As marcas da enunciação
Uma proposta de análise em um texto filosófico
Trabalho desenvolvido no curso de filosofia da UERJ
2014
Em seu Elementos para a leitura dos textos filosóficos (2001), sem embargo do reconhecimento dos problemas implicados por um método de leitura, Cossuta busca ultrapassá-los, propondo uma via de acesso à aprendizagem da leitura que, segundo ele, “só pode ser filosófica” (p.4), na medida em que não escusa a reflexão. O pressuposto segundo o qual é possível ensinar a ler atravessa todas as reflexões que se ocupam dos mecanismos de produção textual de sentidos na Linguística moderna. E no horizonte dessas reflexões a questão do método se impõe desde o limiar. Os professores percebem o anseio de seus alunos por um caminho que lhes permitam ler melhor; não raro, eles esperam que os professores lhes ofereçam ferramentas pelas quais eles possam interpretar e compreender os textos que leem com mais eficiência e profundidade. Ler com mais eficiência e profundidade significa ser capaz de não só penetrar as camadas subjacentes de sentidos de um texto, mas também de ir além do texto-alvo. É nesse ir além que reside a competência intertextual do leitor: o leitor eficiente é aquele que não vê o texto como mera superfície de palavras, como uma complexa estrutura sintagmática encerrada em si mesma, mas aquele que reconhece relações entre o texto-alvo e outros textos, quer porque esses textos estejam, de algum modo, presentes no texto-alvo, quer porque ele, leitor, é capaz de recuperá-los em sua memória. Eficiência e profundidade envolvem, portanto, ultrapassamento da linearidade textual, abertura sociointeracional para além do texto-alvo. A eficiência em leitura se mede pela capacidade de o leitor ultrapassar os domínios da horizontalidade, verticalidade e superficialidade do texto.
2014
1.
Introdução
Neste trabalho, debruçamo-nos sobre a Introdução e a Primeira
Parte doTratado da natureza humana (2009), de David Hume, com
vistas a propor uma análise que contemple a forma como a função-autor organiza
o universo discursivo – organização esta que, por razões metodológicas, se
desdobrará nos seguintes momentos: o modo como se instanciam as marcas
enunciativas da categoria de pessoa relativamente à própria função-autor e o
modo como se fixa o ‘lugar’ dos sujeitos discursivos, entre os quais está o
leitor[1].
Este trabalho se divide, além desta seção introdutória, nas quatro seções
subsequentes: a primeira das quais se destina à exposição dos pressupostos
teóricos em que se assentará nossa análise; na segunda, daremos a saber a
proposta de Cossuta (2001), com base na qual analisaremos o texto de Hume. A
terceira seção é destinada ao desenvolvimento da análise, e, finalmente, a
quarta seção abriga as considerações finais de nosso trabalho.
Nossa análise – vale
insistir - estará calcada sobre a proposta de Cossuta (2001) e orientar-se-á
pelas três dimensões discursivas apresentadas pelo autor, quais sejam, função-autor,
endereçamento e não-pessoa.[2]
2.
Pressupostos teóricos
Todas as reflexões
desenvolvidas neste trabalho se esteiam no pressuposto segundo o qual a
interação social por meio do uso da língua constitui uma atividade
fundamentalmente argumentativa. Por conseguinte, convém atentar para o que se
segue:
Como ser dotado de razão e de vontade, o homem,
constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por
outro lado, por meio do discurso –ação verbal dotada de intencionalidade –
tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe
determinadas opiniões (Koch, 2004, p. 17, grifo nosso).
