Sobre ser erudito
“A ignorância é nosso orgulho epocal”.
Casanova
Entre os meus pares, sou conhecido por ser demasiado analítico, até
mesmo prolixo. Meus colegas e professores da PUC-Rio o sabiam e até me
permitiam tal exuberância de estilo. Depois que terminei minha longa temporada
de estudos na PUC para ingressar no curso de filosofia na UERJ, era chegada a
vez de os colegas e professores de lá conhecerem minha obsessão com o estilo de
linguagem e, sobretudo, o meu cuidado com o cultivo do pensamento reflexivo.
Depois de mais de 20 anos de estudos aturados, desde que ingressei em minha
primeira graduação em 2001, ao longo dos quais cumulei conhecimentos, fiz
amizades enriquecedoras e construí relações acadêmicas sem as quais minhas
produções intelectuais não seriam possíveis, tenho hoje uma única grande
ambição - a erudição. Não ouso saber tudo sobre tudo (o que é impossível, seja
porque nem tudo me interessa, nem tudo sou capaz de conhecer, seja porque, como
disse Foucault, noutro contexto, em que lembrava a inconveniência do ardor
apaixonado da militância, “a finitude é devastadora”). A erudição não é
mensurável, nem é um estágio estacionário. A erudição está sempre em devir.
Nunca se perfaz. Ela é um horizonte. Do grego “horidzo”, que significa
‘limite’, o horizonte é um limite nunca alcançável. Nisto reside seu enigma: quanto
mais caminhamos na direção do horizonte, mais ele se afasta, abrindo-nos mais
terreno, novas possibilidades. Nossa existência é, portanto, sempre uma
caminhada, que nunca se completa. A morte não é a realização da completude da
existência, mas a interrupção definitiva da caminhada. É também por isso que a
morte é trágica, é um “corte profundo”, uma violação da tendência natural da
vida a viver; é um estupro predestinado.
A erudição não é signo de nobreza. Ela não deve ser título de distinção
social. A erudição não deve oprimir, nem intimidar ninguém. Penso que o
conhecimento e o pensamento devem ser caminhos para a liberdade, devem tornar
possível a realização de novos modos de viver e de ser. Só a burrice julga
ofensivos o pensamento e o conhecimento. Só a burrice os odeia, vocifera contra
eles. Só ela quer amordaçá-los. O conhecimento não deve destinar-se à
intimidação; não deve humilhar. Quem muito sabe deve disseminar o encanto e o
desejo do saber, deve saber encantar aqueles que têm sede e fome de saber. Na
aurora do século XVII , em plena Revolução Científica, o cientista e
ex-Lorde-Chanceler Francis Bacon, ao declarar “Knowledge is power”, ou seja,
“saber é poder”, dava testemunho da virada utilitarista que marcaria a grande
transformação do saber no ocidente, desde então visto como um meio para a
resolução de problemas. O saber passava a ser concebido como um estoque, um
capital acumulado cujo fim era aumentar a capacidade do homem de dominar a
natureza, tornando-a um produto a serviço de seu bem-estar e da melhoria de seu
destino. Essa é a maneira como o homem moderno se relaciona com o saber ainda
hoje. Desde o século XVI, a concepção utilitarista da Educação tem dominado a
organização dos sistemas escolares. Se hoje o senso comum de nossa civilização
capitalista toma como valioso o saber tecnológico-científico, o saber “prático”
ou aplicável na prática da vida, é porque o capitalismo engendrou duas formas
de poder intimamente ligados na sociedade: o poder da riqueza econômica e o
poder do saber tecnológico, ou seja, o poder de aplicar os conhecimentos
científicos para a obtenção de resultados práticos. Nas sociedades
pré-capitalistas, a riqueza não era signo de poder. Foi só na civilização
capitalista que a técnica pôde operar transformações sociais, porque ela passou
a depender de investimento econômico. O sistema capitalista passou a ditar
normas éticas e influenciar mentalidades e costumes, trabalho antes pelo qual
eram responsáveis as organizações religiosas. Mas o capitalismo de hoje não é
exatamente o mesmo que vigorava no tempo de Bacon. A fase neoliberal do
capitalismo, com sua nova razão econômica (iniciada nos anos de 1980), tornou o
saber um produto perecível e submeteu as competências, antes valorizadas no
período fordista, a uma “destruição criativa”.
