OS ROSTOS DA CRUELDADE DO REAL
O homem e
seus subterfúgios
É flagrante a inclinação
humana habitual a recusar a crueldade
do real, seja pelos mecanismos psíquicos de repressão, seja por denegação, seja
ainda pelo recurso neurótico a disfarces e adornos metafísicos ou religiosos,
que não só garantem a proteção contra o desespero e a angústia, como também
acalentam a esperança de que esta realidade “crua”, com seus horrores, com sua
nervura dilacerante e permeada pelo absurdo, pelo intolerável, pelos
incompreensíveis golpes do acaso, não seja a “verdadeira” realidade, mas um
simulacro da verdadeira e velada realidade beatífica, cujo véu será removido
depois da morte. Casos há também, alguns dos quais excepcionais, em que a
recusa humana da crueldade do real arraiga-se numa ilusão heroica e se expressa
em formas sublimadas e conciliadas com o “sistema de heroísmo” (Becker)
cultural, como, por exemplo, o recurso a uma série de pactos ou compromissos[1],
alguns dos quais nobres, como o pacto surrealista que permite a estetização da
dor pela arte.
Sejam quais forem os expedientes ou subterfúgios de
que se vale o animal humano para evitar ser esmagado pelo desespero que lhe
sobreviria, caso se demorasse na contemplação da crueldade do real e da
insignificância radical de sua condição existencial, todos eles são enformados
e justificados pelo “sistema de heroísmo” que é o mundo cultural, onde o animal
humano se desenvolve, se civiliza, adoece como animal e se torna homo demens.
Assumindo que “a própria sociedade é um sistema
codificado de heróis (...), que a sociedade, em toda parte, é um mito vivo do
significado da vida humana, uma criação, aliás, que desafia significados”
(2013, p. 26), Becker argumenta que é a cultura, enquanto sistema de heroísmo,
que dá ao animal humano a possibilidade de justificar-se “desesperadamente como
um objeto de valor primordial no universo”. (ibid., p. 22). Ademais, nutrida
pelo sistema de heroísmo, a vida de cada indivíduo é dedicada a “dar a maior
contribuição possível para a vida no mundo, mostrar que vale mais do que
qualquer outra coisa ou pessoa”. (ibid.). Para poder viver sem que seja
infligido pela ameaça constante de ser dilacerado pelo caráter cruel e
aterrador do real, para tornar suportável o impacto dessa crueldade
cotidianamente publicada pelos meios de comunicação, o animal humano,
culturalmente domesticado, precisa desenvolver em si um sentimento básico de
valor, consoante nos adverte Becker:
Não importa se o sistema de heroísmo de uma cultura é francamente
mágico, religioso e primitivo ou secular, científico e civilizado. É, de
qualquer forma, um sistema de heróis mítico, no qual as pessoas se esforçam
para adquirir um sentimento básico de valor, para serem especiais no cosmo,
úteis para a criação, inabaláveis quanto ao seu significado. Elas adquirem esse
sentimento escavando um lugar na natureza, construindo uma edificação que
reflita o valor do homem como um templo, uma catedral, um totem, um arranha-céu
ou uma família que se estenda por três gerações. A esperança e a fé estão em
que as coisas que o homem cria em sociedade tenham um valor e um significado
duradouros, que sobrevivam ou se sobreponham à morte e à decadência, enfim, que
o homem e seus produtos tenham importância. (ibid., p. 24).
Nunca é demais lembrar o papel que desempenham os universos simbólicos, criação de cada cultura, como as extensões
máximas da projeção humana dos significados humanos. Porque se apresentam como
a totalidade da realidade humanamente dotada de sentido, os universos
simbólicos apelam para o cosmo inteiro para dar validade significativa à
existência humana. O mundo da cultura é edificado pelo animal humano como uma
teia de símbolos, de significados, de “ficções” (do latim fictio-onis, cujo radical fict
é o mesmo de fingere, ‘modelar, criar,
inventar’); e esse mundo criado pela sua atividade é seu recurso próprio
para a sobrevivência, e é a esse mundo próprio que ele deve a construção de
redes simbólicas que dotam sua existência de valor e sentido – valor e sentido
que não só não encontra no seio da natureza, como também lhe são continuamente
recusados aí. O universo simbólico integra e
unifica todos os processos institucionais separados. A sociedade inteira, de
agora em diante, se dota de sentido. Instituição e papéis particulares são
legitimados em um mundo compreensivamente dotado de sentido. Além disso, programas institucionais são
internalizados na consciência do indivíduo, guiando-o no seu agir e tornando-o
um experienciador de um sentido do qual ele passa a acreditar que é autor. Os
programas institucionais são organizados na consciência em processos de camadas
múltiplas. Na socialização primária, fixam a base fundamental da construção da
identidade pessoal; posteriormente, na socialização secundária, fazem o
ajustamento do indivíduo aos papéis que lhes são atribuídos na realidade social
e, sobretudo, o introduzem no mundo do trabalho. Todos esses momentos do
controle institucional vão possibilitar que as estruturas da sociedade se
tornem as estruturas da consciência, para o que a linguagem simbólica desempenhará
um papel fundamental. Assim é que escravos e senhores, trabalhadores e
capitalistas comportam-se em conformidade com seus papéis, como também pensam,
sentem e se consideram a si mesmos de modo correspondente à conduta própria do
seu papel. Mas é claro também que a subjetividade do indivíduo não precisa
estar conformada plenamente com a realidade objetivamente definida pela
sociedade. No processo da socialização dele, haverá pequenas fissuras, ou pode
haver grandes rupturas. Não obstante a possibilidade destes eventos, é
pouco provável que, mesmo quando disposto a empreender grandes rupturas
institucionais, o animal humano ouse agir movido por um impulso libertário
conforme deseja Cioran, no seguinte passo:
Como eu gostaria que
todas as pessoas têm ocupações ou missões, casadas ou não, jovens ou velhas,
homens e mulheres, sérias ou superficiais, tristes ou alegres, saíssem um dia
de suas casas e escritórios, renunciando a todo tipo de deveres e obrigações,
tomassem as ruas e não quisessem fazer mais nada. Toda essa gente embrutecida,
que trabalha sem sentido ou que se ilude quanto ao seu aporte pessoal para o
bem da humanidade, que trabalha para as gerações futuras movida pelo impulso da
mais sinistra ilusão, viveria em semelhantes momentos capitais uma vingança por
toda vida nula e estéril, por todo o desperdício de energia que nada emprestou
da excelência das grandes transfigurações. (Cioran, 2011, p. 65).
A história humana, entanto, nos patenteia que,
mesmo nos momentos de grande convulsão social, em que grupos revolucionários de
homo sapiens se mobilizaram para
transformar o establishment, eles não
fizeram senão lutar pelo direito de criar outros cárceres simbólicos e
institucionais que, subjugando-os, encarcerando-os, escravizando-os,
mantiveram-nos protegidos contra a angústia e o desespero que os fariam
contorcer-se de uma dor lancinante: a do
desamparo cósmico que lhes recusa a Providência.
Tendo, então, assinalado ser a recusa da crueldade
do real a condição normal do homem, como ser social cuja existência só é
possível se sustentada numa rede de significados culturalmente produzidos e
reproduzidos, passo, então, a aduzir os objetivos a que visa este texto. São
duas, portanto, as tarefas que levarei a efeito na produção deste texto. Em
primeiro lugar, tenciono demonstrar em que sentido a realidade é cruel e por
que devemos considerá-la como intrinsecamente cruel. Em segundo lugar,
procurarei examinar os expedientes, os pactos através dos quais os Homo Sapiens Sapiens procuram tornar
essa crueldade suportável.
PARTE 1
1. A crueldade do real
É, em seu livro
Princípio de crueldade (1989), que o filósofo francês Clément Rosset se
debruça sobre o que chama “a crueldade do real”. A sua preocupação é,
especialmente, denunciar toda uma tradição filosófica que se orientou pela
recusa em considerar a “crueza” do real, ou seja, que fez silêncio sobre o
caráter inapelável e irremediável da realidade. Leia-se como Rosset define o
que ele entende por crueldade do real.
Por “crueldade” do real
entendo, em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente dolorosa e
trágica da realidade. Não me estenderei sobre este primeiro sentido, mais ou
menos conhecido de todos, e sobre o qual aliás tive a ocasião de falar alhures
mais do que abundantemente; basta-me lembrar aqui o caráter insignificante e
efêmero de toda coisa do mundo. Mas
entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente,
irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita ao mesmo
tempo de conservá-la a distância e de atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer
instância que fosse exterior a ela. (ibid., p. 16-17, grifo meu).
O destaque em negrito o fiz para deixar claro ao
leitor o segundo sentido em que Rosset fala em crueldade. A crueldade do real
não só recobre o caráter trágico, doloroso, aterrador da vida, mas também
designa o caráter único, inapelável e irremediável da realidade. Se Rosset
insiste nesse segundo sentido de crueldade, é que a tradição filosófica, desde
Platão, valorizou um real que aparece como “duplo”, como uma instância
suprassensível da qual o real mesmo de que o homem tem experiência seria uma
cópia, um simulacro. Por isso, recorrendo à etimologia de “cru”, que remonta ao
latim crudus, que deu origem também a
“crudelis” (cruel), Rosset argumenta
que a realidade é cruel tanto no sentido de que é indigesta, não digerível,
porque “crua” como uma carne ensanguentada e escorchada (tem um custo muito
alto), quanto no sentido de que “a coisa mesma privada de seus ornamentos ou
acompanhamentos ordinários (...) e reduzida assim à sua única realidade, tão
sangrenta quanto indigesta” (ibid., p. 17) se impõe a nós inapelavelmente.
Assim, ajunta o autor:
(...) a realidade é
cruel e indigesta - a partir do momento
em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em
si-mesma: tal como uma condenação à morte que coincidisse com sua execução,
privando o condenado do intervalo necessário à apresentação de um pedido de
indulto, a realidade ignora, por apanhá-lo sempre de surpresa, todo pedido de
apelo. (ibid.).
Despojá-la de tudo que ela não é significa recusar-se a duplicar a
realidade, a justificá-la pelo recurso imaginário a uma realidade
transcendente. É isso o que significa assumir a crueldade do real, a saber, é
dizer um sim trágico, alegre à sua crueza, ao seu caráter indigesto. É também
aceitá-la como quem aceita uma condenação à morte. Como nos recorda Becker,
inspirando-se em Freud, “os homens estão condenados a viver em um mundo
esmagadoramente trágico e demoníaco” (Becker, 2013, p. 334). É claro que
acentuar o caráter “demoníaco” do mundo é mascarar as alegrias que nos é
possível gozar. E eu não ignoro que a vida nos presenteie com alguns momentos
(breves) de prazeres, satisfações, alegrias, que justificam a obstinação com
que nós lutamos por ela. Todavia, tais momentos não podem obnubilar o seu
caráter cruel, irracional, doloroso e trágico. A afirmação trágica é um sim
incondicional à existência com tudo aquilo que a torna contraditória,
irracional, bela, cruel, plena de sofrimentos e também de alegrias. Embora meu
temperamento oscile entre uma disposição afetiva trágica e uma disposição
afetiva pessimista, sinto-me, confessadamente, mais seduzido pela filosofia
pessimista que se esforça por edificar a existência humana no terreno da
Lucidez e por convidar os homens a voltar a habitá-lo. Este escrito é minha
modesta contribuição nesse sentido.
Retomando o fio discurso, cumpre ainda dizer que,
para Rosset, é bastante razoável admitir que “a realidade é cruel por natureza,
mas também e, por uma espécie de último refinamento de crueldade,
verdadeiramente”. (ibid., p. 17). E deve-se acrescentar que quem não o admite é
pouco razoável. O homem comum, tão acostumado a recusar a crueldade do real,
leva uma vida pouco razoável.
Urge, agora, esclarecer que considerar a realidade em si mesma, como nos
pede Rosset, não pode nos levar a crer que ao homem seja possível ter acesso a
uma realidade em-si. Gostaria de dilucidar qual é minha posição epistemológica.
Esclarecê-la se faz mister, porque, certa feita, se me foi feita uma objeção em
cujo cerne reside uma confusão. Disseram que o real, em si mesmo, não é cruel,
só o é para o homem. Evidentemente, acho que ninguém se atreveu a consultar um
chimpanzé para saber se ele considera cruel a realidade. Naturalmente, a
crueldade do real se coloca como uma questão existencial somente para o animal
humano que a vive na pele e sabe que a vive, e que a toma para reflexão. Isso
não significa dizer que somente o animal humano a sofre. De modo algum. Os
animais dotados de um sistema nervoso central, os animais capazes de sentir dor
e sofrer também são flagelados pela crueldade do real. E isso ficará evidente ao longo deste texto. O
ponto que quero esclarecer diz respeito ao fato de que a realidade “em si” é
uma ficção (do imaginário), uma ilusão.
O senso comum de nossa sociedade toma por realidade a totalidade das coisas existentes e exteriores à mente
humana. A palavra “realidade” provém do latim medieval “realitas” e designa simplesmente “tudo aquilo que existe”. Assim
também real, que provém do latim
medieval realis, res (coisa), diz-se daquilo que existe, diz respeito às coisas
existentes. Este é o sentido com que a palavra é usada no senso comum. Diz-se realidade objetiva para designar o mundo
exterior existente independente de nosso pensamento. Mas, desde Descartes, a
existência do “mundo exterior” foi problematizada, ou seja, questionada.
