A filosofia como prática de cuidado de si
1. A filosofia como exercício
espiritual
Este texto,
mesmo antes de o investir dos recursos linguísticos necessários à sua expressão,
se me afigurou indispensável ao pleno desenvolvimento de minha vida
intelectual. Ele encontra sua origem e razão de ser em minhas vivências
ordinárias, particularmente em meus breves e passageiros contatos com homens e
mulheres que, cotidianamente, tomando o trem, reproduzem a condição de
homens-massa. São esses, em especial, os leitores potenciais deste texto. A
condição de leitores potenciais não significa que eu presuma que eles lerão o
texto, mas apenas demarca um horizonte de interlocução imaginária, suposta por
toda produção textual escrita.
Mas o que pretendo
eu ao escrever este texto? Pretendo retomar a discussão sobre o valor da filosofia como uma maneira de viver intimamente vinculada
ao discurso filosófico. Uma das lições preciosas de Pierre Hadot consiste em
nos esclarecer sobre o vínculo estreito entre o discurso e o modo de vida
filosóficos. Nas palavras desse eminente helenista,
(...) A filosofia é, antes de tudo, uma maneira de
viver, mas está estritamente vinculada ao discurso filosófico (...). A
filosofia não é senão exercício
preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um lado, a
filosofia como discurso filosófico teórico e, de outro, a sabedoria como um
modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o
discurso tiver atingido seu acabamento e sua perfeição (...). (1999, p. 18-19,
grifo meu).
Os discursos filosóficos não podem ser considerados independentemente
dos filósofos que os produziu. Os discursos filosóficos devem ser vistos como a
materialização linguístico-histórica de um exercício
espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício
preparatório para a sabedoria.
Antes de dilucidar a concepção de filosofia como exercício espiritual e o que há que se entender por sabedoria, devo
lembrar que formulei a questão que me incita à produção deste texto, recorrendo
à palavra valor. Quero dar a conhecer
ao leitor em que consiste o valor da
filosofia. Não se trata de submeter a filosofia ao valor de uso, supondo
servir ela a algum fim. Contra tal suposição, vem a propósito a lição de
Deleuze (2001, p. 159), que descreve de maneira clara e direta o caráter
afirmativo da filosofia:
Quando alguém
pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a
pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado, nem
à Igreja, que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A
filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e
não contraria ninguém, não é uma filosofia. A filosofia serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem
outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob
todas as suas formas. Existe alguma disciplina, além da filosofia, que se
proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu
objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não
prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que
forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos algozes. Fazer, enfim,
do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é,
homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral,
da religião. Vencer o negativo e seus altos prestígios. Quem tem interesse em
tudo isso a não ser a filosofia? A filosofia como crítica mostra-nos o mais
positivo de si mesma: obra de desmistificação. […] tolice e a bizarria, por maiores
que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia para
impedi-las, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, para proibi-las,
mesmo que seja por ouvir dizer, de serem tão tolas e tão baixas quanto cada uma
delas desejaria. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não
ser a filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e
inteligentes, ares de pensador?
Deleuze acrescenta que denunciar todas as mitificações é o valor
afirmativo da filosofia. Em suma, “a filosofia como crítica diz-nos o mais
positivo de si própria: a empresa da
desmitificação”. A questão, em torno da qual se constitui o presente texto,
não assume a forma do para que serve,
mas enuncia-se a partir do horizonte dos valores; em última instância, do
sentido. Ora, valores são partes integrantes de todas as culturas (em tempo,
definirei o conceito de cultura que esposarei ao longo de toda essa discussão).
Os valores influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os sistemas
sociais se desenvolvem. Um valor é uma ideia de que se usam os indivíduos para categorizar coisas em relação a outras,
segundo critérios tais como desejabilidade, mérito, perfeição, proveito,
importância, etc. Todo valor cultural é usado para classificar qualquer coisa,
desde abstrações até objetos, experiências, comportamentos, características
pessoais, modos de ser, etc. É bem verdade que há gostos e preferências
pessoais, caso em que a única autoridade é o indivíduo. Mas, não nos enganemos:
os valores são culturalmente estabelecidos e são percebidos como realidades
fora dos indivíduos.
Perguntar pelo valor da filosofia é, portanto, perguntar pelo seu
mérito, pela sua importância. Convém, agora, fazer entender o leitor o que
significa a concepção de filosofia como exercício
espiritual. Enquanto prática de exercícios
espirituais, a filosofia congrega práticas quer de ordem discursiva, quer
de ordem física, como regime alimentar, quer ainda intuitiva, como a
contemplação, todas destinadas a cunhar
modos de ser. A filosofia como exercício
espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade,
na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que
a esse exercício se entrega.
O filósofo, enquanto amante da sabedoria, põe-se obstinadamente a buscá-la,
sem nunca alcançá-la. E nem poderia, pois, se o conseguisse, deixaria de ser
filósofo. É que o filósofo é o amante da sabedoria, é quem se põe a caminho,
quem se dedica a buscá-la. Mas a sabedoria não é uma coisa passível de ser
possuída; é um modo de ser, um modo de
vida. O filósofo aspira à sabedoria, sem jamais alcançá-la. É nessa
impossibilidade que reside a força de seu amor inquebrantável pela sabedoria.
Pois o amor é tanto mais forte quanto mais nos empenhamos na busca do objeto
desejado. Vamos ouvir novamente Hadot (2014, p. 278):
A sabedoria é o
estado ao qual talvez o filósofo jamais chegará, mas ao qual ele tende
esforçando-se para transformar a si mesmo a fim de se ultrapassar.