Erudição é uma palavra fora de moda, ou melhor, trilhar o caminho da
erudição é uma escolha aparentemente fadada ao “fracasso” segundo os valores
vigentes de nossas sociedades de mercado. O neoliberalismo ou a nova
racionalidade econômica desinstitucionalizou a relação entre diploma,
qualificação e profissão. (Parem , portanto, de culpar os estudantes e os
estudiosos por seu suposto “fracasso”, parem de julgá-los acomodados ou
“vagabundos”! ) Eu disse certa vez: “Estude, em vez de reproduzir os
preconceitos correntes no senso comum”. E não pretendia ofender! E também não
me arrependo de tê-lo dito! Eu sou um educador, sou professor! O saber deve ser
partilhado e deve ser o valor maior a ser cultivado! Não obstante, o
neoliberalismo tornou frouxo o vínculo entre o diploma e o valor pessoal
reconhecido socialmente. Isso se deve, em parte, ao enfraquecimento das
posições dos assalariados, que encontram cada vez menos segurança nas
instituições e carecem cada vez mais das referências estáveis que, outrora,
davam a eles valor profissional, pessoal e identidade. O título escolar e o
diploma universitário perderam sua força simbólica, no atual estágio do
capitalismo financeiro, também porque o saber, amplamente propagando-se, deixou
de corresponder aos novos imperativos de adaptabilidade permanente e de
reatividade imediata fixados pela empresa (o neoliberalismo exige trabalhadores
flexíveis, adaptáveis, capazes de se reinventar, de inovar para atender às
necessidades econômicas da empresa). O assalariado hoje experimenta uma
profunda e persistente insegurança, que afeta não apenas o emprego, mas também
o conteúdo da sua profissão. Essa insegurança dos assalariados é consequência
do enfraquecimento do valor simbólico dos diplomas, da implementação de práticas
destinadas a avaliar as competências que melhor se ajustam aos encargos
profissionais e a influência cada vez maior das empresas na determinação dos
conteúdos da formação dos futuros assalariados. A escola passa a ser vista como
um simples meio para a formação de trabalhadores flexíveis. A tudo isso se soma
a precarização do trabalho nas sociedades capitalistas neoliberais. O trabalho
passa a ser cada vez mais uma mercadoria como outra qualquer, perdendo suas
formas jurídicas e sua dimensão coletiva. (E a galerinha que, em uníssono,
grita “mais trabalho e menos direitos trabalhistas!” dá testemunho de que
aprendeu bem a lição de casa neoliberal! Está aprovada! Mas saibam que vocês
ficarão entregues à vulnerabilidade das condições do mercado de trabalho!) Mas
que importa se gritam pelo direito de continuar a serem mais explorados, e
ainda em condições precárias ?
Mas, se me foi possível escrever aqui sobre tudo isso, é porque convivo assiduamente com os livros, que, se não me permitem ganhos econômicos, dão-me as possibilidades de compreender o mundo, a realidade histórica em que vivo, libertando-me da tirania do impessoal, do falatório das multidões que são burras, irracionais, que não cessam de reproduzir as opiniões estabelecidas, que se contentam em assumir como verdades inabaláveis as crenças comuns e falsas, que se acostumaram a viver na redoma do senso comum, abocanhando do mundo apenas os pedaços, os fragmentos que nela são processados para o consumo de seu modo de vida que, bem ajustado a uma ordem socioeconômica e mantido num estado de contínua alienação, a reproduz nas práticas comuns do dia a dia. O ideal de todo educador é estender o direito à participação na cultura letrada a todos; é cativar o interesse pela leitura como o único caminho para a formação da liberdade de autonomia - em crianças, jovens e adultos.
O Mito
brasileiro
O bolsonarismo é a expressão de mudanças profundas na política e na
configuração de poder na sociedade brasileira. Um dos aspectos dessa profunda e
nefasta mudança é o desenvolvimento e fortalecimento da antipolítica no Brasil
como modo de governança. A antipolítica bolsonarista recusa a ideia de que o
Estado e as políticas públicas devem ter um papel de destaque no cenário
político, que então passou a ser dominado por discussões sobre corrupção e
privilégios corporativos. No terreno da campanha anticorrupção, carro-chefe do
movimento bolsonarista, o Brasil seguiu a trilha das experiências totalitárias.
Tanto o nazismo quanto o stalinismo transformaram ideias como pureza racial ou
pureza de classe em utopias que legitimavam a distorção do debate público e a repressão
aos seus opositores. Nesse tocante, é preciso dizer que 1) a campanha
anticorrupção que alavancou a eleição de Bolsonaro preencheu os requisitos de
todo sistema totalitário: a separação entre os “puros” e os “impuros”; 2) essa
separação foi associada à figura de um combatente da degradação moral e social
(que até bem pouco tempo era o Juiz da 13ª vara da Justiça Federal Sérgio
Moro).