Descartes argumentou que o objeto de conhecimento é a ideia, de modo que a
realidade acessível a nós é a ideia, e não o mundo exterior cuja existência
parece duvidosa. Ora, assim como a pintura não prova a existência do objeto
representado, assim também a ideia, que representa a realidade, não prova que
esta verdadeiramente existe. O empirismo de Berkeley e Hume reduziu a realidade
das coisas ao ser percebido. Assim, a realidade não tem existência autônoma
fora da experiência ou percepção.
Coube a Kant, e não a Descartes, nos ensinar que não é possível a nós
ter acesso à realidade em si. Depois da crítica radical de Nietzsche, ficou
claro que “o em si”, ou a realidade em si, é uma ficção, ou seja, uma criação
humana. O que nós, Homo Sapiens Sapiens,
acreditamos ser a realidade é sempre um modelo, uma imagem construída pelo
nosso cérebro. Não temos acesso direto ao real. A realidade é apreendida pelo
homem através de uma lente (a estrutura interpretativa de seu cérebro)
complexa, moldada na interação entre percepção-cognição, linguagem e cultura.
Sem me alongar sobre essa complexa interação entre percepção-cognição,
linguagem e cultura, é importante esclarecer por que não percebemos diretamente
uma realidade já dada, pronta, previamente organizada, limitando minhas
considerações ao papel fundamental desempenhado pelo cérebro humano.
Dawkins (2005, p. 87), comentando o papel da evolução na constituição de
nossos órgãos sensoriais, faz a seguinte observação:
Poderíamos pensar que eles foram moldados para nos dar um retrato
“verdadeiro” do mundo como ele “realmente” é. É mais seguro presumir que eles
foram moldados para nos fornecer um retrato útil do mundo, que nos
auxilie em nossa sobrevivência. De certo modo, o que os órgãos sensoriais fazem
é ajudar o nosso cérebro a construir um modelo útil do mundo, e é nesse modelo
que nos movemos. É um tipo de “realidade virtual”, de simulação do mundo real.
Nossa percepção do mundo não é direta, mas moldada pela estrutura
interpretativa de nosso cérebro. Dawkins tem razão ao dizer que não temos
acesso à realidade em si, mas ao retrato, melhor dizendo, ao modelo útil de
mundo construído por nosso cérebro. Mas discordo do autor ao sugerir que há um
mundo real do qual o modelo é um simulacro, porque assim se mantém o esquema
metafísico calcado na cisão do real em dois modos de ser: o real em si e o real
tal como percebido. É justamente esse real em si que deve ser rejeitado. Damásio
(2011), por seu turno, advoga que nosso cérebro se notabiliza pela habilidade
de construir não “retratos”, como propõe Dawkins, mas “mapas”, isto é, modelos
cartográficos da realidade com a qual interage. O mapeamento cerebral fornece
mapas instáveis, flexíveis, mutáveis porque precisam representar um mundo que
se dá como fluxo, como devir.
O cérebro humano mapeia qualquer objeto que esteja
fora dele, qualquer ação que ocorra fora dele e todas as relações que os
objetos e as ações assumem no tempo e no espaço relativamente uns aos outros e
também em relação à nave-mãe que chamamos de organismo, o proprietário de nosso
corpo, cérebro e mente. O cérebro humano é um cartógrafo nato, e a cartografia
começou com o mapeamento do corpo que contém o cérebro. (Damásio, 2011, p. 88).
Mapas cerebrais são imagens mentais ou padrões neurais. O cérebro humano
é dotado da capacidade de representar as ocorrências do mundo, os eventos, as
ações realizadas pelo nosso corpo e seus componentes, como membros, etc..
Também é o nosso cérebro que se encarrega de ordenar, de estruturar o “mundo”
de coisas com que nos relacionamos. Como Hawking & Mlodinow sustentam, o
que julgamos ser a realidade é sempre dependente de uma teoria. O cérebro cria
um quadro ou modelo mental da realidade percebida. Como notam os autores, “o
realismo dependente do modelo corresponde ao modo como percebemos os objetos”
(Hawking & Mlodinow, 2011, p. 34). A
título de exemplo, tome-se a “visão” como o meio tradicionalmente valorizado de
acesso ao real. O que acontece quando eu vejo um objeto como uma cadeira? O meu
cérebro recebe uma série de sinais do nervo ótico, quando estou diante de uma
cadeira. Mas esses sinais recebidos não chegam ainda a formar uma imagem nítida
do objeto dado à minha percepção visual: “há um ponto cego onde o nervo ótico
se junta à retina” (ibid.). Assim, os dados brutos ou os sinais enviados ao meu
cérebro através da junção entre o nervo ótico e a retina “são uma imagem em
baixa resolução e com um buraco no meio”. (ibid., p. 35). Meu cérebro, no
entanto, tem a capacidade de processar esses dados, combinando as informações
em padrões significativos. Destarte, ele preenche as lacunas, os buracos que
havia no início do processo de formação da imagem. É o cérebro, portanto, que
opera uma “leitura” do arranjo bidimensional dos dados da retina e constrói a
impressão de um espaço tridimensional. E é desse modo que o cérebro constrói um
modelo mental da cadeira que eu vejo. Afinal, estando diante dela, o que eu
“vejo”, ou àquilo a que tenho acesso, é a imagem ou modelo mental dessa
cadeira, construído pelo cérebro a partir da luz refletida pela cadeira.
O realismo dependente de modelo é útil tanto para explicar como se dá
nossa experiência de mundo cotidiana, quanto para explicar os fenômenos de que
se ocupa a ciência em geral, nomeadamente a física, que lida com entidades que
não são acessíveis à experiência sensível. Por exemplo, partículas subatômicas
como quarks são entidades teóricas,
ou seja, modelos que são úteis para explicar as propriedades dos prótons e dos
neutros dentro do núcleo do átomo. Para ser mais exato, os quarks não são observáveis isoladamente, mas eles existem como “se
estivessem unidos por elásticos” (ibid., p. 36).
O realismo dependente de modelo aplica-se tanto ao
conhecimento científico quanto aos modelos conscientes e subconscientes que
criamos para interpretar e compreender o mundo do dia a dia. Não há como
remover o observador – nós – da nossa percepção do mundo, que é criada, pelo
nosso processamento sensorial e pelo modo como pensamos e raciocinamos (...)”.
(ibid. , p. 37).
Como tenho por hábito, quando escrevo e ensino, ser
meticuloso, não farei avançar minhas reflexões, sem que antes alguns prováveis
equívocos sejam dirimidos. O chamado “realismo dependente do modelo” não nega
que existe uma realidade exterior e é em virtude disso que é uma forma de
realismo. Em filosofia, o realismo
recobre a doutrina segundo a qual existe uma realidade exterior, determinada e
independente do conhecimento que podemos ter dela. De acordo com esta
perspectiva, o conhecimento verdadeiro é a correspondência entre nossos juízos,
nossos enunciados e a realidade a que eles se referem. Essa é a concepção que
vigora no nosso modo familiar de nos relacionarmos com o mundo: assumimos,
inquestionavelmente, indubitavelmente, que este mundo existe como uma
totalidade de coisas, seres, eventos independentemente de nossa percepção. O
realismo se opõe ao idealismo, o
qual, por sua vez, afirma que os corpos e o mundo só existem como ideia, como
representação de nosso espírito. O realismo dependente do modelo não é uma
forma de idealismo, porque não nega que existe um mundo exterior à nossa
consciência. Mas o realismo dependente do modelo não se identifica com o realismo
em sua versão tradicional, porque a realidade exterior existe na dependência de
um modelo mental produzido pelo cérebro de um observador. A realidade não
existe de modo autônomo, segundo a perspectiva do realismo dependente do
modelo. Seguem-se daí algumas consequências que precisam ser destacadas:
1ª) Não há realidade em si, mas realidade para um
observador;
2ª) Não temos acesso direto ao real;
3ª) A realidade é apreendida por meio de modelos
mentais, mapas construídos pelo nosso cérebro.
4ª) Esses modelos cerebrais do real são
mobilizados, reconstruídos, estruturados nos textos que produzimos. A linguagem
simbólica lhes dá um tratamento semiótico, de sorte que é sobre esses modelos
semiotizados de mundo, modelos textualmente fundados que falamos, que discutimos,
que refletimos.
5ª) A totalidade do real não se exaure no mundo que
percebemos. Há outros muitos mundos existentes e organizados, estruturados,
segundo o aparelho sensório-perceptual de outros animais complexos. É de
esperar que o modelo de realidade dos golfinhos varie bastante do modelo de
realidade dos homo sapiens, dos hamsters e das lulas gigantes, por exemplo.
Além de não perder de vista a importância das
consequências supramencionadas, se deve também aceitar que o mundo físico de
cujo conhecimento se encarrega as ciências naturais é apenas uma das possíveis
imagens do mundo. Como adverte Kosik (1976, p. 31):
(...) Além do mundo
físico existe ainda um outro mundo, igualmente legítimo – por exemplo, o mundo
artístico, o mundo biológico, e assim por diante, o que significa que a
realidade não se exaure na imagem física do mundo. O fisicalismo positivista é
responsável pelo equívoco de ter considerado uma certa imagem da realidade como
a realidade mesma, e um determinado modo de apropriação da realidade como único
autêntico.
A hipótese do realismo dependente do modelo
permite, por exemplo, à mecânica quântica conceber o mundo não como uma
totalidade de coisas que se encontram neste ou naquele estado, mas como um
campo de processos, de interação, de relações, de modo que são as relações que
dão origem às coisas. Destarte, à luz desse modelo de compreensão do mundo, “nós,
como as ondas e como todos os objetos, somos um fluxo de eventos, somos
processos que por um breve tempo são monótonos”. (Rovelli, 2017, p. 133). O
modelo de realidade proposto pela física quântica reduz a realidade à relação.
A teoria suposta aí não pretende descrever como as coisas “são”, mas como as
coisas acontecem. Lancemos olhares sobre o que nos ensina Rovelli nesse
tocante:
No mundo descrito pela
mecânica quântica, não existe realidade sem relação
entre sistemas físicos. Não são as coisas que podem entrar em relação, mas são
as relações que dão origem à noção de “coisa”. O mundo da mecânica quântica não
é um mundo de objetos: é um mundo de eventos elementares, e as coisas se
constroem sobre o acontecimento desses eventos elementares. (ibid., ênfase no
original).
No modelo de realidade quântico, uma pedra não é
uma coisa ou substância, mas um vibrar de quanta que conserva sua estrutura,
sua solidez por um tempo, como uma onda do mar que mantém sua identidade antes
de se dissolver novamente no mar.
Quem quer que esteja disposto a aceitar a razoabilidade da concepção do
real como intrinsecamente cruel deverá reconhecer, por força da mesma
razoabilidade, que se trata de um modelo, de uma teoria elaborada por um
cérebro humano que produz uma interpretação estruturante do mundo. Como lembra
Shermer (2012, p. 75-76), “nosso cérebro é uma máquina de crença, um aparelho
avançado de reconhecimento de padrões que ligam os pontos e criam significados
a partir de padrões que acreditamos ver na natureza”. A maquinaria cerebral de
nossa espécie opera segundo o processo básico de padronicidade, isto é, segundo a tendência de encontrar padrões
significativos em dados que podem ou não ter relações coerentes, significativas,
ou que podem ou não ser significativos. Somos muito propensos, por isso, a
desenvolver o pensamento mágico, e a superstição. Também por isso é algo muito
difícil, senão impossível, pretender eliminá-los: “não podemos eliminar o
aprendizado supersticioso, da mesma maneira que não podemos eliminar o
aprendizado como um todo”. (ibid., p. 78).
A seleção natural favoreceu o desenvolvimento de estratégias que
permitem a produção de associações causais incorretas de modo a estabelecer
aquelas que são indispensáveis à sobrevivência e à reprodução. Destarte, as
pessoas acreditam nas coisas mais bizarras e estranhas em virtude da
necessidade evolucionária de acreditar em coisas que não são estranhas ou
bizarras. Devemos reconhecer, portanto, que a superstição e o pensamento mágico
não são erros de cognição, mas processos naturais de um cérebro pré-disposto
para a aprendizagem. Se o reconhecimento de padrões verdadeiros nos ajudam a
sobreviver, a produção de padrões falsos não nos leva, necessariamente, à
morte; por conseguinte, padrões falsos e crenças falsas sobre o mundo não foram
eliminados pelo processo discriminatório da seleção natural.
Passo, doravante, a concatenar, num modelo de realidade coerente,
evidências do caráter cruel, inapelável da realidade que – espero – também se
imponha ao espírito do leitor em toda a sua nudez e crueza.
2. Os rostos da crueldade do real
2.1. O nosso lugar na árvore
filogenética
Aturdido pela experiência da Náusea, o narrador Roquentin vê sua
“segurança ontológica” (Giddens) estilhaçar-se.
Não estava surpreso, bem sabia que aquilo era o
Mundo, o Mundo inteiramente nu que se mostra de repente, e sufocava de raiva
desse ser grande e absurdo. Sequer se podia perguntar de onde saía aquilo, tudo
aquilo, nem como era possível que existisse um mundo ao invés de coisa alguma.
Aquilo não tinha sentido, o mundo estava presente em toda parte, à frente,
atrás. Antes dele não houvera nada. Nada. Não houvera um momento em que ele
pudesse não existir. Era isso que me irritava: obviamente não havia nenhuma
razão para que aquela larva corrediça existisse. Mas não era possível que não
existisse. (...)” (Sartre, 2016, p. 180-181).