No excerto referido,
destacou-se o fragmento em negrito, com vistas a ventilar a questão do
significado do conceito de discurso, com o qual se alinhará nossa
análise. Koch, como se vê, define o discurso como uma “ação verbal dotada de
intecionalidade”. Num primeiro momento, vamos amplificar essa definição,
observando que o discurso orquestra diversas ações verbais dotadas de
intencionalidade. A ideia de ‘coerência’ entre essas ações verbais deve ser já
depreendida do conceito de “orquestrar”; por isso nós a silenciamos. À luz de
um ponto de vista pragmático, o discurso é, portanto, um arranjo de ações
verbais dotadas de intencionalidade. Num segundo momento – que nos interessará
para efeito de desenvolvimento de nossa análise – o discurso deve
ser entendido como um acontecimento sócio-histórico de produção de efeitos de
sentidos entre interlocutores. Destarte, na esteira dos estudos recobertos pela
designação Análise do Discurso(particularmente, a de vertente
francesa, da qual se destacam Pêcheux (2011), Charaudeau & Maingueneau
(2006) e Foucault (2008)), o discurso é considerado tendo em conta aspectos que
encontram existência no domínio social e da História. Dentre esses aspectos, se
destacam as ideologias.[4] No tocante à
natureza do discurso, Fernandes (2007, p. 20) mantém que “(...) os discursos
não são fixos, estão sempre se movendo e sofrem transformações, acompanham as
transformações sociais e políticas de toda natureza que integram a vida
social”.
Para atender aos nossos propósitos, vamo-nos cingir a assinalar as
seguintes considerações sobre o discurso:
1) A análise do discurso envolve interpretar os sujeitos falantes,
considerando a produção de sentidos como parte integrante de suas atividades
sociais;
2) Dizer que os sentidos são produzidos no e pelo discurso é dizer
que os sentidos das palavras não são fixos, não se localizam nelas, a despeito
de os dicionários nos fazerem crer no contrário;
3) Os sentidos são produzidos tendo em vista os lugares ocupados
pelos sujeitos em interação;
Em 3), explica-se o fato de uma mesma palavra assumir diferentes
sentidos de acordo com o lugar socioideológico daqueles que a empregam.
4) Ao considerar o discurso como acontecimento sócio-histórico de
produção de sentidos entre sujeitos discursivamente constituídos, toma-se a
língua como um componente materializado em textos, os quais são formas
linguístico-históricas (Fernandes, 2007, p. 22);
5) Como seja marcado por uma exterioridade sócio-histórica,
relativamente à língua e à fala, o discurso, enquanto objeto de investigação, é
‘lugar’ de conflitos próprios à existência de todas as dimensões da vida
social;
6) O discurso, não se confundindo nem com a língua, nem com a
fala, implica-as, no entanto, em sua existência material, porque se realiza
“por meio de uma materialidade linguística (verbal e/ou não-verbal), cuja
possibilidade firma-se em um ou vários sistemas (linguísticos e/ou semióticos)
estruturalmente elaborados” (ib.id., p. 23).
A análise de qualquer discurso, uma vez tendo a pretensão de
lograr a adequação e a consistência, em consonância com a concepção de discurso
a partir da qual se desenvolve, deve fazer referência às condições de
produção do discurso. As condições de produção do
discurso recobre o lugar sócio-histórico no qual se situam os sujeitos, e esse
lugar envolve o contexto e a situação, tomados como elementos socioideológicos
construídos na imaginação dos sujeitos sociais. Em outros termos, o contexto e
a situação não são espaços físicos, mas projeções socioideológicas do
imaginário socialmente construído, constructos sociocognitivos que encontram
lugar na imaginação dos sujeitos (Fernandes, 2007, p. 22).
As condições de produção recobrem, portanto, aspectos históricos,
sociais e ideológicos que, ou cercam o discurso, ou constituem a condição de
possibilidade da produção do discurso (id., p. 29).
Sem embargo do fato de que, como já dissemos, não estejamos
interessados em explorar a dimensão ideológica do discurso, à concepção de
discurso como acontecimento sócio-histórico se prende, de modo indissociável, a
noção deideologia , que pode ser definida como visão de
mundo de determinado grupo social em uma dada condição sócio-histórica.