O que vemos operar, nesse contexto de luta anticorrupção, é uma
característica muito comum em nossa história política: a personalização da
política pela crença generalizada de que todos os nossos maiores problemas
podem ser resolvidos se soubermos escolher bem a pessoa do governante. Ainda
persiste a crença, entre nós, de que só conseguiremos mudar o sistema político
pela eleição de um Messias, de um Salvador da Pátria. Este ser imaculado deve
se apresentar como um adversário declarado e vigoroso do sistema vigente.
Animado por esse imaginário coletivo brasileiro centrado na figura mítica de um
Líder que nos conduziria à terra prometida, o bolsonarismo acostumou seus
apoiadores (acríticos) a julgar o sistema político apenas por sua dimensão
moral, sem qualquer consideração pelos resultados que ele produziu
politicamente. A opinião pública, muitos intelectuais e a grande mídia
incorreram nesse mesmo erro. E fazendo-o, ignoraram (e ainda ignoram) que
aceitam os elementos da antipolítica bolsonarista que, bem entendida, quer
dizer, reação à ideia de que instituições e representantes políticos devem
negociar e dar respostas a problemas concretos postos em debate no país. Essa
antipolítica é também negação de atributos como negociação ou coalizão como
partes do processo de governança. Pela via autoritária de um Messias que recusa
o presidencialismo de coalizão, o próprio projeto anticorrupção se demonstrou
não só inviável, mas uma mentira oportuna para se obter o poder. Uma sociedade
sem corrupção continua sendo parte de um horizonte desejável e utópico no
Brasil. E os escândalos envolvendo a família Bolsonaro provam isso.
“A LEITURA
NOS TIRA DO SEDENTARISMO INTELECTUAL” (Moacyr Scliar)
Ler não é simplesmente decodificar sinais. A
leitura como decodificação de sinais escritos é a etapa de que se encarregam os
professores da alfabetização. Esta é a primeira e fundamental etapa do
desenvolvimento da competência da leitura; mas a competência de leitura fica
amputada se não se desenvolver para além dessa etapa. A leitura como
letramento, como prática de produção de sentidos para o texto e para o mundo é
a atividade que, socialmente, se considera ser a mais importante ao longo da
educação escolar. Saber ler, nesse sentido, envolve a mobilização de um vasto
conjunto de conhecimentos e estratégias cognitivas, metacognitivas e
interacionais (pragmáticas, discursivas) indispensáveis ao desenvolvimento de
formas mais profundas de compreensão do texto e do mundo. Ler supõe a
capacidade de estabelecer relações intertextuais, de imergir cognitivamente nos
níveis implícitos de sentido, de atingir as camadas subjacentes de sentidos
previstos para um texto. Ler mais, nesse sentido, amplia e aprofunda nossa
compreensão, porque nos dota da capacidade de perceber os sentidos que se
produzem nos silenciamentos que atravessam as palavras. A leitura é um processo
complexo de ordem linguístico-sóciocognitivo-interacional, emocional,
fisiológica que envolve aprendizagem e maturação. Então, quem lê muito e
compreende pouco o que leu, na verdade, não chegou a ler, não atingiu ainda uma
competência mais ampla e elaborada de leitura. O ponto importante é que não há
receitas para aprender a ler, no sentido que dou ao processo de leitura. Mas é
possível ensinar a ler, é possível desenvolver no indivíduo as habilidades
necessárias para que ele venha a se tornar um leitor competente, um leitor
capaz de ler para além do dito, para além do explícito e codificado na
superfície textual. É possível educar a sensibilidade do leitor para que
compreenda que a linguagem não é transparente, mas opaca, que os sentidos
possíveis são muitos e não estão alocados nas palavras ou nas frases, ou no
texto, mas os atravessam, tomam direções diversas, nem sempre previstas pelo
produtor do texto, direções que levam a outros textos, a outras falas, a outros
discursos... Ler é compreender como um objeto simbólico produz sentido, como
esse objeto nos permite fazer a experiência do sentido, como esse objeto
significa na interação com o sujeito interpretante, levando em conta os
contextos sócio-históricos, ideológicos em que eles se encontram. Sim, a
leitura estimula a criatividade e a imaginação, desenvolve a sensibilidade,
complexifica o pensamento, mantém a saúde do cérebro, protegendo-nos contra
doenças neurológicas. A leitura favorece melhor o desenvolvimento da
inteligência. A leitura é experiência de formação de sujeitos autônomos, capazes
de construir por si mesmos conhecimentos sem a mediação do professor . A
leitura promove, enfim, a experiência de vida. Complexificando o pensamento,
apurando nosso olhar sobre o mundo, a leitura nos dota da capacidade de
reconhecer a complexidade do real e de lidar com essa complexidade. O mundo que
se nos descerra na prática da leitura é um mundo muito mais complexo,
multidimensional, plurívoco, significativamente mais profundo, do que o mundo
que se nos dá a conhecer nas esferas restritas e limitadas da vida ordinária,
onde se realizam as conversações face a face ou mediadas pelos aparelhos
tecnológicos hoje à disposição de certo número de usuários socialmente
privilegiados. Viver sem ler é tocar de leve a superfície das coisas, é
acostumar-se a viver uma vida chapada à superfície do mundo, onde se instalam
as vivências ordinárias sobre as quais se projetam as sombras do senso comum,
que impedem que o mundo seja iluminado em toda a sua complexidade, em todos os
seus níveis possíveis de significação. A leitura ilumina o mundo, retira-o da
caverna do viver comum , para torná-lo morada do pensamento complexo, em suma.