Este excerto de Sartre interessa-me, na presente discussão, não tanto
pela descrição da experiência ontológica da abertura da absurdidade e do
caráter contingente do mundo para um indivíduo que demonstra todo seu espanto,
perplexidade e tormento quando tomado por tal experiência, mas por aquilo que
se diz tacitamente, que se enuncia no nível dos implícitos, a saber, que a
consciência prática de cada um de nós está, na maioria das vezes, ancorada
cognitiva e emocionalmente num sentimento de segurança ontológica (Giddens,2002), a qual caracteriza a atitude
natural que assumimos na nossa lida com o mundo no cotidiano. Nós, vivendo em
sociedade conjuntamente com os outros semelhantes, confiamos em que o mundo é
exatamente como ele nos parece ser. Nossa vida cotidiana é organizada em
rotinas e, como lembra Giddens (2009, p. XXVI), “a rotinização é vital para que
os mecanismos psicológicos por meio dos quais um senso de confiança ou de
segurança ontológica é sustentado nas atividades da vida social”. Nós nos
orientamos, em nossas práticas sociointeracionais, mobilizando modelos mentais
que compreendem saberes, expectativas e crenças de que o mundo conservará sua
ordem e seu modo de funcionamento tanto hoje, quando saímos de casa para o
trabalho, como amanhã, quando esperamos encontrar alguns amigos para beber. Em
tais condições de “normalidade”, são raros os homo sapiens que venham a experimentar uma espécie de crise
ontológica ou venham a ser tomados de espanto em face do fato de que o Universo
que habitam é infinito e aberto, que ele se expandirá para sempre. Cada um de
nós habita apenas uma pequena porção deste Universo, conhecida como Via Láctea.
Composta basicamente de oito planetas conhecidos, de outros planetas menores,
de centenas de satélites (como a Lua), de bilhões de estrelas (como o Sol), de
bilhões de asteroides e cometas, de gases e poeira, a Via Láctea é uma –
pasmem! –, apenas uma das centenas de bilhões de galáxias que compõem o
Universo (estima-se que existam aproximadamente 200 bilhões de galáxias no
Universo observável). Nossa galáxia tem cerca de 10 bilhões de anos. Estudos
cosmológicos recentes nos informam que o Universo surgiu há 13,7 bilhões de
anos. Quando nossa galáxia surgiu, o Universo já era um ancião com mais de 3
bilhões de anos.
Nosso planeta Terra, “um pálido ponto azul” na imensidão de um Universo
escuro e indiferente, tem cerca de 4, 5 bilhões de anos. Durante 9, 2 bilhões
de anos, portanto, o Universo subsistiu sem a Terra, o que prova que a
existência de nosso planeta insignificante cosmologicamente é contingente, que
o Universo poderia muito bem continuar existindo sem a Terra e sem estes
macacos pelados que se creem a coroa da Criação de um Deus metafísico e
Providente. A vida em nosso planeta surgiu, pelo menos, há 3,5 bilhões de anos,
e, como nos ensina Gould (2001, p. 232):
(...)
provavelmente não muito antes disso, porque a crosta terrestre ainda
atravessava um período de fusão que terminou há 3,8 bilhões de anos (a idade
das rochas mais antigas). A vida presumivelmente começou nos oceanos primevos,
como resultado de uma sequência de reações químicas baseada nos elementos
constituintes originais das atmosferas e oceanos, e regulada por princípios da
física aplicáveis a sistemas auto-organizadores (“sopa primordial” é há muito
tempo uma expressão favorita para designar oceanos fervilhando de compostos
orgânicos adequados antes da vida ter se originado). De qualquer modo, podemos
especificar como uma “parede esquerda” a complexidade mínima da vida sob tais
condições de origem espontânea (como paleontologista, gosto de pensar nessa
parede como o limite inferior de uma “complexidade concebível, que pode ser
conservada” nos registros fósseis). Por razões ligadas à física e à química, a
vida tinha que se iniciar próximo à parede esquerda de mínima complexidade –
como um glóbulo microscópico. Não se pode começar precipitando um leão numa
sopa primordial.
A “sopa primordial” descreve, por hipótese, o estado de aglomeração de
moléculas ou substâncias orgânicas que constituíram os mares de 3 a 4 bilhões
de anos atrás. Biólogos e químicos acreditam que, sob a influência de energia,
como a energia solar, tais moléculas primordiais se combinaram em unidades
moleculares maiores. Em algum momento, por puro acidente, uma molécula
importante teria surgido: o Replicador. Essa molécula (gene) teria a capacidade
de criar cópias de si mesma (ver. Dawkins, 2007).
Espero esteja claro que o que venho fazendo até aqui é uma tentativa de
descerrar um horizonte epistêmico à luz do qual a crueldade do real se nos
impõe com uma crueza e gravidade tal, que consiga nos arrancar de nossa zona de
conforto, que consiga arrastar, você, leitor, para a beira do abismo
cosmológico da qual você e a maioria dos homo sapiens costumam manter-se
distante. Se, por algum momento de coragem, permitirmo-nos ver a realidade em
toda a sua crueza, despida dos disfarces metafísicos e religiosos com os quais
a vivenciamos, deveremos aceitar, forçosamente, que a origem do Homo Sapiens Sapiens é uma circunstância
irrepetível e não uma consequência necessária do trabalho deliberado de um
Projetista Sobrenatural. O progresso, de
modo algum, define a história da vida. A Evolução das Espécies nos
patenteia que os seres humanos não ocupam um status preferencial, privilegiado,
como pináculo ou culminação do processo de ramificação da vida. Ele só o ocupa
em sua imaginação, em seus delírios, em sua demência. Uma das verdades duras da
vida é que a vida é dominada, desde os primórdios, pelas bactérias. Como ensina Gould (ibid., 240), “os seres
humanos estão aqui por um lance de sorte, não por causa da inevitabilidade da
direção da vida ou do mecanismo evolutivo”. Os registros fósseis testemunham
que as formas de vida dominantes no planeta Terra são procariotos, ou mais
popularmente, bactérias. A vida começa com as bactérias há cerca de 3,5 ou 3,6
bilhões de anos. Logo, se me permitir lhe dar um conselho filosófico, leitor,
viva desesperadamente, assuma fielmente o desespero, que Rosset define como
“uma disposição absolutamente refratária a tudo o que se assemelha à esperança
ou à expectativa” (ibid., p. 7). Isto bem entendido quer dizer: viva sem a
esperança, as expectativas ou os preconceitos metafísicos, as superstições que,
no imaginário social, deram forma à crença de que o homo sapiens tem algum lugar metafísico privilegiado na árvore
filogenética da vida. Despeça-se da ilusão acerca de suas origens ontogênicas.
Você não é um ser vivo dotado de uma alma imortal e nem foi criado por um Deus
metafísico. Quando nós morrermos, a matéria de que somos compostos voltará a
integrar o cosmo e passará a constituir novos corpos, outros seres, entre os
quais humanos. Somos feitos de “poeiras das estrelas”: decerto, cada átomo que
integra nosso corpo estava no âmago de uma estrela. Definitivamente, se há uma
Criação (a despeito da força das evidências em contrário), ela não foi
destinada à forma de vida humana, mas à forma de vida bacteriana. O modo
inicial bacteriano foi estável por todo o transcorrer do tempo. É preciso,
então, fazer falar Gould, novamente:
(...) Se somos bastante parciais em relação às
criaturas multicelulares, nós colocamos a principal divisão da vida entre
plantas e animais (como o faz o Livro do Gênesis na criação de ambos os mitos,
nos capítulos 1 e 2). Se formos mais ecumênicos, geralmente colocamos a divisão
entre formas unicelulares e multicelulares. Contudo, a maioria dos biólogos
profissionais alegaria que a divisão de maior profundidade ocorre nos seres
unicelulares, separando os procariotos (ou organelas-sem núcleo, sem
cromossomo, sem mitocôndrias, sem cloroplastos) dos eucariotos (organismos como
as amebas e os paramécios, com todas as partes complexas encontradas nas
células dos organismos multicelulares). Entre os procariotos incluem-se os
grupos de grande diversidade conhecidos coletivamente como “bactérias”, e
também as chamadas “algas azuis-verdes”, que pouco mais são do que bactérias
que fazem a fotossíntese, e que hoje em dia são em geral conhecidas por
cianobactérias. ( ibid., p. 233).
Acrescenta Gould que “mais da metade da história da vida é apenas uma
história de bactérias” (ibid., p. 233-234). A vida, portanto, começa com as
bactérias, numericamente dominantes no planeta: “assim era no início, é agora,
e sempre será – pelo menos até que o Sol venha a explodir e destrua o planeta”.
(ibid.). A crueldade da realidade, como nos informa o título que dei a esta
seção deste trabalho, tem muitos rostos: alguns dolorosamente terríveis; outros
tragicômicos; outros ainda zombeteiros. Um dos rostos da crueldade que zombam
de nossa arrogância como espécie cochicha em nosso ouvido outra dura verdade:
as bactérias são inegavelmente as formas de vida dominantes na Terra, e sempre
o foram, mas seu tempo de vida é bastante curto. Talvez, não vivam mais do que
o tempo que levamos para almoçar. Não só as bactérias são assustadoramente
numerosas, mas também existem numa variedade de formas impressionante. Elas
também não podem ser eliminadas pela bomba nuclear ou mesmo afetadas
significativamente por qualquer de nossas armas de destruição.
Nossas loucuras, nucleares ou de outros tipos,
podem facilmente levar à nossa própria destruição num futuro previsível.
Poderíamos levar a maior parte dos grandes vertebrados terrestres conosco – uns
poucos milhares de espécies, no máximo. Certamente, não conseguiríamos extirpar
500.000 espécies de escaravelhos, embora pudéssemos causar um prejuízo
significativo. Duvido que pudéssemos prejudicar substancialmente a diversidade
bacteriana. Os organismos modais não podem ser eclipsados pela bomba nuclear,
ou mesmo afetados de modo sensível por qualquer de nossas muitas concebíveis
maldades. (ibid., p. 244).
As primeiras formas de vida microscópica evoluíram
e testemunharam as futuras formas complexas de vida. Elas também testemunharam
o surgimento de seres multicelulares: “animais marinhos surgiram e tornaram-se
suscetíveis à invasão bacteriana em um mundo inundado por microrganismos”.
(Ujvari, 2020a, p. 104). A evolução, no entanto, dotou os mais adaptados à
sobrevivência com genes produtores de novos antibióticos naturais. Nosso corpo
está repleto de bactérias que, juntas, formam campos de batalha onde lutam
pelos nutrientes liberados por nosso organismo. Segundo Ujvari (ibid., p. 105),
“bactérias inofensivas revestem nossa pele e se infiltram nos orifícios: forram
a boca, o estômago e o intestino”. Somos inteiramente envolvidos por elas.
Nosso corpo é povoado ainda por fungos. Temos dez vezes mais bactérias do que
células e cada grama de fezes comporta um trilhão de bactérias. As bactérias
nos invadem logo após o nascimento. Elas se espalham pela pele do recém-nascido
ainda na maternidade: “carregamos esse inquilinos para o resto da vida” (ibid.,
p. 105). Cientistas evolucionistas creem que as bactérias que se hospedam em
nossa pele tenham evoluído com os hominídeos e contribuído para a evolução do
homem. Um quilo de nosso peso corresponde a esses microrganismos. Os
microrganismos, como bactérias, continuam e continuarão acompanhando o homem ao
longo de sua trajetória histórica.
Ainda insistindo em sublinhar a insignificância
cosmológica da condição existencial do animal humano, passo, agora, a
considerar nossos antepassados mais próximos. Está claro até aqui que nós,
seres humanos, pertencemos a uma entre os milhões de espécies que evoluíram a
partir de um microrganismo originário semelhante a uma bactéria. Os
microrganismos evoluíram junto com o homem e, ao longo desse processo de
adaptação, a seleção natural possibilitou o desenvolvimento de microrganismos
menos agressivos e de homens mais resistentes. Nós, Homo Sapiens Sapiens, só entramos em cena no palco da história
evolutiva há aproximadamente 200 mil anos. Nosso surgimento ocorreu na África
Oriental. O exame de uma vasta gama de amostras de DNA mitocondrial (matéria
exterior ao núcleo da célula que é transmitida da mãe para a prole) revelou que
todos os seres humanos têm um ancestral comum que viveu na África cerca de 200
mil anos atrás. Esta matriarca desconhecida pode ser chamada de “Eva
Mitocondrial”, e todos nós compartilhamos pelo menos algumas informações
genéticas com ela. O especismo é, portanto, tão moralmente abominável quanto
evolucionariamente injustificável.
2.1.2. Nosso antepassado
símio e o surgimento do gênero Homo
Em princípio, convém lançar alguma luz sobre o que é a evolução e a seleção natural e sobre suas consequências para uma exata
compreensão da insignificância radical da condição humana. A evolução é, na esteira de Darwin, um
processo gradual de mudanças químicas e físicas que começaram antes mesmo do
surgimento da vida propriamente dita, e continua até hoje. Ela deixou sua marca
em tudo o que está ou que já esteve vivo. A evolução não é algo predestinado.