A sabedoria é um modo de ser, um modo de existência, caracterizado por
três aspectos essenciais: a paz da alma
(ataraxia), a liberdade interior (autarkeia)
e (exceto para os céticos) a consciência cósmica, isto é, a tomada de consciência do pertencimento ao
Todo humano e cósmico. A filosofia, tomada como uma espécie de terapêutica,
destina-se, antes de tudo, a produzir a ataraxia (a paz da alma), libertando o
ser humano da angústia, angústia provocada pelas preocupações da vida, mas
também pelo mistério da existência humana: medo dos deuses, terror da morte
(ibid., p. 279).
A filosofia, tal como nos ensinou Aristóteles, começa com a admiração, quer dizer, com o ser abalado. A experiência do admirar-se
envolve a experiência de uma radical desorientação relativamente ao modo como
nos encontramos no mundo. A admiração é, em grande medida, uma forma de
desilusão: a libertação de um estado comum de entorpecimento, de letargia. O filósofo
é, assim, um ser permanentemente admirado, inquieto sim; atormentado, muitas
vezes, mas sempre interessado no mistério do real, ocupado com as graves e
fundamentais questões que tocam à totalidade da existência e da condição
humana. Na admiração, o filósofo é quem se dá conta de que a realidade excede
sempre as pretensões que temos de esgotá-la através do conhecimento. Na
admiração, o filósofo se abre ao encontro do ser como acontecimento
incompreensível e misterioso.
2. A condição
humana: sua dimensão cultural
Passarei a considerar a condição humana a partir de um primeiro aspecto:
sua inscrição na ordem da cultura. Para tanto, refiro as palavras de Gramsci,
em Concepção Dialética da História
(1966, p. 12) que, fazendo eco a Nietzsche, recorda nossa condição de animais
gregários:
Pela própria
concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o
de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e de
agir. Somos conformistas de algum
conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. (grifo meu).
O cotidiano em que todos nós nos movemos é regulado por uma
disciplinarização da ordem do tempo, pela necessidade de reprodução da
existência física: pela necessidade de comida, vestimenta, moradia; é o espaço
das lutas pelo poder de utilizar os bens
de consumo, das ocupações da diversão: celular, cinema, jogos, etc. É, em suma,
o mundo do trabalho, regulado pela utilização, serventia a fins. O mundo do
trabalho é o mundo do rendimento, do exercício das funções, o mundo da fome e
do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo da realização
da utilidade comum. O cotidiano recobre a dimensão da vida social em que os
homens se encontram em estado de rebanho; é onde os homens tomam parte de uma
coletividade como animais de rebanho. Nesse estado, os animais humanos têm
propensão à preguiça; por toda parte, encontram-se entediados, comportando-se
segundo os costumes e as convenções de sua sociedade; adotando irrefletidamente
as opiniões alheias, seguindo os modismos do rebanho. O animal de rebanho, que é o homem em sua
relação originária com o mundo – que é um campo de relações – vive uma vida
anestesiada, reverenciando e adotando passivamente as significações partilhadas
e herdadas por foça de suas práticas culturais. Para Gramsci, a visão de mundo
desses homens-massa não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada. É em
virtude disso que eles se tornam parte da multidão dos homens-massa. A
personalidade desse tipo humano é constituída como uma concha de retalhos “nela
se encontram elementos de homens das cavernas e princípios da ciência mais
moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas,
grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria
de um gênero humano mundialmente unificado”.
A crítica de nossa visão de mundo, na condição de animais de rebanho,
visa a garantir a unidade e a coerência de que nossa vida carece:
O início da
elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um
“conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje
desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços sem benefício no
inventário. (ibid.).
Ainda, segundo Gramsci, não é possível nos tornarmos filósofos, isto é,
construirmos uma visão de mundo criticamente coerente, “sem a consciência de
nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato
de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras
concepções”. (p. 13). Para Gramsci, a filosofia é a crítica e a superação tanto
da religião quanto do senso comum. A religião é um elemento do senso comum
desagregado. Mas há muitos sensos comuns, pois que “[são] um produto do devir
histórico” (p. 14).
Imerso na cotidianidade mediana, o animal humano pensa e age segundo um
complexo de crenças, supostas certezas, concepções, preconceitos, ideologias,
valores, símbolos; em outras palavras, segundo um complexo de representações
coletivas formadoras dos modos de pensar, agir e sentir que são gerais e
permanentes numa sociedade ou grupo social particular. A esse complexo se dá o
nome de senso comum. O senso comum
abriga saberes:
a) subjetivos, pois exprimem sentimentos e opiniões individuais ou de
grupos, que variam de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro,
dependendo das condições sócio-culturais em que vivem os indivíduos;
b) fundados em avaliação qualitativa das coisas conforme os efeitos que
elas produzem em nós ou conforme os desejos que provocam em nós, ou conforme o tipo
de finalidade que lhes atribuímos;
c) que tendem a generalizações, pois reúnem numa só opinião ou numa só
ideia coisas julgadas semelhantes;
d) por serem generalizadores, tendem a estabelecer relações de causa e
efeito entre coisas: “onde há fumaça há fogo”;
e) não se fazem acompanhar da admiração com a regularidade, constância e
diferença das coisas; ao contrário, a admiração se atém ao que é imaginado como
único e extraordinário ou miraculoso.
f) baseiam-se, comumente, em projeções de sentimentos de angústia e de
medo nos acontecimentos do mundo, sobretudo quando da ordem do desconhecido.
Como bem lembra Thompson, em Ideologia
e Cultura Moderna (2011, p. 22), “o conceito de cultura tem uma história
própria, longa e complicada, que provavelmente tem produzido tantas variantes e
tanta ambiguidade como a história do conceito de ideologia”. Por isso, urge
reinscrever o conceito num horizonte semântico bem determinado. Thompson segue
Geetz, e eu os acompanharei, na definição de cultura como sistema de
símbolos e significados da vida social, como um produto de padrões
significativos incorporados às formas simbólicas compartilhadas na interação
social. No entanto, Thompson adverte: as formas simbólicas devem ser tomadas
como partes integrantes de contextos sociais estruturados, que envolvem
relações de poder, formas de conflito, desigualdade em termos de distribuição
de recursos, etc.