Nesse sentido, em vez de assumirmos que certos discursos são ideológicos e
outros não, assume-se que a ideologia se materializa em todo discurso e que
linguagem e ideologia estão intrinsecamente articulados, de modo que não há
linguagem sem ideologia. Essa concepção de ideologia é mais abrangente e não
nos leva a comprometermo-nos, necessariamente, com a posição marxista, à luz da
qual a ideologia serviria para mascarar as reais condições de produção da
existência social, ou estaria a serviço da reprodução e legitimação do poder
das classes dominantes, etc. Assim, ela pode tanto servir à reprodução da
dominação social, política e econômica quanto à promoção da emancipação dos
sujeitos sociais.[5]
Importar-nos-á, decerto,
a noção de sujeito discursivo, cujas características são as
seguintes: 1) é uma instância discursiva, como tal, constituída na interação
social; 2) não é o senhor de seu dizer; 3) em sua voz, ecoa um conjunto de
outras vozes heterogêneas; 4) todo sujeito é, portanto, polifônico e é
constituído por uma heterogeneidade de discursos.
Tendo já elucidado a
concepção de discurso com a qual se alinha este trabalho e alguns conceitos que
a ela se articulam, faz-se mister dizer que a linguagem (ou a língua) é forma
de ação social. Ao produzir um discurso, que se materializa em textos
que visam à produção de efeitos ou reações sobre seus interlocutores, o homem
se apropria da língua, não só para veicular mensagens, mas também,
principalmente, para atuar ou interagir socialmente, instituindo-se, para
tanto, como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que
é, por sua vez, constitutivo do próprio EU. Essa constituição recíproca do
EU-TU se dá pelo jogo de representações e imagens que os interlocutores
constroem de si reciprocamente no interior do discurso (Koch, 2004, p. 19).
A argumentatividade
inscreve-se, portanto, no uso da língua, e a argumentação constitui uma
atividade que estrutura todo e qualquer discurso.[6] A argumentação visa
a provocar a “adesão dos espíritos” às teses apresentadas ao seu assentimento.
Dois atos básicos estão implicados na argumentação: o ato de convencer e
o ato de persuadir. Eles não precisam ser, necessariamente,
excludentes. Textos há em que um pode predominar sobre o outro. Também não se
pretende aqui assumir uma distinção rigorosa entre eles; seus limites nos
parecem fluidos. No entanto, distingui-los pode ajudar-nos a compreender
de que modo a argumentação está sendo orientada. Assim, o ato de
convencer destina-se predominantemente à razão, pela elaboração de um
raciocínio lógico, para cuja sustentação se recorre a provas objetivas.
Busca-se, nesse ato, atingir um “auditório universal”. Esse ato é dotado de um
caráter exclusivamente demonstrativo e atemporal (as conclusões decorrem
necessariamente das premissas).
Por outro lado, o ato de persuadir busca incidir
sobre a vontade, o sentimento dos interlocutores, mediante a elaboração de
argumentos plausíveis. Tem caráter ideológico, subjetivo, temporal e se destina
a um “auditório particular”.
2.2.
Os níveis de significação
Todo enunciado diz alguma coisa, isto é, representa um
estado-de-coisas[7]. O estado-de-coisas é uma construção linguística de uma
ocorrência do mundo – uma espécie de “cena” do mundo – no interior da qual se
distingue uma situação (que recobre ações, eventos, acontecimentos, processos)
e entidades nela envolvidas de algum modo. O estado-de-coisas é uma
representação de uma parcela da experiência de mundo. Assim, por exemplo, na
frase “Pedro namora Bianca”, temos a representação de uma situação em que uma
entidade X (Pedro) é o experienciador de um tipo de relacionamento (namorar) do
qual Bianca também é um experienciador. Quando um predicado, como “namorar”, o
qual designa propriedades ou relações, se aplica a um certo número de termos,
que designam entidades, obtém-se umapredicação. A predicação designa um
estado-de-coisas, o qual, por sua vez, é uma codificação linguística feita pelo
falante de uma dada situação.
Esse estado-de-coisas
constitui, portanto, o primeiro nível de significação e corresponderá, assim,
ao sentido 1. O sentido 1 compreende aquilo que o
enunciado diz. Mas, ao dizer, o enunciado o diz de um certo modo. O enunciado
mostra, por meio de marcas linguísticas, o modo como se apresenta o dito.