Todos os seres vivos, inclusive os humanos modernos e seus parentes mais
próximos, os primatas, são produtos da mutação aleatória da seleção natural, e de uma variedade de
outras influências biológicas e geográficas. Nem a evolução nem a seleção natural
são fenômenos que se deram num passado remoto e terminaram. Não! Evolução e
seleção natural são processos que se prolongam até hoje e que continuarão até
que o planeta seja completamente destruído, com a morte do Sol. A seleção natural é o mecanismo evolutivo pelo qual são selecionadas as características que
tornam mais aptos os organismos à sobrevivência. Na atual pandemia da
Covid-19, podemos presenciar a seleção natural operando, na medida em que ela
favorece as mudanças, as mutações que tornam o coronavírus mais adaptado ao seu
hospedeiro humano. Há um embate entre nosso corpo juntamente com a pressão
imunológica que ele ativa e o vírus que é forçado a sofrer mutação para
resistir a ela. Há uma competividade na qual vence o melhor: sendo mais forte o
vírus, a tendência é a perpetuação daquela linhagem viral que vence a batalha
contra o sistema imunológico do hospedeiro. A seleção natural também é a
responsável pelo surgimento de bactérias e vírus mais resistentes a
antibióticos usados indiscriminadamente. A seleção natural produz, sem dúvida,
adaptações notáveis, embora nem mesmo a mais impressionante delas possa
garantir o sucesso permanente de um organismo na luta pela sobrevivência. Ao
longo prazo, até mesmo as espécies mais prósperas podem entrar em declínio, até
se tornarem completamente extintas. Muitas desaparecem por ficarem
enfraquecidas devido a suas próprias limitações, ou por não conseguirem se
adaptar. Não raro, grandes quantidades de espécies ou organismos são extintos,
vítimas de mudanças ambientais catastróficas. É, portanto, um fato inconteste
que a extinção é uma característica natural intrínseca à vida. Os restos
fossilizados de animais dão-nos um testemunho disso. O ventre da Mãe Natureza
abriga um cemitério de organismos que se extinguiram há milhões de anos. Os
fósseis evidenciam que, longe de permanecerem iguais, os seres vivos sempre
sofreram mudanças, e que um número imenso deles simplesmente desapareceu.
A luta pela vida e a seleção natural são considerados os mecanismos essenciais
da evolução dos seres vivos. Os organismos formam populações denominadas de
espécies e apresentam "variações”, graças às quais um número determinado
de indivíduos são mais bem adaptados a seu meio ambiente e engendram uma
descendência mais numerosa. A seleção
natural, portanto, recobre o conjunto dos mecanismos que triam ou escolhem
os indivíduos mais bem adaptados na luta pela sobrevivência. Segundo Darwin, em
virtude da “luta pela vida”, as populações de seres evoluem lentamente, se
transformam e se diversificam gerando formas cada vez mais complexas.
Nosso antepassado símio surgiu há 6-4,5 milhões de anos. Seu
aparecimento foi na África. É conhecido como nosso ancestral comum ou elo
perdido. Não pretendo considerar todos os personagens que apareceram na cena
evolutiva que deu origem aos humanos modernos. Mencionarei alguns deles apenas
para acenar para o fato de que os Homo
Sapiens Sapiens, únicos sobreviventes do gênero Homo hoje, não foram os únicos integrantes desse gênero. Nós, Homo Sapiens Sapiens, não existimos
desde que a Terra se formou. Nosso aparecimento na história evolucionária, é
até bem recente. Portanto, você, leitor, que até aqui me acompanha
pacientemente, não se cuide como um ser cosmologicamente especial. É claro que
cada um de nós somos importantes para nossos pais, somos especiais para eles,
principalmente, para a mulher ou o homem que amamos; mas, para o Universo que
habitamos, nossa existência é irrelevante, insignificante. Se um asteroide
entrar em rota de colisão com nosso planeta, ele não terá qualquer consideração
nem por mim nem por você, leitor.
Antes do aparecimento do gênero Homo,
há um personagem importante, que pertence a um gênero anterior de primatas a
partir do qual os humanos surgiram: o Australopithecus[2]. Australopithecus significa “macaco do
Sul”, porque “austral”, do latim australis,
quer dizer “do sul”; e a forma grega “pithekos”
significa “macaco”. Os Australopithecus exibiam
uma postura ereta e tinham um cérebro ligeiramente maior do que os membros
pertencentes ao gênero Ardipithecus,
que lhes precederam. Ardipithecus significa
“macacos do solo”, nome que indica o local onde foram encontrados os seus
restos. Na língua amárica ou Etíope, “ardi”
significa “solo”.
O primeiro integrante do gênero Homo
surgiu há 4,5 e 1,8 milhões de anos, embora uma estimativa mais precisa nos
permita dizer que seu surgimento se deu cerca de 2,4 milhões de anos atrás. Seu
nome científico é Homo habilis. É
provável que tenha coexistido com o Homo
rudolfensis e com o Homo ergaster.
Mas, como a distinção entre eles é extremamente difícil de estabelecer, são
chamados conjuntamente de Homo habilis. Seu
aparecimento marca o começo da linhagem que se estenderia até nós, os Homo Sapiens Sapiens. Estimativas atuais
sugerem que os hominídeos, família de
grandes primatas que compreendem os Chimpanzés, os Gorilas, os Orangotangos e
os Humanos, surgiram quando nossos ancestrais se separam dos macacos há cerca
de 6 ou 8 milhões de anos.
O Homo habilis se notabilizava
pela manufatura e uso de ferramentas ou artefatos líticos, habilidade esta
favorecida pela anatomia de suas mãos. Usando tais artefatos, eles
esquartejavam animais, muito embora haja dúvida se ele abatia uma presa, ou
rapinava carcaças da caça feita por leões e leopardos. Além do uso de
ferramentas, o Homo habilis incluiu a
carne em sua dieta, ao contrário de seus primos Australopicíneos robustos, que eram vegetarianos.
Num mundo sem Providência divina e regulado pela “luta pela vida”, não
surpreende que nossos antepassados fossem abatidos por predadores. Temos
evidências de crânios perfurados pelos dentes de leopardos. Membros do Homo habilis, medindo apenas 1,5 m.,
eram vulneráveis aos ataques de hienas. Um mundo sem Providência divina é um
mundo em cuja origem e funcionamento vige o acaso. Acaso significa ausência de
finalidade ou de propósito, ausência de toda razão de ser. Acaso, Sorte,
Fortuna – eis as armadilhas da vida, cujas primeiras formas surgiram há 3,5
bilhões de anos com as bactérias. Digam o que quiserem para nós os sacerdotes,
os astrólogos, as cartomantes acerca sentido um sentido metafísico da vida,
nada na biologia moderna confirma a nossa costumeira expectativa de encontrar
sentido algum no mundo e, sobretudo, nos fenômenos naturais e na evolução
biológica. Tudo nela, pelo contrário, desalenta nosso anseio por encontrar um
sentido metafísico na vida. A própria vida, diz Monod, é uma contingência;
portanto, algo que poderia muito bem não ter acontecido; e o próprio homem é,
como todos os demais organismos, um resultado improvável da evolução biológica.
O ser humano não é uma necessidade inerente à dinâmica da evolução. Não somos
nem física nem biologicamente necessários. Tanto as formas de vida mais simples
quanto os animais humanos emergiram num Universo que não aguardava a sua
chegada. A verdade que, de tão assustadora e indigesta, é recusada comumente em
todas as atividade humanas diárias, na insistência com que os Sapiens lotam as
igrejas, é que estamos aqui há um milimicrossegundo
da história da vida. Todas as evidências disponíveis deveriam ser
suficientes para levar seres dotados de uma racionalidade bastante complexa
(embora, certamente, propensa ao erro, ao engano) a concluírem que nós não
fomos destinados a habitar este mundo porque assim o quis um Deus Criador.
Todas as evidências disponíveis sugerem que, se todas as condições e processos
que levaram ao desenvolvimento da vida retrocedessem até o começo, nossa
espécie não se desenvolveria de novo. Isso significa dizer que tem razão quem
diz, em face de alguém que desperdiça a vida empregando seu tempo e interesse
em coisas fúteis, ou de alguém que se dedica obcecadamente ao trabalho,
descuidando do tempo com a família e amigos, que a vida é única, irrepetível. Eu
gostaria, no entanto, de acrescentar que, sendo a vida irrepetível, sendo a
vida de cada um de nós, a minha e a sua, caro leitor, um evento breve,
contingente, que não ocorrerá outra vez, que não admite ensaio nem apelos (já
que não há a quem dirigi-los, a quem os julgue, porque não há Providência nem
Justiça divinas), os sofrimentos mais excruciantes que nos acometem, a agonia
dos famintos, dos doentes, cada vida individual carcomida por um câncer, pela
Aids, cada sofrimento e morte que atingem uma criança, ou um filhote indefeso
de um animal, ou a morte dos que amamos, os genocídios de populações pela
insanidade de um Sapien ditador, tirânico - tudo isso são, assombrosamente,
acontecimentos insignificantes, irrelevantes de um mundo em cuja composição
bioquímica, formada de átomos, gases como hélio e hidrogênio, devemos
reconhecer também a irremediável, inextirpável tragicidade que nos faz ser,
desde o nascimento, condenados à morte. Uma vida que, surgindo por acaso e
inapelavelmente uma única vez, torna tudo o que nela nos acontece “uma sombra
que passa, um pobre bobo que se pavoneia e se exalta uma hora sobre o palco e
depois não se ouve mais, uma história contada por um idiota, cheia de barulho e
fúria, e que não significa nada” (Macbeth).
Não surpreende, portanto, que, na vida diária, os animais humanos evitem se
ocupar de tão cruel e absurdo destino. E é provável que essa despreocupação
tenha sido uma característica de nossa história evolutiva. Minha hipótese é que
a imersão na futilidade da vida é condição indispensável à sobrevivência da
espécie humana. Em seu livro Sapiens: uma
breve história da humanidade, Harari descreve o que encontraríamos na
África Oriental de 2 milhões de anos atrás:
Em um passeio pela África Oriental de 2 milhões de
anos atrás, você poderia muito bem observar certas características humanas
familiares: mães ansiosas acariciando seus bebês e bandos de crianças
despreocupadas brincando na lama; jovens temperamentais rebelando-se contra as
regras da sociedade e idosos cansados que só queriam ficar em paz; machos
orgulhosos tentando impressionar as beldades locais e velhas matriarcais sábias
que já tinham visto de tudo. Esses humanos arcaicos amavam, brincavam, formavam
laços fortes de amizade e competiam por status e poder mas os chimpanzés, os
babuínos e os elefantes também. Não havia nada de especial nos humanos.
Ninguém, muito menos eles próprios, tinha qualquer suspeita de que seus
descendentes um dia viajariam à Lua, dividiriam o átomo, mapeariam o código
genético e escreveriam livros de história. A coisa mais importante a saber
acerca dos humanos pré-históricos é que eles eram animais insignificantes, cujo
impacto sobre o ambiente não era maior que o de gorilas, vaga-lumes ou
águas-vivas. (Harari, 2018, p. 16).
Num Universo infinito, surgido, por acaso, de uma grande explosão, e que
tornou possível a vida e com ela uma espécie de macacos pelados que, desde que
nascem, estão condenados à morte e sabem disso, também suas grandes realizações
como espécie são irrelevantes, insignificantes cosmologicamente. Certamente, o
mapeamento do código genético nos permite hoje prevenir doenças que podemos vir
a desenvolver por pré-disposições de nossa estrutura genética, e James Watson,
que foi premiado com o Nobel pela descoberta da estrutura da molécula do DNA e
que viria, na década de 1990, assumir a direção do Projeto Genoma, quiçá se
orgulhe (merecidamente) de seu feito. Mas Watson morrerá e seu corpo se
decomporá em elementos que retornarão ao Universo. Sua pessoa não tornará mais
a viver, pois Watson, como cada um de nós, mortais, é um evento único e
irrepetível. Este “eu” que tanto amamos não sobreviverá à destruição de nosso
corpo e cérebro. Certamente, o legado de Watson aproveitará às gerações
futuras, será levado adiante. Outras descobertas incríveis e úteis à
sobrevivência de nossa espécie serão, possivelmente, feitas. Mas Watson um dia
deixará de existir, assim como cada um de nós, não importa o que fizermos.
Talvez, Watson quisesse tornar a viver para continuar suas pesquisas; afinal, o
inacabamento é constitutivo da condição humana: quem poderá dizer que Watson
esgotou todas as possibilidades de ser, de criar, de conhecer numa única
existência, mesmo que ela já se tenha estendido por 93 anos? Ocorre-me, com
frequência, que a vida de leitor é insuficiente (mas toda vida o é), porque
quem ama a leitura compra uma quantidade de livros superior ao tempo de que
disporá para lê-los. A vida é breve demais para quem tem sede de saber e de
leitura. E nisso também vejo as pinceladas fúnebres do trágico.