Tomar as formas simbólicas
como fenômenos contextualizados é vê-las como geralmente produzidas e recebidas
por pessoas em contextos sócio-históricos específicos e providas de recursos e
capacidades de vários tipos. (Ibid.).
Um aspecto importante da abordagem do caráter sócio-histórico das formas
simbólicas repousa no fato de que elas se tornam objetos de processos complexos
de valoração e conflito. Os processos de valoração são aqueles por meio dos
quais é conferido às formas simbólicas determinado valor. Há dois tipos de
valor que se associam, normalmente, às formas simbólicas: o valor simbólico e o
valor econômico. Importa apenas aqui considerar o valor simbólico. Esse valor é
atribuído às formas simbólicas em função das maneiras como as pessoas as
apreciam ou as denunciam, as desejam, as
adotam ou as desprezam.
Reymond Williams se debruçou sobre a investigação da complexa história
do desenvolvimento do conceito de cultura. Ele distinguiu entre três
significados modernos da palavra. O primeiro deles, remontando às raízes etimológicas
– “cultura” tinha o sentido de “agricultura” - , era o “cultivo de
conhecimentos”. No século XVIII, passou a ser sinônimo de civilização, no
sentido de que designava um processo geral de progresso intelectual, espiritual
e material. Civilização recobria aí os costumes e a moral: ser civilizado
inclui não cuspir no tapete e não decapitar pessoas, por exemplo. Como sinônimo
de civilização, cultura inscrevia-se no espírito geral do Iluminismo, com seu
culto de autodesenvolvimento secular e sua crença no progresso. Civilização
era, em grande medida, uma noção francesa: supunha-se que somente os franceses
tivessem o privilégio de ser um povo civilizado. Nesse sentido, cultura era o
mesmo que refinamento social. Se a civilização francesa se caracteriza por uma
vida dedicada à política, à economia e à técnica, a cultura germânica se
caracterizava por seus gostos religioso, artístico e intelectual. Nesse
contexto sócio-histórico, por cultura entendia-se o refinamento intelectual de
um grupo ou indivíduo, donde a crença na possibilidade de discriminar entre os
que têm cultura e os que são incultos.
No século XIX, o conceito de cultura deixa de ser sinônimo de
civilização, torna-se seu antônimo. O conceito de civilização, como sinônimo de
cultura, tem uma parte descritiva e uma parte normativa, porquanto tanto pode
designar uma forma de vida (civilização asteca) como prescrever tacitamente um
padrão de vida considerado harmonioso, esclarecido e refinado.
Atualmente, o adjetivo “civilizado” tem essa orientação normativa.
Civilização recobre práticas artísticas, a vida urbana, política cívica,
tecnologias complexas, etc., e tudo isso tende a ser considerado um avanço em
relação ao que havia antes.
Na medida em que os caracteres descritivo e normativo da palavra
“civilização” se separam, a noção de civilização passa a recobrir as boas
maneiras, o refinamento, politesse, a
desenvoltura elegante nos relacionamentos de grupos que compunham a classe
média europeia pré-industrial. “Cultura” é, assim, uma questão de
desenvolvimento total e harmonioso da personalidade. Mas tal desenvolvimento só
pode ser realizado nas relações sociais. Como são necessárias certas condições
sociais para que seja possível tal desenvolvimento, supõe-se que o Estado deve
contribuir para favorecê-las. Passou-se, então, a crer que a cultura tem também
uma dimensão política. É o intercurso social que tornaria possível desfazer a
rusticidade rural e conduzir os indivíduos para relacionamentos complexos.
É na ordem das práticas culturais, definidas como práticas de produção
de símbolos e significados, que se deve pensar a constituição da rede de
sentido e amparo da existência humana. Definindo o sentido como a consciência
de que existe uma relação entre as experiências, Berger & Luckmann (2012,
p. 27) ensinam que “é difícil conceber uma sociedade sem um sistema de valores
e sem reservas de sentido a ele adaptados”. Os acordos quanto ao sentido
desenvolvem-se em comunidades de vida,
as quais “são caracterizadas por um agir que se repete com regularidade e
diretamente recíproco em relações sociais duráveis” (p. 28). Segundo os
autores, as comunidades de vida “pressupõem um mínimo de comunhão de sentido”.
(ibid.). O agir do indivíduo é marcado pelo sentido objetivo colocado à
disposição pelos acervos sociais do conhecimento e comunicado pelas
instituições por meio da pressão que exercem para que seja adotado. As
instituições são responsáveis, portanto, por gerar sentido, controlar seus
estoques e comunicá-lo às comunidades de vida em que um indivíduo cresce,
trabalha e morre. As reservas de sentido objetivadas e processadas pela
sociedade são conservadas em reservatórios históricos de sentido e
administrados por instituições. Elas se encarregam de conservar e
disponibilizar o sentido tanto para fins de orientação do agir do indivíduo em
diversas situações quanto para fins de orientação de seu comportamento. Em
todas as sociedades, com maior ou menor pressão, as instituições, por meio da
educação ou da doutrinação, têm em vista a necessidade de que o indivíduo pense
e se comporte segundo as expectativas e as normas da sociedade. Nas sociedades
pré-modernas, por meio do controle e censura do que era publicamente
comunicado, ensinado, pregado, não havia espaço para opiniões divergentes.
A dimensão cultural da condição humana evidencia, entre outras coisas,
que o mundo é, em certo sentido, o campo de todos os campos de sentido; e num
sentido estrito, é cada um dos campos de sentido em cujos limites se articulam
nossas vivências, nossas práticas existenciais, historicamente condicionadas.