Esse modo de o enunciado representar-se a si mesmo é o
seu sentido 2. A representação referente ao sentido
2 assume uma acepção teatral, recobrindo os diferentes papéis
distribuídos nas cenas dramáticas que constituem os atos de fala desempenhados
pelos interlocutores, por meio de um mascaramento recíproco que é ele mesmo
constitutivo da dinâmica argumentativa da linguagem.
Convém notar que o sentido
2 do enunciado se constrói pelas relações intersubjetivas que se
estabelecem no momento da enunciação, por força do jogo de representações de
que tomam parte o locutor e o interlocutor. A distinção entre dizer emostrar permite-nos,
portanto, o acesso às formas pelas quais linguagem, homem e mundo se
relacionam. Ademais, essa distinção não só reforça a ideia de que em todo
discurso se inscreve uma ideologia (quem diz o faz de um certo modo e pode
mascarar esse modo de dizê-lo; pode pretender endossar uma relação especular
entre linguagem e mundo; pode pretender revelar uma verdade segundo uma relação
de correspondência entre linguagem e real, etc.), mas também endossa a visão de
que a enunciação, a saber, o acontecimento sócio-histórico de aparecimento de
um enunciado, se manifesta no enunciado mediante uma série de marcas
linguísticas.
Uma vez que se assume a
estratificação do dizer, não basta, para efeito de análise do discurso de
alguém, apontar o que essa pessoa disse; é necessário também – e sobretudo –
assinalar em que nível o disse (Koch, 2004, p. 23). Destarte,
deve-se distinguir, em todo discurso, entre um nível de sentido ‘explícito’,
aquele que se deixa apreender na materialidade linguística do discurso e níveis
de sentido ‘implícito’.
No domínio dos conteúdos
implícitos, faz-se mister também distinguir entre um implícito absoluto – que
recobre o nível dos conteúdos que se imiscuem no discurso, sem que o locutor
tenha a intenção de fazê-lo e sem que ele mesmo o saiba, e um implícito
relativo, subjacente ao que o locutor quer dizer. O autor[8] nunca está, portanto,
sob o controle de tudo o que diz – já que ele o diz também implicitamente e os
conteúdos implícitos, ou seja, os conteúdos silenciados por seu dizer, lhe
escapam à consciência; e essa impossibilidade de o autor assenhorear-se do
sentido (embora tenha a ilusão de controlá-lo completamente) dá margem à
pluralidade de interpretações. Os sentidos tomam direções diversas.[9]
A atividade de
interpretação, que está em ação a todo momento no processo de comunicação,
funda-se na suposição de que quem fala tem determinadas intenções, consistindo
a intelecção justamente na captação dessas intenções, o que leva a prever, por conseguinte,
uma pluralidade de interpretações.
Do exposto até aqui,
segue-se que todo dizer é um querer fazer, de modo que o sentido é constituído
por todos os atos ilocucionários[10]. Ainda que o enunciador
pretenda dar a conhecer a sua intenção, o que torna o enunciado um ato público,
declarado, disso não se segue que ele, enunciador, não possa negar a
responsabilidade pelo implícito; seu querer dizer pode, inclusive, assumir um
dizer cuja responsabilidade ele atribui ao interlocutor (p. ex. “É você quem o
diz...”). Em outras palavras, o enunciador pode assumir a responsabilidade
pelos conteúdos explícitos, pelo que os seus enunciados põem, mas pode não
pretender e não querer comprometer-se com os conteúdos que seus enunciados
pressupõem. Cabe lembrar que, entre os conteúdos implícitos, os pressupostos
são sempre colocados à margem do discurso, ou seja, o locutor atua de modo, que
não faz recair sobre eles o encadeamento argumentativo, o que não significa que
não se possa encadear sobre esses conteúdos. Mas da aceitação dos pressupostos
depende a continuidade do próprio discurso e da aceitação de sua proposta argumentativa.