Volvendo olhares para o excerto de Harari, num certo estrato da
cotidianidade, o autor sugere que a vida humana de 2 milhões de anos atrás não
variou muito quando a comparamos com a vida cotidiana dos homens modernos. Se
podemos inferir que, em certo estrato, a vida do cotidiano de nossos
antepassados hominídeos tenha características familiares a nós, é que, talvez,
a evolução nos tenha capacitado mais para nos manter ocupados com as
necessidades básicas de nossa existência e com as condições do ambiente
biofísico em nossa volta do que com o trabalho de cálculos matemáticos para
determinar a órbita de cometas, ou com discussões infindas e entediantes sobre
a Analítica Transcendental em Kant. Em outras palavras, o que a descrição do
cotidiano dos humanos que viveram há 2 milhões de anos permite-nos concluir é
que, talvez, num mundo que, quando submetido ao escrutínio da razão, se mostra inelutavelmente
trágico e cruel, a vida tenha sido feita da cepa da futilidade e que a evolução
nos “programou” para a imersão nessa futilidade, que compreende a “crosta” da
vida onde nos movemos e nos instalamos, e não para o dispêndio de energias em
meditações sobre o porquê de nos encontramos aqui neste planeta. Harari presume
que a insignificância de nossa condição humana consiste apenas no fato de nossa
espécie não ter nenhuma característica que a torne especial ou superior no
reino animal. E isso é verdade, mas nossa insignificância como espécie e como
indivíduos de uma entre milhões de espécies vai muito além disso, conforme
mostrarei.
Mesmo sob pena de incorrer em redundância, é necessário reiterar e
enfatizar uma verdade que gostamos de esconder de nós mesmos:
(...)
somos membros de uma família grande e particularmente ruidosa chamada grandes
primatas. Nossos parentes vivos mais próximos incluem chimpanzés, gorilas e
orangotangos. Os chimpanzés são os mais próximos. Há apenas 6 milhões de anos,
uma mesma fêmea primata teve duas filhas. Uma delas se tornou a ancestral de
todos os chimpanzés; a outra é nossa avó. (ibid., p.
17-18).
Resta ainda outro personagem para entrar na cena de nossa história
evolutiva: os homens de Neandertal. Cerca de 350 mil anos atrás, o Homo neanderthalensis apareceu na
África. Seria a última espécie importante antes do aparecimento do homem
moderno. Os Homens de Neandertal espalharam-se a partir da África por volta de
200 mil anos, para o Uzbequistão, o Irã, a península Ibérica, de onde partiram
para o norte da Europa. Sua designação se deve ao sítio na Alemanha onde um dos
primeiros espécimes foi descoberto, em 1856. Os Homens de Neandertal tinham
compleição baixa, testa pesada e angulosa, mas o seu corpo era mais semelhante
ao corpo dos Homo Sapiens modernos do
que ao das espécies precedentes. O DNA dos restos mortais dos Neandertais
revela que eles foram nossos ancestrais diretos. Eles coexistiram com os
Sapiens, que migraram em direção ao norte, saindo da África para a Europa, por
volta de 45 mil anos atrás. É provável que a competição com esses grupos de
Sapiens tenha custado a extinção dos Neandertais por volta de 25 mil anos
atrás.
Toda esta seção deste texto dá testemunho de meu esforço por contribuir
com o longo, secular e incansável processo de esclarecimento dos homo sapiens acerca de sua
ancestralidade animal. O chimpanzé e o homem compartilham cerca de 99, 5% de
sua história evolutiva, isto é, de seus genes. Não obstante, na confluência das
duas matrizes que formaram a cultura ocidental, um meme se disseminou “infectando” a maioria dos sapiens desde então. Esse meme
se chama cristianismo e ele trouxe em seu bojo a crença na origem divina do
homem. É inacreditável como esses hominídeos possam ter se enganado por tanto
tempo assim, estando a verdade bem abaixo de seus narizes, ou melhor, em
lugares recônditos do solo do próprio planeta que habitam. A história evolutiva
não é apenas uma história trágica; é, na verdade, uma bela história, uma
história admirável, espantosa, fascinante. Entre os gregos pré-socráticos, Empédocles a entreviu como hipótese filosófica há 2.500 anos AEC, é verdade, mas foi
Charles Darwin, no século XIX EC, que começou a nos contá-la cientificamente. Mas
estes parvos macacos pelados insistem em ignorá-la! O chimpanzé, a lagartixa
pegajosa em nossa parede e o fungo que estraga nossos queijos e nós mesmos, seres
humanos, evoluímos durante cerca de 3 bilhões de anos por um processo conhecido
como seleção natural. Todas as
espécies incluem indivíduos que deixaram atrás de si um número maior de
descendentes sobreviventes do que outros, de sorte que os genes daqueles que
alcançaram maior sucesso reprodutivo se tornam mais numerosos na geração
seguinte. A seleção natural é isto, segundo o biólogo Richard Dawkins: a reprodução diferencial, não aleatória, dos
genes. Foi a seleção natural que nos “criou”. Aceitar a crueldade do real, isto é, aceitar
o real sem duplicá-lo, sem adorná-lo com as ilusões religiosas e metafísicas é
estar disposto a entender como a seleção natural tornou possível a nossa
existência.
A ciência, atualmente, pode provar, através da comparação genética do
material viral, as origens dos parasitas que nos infectam. A história evolutiva
da família do vírus do herpes coincide com a história evolutiva de humanos e
chimpanzés. Se, hoje, nós nos sentimos importunados com aquelas pequenas bolhas
(vesículas) nos lábios que o vírus do herpes causa, é porque os primeiros
hominídeos que se separaram dos chimpanzés carregavam em seus corpos um tipo de
vírus ancestral do herpes. A evolução desse vírus ancestral deu origem a dois
tipos distintos de vírus do herpes humanos: um que atinge os nossos lábios; e
outro que é específico dos órgãos genitais.
O vírus do herpes labial, muito provavelmente, evoluiu com os Australopithecus, o Homo habilis, o Homo erectus
e outros hominídeos já extintos, até chegar aos Sapiens modernos. E isso só foi possível, porque sua estratégia de
sobrevivência foi bem sucedida. Como parece já estar acontecendo com o
Coronavírus, causador da pandemia atual, os vírus que causam doenças muito graves,
que levam suas vítimas à morte, se encontram em desvantagem evolutiva,
sobretudo, num período histórico em que não havia muitos hominídeos. Se o vírus
do herpes causasse alta taxa de letalidade, poderia extinguir sua única fonte
de vida. Demais, se o hospedeiro conseguisse eliminá-lo de seu organismo, esse
vírus teria dificuldade de encontrar outro hominídeo. Portanto, a melhor
estratégia evolutiva a ser desenvolvida, em condições ambientais em que era
reduzida a população de primatas, seria o vírus infectar sua vítima sem
acarretar-lhe alto risco de morrer, provocando nela uma infecção que
permanecesse dormente. O vírus da catapora humana seguiu a mesma estratégia.
Esse vírus também guarda parentesco com vírus de macacos. Ele também é capaz de
permanecer dormente nos nervos. Assim, nascemos na África já sendo portadores
do vírus da catapora.
É importante, pois, não perder de vista o fato de que, num mundo cruel
como o nosso, os microrganismos acompanham e ajudam a explicar a trajetória
seguida pelo homem desde que surgiu no continente africano. Eles nos auxiliam
na busca por saber quais hominídeos os Sapiens
podem ter encontrado em sua expansão pelo planeta. Revelam também nossa
provável rota que nos permitiu chegar à América, quando começamos a usar roupas,
etc.. Sítios arqueológicos nos ajudam a contar a história não só da migração de
animais, mas também de como esses parasitas a acompanharam e a influenciaram. A
presença de DNA ou RNA em sítios arqueológicos é a chave para compreender como
eles nos infectam. Por meio pesquisa do RNA e DNA desses microrganismos,
podemos saber quando e como as epidemias atuais iniciaram-se lenta e
silenciosamente durante décadas, milênios, condicionando a existência humana,
dizimando populações, estimulando conflitos, promovendo êxodos, contribuindo,
enfim, para a miscigenação e enfraquecendo povos ou os tornando mais fortes.
2.2.
Em meio à vida, estamos na morte
Nesta etapa de minha discussão, vou estender-me sobre o exame da
crueldade do real, desvelando seus rostos violentos, destrutivos e
sanguinários. Dois tipos de males me interessarão aqui: o mal produzido pela
ação do homem e o mal provocado pela própria natureza impiedosa. Esta distinção
me parece útil, a título de clareza sobre as formas como a crueldade e o
caráter trágico da vida se expressam, mas a distinção não precisa ser rigorosa
para os meus propósitos. O que importa é reconhecer que, em parte, os males do
mundo são efeitos da ordem natural das coisas; mas outra parte de males e
sofrimentos é de responsabilidade da perversidade do animal humano. A crueldade
é um dos aspectos da destinação da vida na natureza, mas o homem, talvez
juntamente com seus parentes mais próximos, os chimpanzés, se sobressai em sua
capacidade de produzir um mal gratuito, um mal demoníaco. Os chimpanzés parecem
também exibir tal capacidade de perversidade, conforme mostrarei. Mas somente o
homem é capaz de infligir os sofrimentos mais atrozes, inimaginavelmente
terríveis, com as armas e os instrumentos mais eficazes e poderosos que nenhuma
outra espécie animal é capaz de criar e dominar.
O homem comum se habituou à visão romântica da natureza, a qual exalta
sua exuberância, beleza fascinante e perfeição. De fato, a biodiversidade da
natureza exibe uma beleza que nos encanta; a exuberância de suas flores, de sua
densa vegetação verdejante, de seus mares e rios cristalinos em paisagens
pitorescas, contrasta, no entanto, com o grotesco das anomalias dos corpos, das
malformações congênitas de seus seres e da bizarrice de suas aparências.
Ademais, a visão romantizada da natureza ignora, muito facilmente, o fato de
que os passarinhos que são vitimados pelo ataque assassino do corvo também são
assassinos de espécies que não despertam nossa comoção, tais como insetos,
caramujos, minhocas e lagartas. Um melro rebenta a concha de um caramujo numa
pedra para desabrigá-lo e comê-lo ainda vivo. É bem verdade que, na cadeia de
carnificinas da ordem natural, a multiplicidade das espécies conserva-se em
algum equilíbrio. Assim, os corvos que devoram filhotinhos deixam, no entanto,
alguns deles sobreviverem para produzir descendentes. Se a ferocidade
destrutiva das espécies predadoras fosse ilimitada, seu próprio meio de
subsistência estaria arruinado. Como lembra Holloway (2013, p. 65), “a natureza
com seus dentes e garras vermelhas pode não ser uma bela visão, mas existe
equilíbrio nisso, mesmo que tenhamos de defini-lo com um tipo de justiça
biológica”. Salta evidente que esse equilíbrio ecológico é seriamente ameaçado
pelo impacto destrutivo das ações nefastas do homem, motivadas pelo egoísmo
ilimitado deste animal excêntrico e pestilento. Holloway, nesse tocante, não
nos deixa esquecer isso:
Conforme nos lembra a nossa propensão de inventar
sistemas imaginativos de tortura, temos sido muito inventivos na nossa
crueldade para com os membros de nossa espécie. Naturalmente, também nunca
relutamos em torturar os outros animais com quem compartilhamos o planeta –
como bem demonstra a história de nossa crueldade em relação a eles (...).
(ibid. p. 65).
No tangente ao extermínio de animais para o consumo, o autor enfatiza
que “(...) as coisas mais perturbadoras no tocante à espécie humana é a nossa
capacidade de nos acostumar com comportamentos monstruosos. Nós nos acomodamos
aos campos de extermínio e ao genocídio industrializado”. O animal humano é,
com bastante frequência, o algoz dos membros de sua própria espécie e de outros
animais sencientes. Sua crueldade para com eles é flagrante em toda parte.
Vemo-la expressar-se nas torturas de prisioneiros de guerra, no assassinato, no
estupro, na exploração dos vulneráveis e mais fracos pelo forte, nos gritos de
dor dos supliciados, nos flagelos nefastos da escravidão, no tráfico de animais
e nos maus tratos a que são submetidos.
A crueldade humana é tão intensa, tentacular e inesgotável nas suas formas de
manifestação, que um pensador como Hobbes não relutou em concluir que homo homini lupus (o homem é o lobo para
o homem). É também, inegavelmente, um lobo para os demais animais com quem ele
compartilha este planeta cosmologicamente insignificante localizado numa porção
da imensidão de um Universo que lhe é indiferente a sua sorte. Como nos dá a
saber Bem (2009, p. 131), “tudo dura só um momento e corre para a morte. A
planta e o inseto morrem no fim do verão e o animal e o homem, depois de alguns
anos: a morte ceifa incansavelmente. O homem com a procriação nasce do nada,
com a morte se torna nada”. É ainda o mesmo autor que nos lega esta lição da
sabedoria da história universal “a vida só é possível pelas deficiências de
nossa imaginação e de nossa memória. Ninguém poderia sobreviver à compreensão
instantânea da dor universal (...)”. (p. 113). Acontece que a maioria de nós
que chegou a compreender a dor universal continua a viver, a arrastar sua
carcaça decadente, inclinada à decrepitude e à aniquilação, no torvelinho de
nossas ocupações cotidianas.
Morin (2009) observa que o Homo
faber, o homem que fabrica, fabrica um mundo onde discernimos não só
ferramentas e monumentos, mas também onde encontramos mitos delirantes. O Homo faber “dá vida a deuses ferozes e
cruéis, que cometem atos bárbaros (...)”. (p. 13). O fato de serem eles
produtos de sua imaginação não os impede de terem uma vida própria e de
exercerem o poder de dominar o espírito de seus criadores. Loucura humana?
Talvez! – mas uma loucura institucionalizada, normalizada. A barbárie humana
cria deuses cruéis, os quais, por seu turno, incitam os humanos a deflagrar a
barbárie. Por isso, assegura Morin, “nós modelamos deuses que nos modelam”.
(ibid.). Por outro lado, não deixo de reconhecer que as ideias religiosas que
se apoderam dos homens podem também levá-los a agir com misericórdia e
generosidade.