As comunidades de sentido podem ou não se tornar comunidades de vida. As
comunidades de sentido se constituem de diferentes níveis de sentido, não
diretamente baseados na experiência de vida e podem abrigar diferentes campos
de sentido (o filosófico, o científico, o jornalístico, etc.).
A cultura, sendo o mundo próprio do animal humano, mundo cuja essência é
ser mundo simbólico, é um campo de
produção de ficções. Nossa vida depende da produção de ficções. O que são
ficções? São criações da imaginação. Elas não são nem verdadeiras nem falsas.
Talvez, não as escolhamos, não obstante, elas conformam e estruturam, dotando
de sentido, nossas vivências e experiências coletivas. As ficções não podem ser
geradas ao bel-prazer; talvez, por isso, não possam ser descartadas sempre que
desejamos. Ainda que as ficções, sem as quais o que nos restaria seria o
desespero niilista, sejam obra do engenho e da atividade humana, elas escapam
ao controle do animal humano.
Hadot (2014, p. 322) lembra-nos que “o homem deve se separar do mundo
enquanto mundo para poder viver sua vida cotidiana e deve se separar do mundo
cotidiano para reencontrar o mundo enquanto mundo”. Essa experiência de
reencontro com o mundo enquanto mundo não é possível senão pelo exercício da
filosofia – é o que tentarei mostrar. O homem comum vive chapado ao cotidiano,
imerso nesse mundo do trabalho e das ocupações, alienado de si. Urge aqui
assinalar que a filosofia não pretende nem pode retirar do homem as ficções que
lhes possibilita viver, pois que a capacidade de produzir ficções é inerente à
estrutura psicofisiológica do homem enquanto animal simbólico; privá-lo das
ficções seria desumanizá-lo. O que a filosofia faz - e nisso reside seu mérito,
seu valor - é fazê-lo despertar para o fato de que esse mundo familiar, do cotidiano,
da produção e reprodução da existência física, do entretenimento, das lutas
políticas; esse mundo donde grandes edifícios de representação simbólica (a
religião, a arte, a filosofia, a ciência) se elevam “como gigantescas presenças
de outro mundo” (Berger & Luckmann, 2007, p. 61) são formas de mundo
geradas, fabricadas graças ao trabalho de produção de ficções viabilizado pela
linguagem.
3. A loucura da
condição humana
A rotina cultural é o que vai
assegurar o ajustamento dos indivíduos ao modo de funcionamento do sistema
social. É o que evita que eles enlouqueçam. Mas há outra forma de loucura, que
não é a do esquizofrênico. Há uma loucura na normalidade, no ajustamento à vida
normalizada. Nesse caso, a loucura é estruturante da condição humana, conforme
nota Becker (2013, p. 228-229):
Houve uma época em
que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno
daqueles infernais fogões de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia
de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no
auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua
com uma perfuratriz pneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples,
que nem a percebemos: a loucura dessas
atividades é exatamente a da condição humana. Elas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero
natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a
loucura do hospício. (grifos meus).
Becker argumenta que os homens se ocupam devotadamente ao seu trabalho,
às vezes, até com alegria, porque “o trabalho abafa algo mais sinistro”. Os
homens precisam se proteger contra o terror de que seriam tomados se viessem a
compreender o real em sua crueza e nudez. Que crueza e nudez são essas?
Vivendo numa permanente
autotapeação, num permanente estado de autoengano, os animais humanos se ocupam com
seus negócios, participam como autômatos do funcionamento da ordem social,
mantendo fora de sua consciência a representação de uma verdade que se recusa a
calar:
(...) a vida humana pode não passar de um
interlúdio insignificante de um perverso drama de carne e osso que chamamos
evolução; que o Criador talvez não se importe com o destino do homem ou com a
autoperpetuação de indivíduos mais do que parece ter-se importado com os
dinossauros ou com os tasmânios. Essa voz que sussurra é a mesma que nos chega
incongruentemente da Bíblia, nas palavras do Eclesiastes: tudo é vaidade,
vaidade das vaidades. (p. 230).
Essa espécie de
loucura, própria da condição humana, se nos revela aqui apenas sob um dos seus
muitos aspectos. O aspecto dessa forma de loucura que pretendo sublinhar não
repousa propriamente no fato de os homens terem de fazer o que fazem, já que,
dada a forma histórica de nossas sociedades contemporâneas, eles se veem constrangidos
pelas necessidades da subsistência a trabalhar como trabalham; o que
caracteriza a loucura própria da condição humana é que o animal humano acredita
que o que faz tem alguma importância transcendente, algum profundo significado
para a totalidade ordenada do universo. Sua loucura, que, na verdade, é seu
delírio de grandeza, é acreditar que, ao fazer o que faz, ao participar
coletivamente da fabricação desse mundo (de ficções) que lhe torna possível
viver, esgota a totalidade e complexidade do mundo e garante para si um status
especial, uma posição privilegiada relativamente às demais espécies de animais
com as quais ele coexiste nesse mundo mais vasto, mais cheio de beleza, terror
e mistério.
O animal humano é um ser infeliz que sabe que a morte é seu destino
inevitável; mesmo ciente do vaticínio de seu fim, tem que continuar a viver. O
homem é ser cindido, rachado. Os obstáculos para a sua autorrealização não se
acham apenas no mundo, mas em si mesmo.
Se a saúde é a condição natural das outras espécies de animal, no animal
humano, o normal é a doença. Freud soube reconhecer a dívida para com
Schopenhauer, o qual se antecipou à visão fundamental da psicanálise.
Schopenhauer via no instinto sexual a força motora básica da vida humana. Seu
conceito de Vontade equivale ao de pulsões que influenciam a vida humana à
revelia do eu. É a Vontade inconsciente que nos governa. O Id da psicanálise é
a Vontade cega de Schopenhauer.
