ou “liberar a passagem pela ponte”, e não como “rachar a ponte, danificar a ponte”.