O Homo ludens ocupa, não raro,
seu tempo com jogos cruéis, como o jogo do circo na Antiga Roma, ou a
tauromaquia. Por fim, o Homo economicus,
cuja vida se guia fundamentalmente pelo interesse econômico, tende a assumir
comportamentos egoístas que sinalizam sua indiferença para com o outro. Em
casos não raros, esse Homo economicus,
movido pela paixão do lucro, pode até mesmo cometer assassinatos. Assim, a
barbárie não apenas é um fenômeno que acompanha a civilização; ela é uma das
partes constitutivas da civilização. O processo civilizatório é marcado por
massacres, destruições sistemáticas, pilhagem, estupros, escravidão de
populações, etc. Há, portanto, uma barbárie que se forma e se deflagra com a
civilização.
Vivemos num mundo em que a prática de suplícios foi bastante comum como
forma de punição para um crime cometido. Em Vigiar
e Punir (2012), Foucault narra, no capítulo primeiro O corpo dos condenados, o suplício aplicado a Robert-François
Damiens, em 1757. Damiens fora condenado a pedir perdão publicamente diante da
porta principal da Igreja de Paris, aonde foi levado e acompanhado numa
carroça, vestindo apenas uma camisola e carregando uma tocha de cera acesa. Não
transcreverei o trecho na íntegra não só por ser muito extenso, mas também
porque quero resguardar o leitor de padecer longamente a imaginação do
suplício. Conta-nos Foucault:
[Em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e
sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e
barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito
parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se
aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por
quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e
suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado (...). Essa última
operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à
tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso
não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe
os nervos e retalhar-lhe as juntas... (ibid., p 9).
A invenção da guilhotina viria a suprimir o espetáculo do suplício. Seu
uso se regulava pelos seguintes princípios: uma só morte por condenado, de uma
só vez, e sem recorrer a suplícios. Com a guilhotina, utilizada a partir de
março de 1972, a morte passou a ser um acontecimento visível, mas instantâneo.
Diz-nos Foucault: “entre a lei, ou aqueles que a executam e corpo do criminoso,
o contato é reduzido à duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas;
o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso (...) Quase
sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a
liberdade”. (ibid., p. 18).
A crueldade do real pode ser também ilustrada na morte de 70 e 320 mil
mulheres nos conhecidos processos de bruxaria, ocorridos entre o final do
século XIV e o final do século XVII, durante o período sangrento da Inquisição
Católica. À suposta bruxa, aplicava-se, primeiro, a tortura psicológica – “era
levada à sala de interrogatório, onde eram expostos todos os instrumentos de
suplícios”. (Fio, 2007, p. 153). Em
seguida, a vítima era despida perante o magistrado e coberta com um lençol. Se
lhes aplicavam chibatadas – a forma de tortura considerada mais branda. Depois,
amarravam-se-lhe os braços atrás com uma corda presa à polé; a vítima era
içada, provocando o deslocamento do ombro. Ainda mais cruel que a polé, era o cavalo
de estiramento, um pedaço de madeira triangular com a ponta virada para cima. O
corpo da supliciada era deitado e amarrado à ponta, a qual lhe penetrava a
carne, do pescoço aos glúteos. Em suas
mãos e suas pernas, eram amarrados pesos cada vez mais pesados, ou cordas
ligadas a uma roda que girava com a ajuda de uma manivela. Uma vez puxadas as
cordas, o corpo inteiro se esticava, e os membros, depois de algumas horas, se
soltavam do corpo. Outra prática comum era acender uma fogueira sob os pés da
vítima. Como notam os autores, “teoricamente, a tortura deveria durar um tempo
limitado, e um médico supervisionava as operações para garantir que o imputado
não corresse o risco de vida ou sofresse danos graves à saúde”. (ibid., p.
154). O suplicio, contudo, prosseguia ao sabor do sadismo do inquisidor. Não
eram raros os casos em que as mulheres morriam ou eram estropiadas de forma
irremediável em função das sevícias que sofriam. Novamente aqui é oportuno
reiterar esta lição filosófica: “a vida só é possível pelas deficiências de
nossa imaginação e de nossa memória”.
Como se pode ver, ao me debruçar sobre o tema da crueldade do real, não
poderia inocentar o homem, mantendo silêncio sobre sua capacidade monstruosa de
fazer o mal, de infligir sofrimentos excruciantes tanto em outros humanos
quanto em animais não humanos. A crueldade do real protagonizada pelo homem nos
faz também tremer de horror em face da tentativa nazista de aniquilar a
população judaica da Europa, no genocídio que ficou conhecido como Holocausto.
No Holocausto, morreram cerca de 6 milhões de judeus em 1945. Mas, já em 1942,
os nazistas se apressavam por buscar apoio para o que consideravam ser “a solução
final”. Os judeus seriam levados para campos (conhecidos como “campos de
concentração”) na Europa Oriental, onde trabalhariam até a morte ou sucumbiriam
asfixiados nas câmaras de gás. Seus corpos seriam queimados em grandes
crematórios operados pelos próprios judeus. Trens lotados de judeus chegavam da
Europa ocupada pelo exércitos do Eixo e seguiam viagem em direção aos campos de
concentração de Auschwitz, Belzec, Chelmno, entre outros. Milhares de judeus
morreram em “Marchas da Morte”, durante as quais seguiam agrupados, famintos,
esquálidos, enregelados, e isso se deu apesar do Exército Soviético ter
avançado para o oeste em 1944-1945.
A fome que assolou a Ucrânia, então parte da União Soviética, em 1921,
atesta também a tendência do homem à tirania. A fome nessa terra não decorreu
apenas da seca. Embora fossem adversas as condições climáticas, elas não
chegavam a ter um potencial catastrófico. O que foi, de fato, determinante para
que se contabilizassem 5 milhões de mortos pela fome foram as medidas adotadas
pelo governo soviético. O governo soviético confiscou a lavoura. Ao lavrador
era deixado muito menos do que o necessário para a sua subsistência. O governo
apossou-se da comida dos lavradores para vendê-la. Vladimir Lenin e seu
sucessor Josef Stalin não apenas estavam cientes disso, como também encorajaram
tal saque, sendo ambos indiferentes às consequências do seu abuso de poder.
Como ocorre em todas as
situações de fome prolongada, as doenças foram a segunda causa de morte.
Pessoas em inanição ficam propensas a doenças que se alastram rapidamente, e foi isto o que acorreu na Ucrânia. Tifo e
cólera foram responsáveis por centenas de milhares de mortes. Não havia
remédios disponíveis, e, mesmo se houvesse, curar alguém que estava morrendo de
fome não significava grande alívio. (Spignesi, 2005, p. 58).
Em situações de fome prolongada, mesmo um animal ufano de sua
“civilidade”, torna comum a prática de canibalismo. Nesses momentos de extrema
aflição, o instinto de sobrevivência escancara a fragilidade da
superficialidade dos formalismos. Filhos eram devorados pelos pais; cadáveres
eram retalhados e seus pedaços consumidos por lavradores famintos. A fome na
Ucrânia findou no outono de 1923 e, mesmo que as condições tenham melhorado
significativamente, outra fome teria início em poucos meses no ano de 1932.
Devemos cuidar-nos de ver no homem tendências
exclusivamente assassinas e demoníacas, da mesma maneira que devemos resistir à
tentação de ver a natureza como o Paraíso Bíblico antes do pecado de Eva. Como
nos alerta Holloway, “a natureza é impiedosa (...). Pode ser esplêndida em sua
ferocidade implacável, mas também é assombrosa em sua indiferença” (ibid., p.
63). Convém atentar para o que nos escreve o autor, no passo abaixo:
A natureza é impiedosa
(...). Pode ser esplêndida em sua ferocidade implacável, mas também é
assombrosa em sua indiferença. Metade dos filhotes de urso-polar morre no
primeiro ano de vida. O Kalahari mata os elefantes jovens que tentam
atravessá-lo à procura de água. E por todo o reino animal os predadores
emboscam as vítimas antes de se lançarem ao ataque paralisante. Em meio à vida,
estamos na morte. É a crueldade da ordem natural que fortalece o ateu contra
qualquer ideia da existência de um criador benevolente. Isso foi algo que
Darwin observou, embora ele mesmo tenha sido benevolente demais ao presumir o
papel que descreveu: “Que livro um capelão dos infernos escreveria sobre as
obras desajeitadas, equivocadas, baixas e terrivelmente cruéis da natureza”. O
fato é que a natureza é uma vasta cadeia alimentar, e matar é tão intrínseco a
sua finalidade quanto o sexo. A luta é tão fundamental quanto a trepada. A vida
que engatinhava há bilhões de anos no mar de substâncias químicas luta não só
para se reproduzir, mas para se manter, principalmente caçando outras
criaturas. (ibid., p. 63).
Não resta dúvida de que a natureza é cruel, que é
indiferente à sorte dos indivíduos, cujas vidas podem ser sacrificadas desde
que seja garantida a sobrevivência da espécie. A natureza abriga um arsenal de
patógenos perigosos e até mortais na densidade de suas matas, nas entranhas dos
corpos dos animais. Mas a natureza também dotou os organismos de um arsenal de
capacidades defensivas contra a morte: velocidade, odor, disfarce, etc. Assim,
a natureza, ao menos, dá uma chance a todos os animais de sobreviver na luta
pela vida. Mas somente nós, seres humanos, podemos ser perversos, a ponto de
lhes negar qualquer chance de sobrevivência, sempre que os capturamos, os
escravizamos, os martirizamos e os matamos aos milhares. Assim, pondera
Holloway “o domínio que assumimos sobre o reino animal tem sido catastrófico
para nós mesmos, bem como para eles”. E a pandemia atual da Covid-19, que já
matou, no momento em que escrevo, mais de 2 milhões de pessoas no mundo, e mais
de 360 mil só no Brasil, ilustra tragicamente a consequência de nossas
inveteradas e perniciosas ações sobre a ordem natural. Na verdade, muitas
doenças que nos acometem resultam de nossas interações, quer vantajosas para a
nossa espécie (a domesticação de animais, por exemplo), quer predatórias com
vistas ao lucro. Por exemplo, a Mycobacterium
bovis infecta o gado e os humanos. Ela é semelhante a Mycobacterium tuberculosis, causadora da tuberculose. A M. bovis passou a infestar o animal
humano quando os europeus passaram a ingerir leite contaminado. Como ensina
Ujvari,
(...) Acreditávamos que
a bactéria do gado originara a tuberculose humana na época da domesticação do
animal. Sua bactéria eliminada nas secreções e líquidos teria atingido os
criadores e, através de mutações, se transformado na bactéria responsável pela
tuberculose humana. Porém, gerações passada presenciaram sua agressão,
principalmente os europeus, entre os séculos XVIII e XIX. O gado eliminava a
bactéria em suas secreções, líquidos e no leite. O transporte de gado levava a
doença para outros rebanhos distantes e em outros continentes. Os europeus
ingeriam leite contaminado pela M. bovis.
A bactéria entrava no organismo humano, proliferava-se e ocasionava a
tuberculose (...). (Ujvari, 2020a, p. 31).
Em que pese o fato de que as interferências do animal humano no
equilíbrio do ecossistema acarretam, com frequência, moléstias que podem, além
de lhe causar sofrimento, matá-lo, o homem evoluiu com suas pragas, e é
impossível imaginar um mundo onde os homens não interajam com outros animais.
Os microrganismos patogênicos são parte, como nós, da ordem natural; eles se acham
nos organismos de muitas espécies. O que não podemos aceitar é que o homem
interfira negativamente no equilíbrio da ordem natural. E essa interferência
negativa não precisa ser através de práticas predatórias e assassinas. O homem,
por exemplo, pode ocupar regiões habitadas por certos animais, como morcegos,
fixando feira livre. Dada a proximidade com esses animais, a possibilidade de
eles defecarem nos alimentos comercializados, contaminando-os, não pode ser
subestimada.
Sabemos hoje que os chimpanzés, e um quinto dos
animais dentre mais de trinta espécies de primatas, são hospedeiros do vírus
SIV (Vírus da Imunodeficiência Símia). O HIV, ou Vírus da Imunodeficiência
Humana, pertencente à mesma linhagem do SIV, passou a infectar o ser humano já
na década de 1930 por causa da caça a esses animais, tão comum nos períodos de
guerra e nas épocas de fome. A caça aos chimpanzés possibilitou que o HIV
saltasse desses primatas para os humanos. A caça aos chimpanzés propiciava
ocasiões para escoriações e ferimentos nos caçadores. Foi através desses
ferimentos que o HIV passou a infectar o ser humano.
(...) caçadores
adentravam a mata em busca de sua carne [dos chimpanzés]. Mortos, seus corpos
eram destrinchados pelos facões, e seus pedaços, ensacados pelos homens
armados. A jornada desses caçadores terminava nos mercados dos vilarejos
próximos. Retornavam ensanguentados pela caça. Manipulavam a carne
ensanguentada dos chimpanzés nos mercados. Os consumidores levavam a carne para
as suas residências e também entravam em contato com seu sangue. Os africanos
não sabiam da existência de um vírus presente nesses chimpanzés de Camarões e
Gabão. (op.cit., p. 10).