Para Freud, a busca da felicidade é uma distração do viver. O homem
contemporâneo crê que cada um encontrará a realização de si sendo a pessoa que
realmente quer ser. Em cada um de nós, existem possibilidades únicas à espera
de desenvolvimento. Nosso infortúnio é que essas possibilidades são, em grande
medida, frustradas. O homem comum passa a vida num estado de turbulência
esperançosa. Encontra significado no sofrimento acarretado pela luta pela
felicidade. Na ânsia de fugir ao vazio, o homem se apega praticamente a esse
estado de feliz aflição. Para Freud, não há nenhum eu verdadeiro a ser
encontrado. A mente é um caos. Os homens devem-se esforçar pela construção do
ego, e não se aferrar à busca de um eu interior fictício. A alma humana está
irremediavelmente cindida: a divisão da alma decorre, em grande medida, da
repressão do desejo. E essa repressão é inevitável, porque, onde há vida civilizada há perda da
satisfação das pulsões. O homem, portanto, traz em si um buraco, um abismo;
nasceu quando se recusou a morrer ajustado à ordem natural. Nessa recusa,
perdeu sua unidade e se tornou um ser rachado. Tendo a ordem simbólica feito
sua imersão na ordem natural, o animal humano pôde fabricar uma segunda
natureza (a cultura). Esta foi inventada para lhe turvar ou impedir a visão do
abismo que o constitui. Como bem assinala Silva (2015, p. 283), “o homem ensaia
a pose de um deus (...), [mas] morre como um animal qualquer”.
Antes de pôr fim a esta seção, ajunto que o animal humano, embora seja
capaz de produzir conhecimento numa velocidade crescente, revela-se, ao mesmo
tempo, cronicamente incapaz de aprender com os erros. Os seres humanos tendem a
cometer os mesmos erros. A civilização pode até parecer conatural a eles, mas
também a barbárie o é. A evidência científica e histórica permite dizer que os
seres humanos são só parcial e intermitentemente racionais.
Nosso cérebro é uma máquina de produção de crenças, um aparelho avançado
e complexo de reconhecimento de padrões que, articulando as experiências, criam
significados a partir desses padrões que cremos existirem na natureza. Padronicidade é a tendência a encontrar
padrões significativos em dados de experiência que podem ou não ser
significativos. Acionalização é a
tendência a infundir nos padrões significado, intenção e ação. Nós, seres
humanos, quase sempre, projetamos ação e intenção nos padrões que encontramos e
acreditamos que esses agentes intencionais invisíveis controlam o mundo.
O animal humano também se mostra bastante relutante em abandonar suas
crenças. A dissonância cognitiva é a
condição normal do animal humano. A teoria da dissonância cognitiva explica o fato, bastante comum, de os seres
humanos evitarem confrontar suas crenças e percepções com a experiência
empírica. Sempre que elas são confrontadas com a experiência, eles buscam
dirimir o conflito reinterpretando a experiência de modo a conservar as crenças
a que eles são irresolutamente apegados. O animal humano não suporta a
frustração de suas expectativas, tampouco a falsidade de suas crenças. Se no
confronto com a experiência, suas crenças não se sustentarem, o animal humano
fará de tudo para “salvá-las”, buscando reinterpretar a experiência
conflitante.
4. Viver é ocupar-se
de si: a filosofia como arte de viver
A filosofia, enquanto modo de
viver, enquanto exercício espiritual,
é uma prática de profunda intimidade com a vida. A filosofia, enquanto arte de
viver, tem em vista quem eu me torno com o exercício e a escrita filosóficos. É
a partir do exame do modo de vida estoico que pretendo mostrar ao leitor que o
mérito da filosofia está em nos permitir
o exercício da mais plena liberdade: o
poder de autoconstituição, de formação de si, de liberação da tirania mais tenaz
– a tirania das paixões.
O problema estoico é como se vive. O mal estoico é a alienação de si. O
grande perigo é a perda de si. Ser sábio é o bem estoico. Como celebrar a
conquista sem que eu me perca? Como não me atormentar com a possibilidade de
males futuros? O sábio torna-se presente ao que se apresenta.
4.1.
A prática estoica de cuidado de si
O Estoicismo, fundado por Zenão de Cício, no início do século III a.C.,
deriva seu nome de Stoá, que
significa pórtico, pois foi perto do
Pórtico Poecilo que a escola surgiu. O estoicismo constitui um sistema
integrado de lógica, física e ética, articulados a princípios comuns que dão
forma a uma paidéia, a um projeto pedagógico. Os historiadores da
filosofia costumam dividir o estoicismo em três períodos:
1) Primeiro Período (estoicismo antigo), que se desenvolveu no século
III a.C. Nesse período, se constituiu o sistema estoico mais completo: a
lógica, a física, a metafísica e a ética.
2) Segundo período (estoicismo médio, séc. II a.C.), época em que o
estoicismo entra em contato com o espírito romano, com o qual se combinará
muito bem.
3. Terceiro período (estoicismo imperial). Entre os seus principais
representantes estão Sêneca, nascido no início da era cristã, século I d.C.;
Epiteto (séc. II) e Marco Aurélio (séc. II).
O estoicismo romano, que se desenvolveu ao longo desse terceiro período,
interessa-se pela produção da liberdade, compreendida como autarkeia (autossuficiência, autonomia).
A física estoica baseia-se no postulado segundo o qual tudo que existe
são encontros de corpos. Deus é imanente ao Todo, ao mundo: ele se dá como
acontecimento de sentido em cada encontro. O divino é o Lógos. O Lógos é uma
potência divina e ordenadora, que permeia, sustenta e governa toda a realidade.