Os conteúdos pressupostos são, de certa forma, impostos como verdadeiros, como
indiscutíveis. O mecanismo da pressuposição desencadeia uma situação na qual o
leitor/interlocutor se vê cerceado ou mesmo embaraçado num enredamento lógico
criado pelo locutor.
2.3. Dialogismo e polifonia
Os conceitos de dialogismo e
de polifonia constituirão o conjunto de conceitos que,
doravante, estarão diretamente ligados à nossa análise. Vamo-nos debruçar, em
primeiro lugar, sobre o fenômeno do dialogismo.
2.3.1. Dialogismo
O dialogismo assenta
no reconhecimento de que o funcionamento da linguagem é dialógico, isto é, no
reconhecimento de que os enunciados que produzimos se constituem a partir de
outros enunciados. Com o dialogismo, quer-se afirmar que todo discurso está
calcado sobre discursos precedentes, que todo discurso remete a outros
discursos, ou mesmo que todo discurso cria as condições para a produção de
discursos ulteriores. Definido, desse modo, o fenômeno do dialogismo, temos o
primeiro sentido do conceito. A primeira forma de dialogismo é, portanto,
o dialogismo constitutivo, que se define no que se segue:
Quando se fala em dialogismo constitutivo, pensa-se em
relações com enunciados já construídos e, portanto, anteriores e passados. No
entanto, um enunciado se constitui em relação aos que o precedem e que o
sucedem na cadeia de comunicação. Com efeito, um enunciado solicita uma
resposta, uma resposta que ainda não existe. Ele espera sempre uma compreensão
responsiva ativa, constrói-se para uma resposta, seja ela uma concordância ou
uma refutação (Fiorin, 2008, p. 32).
Considere-se, agora, a
segunda forma de dialogismo. Trata-se do dialogismo em sentido estrito.
Se o primeiro tipo de dialogismo não se mostra na materialidade linguística do
discurso, o segundo tipo se mostra. Esse segundo tipo de dialogismo recobre o
fenômeno da polifonia e consiste na “incorporação pelo enunciador da voz ou das
vozes de outros no enunciado” (Fiorin, 2008, p. 32). Esse tipo de dialogismo,
que é “o modo de funcionamento real da linguagem” (id., p. 33), compreende as
formas por meio das quais se externam, se mostram outras vozes no discurso. O
dialogismo stricto sensu compreende a polifonia.
Há duas maneiras de
incorporar o discurso alheio no enunciado: a) cita-se claramente o discurso do
outro, separando-o nitidamente do discurso citante. O discurso citado torna-se
discurso objetivado; b) o discurso citado não se distingue do discurso citante,
caso em que a totalidade discursiva é bivocal e internamente dialogizada.
Constituem exemplos do primeiro procedimento de incorporação do discurso outro
o discurso direto, o discurso indireto, as aspas, a negação,
entre outros. São exemplos do segundo procedimento a paródia,
a polêmica velada ou explícita, o discurso indireto livre,
entre outros.
Tomem-se dois exemplos da
filosofia, a fim de ilustrar a concepção de dialogismo lato sensu,
visto que o reconhecimento do dialogismo, nesse caso, demanda certo grau de
dificuldade, em virtude da ausência de demarcações.
O primeiro exemplo será
colhido da obra Locke, proeminente partidário do empirismo inglês, Ensaio
sobre o entendimento humano (2012). Nós podemos lê-la como uma reação
crítica ao racionalismo, especialmente ao racionalismo cartesiano e à tese
segundo a qual a mente comportaria ideias ou princípios inatos. Seguir-se-á um
passo em que Locke, não de maneira explícita, evoca a posição racionalista. O
excerto já deixa entrever as questões sobre as quais nos debruçaremos nesta
exposição, mas não a desenvolveremos ainda. Importa-nos apenas ilustrar o
fenômeno do dialogismo.