É oportuno, a esta altura, já que me referi aos
chimpanzés, fazer ver que eles também podem ter muita propensão para a
violência. E me refiro a uma violência, aparentemente, gratuita e com excesso
de crueldade de um ritual macabro muito semelhante aos rituais humanos de
crueldade macabra. Em seu livro Os anjos
e demônios da nossa natureza (2013), Steven Pinker, embora empenhado em
sustentar a tese de que “a violência vem diminuindo desde um passado distante”
(p. 19), não se esquiva de nos oferecer um relato da fúria assassina de um
grupo de chimpanzés.
Jane Goodall, a
primatóloga que, pela primeira vez observou chimpanzés na natureza por longos
períodos, acabou fazendo uma descoberta estarrecedora. Quando um grupo de
chimpanzés machos encontra um grupo menor ou um indivíduo solitário, os animais
não gritam nem se eriçam: aproveitam a vantagem de ser mais numerosos. Se o
estranho for uma fêmea adolescente sexualmente receptiva, eles podem catar seus
pelos e tentar se acasalar. Se ela carregar um filhote, o mais das vezes eles a
atacam e comem o bebê. E se encontram um macho solitário, ou isolado de um
grupo pequeno, perseguem-no com selvageria assassina. Dois atacantes imobilizam
a vítima e os demais o espancam, arrancam seus dedos e genitália a mordidas,
dilaceram-lhe a carne, torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a
traqueia. Em uma comunidade, os chimpanzés escolheram para matar cada macho de
uma comunidade vizinha, um evento que, se ocorresse entre os seres humanos,
chamaríamos de genocídio. Muitos dos ataques não são desencadeados por
encontros fortuitos; resultam de patrulhamento de fronteira nos quais um grupo
de macho sorrateiramente procura e ataca qualquer macho solitário que avistar.
Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um
rival e uma fêmea, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de
uma fêmea mais fraca” (ibid., p. 75-76).
Creio que qualquer Sapien reconhece na fúria assassina dos chimpanzés as
mesmas tendências para a crueldade que se encontram nos psicopatas e serial-killers, embora também os
reconheçamos como animais bastante inteligentes. Isso parece sugerir um fato
que o senso comum sistemtaticamente ignora: o aumento da inteligência, nas
espécies, não é proporcional à redução da capacidade para a crueldade. Em
outras palavras, embora as pessoas tendam a acreditar que a violência selvagem,
a capacidade para matança sejam incompatíveis com a racionalidade, com modos de
vida pautados pela razão, a despeito do número grande de evidências que refutam
essa crença, o desenvolvimento da racionalidade, por si mesmo, não se faz
acompanhar de uma redução significativa de nossa propensão a ser menos cruel e
de provocar menos violência, embora o processo civilizatório tenha contribuído
para reprimir as pulsões que nos fazem ser naturalmente muito agressivos e
violentos. Mas nunca é demais lembrar que, historicamente, a razão foi
empregada para a realização de genocídios, para a construção da bomba atômica
lançada sobre a cidade de Hiroshima, matando aproximadamente 80 mil pessoas,
com um poder tão grande de destruição que 75% dos edifícios da cidade ficaram
em ruínas. A razão pode ser empregada para planejar assassinatos. Três dias
depois do lançamento da primeira bomba atômica sobre Hiroshima, em 6 de agosto
de 1945, outra bomba, chamada “Little Boy”, atingiu o centro industrial de
Nagasaki e causou a morte de 40.000 pessoas, e quase metade da cidade foi
destruída.
A crueldade do real expressa-se também na prática inveterada dos homens
de deflagrar guerras. A guerra desempenhou um papel fundamental no progresso da
humanidade, influenciando mudanças políticas, econômicas e sociais. É um fato
irrecusável que a história da humanidade e a história da guerra encontram-se
inextricavelmente ligados. Temos registros documentais e arqueológicos que nos
permitem dizer que o confronto organizado entre guerreiros remontam ao sexto ou
sétimo milênio antes de Cristo. A guerra é, portanto, inerente à condição
humana, mas, nos dias atuais, em que dispomos de uma tecnologia militar que
engendra os meios de levar toda a nossa espécie à aniquilação, é razoável que
nosso ímpeto para a guerra seja controlado. Em todos os períodos de sua
história evolutiva, o homem se demonstrou ser um animal propenso à guerra. Mas
a guerra pré-histórica era limitada em natureza e regulada por rituais. Quando
disputas não podiam ser resolvidas sem o recurso à violência, realizavam-se
pequenos combates e lutas, que se limitavam a uma série de confrontos
individuais ligeiros, sem maiores impactos. As armas eram as mesmas usadas na
caça: faca, machados de pedra e lanças. As mortes eram poucas e circunscritas
aos jovens do sexo masculino – biológica e economicamente eram eles os membros
mais dispensáveis da tribo. As razões que levaram os homens pré-históricos a
guerrearem são objeto de controvérsia, embora a pilhagem e a promoção do
prestígio bélico estejam entre os motivos prováveis. O estilo de vida da Idade
da Pedra sugere que a guerra foi se tornando mais organizada à medida que
aumentava a concorrência por recursos escassos como a água ou as pastagens.
Assim, com as sociedades se tornando mais numerosas e mais distribuídas pelo
globo terrestre, não surpreende que aumente a possibilidade de conflitos
competitivos.
Homens e chimpanzés são bastante aparentados não só
porque compartilham mais de 99% de seus genes, como também porque são
igualmente capazes de exibir comportamentos extremamente violentos e
assassinos. Mas a crueldade assassina desses mamíferos superiores é um caso
máximo do egoísmo, oportunismo e hostilidade que constituem o modus operandi da vida em estado natural
(embora eu não ignore que haja relações de cooperação entre os organismos).
Segundo Dawkins, cada organismo vivo é uma máquina de sobrevivência cujo
interesse fundamental é garantir o futuro de seus genes. Se uma máquina de
sobrevivência se apresenta como obstáculo para outra, as chances de se
agredirem mutuamente são grandes. Isso acontece porque as duas estão
interessadas em assegurar a perpetuação de seus genes e não medirão esforços
para garanti-la. Segundo Dawkins (2007, p. 138-139), “a seleção natural
favorece os genes que programam suas máquinas de sobrevivência para que elas
façam o melhor uso possível do seu meio ambiente – o que inclui fazer o melhor
uso possível de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como
de espécies diferentes”.
2.2.1. O gene letal
Já aludi ao fato de que, num mundo cuja ordem é de
inteira responsabilidade do acaso, é possível que alguns organismos, ou melhor,
milhares deles abriguem um “gene letal”. O gene é um replicador quase imortal,
já que subsiste mesmo depois da morte de seu possuidor. Genes são replicadores
que existem sob a forma de muitas cópias de si mesmo. É consabido que os seres
vivos têm na morte seu destino inexorável. Todavia, para que a morte tenha um
impacto seletivo sobre o mundo, necessário é que cada ser exista num grande
número de cópias e que algumas formas de vida sejam potencialmente capazes de
sobreviver como cópias, ao longo de um período significativo de tempo
evolutivo. Um dos aspectos trágicos da vida é que podemos ser geneticamente
pré-dispostos a desenvolver uma doença fatal. Além de podermos possuir, em
nossa estrutura genética, um gene letal, podemos também nascer com um gene
semiletal, que “provoca um efeito debilitante que aumenta a probabilidade de o
seu possuidor morrer por outras causas”. (Dawkins, op. cit., p. 97). Genes
letais tendem a ser removidos do pool de
genes, ou seja, do conjunto de alelos (genes rivais) que podem ser
encontrados no material genético de indivíduos de uma determinada espécie ou
população. Cabe aqui observar, in passant,
que, para Dawkins, a seleção natural opera no nível dos genes, de modo que a
evolução se define, para ele, como processo
pelo qual alguns genes se tornam mais numerosos; e outros, menos numerosos no
pool de genes. Um gene letal cujos
efeitos sejam tardios pode lograr êxito no pool
gênico, desde que tais efeitos não se manifestem antes que o corpo tenha a
oportunidade de deixar descendentes. Do que foi exposto até aqui, segue-se que
admitir a crueldade da realidade, ou seja, encarar a realidade em toda a sua
crueza, sem distorcê-la, sem mascará-la com ilusões metafísicas, é recusar-se a
ver no aparecimento de um câncer no corpo da vovó um sinal da insondável
vontade de Deus. Aquiescer à crueldade do real supõe a aceitação do fato de que
um gene que provoca o desenvolvimento de um câncer num corpo com idade avançada
poderia ser transmitido a inúmeros descendentes, porquanto os indivíduos que o
possuíssem se reproduziriam antes de vir a desenvolver a doença. Por outro
lado, aquiescer à crueldade do real significa aceitar o fato de que um gene que
levasse ao desenvolvimento de um câncer num corpo jovem não seria transmitido a
muitos descendentes (o que não é o mesmo que dizer que não seria transmitido!),
e se o câncer acometesse o corpo de uma criança, esse gene potencialmente letal
não seria herdado por nenhum descendente.
Segundo Dawkins, o aspecto que deve ser considerado nessa teoria é que
“(...) a seleção irá favorecer os genes que tiverem o efeito de adiar a ação de
outros genes que sejam letais e também aqueles que tiverem o efeito de precipitar
a ação dos genes bons”. (op.cit., p. 98).
2.2.2 O terremoto em
Antioquia
A crueldade do real exige-nos também a admissão de
que o planeta que nos abriga pode ser muito hostil e terrível para com seus
habitantes. As falhas entre as placas tectônicas podem levá-las a se chocarem,
causando, muitas vezes, bastante destruição. O terremoto que destruiu Antioquia
em 526 AEC matou 250.000 pessoas, o que corresponde exatamente à metade da
população da cidade. Antioquia era uma próspera metrópole cultural e religiosa
do mundo antigo, compondo com Alexandria, no Egito, e com Roma, na Itália, o
triunvirato do início da Era Cristã.
O Apóstolo Paulo chegou à Síria por volta de 38 EC, e o cristianismo
triunfou em Antioquia. Entretanto, nem o triunfo do cristianismo, instituído
pela crença na figura salvífica de Cristo, conseguiu desencorajar o terremoto,
que atingiu 7 graus de magnitude por volta das seis horas da manhã. Quase todas
as construções em Antioquia desmoronaram com o tremor, esmagando
aproximadamente 250 mil pessoas. Incêndios começaram quase imediatamente,
queimando ainda vivos aqueles que se encontravam presos aos escombros. Somente
a Grande Igreja não ruiu, o que animou ainda mais nos habitantes a credulidade
tão comum naquela época quanto em nossa. Muitos sobreviventes viram nisso um
sinal de que Deus havia triunfado sobre o poder devastador do terremoto. Mas o
caráter cruel e inapelável do real costuma ser também tragicômico e
ironicamente mordaz. O consolo e o acalento duraram apenas dois dias, após os quais
a Grande Igreja viria a arder em chamas e desmoronar completamente. A crueldade
do real ainda guardava mais um de seus eflúvios. As grandes catástrofes
carreiam também as ameaças de aproveitadores. Antioquia foi invadida por um
bando de ladrões e saqueadores que vasculhavam as ruínas, reviravam entulho,
ávidos de encontrar qualquer coisa de valor, sem qualquer respeito pelos
moribundos e feridos.
Os sobreviventes decidiram reconstruir a cidade,
determinados a não permitir que as consequências catastróficas do terremoto os
fizessem desanimar do árduo trabalho; afinal, era preciso não esquecer a cidadã
tão adorada em que viviam. Por dois anos, eles trabalharam incansavelmente,
reconstruindo casas, removendo o entulho e planejando novas igrejas. Mas...
O destino (bem como uma
falha geológica sob a superfície da Síria) (...) tinha outros planos para a
população de Antioquia. Dois anos após o tremor devastador de 526, outro
terremoto a atingiu; não foi tão severo quanto o anterior, mas, mesmo assim,
devastou todas as construções e custou a vida de cinco mil pessoas. (Spignesi,
2005, p. 101).
Antioquia deixava a história para se tornar apenas mais um capítulo da
história. A forma como essa cidade se despediu da história é apenas um dos
milhares de milhões de exemplos de quão insignificante e frágil é a obra do
animal humano em face do poder implacável da crueldade do real. É também um
exemplo apenas dentre centenas que poderíamos colher para demonstrar a
inapelável indiferença do Universo para com esses macacos nus com mania de
grandeza, que foram educados para se tornarem ufanos de seus feitos tanto
quanto ludibriados pelas ficções de seu imaginário coletivamente constituído.
Ao meditar sobre a crueldade do real, somos confrontados com uma série
de questões que reclamam um exame, que exigem de nós reflexão. É o que tentarei
fazer na segunda parte deste texto. São estas as questões que me parece
pertinente enfrentar: Por que o animal humano se contenta em arrastar uma vida
trivial? Por que vive costumeiramente no autoengano? Por que recusam
costumeiramente o caráter cruel do real? Esforçar-me-ei por examinar, com algum
vagar, estas questões doravante.
PARTE 2
3. A crueldade suportável
Em seu artigo A Suportável
Realidade (2001), Edgar Morin já, de início, aquiesce à visão de que a
crueldade do real é evidente. Sua abordagem do problema, no entanto, é
circunscrito ao modo como esse caráter cruel condiciona a existência humana. A
crueldade do real torna a condição humana bastante precária, faz dela um
problema insolúvel e pesado para este frágil animal desassossegado e fadado à
angústia.