O lógos anima e move todas as coisas naturais, fazendo delas o que são. Nós,
seres humanos, somos também manifestações desse lógos e, portanto, devemos agir
e viver consoante a racionalidade do Cosmo em geral. A Razão Universal imanente
ao Cosmo é o Lógos. Viver, pensar e agir em conformidade com a Natureza é
viver, pensar e agir em conformidade com a Razão Universal imanente ao Cosmo. É
nisso que consiste a sabedoria estoica. A adesão e a conformidade à Natureza
são próprias do sábio. Viver em conformidade com a Natureza nada mais é do que
viver em conformidade com a razão, tanto a Razão Universal como com a razão
individual de cada ser humano, parcela que é da Razão Universal, centelha do
fogo universal, ou seja, do Lógos.
Mesmo ciente de que lógica, física e ética mantêm entre si relações de
repercussão e que, portanto, devem ser compreendidas em suas articulações no
interior do sistema de pensamento estoico, para fins desta exposição, vou-me
concentrar em tratar da ética, visto que seu estudo nos permite descerrar os
elementos mais diretamente ligados à autoconstituição de si, às práticas de
cuidado de si.
4.1.2.
A ética estoica
Diógenes Laércio sustentava que os estoicos distinguiam, na ética, o
impulso ou tendência (hormé); os bens
e males; as paixões (pathé), a
virtude (areté); o sumo bem (télos); as ações, as condutas
convenientes (kathekonta); e o que
convém aconselhar ou impedir.
A virtude ou areté é a
excelência, a perfeição ou completude de alguma coisa em conformidade com a sua
natureza e finalidade. A virtude é uma
disposição (héxis) para viver em
conformidade com a Natureza (physis).
O objetivo da virtude é a vida feliz, e esta é o fim (télos) alcançado pela conformidade da natureza humana com a Razão
Universal (Lógos). A virtude é desejável
por si mesma, e não pela esperança de uma recompensa ou por medo do castigo.
Assim, o estoico não é virtuoso por fazer o bem, mas faz o bem porque é
virtuoso. O bem é a retidão: é estar em conformidade com o Lógos. A virtude é
um saber: é a ciência dos bens e dos males.
O sábio é livre – o único verdadeiramente livre – porque quer o
necessário, o destino, o acontecimento; livre também porque se basta a si mesmo
(autossuficiência), pois o Lógos possui tudo de que ele necessita. Nada pode
perturbá-lo (ataraxia/ apatheia). O sábio é feliz, o único
verdadeiramente feliz. O que é a felicidade, pois, para o estoico? É este
instante em que um homem está inteiramente de acordo com o acontecimento, isto
é, com o Destino, com a Natureza. É necessário, a esta altura, esclarecer o que
os estoicos entendiam por Destino; mas o farei na seção seguinte. Fazem-se
antes necessárias algumas considerações mais sobre a vida virtuosa.
Toda ação ética é orientada para um fim único (télos), em vista do qual todo o resto é o meio ou fim parcial. O
fim último da ação ética é a felicidade
(eudaimonia) daquele que vive bem
porque realiza plenamente sua natureza. Os estoicos consideravam que a virtude
basta para que a felicidade seja alcançada. A virtude é a causa da felicidade,
mas não é ela o télos ou o sumo bem.
O sumo bem é viver em conformidade com a Razão Universal, com a Natureza, isto
é, em conformidade (homologia)
consigo mesmo e com a ordem do mundo. A
infelicidade, por seu turno, é viver em desacordo consigo e com a Natureza ou
com a ordem do Cosmo.
4.1.3.
O Destino, segundo os estoicos
Em princípio – e para que se desfaça qualquer suposição equivocada -, os
estoicos rechaçavam a ideia trágica do destino como uma força transcendente que
dirige os homens sem que estes o saibam. Para o estoicismo, o Destino é uma
realidade natural, inscrita na ordem do Cosmos. O Destino, na verdade, é a
ordem e conexão naturais de todas as coisas, o nexo causal necessário ou nó das
coisas. Não há acaso, contingência no Universo, para o estoico. Destino quer
dizer: tudo é necessário.
Destino é também uma força cósmica e divina, o Lógos: força vital, sopro
divino, tensão que organiza e contém o Todo. É a vida do mundo. O Destino
entrelaça as coisas em relações mútuas de amizade e simpatia. Cuidemos de não concluir que, para o estoicismo, somos
escravos de uma ordem necessária, do Destino. A ética estoica nos ensina que,
embora os acontecimentos estejam conectados por redes causais e estejam
estritamente presos uns aos outros, há coisas que estão em nosso poder; por
conseguinte, é preciso admitir que há coisas que não acontecem pela força do
destino. Um dos exercícios espirituais estoicos consiste em exercitar-se na
meditação sobre o que está e o que não está em nosso poder? Quantos homens, por
leviandade e insensatez se queixam de acontecimentos que, trazendo-lhes importunos
ou infortúnios, não estão sob o poder de deliberação deles?
Assim, 1) há causas que são imanentes e dependem de nós; 2) há, porém,
causas antecedentes que são exteriores a nós, não dependem de nós e sim do
destino. Por exemplo, a chuva cai no dia em que estou sem guarda-chuva. Os
juízos de assentimento dependem de nós, mas depende apenas das coisas externas
imprimir em nós sua imagem e não somos livres para recebê-las nem recusá-las. As
coisas de que se diz “boas” são aquelas que são intrinsecamente conforme à
razão; as coisas de que se diz “más” são aquelas que são contrárias à razão.
Ocorre que nós, seres humanos, produzimos juízos com base nos afetos;
dependendo de nossa conformação afetiva, podemos considerar más coisas que, na
verdade, nos são indiferentes. Os estoicos ensinam-nos que exercitemos a
indiferença judicativa e axiológica: há coisas que não dependem de nós; não
devemos nos apegar àquilo que nos faz sofrer; trata-se de sofrer sem
absolutizar a dor; tampouco devemos nos exultar com um bem, absolutizando-o.
