O
prazer e a dor à luz do perspectivismo nietzschiano
“O homem
– escreve Nietzsche – não busca o prazer e não se esquiva do desprazer”[1].
O homem quer o mesmo que o mais rudimentar organismo vivo quer: um aumento de potência. Ao ter como fim
o aumento de potência, é inevitável que na busca desse aumento de potência
concorram o prazer e o desprazer. O desprazer é necessário para toda vontade de
potência que deve opor resistência a um obstáculo. O desprazer é, assim, um
“ingrediente” normal de todo fenômeno orgânico, de sorte que o homem não foge
do desprazer, mas tem necessidade dele. O prazer e a dor, segundo Nietzsche,
não são contrários. Não raro, o prazer se faz acompanhar de uma série de
desprazeres que leva a um crescimento da vontade de potência. A vontade de potência
que “quer” aumentar sua potência deve impor resistência a toda sorte de obstáculo.
Assim, no fragmento 304 de Vontade de
Potência, observa Nietzsche:
Há casos
em que uma espécie de prazer é condicionada por uma certa sucessão de pequenas crispações de desprazer: atinge-se, assim, a
um crescimento bastante rápido , do sentimento de potência, do sentimento de
prazer. (...). Um pequeno obstáculo é suplantado, mas imediatamente segue-se
outro que também é suplantado – esse jogo de existências e vitórias estimula ao
máximo o sentimento geral de potência, supérfluo e excessivo; constitui
precisamente a essência do prazer. (ênfases no original).
Para
Nietzsche, a essência do sofrimento não consiste numa diminuição da vontade de potência,
ou “do sentimento de potência”. A dor pode ser um estimulante para o acúmulo de
potência, ao menos para o tipo humano afirmador. O que determina o que provoca prazer
e o que provoca desprazer é o grau de potência de uma vontade de potência, de tal
sorte que “a mesma coisa, em relação a uma pequena quantidade de potência,
manifesta-se como um perigo e a necessidade de evitá-lo logo que possível pode,
quando se tem consciência de uma potência maior, trazer consigo uma excitação
voluptuosa, uma sensação de prazer”. (ibid., § 306).
O prazer
não se dá como resultado da satisfação da vontade; a satisfação da vontade
repousa sobre o fato de ela superar-se, de ela querer assenhorear-se “do que
encontra em seu caminho”. (ibid.). O prazer reside justamente nesse avanço da
vontade de encontro com aquilo que se lhe apresenta como obstáculo ao qual ela
impõe resistência; o prazer já se encontra no embate da vontade contra um
adversário. Para Nietzsche, o “homem feliz” que se reconforta na ataraxia é o ideal do rebanho. Tomar
como critério de avaliação do mundo a quantidade de prazer alcançado é uma atitude
própria do tipo humano cansado da vida, para quem “o mundo é algo que
razoavelmente não deveria existir porque ocasiona ao sujeito sensível mais
desprazer que “prazer””, visão esta a que Nietzsche acrescenta o seguinte
comentário – “semelhante palavrório chama-se hoje pessimismo”. (ibid. § 312).
O
pessimista, que desaprova a existência em virtude da quantidade de desprazer
e/ou de dor que ela abarca, não vê que toma como causa de sua rejeição apreciações
de valor. O desprazer e a dor são valores com os quais ele julga nociva a
existência. Mas esse julgamento tem como base o sentimento. Nietzsche é
incisivo ao rejeitar tal julgamento de superfície: “Eu desprezo este pessimismo
da sensibilidade: é um traço de profundo empobrecimento vital”. (ibid.).
Pretender
determinar se a vida tem ou não valor segundo a quantidade de prazer e/ou
desprazer que ela encerra é ignorar que, na avaliação, o indivíduo se vale de
sentimentos como meios pelos quais ele julga a vida. Mas pergunta-se Nietzsche
como podemos determinar o valor do valor. O valor do valor não pode ser
determinado segundo tais sentimentos agradáveis e/ou desagradáveis. Disso
resulta que é somente a quantidade de poder aumentada e organizada que pode
determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Em outras palavras, o homem
habitualmente decide sobre o valor ou não da existência com base em sua
consciência, a qual não é mais do que um instrumento a serviço da vontade de potência
. Nietzsche considera como erro o assumir a consciência, mero instrumento da
vida em geral, como valor superior da vida, como medida para avaliá-la. Quem
toma a consciência como medida para julgar a existência toma a parte
(consciência) pelo todo (vontade de potência).
A
“negação da vida” considerada como finalidade da vida, como finalidade da
evolução! A existência como grande tolice! Uma interpretação tão louca é
somente o produto monstruoso de uma avaliação da vida por meio de fatores da
consciência (prazer, desprazer, bem, mal)
(...) Mas
o defeito de uma tal interpretação reside precisamente no fato de que em vez de procurar a finalidade que explica
a necessidade de semelhantes meios, pressupomos, de antemão, uma finalidade que
os exclui: quer dizer que consideramos como normas
nossos desejos em relação a certos meios (meios agradáveis, racionais,
virtuosos), estabelecendo, segundo eles, a finalidade em geral que é desejável... (ibid., § 315, grifo nosso).
A
expressão “negação da vida” que encabeça o excerto supramencionado sinaliza uma
crítica às formas que assumem o instinto de decadência (por exemplo, a
filosofia pessimista de Schopenhauer, o cristianismo, o budismo...) que tomam
como critério de valoração da vida a quantidade de desprazer que ela provoca.
Cada uma das formas que assume o instinto de decadência é uma vontade de potência,
embora fraca. Cada uma dessas formas do instinto de decadência que toma como
finalidade da vida “a negação da vida” constitui uma interpretação da vida, a
qual reflete uma vontade de potência enfraquecida, esgotada. Todas essas formas
condenam a vida em favor de alguma outra coisa. No pessimismo de Schopenhauer,
a vida é condenada em favor da supressão de todo desejo, de todo querer; no
cristianismo, em favor do além-mundo, do Reino de Deus; no budismo, em favor do
Nirvana.
Sabe-se que o sofrimento
para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao
contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um
fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o
sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la
incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do
sacerdote ascético, a vontade de potência que ele afirma, por outro lado, é uma
vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que
enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são
valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que
o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem
doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor;
nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de potência, o tipo vital
que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento
como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais
nefasto da doença do espírito.