A realidade é cruel para o ser humano. Lançado
sobre a terra, ignorante de seu destino, submetido à morte, não podendo escapar
aos lutos, penas, servidões, maldades propriamente humanas, ela é tanto mais
cruel quanto o ser humano seja plenamente consciente e plenamente sensível. Sua
extrema emotividade, excitabilidade, irritabilidade o tornam vulnerável a todos
os golpes do destino. Sua aptidão ao sofrimento é comparável à sua aptidão ao
prazer, sua aptidão à tristeza é inseparável de sua aptidão à alegria, e toda
perda de felicidade determina sua infelicidade. Ele vive cercado de ameaças
naturais e humanas. Os deuses, demônios, monstros que personificam seus medos
lhe inspiram um terror permanente. Ele é o joguete das guerras, das opressões,
e é, quase continuamente e quase por todas as partes, escravizado desde os
tempos históricos. Ele é o que de maneira nenhuma os animais são – malvado,
destruidor e sua crueldade faz parte da crueldade do mundo. Um número incrível
de sofrimentos nasce da incompreensão e do mal-entendido na relação com o outro
e sobretudo próximo” (p. 23-24).
No trecho supracitado, à descrição que Morin nos oferece da condição humana
se deve acrescentar, como ele mesmo o faz, a consciência que tem o homem da
morte. A consciência da morte dá ao homem saber seu destino fatal desde a
infância e ela expressa-se como “consciência da destruição absoluta de seu
único e precioso tesouro, seu Eu, e não menos terrível é a morte dos seres
queridos que fazem parte de seu ser”. (ibid.). Tudo torna a experiência do real
extremamente dolorosa e assustadora para o homem. Viver para ele é, assim,
estar entregue à crueldade do mundo, é estar condenado a lidar com os aspectos
cruéis e horríveis do real. “Lembremos T.S. Eliot – escreve Morin – a
humanidade não pode suportar muito a realidade”. (p. 24). De fato, todos nós
não suportamos nos defrontar, por longo tempo, com a crueldade do real. Temos
necessidade de assumir certos compromissos, certos pactos. Estes compromissos
são estabelecidos pela criação do mito, que nos permite encontrar algum
conforto e consolação sobrenatural; ou ainda pela mobilização do imaginário
metafísico-religioso, para nos proteger e nutrir a alma de esperança. E mesmo
os céticos não fogem ao estabelecimento de compromissos, quando dispõem da
estética e da poesia, por exemplo, para viver plenamente a realidade,
conseguindo imaginariamente uma vitória sobre o seu horror.
Morin elenca alguns compromissos ou pactos com os
quais os seres humanos buscam tornar suportável a crueldade do real. Detenho-me
aqui a considerá-los. Em primeiro lugar, temos um compromisso neurótico “no
sentido de que uma neurose é um compromisso, entre o espírito e o real, que
suscita condutas e ritos atenuantes e exorcizantes da crueldade do real”.
(ibid.). Assim é que o ser humano busca meios de compensação da crueldade e das
decepções do real, entregando-se ao amor, às fantasias e aos mitos. O amor é,
sem dúvida, “uma incrível força da vida que transfigura a vida”. (p. 26). Só o
amor pode nos fazer amar a vida e aceitar o destino. Como escreve Morin, “o
amor realiza plenamente nosso ser biológico e nosso ser psíquico. O amor
suscita uma quase divinização exaltada do ser de carne, sangue e alma”
(ibid.). As fantasias, por seu turno,
nos aliviam do peso e da coação do real, enquanto o mito nos fortalece
mascarando a incompreensibilidade do nosso destino e “preenchendo o vazio da
morte”. Como diz Morin, “Os mitos religiosos da salvação abrandam nosso destino
real, nossa natureza mortal, nossa solidão, nossa perdição”. (ibid.).
É verdade que, em certo sentido, as Religiões, a Mitologia e a Magia
estorvaram enormemente a história humana e influenciaram negativamente no seu
destino. A elas devemos uma parte dos incontáveis excessos causados pelo homo demens. Elas sufocaram, com
frequência, as possibilidade de realização do pensamento autônomo. Mas também
se apresentaram como fonte de grande segurança e consolação, aliviando um pouco
a angústia existencial do ser humano e matizando suas tragédias. Como diz
Morin, “se o neurótico é patológico, então esse patológico é normal”. (p. 25).
Outro pacto feito pelo homem para suportar a crueldade do real é o do
tipo surrealista. O pacto surrealista se expressa no jogo e na poesia. Acerca do
papel do jogo na tentativa de o homem tornar suportável a realidade, Morin nos
diz o seguinte:
O jogo é um engajamento psíquico, uma inserção física, uma atividade
prática que nos coloca frente a frente com o mundo real para o desafiar e o
dominar mas de maneira não perigosa nem maligna. O jogo nos lança no conflito e
na batalha, mas fora das consequências cruéis do verdadeiro conflito e da
verdadeira batalha. O jogador permanece na consciência do jogo, no seio do
qual, sem o jogo, seria ofensa, crueldade e tragédia. (ibid. , p. 25).
Mas é a poesia, segundo Morin, que nos faz viver
conciliados profundamente com o real. Ela é que realiza um pacto sublime com o
real. Porque é ela que torna possível a transfiguração do real, sem, no
entanto, negá-lo. Segundo o autor, “ a poesia vivida se situa no surreal (...),
ela se exalta em êxtase, ato absoluto de comunhão, de perda e de realização
definitiva do real, de perda e de aperfeiçoamento de si”. (p. 26). Essa
experiência é verdadeira e me é familiar. Ainda segundo Morin, o pacto que a
poesia permite estabelecer com o real “adquire um caráter mágico notadamente no
amor” (ibid.).
Outra forma comum pela qual todos nós buscamos
suportar a crueldade do real é a imersão
na futilidade da vida. Aí encontramos aquelas atividades cotidianas que nos
distraem, que nos aliviam da pressão das incumbências e nos oferecem prazeres
que formam a costura entre nossa psique e a vida. Imersos na banalidade do
cotidiano, buscamos compensar o caráter cruel do real entregando-nos a “mil
pequenos prazeres da vida, reuniões de amigos e festas, sorrisos e risos de
convivência, mil pequenos prazeres gastronômicos e noológicos” (ibid.). É
quando nos abandonamos a essa imersão que ousamos dizer que “a vida vale a pena
ser vivida”. E é dessa imersão, da qual tanto necessitamos e da qual muitos de
nós estamos forçosamente privados por força da pandemia, que se nutre a nossa
vida comum para que ela possa se robustecer. O animal humano precisa dessa
imersão na banalidade da vida para não enlouquecer, para não se enfraquecer,
adoecer de angústia e tristeza, e morrer de tristeza e solidão.
A estética, por sua vez, permite-nos, segundo
Morin, encarar aquilo que nos aterroriza e nos horroriza: “permite contemplar a
fatalidade, a morte atroz, a morte injusta, a morte odiosa, a morte-catástrofe,
a morte de si mesmo, a morte-perda dos seres queridos” (ibid.). A estética nos
possibilita suportar o insuportável: “ela nos purifica provisoriamente,
permitindo-nos exorcizar o mal, o sofrimento e a morte (...)”. Morin nos chama
atenção para o laço entre estética e compaixão. Ele crê que a experiência
estética nos torna melhores, mais sensíveis e compreensíveis. Através dela, o
nosso sentimento de compaixão é desperto e cultivado. Assim, “a estética opera
uma colaboração simultânea com o pensamento mitológico e com o pensamento
racional, ultrapassando um e outro no seu surrealismo”. (p. 27). Segundo o
autor, a emoção estética não oblitera a consciência racional, que continua
desperta, mesmo enquanto o espírito está mergulhado na emoção, na participação
no imaginário e no jogo. Na estética, confluem um para o outro o pensamento
mítico e o racional, o real e o imaginário. A estética cria a beleza, isto é, a
alegria. O que é estético ou foi estetizado é fonte para nós de prazer,
bem-estar, felicidade, mas, ao mesmo tempo, de tristeza, de pesar, de
comiseração. A estética desperta nossa consciência, anima-a. Como diz Morin,
“não apenas ela nos oferece a possibilidade de ver as belezas da existência,
não apenas cria beleza, isto é alegria (uma coisa bela é uma alegria para
sempre), ela nos ajuda a suportar o peso insuportável da realidade e afronta a
crueldade do mundo”. (p. 27).
Morin também observa que os homens se dedicam à
manutenção de sua existência pela cooperação realista, ou seja, “pela
cooperação entre a mentalidade racional-lógico-empírica-técnica, sob o domínio
das necessidades objetivas, e a mentalidade
analógico-simbólico-mitológico-mágica, sob o domínio das necessidades
subjetivas” (ibid.). Em todas as sociedades, encontramos a cooperação entre
orações, cerimônias, ritos, crenças sobrenaturais e superstições e as práticas
da técnica e da economia. Destarte, “duas mentalidades se entreacompanham e se
entreconfrontam nas sociedades arcaicas”. (ibid.). Consoante Morin, ritos e
mitos, nas sociedades arcaicas, embora figurem em todos os momentos da vida,
nunca impediram as operações técnicas, práticas e econômicas.
No interior das esferas religiosas, constituem-se ciências como a
astronomia, esta não estando separada da astrologia. A disjunção se fará apenas
no século XVII na civilização ocidental. No interior das grandes teologias,
existiu sempre um misto de pensamento mitológico e pensamento racional. Assim,
o tomismo medieval incorporou em seu seio o racionalismo aristotélico. (ibid.).
Decerto, é forçoso reconhecer que razão e mito
cooperam. Há entre eles uma relação paradoxal de simbiose. Morin sustenta que,
embora a razão continue a efetuar elucidações, ela propaga o mito quando se
pretende onisciente. O mito, por seu turno, se submete ao domínio da razão.
Morin acredita haver uma cooperação invisível e profunda entre mito e
racionalidade para permitir ao homem viver com coragem e confiança.
Faz-se mister não nos esquivarmos do reconhecimento
de que, em nossas sociedades cada vez mais científicas, mais técnicas, mais
materialistas, onde triunfou o homo
sapiens faber, economicus, ainda persiste, com exuberância e força, a
religiosidade, as práticas comunitárias de fé, e o livro mestre continua sendo
a Bíblia. E, a despeito do avanço da secularização, creio que, sobretudo aqui
no Brasil, a religião, particularmente o cristianismo evangélico, continuará,
por um longo tempo, sendo um fator decisivo de coesão social, de uniformização
ideológica e de influência política. Fora ou dentro do Brasil, parece lícito
dizer que “na vida cotidiana de cada um, coexistem, sucedem-se, misturam-se
crenças, superstições, racionalidade, tecnicidade, ilusões, magias”.(p. 28).
Morin observa que a laicização acarretou o desenvolvimento de uma religião da
nação e de uma religião do amor, “que acompanha o desenvolvimento da
individualidade moderna”. (ibid.).
Os seres humanos também se servem de aspirações
políticas, investem seu vigor e paixões na promoção de doutrinas
filosófico-políticas e ideológicas e se dedicam a realizar na práxis aquilo que elas prometem. Assim,
o comunismo do século XX foi, para Morin, no que estou de acordo, “uma religião
da salvação moderna”. (p. 29). E acrescenta: “tudo isso trouxe e traz confiança,
esperança e, às vezes, segurança, alegrias e felicidades que conseguem mascarar
e, às vezes, afastar parcialmente a crueldade da realidade”. (ibid.).
Depreendamos de tudo o que se expôs nesta parte
final deste texto, que ora chega a termo, as conclusões sobre as quais convém
ao leitor meditar:
1ª) Em face da
crueldade do real, o homem pode suportar sua angústia sublimando-a na paixão do
jogo, nas inúmeras participações no amor, nos mitos, nos ritos, nas religiões;
pode ainda transfigurá-la na poesia, nos romances, filmes, mas jamais poderá se
curar dela verdadeiramente;
2ª) É forçoso
reconhecer, com Morin, que “não podemos escapar à dialógica sapiens/demens a partir da qual se tece
a condição humana”. (p. 30). Logo, o destino humano se sustenta e se nutre no
jogo dialógico – e poderíamos dizer “agonístico” – entre
racionalidade/afetividade, prosa/poesia;
3ª) Magia e Ciência
sempre cooperam para influenciar e tornar suportável a condição humana, porque,
afinal, elas se expressam na forma de duas vontades de controle sobre a
realidade. O homem sempre se move pela vontade contínua de controlar a
realidade para torná-la suportável. Isso é assim hoje, foi assim no passado e
será assim no futuro. Não é escusável lembrar que a Ciência se desenvolveu na
modernidade europeia como um meio para nos tornar “senhores e possuidores da
natureza”. Nos séculos XIX e XX, ela se aliou à técnica e adquiriu poderes
espantosos!
Espero que o leitor seja complacente com os percursos
analíticos que escolhi traçar. Naturalmente, “a crueldade do real” é um
fenômeno inesgotável e multifacetado. Os “rostos da crueldade” não se exaurem
naqueles que descrevi, evidentemente. Creio, porém, que o objetivo basilar e
tácito desta exposição foi contemplado e atingido: fazer a vida do leitor coabitar com a vida da
Lucidez.
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.
[1]
Refiro-me aos pactos de que nos fala Morin, em seu artigo A Suportável Realidade (2001), que será objeto de análise neste
texto.
[2]
O termo Australopitecíneo, proveniente
de uma classificação antiga, refere-se a qualquer espécie pertencente ao gênero
Australopithecus e Parathropus. Estes últimos compreendem
um gênero da família dos hominídeos, da
qual fazem parte os humanos.