Nada parece tão certo quanto a existência
de princípios inatos, especulativos e práticos (fala-se em ambos),
universalmente reconhecidos por todos os homens.Argumenta-se que
eles seriam impressões necessárias que a alma dos homens receberia desde a sua
primeira existência, que estes trariam ao mundo tão necessariamente e tão
realmente quanto qualquer uma das faculdades que lhes são inerentes (Locke,
2008, p. 28, grifo nosso).
Note-se que o que se
segue a esse fragmento é um enunciado, encetado de um “mas”, que marca um
espaço dialógico no qual a posição do enunciador, manifestamente contrária, se
inscreve. Esse espaço dialógico é, por isso, marcado por uma oposição entre a
perspectiva do enunciador (autor do discurso) e dos enunciatários, partidários
da doutrina racionalista. Veja-se o enunciado: “Mas o argumento baseado no
consentimento universal infelizmente padece de uma debilidade” (ib.id.).
Tomados em conjunto,
esses dois enunciados, esses dois momentos do discurso de Locke, ilustrados
aqui, instauram um espaço dialógico marcado por uma oposição, no qual as vozes
racionalistas, embora evocadas e passíveis de ser percebidas em função de uma
relação estabelecida pelo leitor entre seu conhecimento de mundo e as
expressões linguísticas que servem de pistas para a produção do sentido e para
a recuperação do dialogismo, não estão manifestas, não ganham espessura
linguística, foram silenciadas (tanto porque não são identificados os sujeitos
discursivos face aos quais a posição lockiana se desenvolve quanto porque Locke
pretende que sua perspectiva as silencie). Veja-se o uso da forma
“argumenta-se”. Do uso desse “-se” indeterminador e de seu escopo genérico nos
ocuparemos no lugar adequado. Por ora, limitamo-nos a dizer o seguinte, no que
toca ao uso da forma “argumenta-se”: 1) o conteúdo da oração completiva que se
inicia com “que eles seriam impressões necessárias que a alma dos homens...” e
que termina com “inerentes” não é de responsabilidade total de Locke; é um
dizer atribuído aos partidários, não identificados, do racionalismo; é um
fragmento de discurso cuja instância pessoal enunciativa deve ser referida a um
outro, a uma comunidade filosófica a cujas teses Locke se opõem; 2) construções
de terceira pessoa com o emprego de “-se”, como é o caso de “argumenta-se”, são
tipicamente genéricas. Essa genericidade contribui para enfraquecer a posição
adversária, porque se assenta na estratégia de apagamento das vozes de seus
enunciadores. Finalmente, cumpre notar 3) que a esse enfraquecimento segue-se a
pretensão de a posição lockiana suplantar a posição adversária pela enunciação
de uma verdade que se impõe ao reconhecimento de uma comunidade filosófica num
dado momento sócio-histórico.
Sem pretender ainda nos deter
nos problemas a cujo tratamento se destina este texto, gostaríamos de lançar
algumas luzes sobre a ocorrência das formas “trariam”, “seriam”, “receberia”,
que têm caráter modalizador[11] e que são correntes
no discurso jornalístico, para expressar probabilidade, dúvida a respeito de
uma notícia não confirmada (p. ex. Ativista teria dito que
homem do rojão era ligado a Marcelo Freixo[12]), e que, no texto de
Locke, sinaliza dúvida sobre a plausibilidade das teses racionalistas. Em
outros termos, ao usar “seriam” (e correlatos), Locke insere as pretensas
verdades dos racionalistas no âmbito das hipóteses, das especulações fadadas,
de acordo com ele, a não encontrar respaldo na experiência empírica. Ademais,
com o uso de “seriam” (e correlatos), Locke não se compromete em aceitar as
alegadas verdades dos racionalistas; ao contrário, põem-nas sob a
responsabilidade deles (eles as sustentam); afirma sua posição crítica em face
delas.