O homem escravo das paixões acredita que a liberdade consiste em desejar
que tudo aconteça conforme o seu desejo. O sábio, por seu turno, compreende que
a liberdade verdadeira consiste em afirmar as coisas que acontecem tal como
acontecem e em saber como agir quando acontecem, cooperando com o destino. Para
o estoicismo, nós somos um elemento corporal do Cosmos. Não somos uma coroa da
Criação; não gozamos de alguma superioridade relativamente aos demais seres que
integram a ordem cósmica. Tudo tem um sentido no Cosmo, embora não saibamos
qual é. A questão, para o estoicismo, é, nesse tocante, como produzir a
liberdade em meio a relações de sentido pelas quais nós não somos responsáveis
totalmente. A liberdade é a vida que
pertence a si mesma. É que “vida”, para
um estoico, não é existência, mas estar
ocupado de si. Destino é destinar-se: o destino me destina aquilo que vivo, cabe a mim
integrar os elementos da destinação ao meu viver, tornando-os meus. Devo
cultivar um modo de ser pelo qual eu me elabore para ser senhor de mim mesmo em
face de tudo que se destina. Desenvolverei melhor a significatividade estoica
de “vida”, “liberdade” e “sabedoria” a partir de alguns textos de Sêneca, que
serão referidos adiante.
5. Da brevidade da
vida
Vou-me deter no exame de alguns fragmentos de textos colhidos da obra Da brevidade da vida, que abriga um
conjunto de cartas destinadas a Paulino (cuja identidade é incerta), nas quais
o filósofo discorre sobre a finitude da vida humana. Considere-se o primeiro
fragmento:
Não temos exatamente uma vida curta, mas
desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é
suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para tarefas
importantes. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma
obra é concretizada (...) sentimos que ela realmente se esvai.
A primeira questão que é preciso considerar é a da
brevidade da vida. Sêneca cuida que há formas de agir e de viver que abreviam a
vida. A brevidade de uma vida depende do modo como se vive, Portanto, a
brevidade não é uma qualidade extensional da vida. Não se trata de pensar a
brevidade da vida à luz do regime de Krónos (do tempo cronológico). A brevidade
é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do
modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30
anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma
vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu realizo eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da
multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não
somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava
da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se
eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que
acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.
Quem dispersa a si mesmo, quem vive inteiramente
sob o modo da ocupação com as coisas sem ocupar-se de si desperdiça o tempo;
mais ainda, experimenta o tempo como perda. Sua existência é perda de si sob o
regime do tempo cronológico que sempre aniquila a si mesmo. O que se deve destacar aqui é: podemos existir sem viver. Porque vida
é ocupar-se de si. A vida nunca é cronologicamente mensurável. Apenas uma
existência cativa experimenta o tempo como tempo cronológico. Foi assim: a vida é maldição e castigo.
Cuidemos em considerar mais um fragmento abaixo:
(...) é consenso que um homem ocupado não pode
fazer nada bem (...) não se aprofunda em nada, ao contrário, tudo que lhe é
imposto rejeita. Nada está mais longe do homem ocupado do que viver, nenhuma
coisa é mais difícil de aprender (...) Deve-se
aprender a viver toda a vida e (...) por mais que te admires, durante toda a
vida se deve aprender a morrer”. (grifo meu).
O homem, na ocupação, entregue ao mundo do
impessoal, é refém da transitividade da ocupação. Quem se ocupa só das coisas
não suporta integrar a totalidade de sua vida a si mesmo. Para os que se ocupam das coisas, o tempo é
fluxo, e a vida é o eterno retorno da aniquilação. Aprender a morrer é um
exercício do meu viver. No fragmento cuja leitura nos ocupa, Sêneca quer-nos
chamar a atenção para o fato de que a morte é um problema da totalidade da
vida. Aprender a morrer é uma tarefa da vida inteira. A filosofia – e, nesse
tocante, Sêneca recupera Sócrates – é um exercício de preparação para a morte.
Mas essa tarefa só pode ser levada a efeito por uma vida que se ocupa de si,
por alguém que vive a integralidade da vida. Quem vive a integralidade da vida
não a vive segundo o regime do tempo cronológico, mas a vive integrando o
passado porque dá significado ao passado no seu presente. O sábio nunca vive
uma vida breve, porque a vida se dá integrada a ele. Para o sábio, a vida é
inteireza. A extensão da vida do sábio se dá na grandiosidade, na intensidade
do que viveu. Uma vida longa, portanto, é uma vida que se intensificou no curso de sua mortalidade. Na ocupação consigo,
sempre se tem o seu tempo. A questão que
se impõe a nós, leitor, e que reclama resposta é: que horizonte temporal é este do sábio que ele não perde passado? A
resposta depende de que atentemos para o próximo fragmento. Irei dividir o
fragmento em duas partes, a fim de tornar mais fácil a compreensão do que está
em jogo nele:
A vida se divide em três períodos: aquilo que foi,
o que é e o que será. O que fazemos é breve, o que faremos é dúbio, o que
fizemos, certo. Na verdade, o destino perdeu o controle sobre o passado,
ninguém pode querer recuperá-lo. Os homens ocupados admitem isso. (...) eles
não têm tempo para olhar para o passado e, se tivessem, lhes seria desagradável
a recordação de algo penoso (...).
No começo do fragmento, se nos é apresentada a
temporalidade do tempo cronológico: o presente é o período do fazer, que é
breve; o futuro, do fazer incerto; e o passado, do que já foi feito, do “foi
assim”. É assim que o homem ocupado com
as coisas, imerso no mundo da impessoalidade, experiencia o tempo. O tempo
cronológico é uma modalidade do tempo. Na vida ordinária, nossas atividades se
estruturam segundo o regime do tempo cronológico. Os homens-massa de nossas
sociedades de massa são homo consumens,
isto é, homens que consomem. Uma vida sob o regime do consumo é uma vida que se
consome, que se corrói. A experiência que o homem desocupado de si e ocupado
com as coisas tem do tempo é a mesma experiência do consumo em nossas
sociedades capitalistas. O tempo, para ele, é experienciado como tempo que se
aniquila a si mesmo: quanto mais dilatado
é o passado menor é a possibilidade de futuro.