O Brasil de uma nota só
Não me parece demandar tanta controvérsia dizer que o Brasil com
Bolsonaro e sua trupe emburreceu mais. O Brasil ficou mais burro (e mais
perverso) com Bolsonaro na Presidência, tanto na esfera do Estado quanto na
esfera da sociedade civil. E aqueles que se cuidam mais “politizados” por
incriminar o PT e seu fantasioso comunismo por todos os males seculares do país
não fazem mais do que confirmar essa tese. Para os bolsonaristas, a política se
resume a uma nota só: a corrupção, ou melhor, o combate à corrupção. Parece
que, se conseguirmos resolver este mal que nos assola desde o período colonial,
o Brasil se tornará o melhor lugar no mundo para viver. Desnecessário dizer que
os bolsonaristas não fazem a mínima ideia de como pôr fim definitivo a este mal
hábito dos políticos aqui e em outras partes do mundo. Eles não sabem porque,
seguindo o hábito do seu Messias presidente (que confessou não ler um livro
sequer há três anos), são inimigos dos livros, são refratários à cultura
letrada. Se estivessem habituados a conviver com os livros, se, ao menos, se
interessassem em compreender a realidade sociopolítica do país que dizem tanto
amar, saberiam que a corrupção entre nós deita raízes num solo cultural que
desde muito cedo foi assentado pela prevalência do favoritismo sobre a justiça,
pela simbiose entre os grandes proprietários da riqueza privada e os agentes
administrativos ou de governo, pela perpetuação de uma oligarquia que une entre
si os agentes do Estado (e sua burocracia estatal), os potentados econômicos,
as Forças Armadas e um serviço judiciário que, desde muito cedo, existiu para
extorquir dinheiro. Mas os bolsonaristas, tão desabituados aos livros,
necessários a uma participação política consciente, a tudo tratam de modo
simplificado e superficial. A tendência à simplificação do pensamento é, aliás,
uma de suas características mais flagrantes. Não por acaso são equiparados a
bovinos (embora essa espécie de animais seja inteligente). Quem ousar levantar
uma questão política num sofrível diálogo (quando é possível) com um
bolsonarista, ouvirá dele duas coisas: PT e corrupção do PT (e de Lula, é
claro). A política para Bolsonaro e seus apoiadores é uma forma de guerra e
ódio, de combate incessante contra esses três grandes males de nosso país, a
saber, PT, Lula e corrupção. Toda política bolsonarista se resume a esta
“missão” militante-militar: destruir o PT - e com ele, é claro, o comunismo que
nos ronda- , e pôr fim à corrupção. E ponto final. A política econômica do
Governo, o capitalismo financeiro a que o Brasil é subserviente, as
desigualdades socioeconômicas profundas de nosso país, o investimento em
Educação e em Pesquisa, em Ciências e Tecnologia, as políticas públicas, a
superação da “velha política” ( o que Bolsonaro não fez senão perpetuar) e tudo
o mais que se queira levar em consideração como problemas para uma agenda
política não têm qualquer relevância ou importância. Falta aos bolsonaristas o
letramento político adequado e amplo para se ocuparem dessas questões mais
complexas e importantes. A burrice é sempre simplificadora e cega para a
complexidade do real. A burrice do Brasil de hoje é o reflexo de um passado
longo e perverso que ainda não superamos e com o qual nada aprendemos.