O segundo exemplo tomamos
a Kant, em sua Crítica da Razão Pura (2013). Considere-se o
passo abaixo:
Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com
a experiência; pois de que outro modo poderia a nossa faculdade de conhecimento
ser despertada para o exercício, não fosse por meio de objetos que estimulam
nossos sentidos e, em parte, produzem representações por si mesmos, em parte
colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-a a
compará-las, conectá-las ou separá-las e, assim, transformar a matéria bruta
das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos chamado experiência? No
que diz respeito ao tempo, portanto, nenhum conhecimento antecede em
nós à experiência, e com esta começam todos” (Kant, 2013, p.45, grifos
nossos).
É consabido que a Crítica
da Razão Pura testemunha o esforço kantiano por resolver o embate
entre racionalistas e empiristas no que tange ao fundamento do conhecimento e
ao modo como nós o adquirimos. Kant esforçou-se por conciliar a tese do primado
da razão (tese racionalista) com a tese do primado da experiência (tese
empirista), não sem reelaborar as duas posições à luz de seu criticismo. A
questão central de Kant é bem conhecida: investigar os limites da razão e
determinar as condições de possibilidade do conhecimento.
Uma das formas pelas
quais se pode apreender a tentativa kantiana de estabelecer aquela conciliação
consiste em atentar para o emprego que fez ele dos conceitos de a
priori e a posteriori, com os quais qualificou dois modos
de conhecimento: o a priori, que independe da experiência; e
o a posteriori, que desta depende.
No excerto trazido à
cena, é patente a recuperação por Kant da tese empirista, não sem lhe conferir
uma forma adequada ao seu projeto crítico. Note-se que Kant declara que o
conhecimento “começa” com a experiência, isto é, tem como ponto de
partida a experiência, mas não que se origina ou deriva dela (não se reduz a
ela). Em seguida, ele formula uma pergunta a que subjaz uma estratégia que leva
o leitor a acolher o bom-senso. O leitor é instado a aceitar a verdade para a
qual a questão aponta, sob pena de ele ter de comprometer-se a oferecer outra
solução ao problema atinente ao modo como adquirimos o conhecimento. O leitor é
interpelado, e essa interpelação do leitor pretende convencê-lo da
plausibilidade da tese empirista; mas essa interpelação inclui expressões
modalizadoras, como “em parte”, a fim de que o próprio papel que o entendimento
desempenha na construção do conhecimento encontre igualmente seu assentimento.
Não nos poderíamos
escusar de notar, evidentemente, que a forma com que se apresenta todo o
enunciado kantiano, a qual combinam o apagamento do locutor-autor (no início e
fim do texto) com a diluição desse locutor num “nós” inclusivo no decorrer do
texto (veja-se a ocorrência de “nosso” (e variações)) revela o modo como o
autor põe em movimento seu processo de pensamento. No início do texto, o
locutor se apaga (não há um “eu” ou um “nós”) como instância enunciativa
atualizada a qual pudéssemos atribuir a responsabilidade pela verdade do
enunciado; o enunciado diz uma verdade que se impõe por si mesma, tanto ao
enunciador, que está, em todo caso, pressuposto, e que se limita a apresentá-la
(provavelmente, com base num consenso mais ou menos hegemônico), quanto ao
destinatário, a cujo bom-senso se faz apelo.
Os dois fragmentos
destacados em negrito sinalizam o domínio do dialogismo que atravessa o
discurso kantiano e a partir do qual esse discurso se constrói e se desenvolve.
Estamos cientes de que o recorte feito do discurso kantiano é limitado e não
queremos, por isso, dá margem a qualquer interpretação, de resto,
inconsistente, segundo a qual Kant seria partidário do empirismo. A despeito de
nossa crença em que as formas de categorizar o pensamento dos filósofos, com
base nas doutrinas que eles criaram ou com as quais se alinharam, podem, não
raro, tender a ser problematicamente reducionistas, a doutrina de Kant é
recoberta pela designaçãocriticismo. Ao tentar situar sua
filosofia, ele o fez relativamente ao risco do dogmatismo e ao risco do
empirismo. O criticismo kantiano procurou estabelecer o uso adequado da razão,
distinguindo entre o que é possível à razão saber e o que lhe escapa a qualquer
possibilidade de conhecimento.