Mas o tempo estoico não é o tempo de Krónos,
mas o tempo de Aion, o tempo ilimitado, o tempo do acontecimento (o
acontecimento jamais é o tempo presente, nem é sua efetuação espaço-temporal).
O homem ocupado experiencia a passagem do tempo como vida que se vai
abreviando, se devorando. A recordação do passado causa-lhe angústia porque,
para ele, quanto mais passado se acumula mais próximo da morte ele fica.
Consideremos a segunda parte do fragmento:
Cada dia só está presente por alguns momentos, mas
todos os dias do passado a ti se apresentam quando assim ordenas: consentem que
sejam detidos e inspecionados pelo teu juízo, alho que aos homens ocupados
falta tempo para fazer. Uma alma segura e tranquila pode correr por todos os
momentos da vida; todavia, os espíritos dos homens ocupados estão sob um jugo,
não podem dobrar sobre si próprios, não podem se contemplar.
Por conseguinte, a sua vida se precipita nas
profundezas e, assim como de nada serve a vasilha sem fundo, nada pode trazer
de volta o tempo, não importa quanto ele te foi dado, se não há onde retê-lo
(...) o tempo presente é brevíssimo, ao ponto de, na verdade, não ser percebido
por alguns. De fato, ele está sempre em curso, flui e se precipita, deixa de
existir antes de chegar; não pode ser detido do mesmo modo que o mundo e as
estrelas (...) Assim, somente o tempo presente pertence aos homens ocupados,
tempo este tão breve que não pode ser alcançado e que é retirado deles já que
estão distraídos com muitas coisas.
Há duas modalidades de tempo segundo os modos de
vida o experimenta: quem vive, quem se ocupa de si, vive a temporalidade do que
acontece, vive o tempo de Aion. O sábio é aquele cujo modo de viver consiste em
estar em conformidade com o que acontece. Ele integra o passado ao presente
segundo o modo como ordena O maior impedimento para viver a vida é, para
Sêneca, a esperança. Na esperança, o futuro não é integrado ao que eu faço.
Vivo de expectativas, de esperanças e assim desperdiço a vida, o que é o mesmo
que não viver. A vida escrava da multidão experimenta tudo sob o modo da
brevidade. Libertar-se da multidão e ocupar-se de si é tornar possível uma
existência performática na qual os elementos da finitude não signifiquem
carência ou deficiência ontológica.
Se há, como creio, uma espiritualidade estoica, ela
consiste em cultivos de modo de si em que nos vemos como artífice e resultado
de si. Nem toda forma de uso é da ordem do instrumental, nem todo uso
instrumentaliza alguma coisa: por exemplo, uso uma ferramenta para consertar, para
aparafusar, etc. Há usos que integram as coisas ao que sou, ao que faço. A
sabedoria estoica levanta-nos, pois, a questão: que uso que nós fazemos de nós
mesmos sem que sejamos funcionalizados por algo além de nós mesmos? Usar-se a
si mesmo ocupando-se de si é ter uma vida que apareça aos outros como digna de
ser cultivada, porque bela, isto é, boa. Ocupar-se de si é meditar; e meditar é
elaborar-se.
O cuidado de si é ocupar-se de si, é a vida vivida
sob o modo de atenção a si em tudo aquilo que se faz.
Considerações
finais
Não estou certo de ter logrado sucesso na busca por
tornar claramente exprimível o valor da filosofia. Este texto é destinado ao
homem comum que, por preconceito ou preguiça, pensa ser o exercício da
filosofia um trabalho como outro qualquer, que se faz com vistas a outra coisa.
Espero ter convencido aqueles que pensam ser a prática da filosofia um pôr-se
num estado de desocupação com a vida de que estão errados. As reflexões que elaborei sobre a filosofia
estoica visaram, fundamentalmente, a demonstrar que a filosofia é um ato único
que deve ser praticado a cada instante, com uma atenção renovada a si mesmo e
ao momento presente.
O filósofo está sem cessar perfeitamente consciente não só do que faz (ética
vivida), mas também do que pensa (lógica vivida) e do que é, de seu lugar no
Cosmos (física vivida). A atenção a si mesmo, segundo os estoicos, o cuidado
consigo supõe viver atentamente, sem cessar, na presença da Razão Universal imanente
ao Cosmos, vendo todas as coisas na perspectiva dessa Razão e aceitando
alegremente o Destino.
O estoico, imerso na totalidade do Cosmo, eleva-se
à consciência cósmica. Tudo que existe está destinado à dissolução: assim sou
levado a meditar sobre a morte sempre já dada, iminente, como uma lei
fundamental da ordem universal. Pensar sobre a morte é pensar sobre a
vida. O pensamento da morte iminente
transformará de maneira radical o modo de agir de quem se ocupa de si, fazendo
que tome consciência do valor infinito de cada instante. Uma das práticas
espirituais mais importantes dos estoicos consistia no “pré-exercício dos
males”, isto é, no exercício preparatório para as experiências. Tais exercícios
preparatórios visavam à tranquilidade da alma.
E se ainda insistirem em me perguntar “para que
serve a filosofia”, a resposta apropriada, fazendo eco a Deleuze, é: a filosofia não serve a ninguém e nem para
nada. Mas, se me perguntarem “qual é a importância da filosofia”, então
responderei em atenção: liberar o animal
humano de sua permanente condição de escravo, de servo, de subserviência, para
nele cunhar um modo de ser verdadeiramente livre, ocupado da vida que se lhe
destina como gratuidade e que se abrevia a cada vez que a vive sob o modo do
desperdício e da ocupação com o mundo do impessoal.