2.3.2. Polifonia
Dissemos, na seção
anterior, que o dialogismo stricto sensu recobre a polifonia.
Por polifonia entende-se o fenômeno pelo qual, num dado texto,
se deixam ouvir várias vozes de enunciadores reais ou virtuais, que representam
perspectivas ou pontos de vistas diferentes (Koch, 2003). Na polifonia, é
suficiente que a alteridade seja encenada, o que significa dizer que basta que
se representem diferentes perspectivas num mesmo texto para caracterizá-lo como
polifônico. Consoante nota Koch (2003: 64), “cada palavra expressa o ‘um’ em
relação com o outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da
comunidade a que pertenço. O Eu se constrói constituindo o Eu do Outro e por
ele é constituído”. Destarte, é preciso assumir que todo enunciado efetivamente
produzido pressupõe um “eu”, um enunciador, ao mesmo tempo em que instaura
um espaço dialógico – através da palavra – em que se inscreve um outro, ou do
qual esse outro é instado a tomar parte.
Com Ducrot (1987),
assumimos que o sentido de um enunciado constitui uma representação (na acepção
teatral) da enunciação. Descrevendo-se uma cena, em todo enunciado movem-se
figuras do discurso, encenam-se vozes que se representam em diversos níveis.
Vamo-nos valer de cinco designações para dar conta das marcas de pessoas que
participam do discurso. Essas designações estão consagradas na literatura
linguística, mas as usaremos de modo a que se tornem adequadas à análise do
texto de David Hume. Dessas cinco, três terão valor operacional. Todas as cinco
serão definidas na seção a seguir.
A polifonia recobre
a intertextualidade[13]. Assim, todo caso de
intertextualidade é um caso de polifonia, mas a recíproca não é verdadeira
(Koch, 2003, p. 73). Na intertextualidade, importa considerar a relação entre
textos ou marcas textuais em outros textos. Assim, por exemplo, este trabalho é
um grande intertexto, porquanto ele incorpora outros muitos textos. Na
polifonia, por outro lado, é o dialogismo que é enfocado; é a dinâmica das
vozes dos enunciadores que importa. Por conseguinte, um texto, para ser
polifônico, deve incorporar vozes de enunciadores, quer reais, quer virtuais,
as quais expressam pontos de vistas diversos, com os quais o locutor pode concordar
ou não (ib.id.).
Segue-se um exemplo
bastante comum de polifonia:
(1) João parou de fumar.
Deve-se notar, em
primeiro lugar, que a construção “parou de” é um índice de pressuposição,
porquanto ela sinaliza o conteúdo pressuposto, o qual é condição para que a
própria construção seja usada. O conteúdo pressuposto é: João fumava.
Só é possível o uso de “parou de”, se o Enunciador-1 (quem diz (2)) detiver o
conhecimento prévio de que “João fumava”. Necessário é que esse conhecimento
prévio seja um conhecimento pressuposto como partilhado com o enunciatário,
pois só assim se evita a atitude de surpresa deste, e o sentido pretendido pelo
enunciador-1 pode ser calculado adequadamente pelo enunciatário. Suponhamos que
o enunciador-1, ao produzir (2), quisesse comunicar que João é uma pessoa que
obtém êxito no que se propõe a fazer. Esse sentido talvez não fosse
imediatamente apreensível ao enunciatário que, não dispondo do mesmo
conhecimento prévio do locutor, estivesse surpreso com o fato pressuposto “João
fumava”.
Volvendo à questão da
polifonia, de que modo (1) a ilustra? Esse enunciado apresenta dois níveis de
significação: o posto (João não fuma mais) e o pressuposto (João fumava). O
Enunciador-1 (E1) é responsável pelo que é posto (João não fuma mais); e é
preciso supor que um enunciador-2 (E2) é responsável pelo que é pressuposto
(João fumava). Assim, temos o seguinte esquema:
2.4 As marcas da enunciação
2.4.1. Enunciação e enunciado: os actantes
da enunciação e do enunciado
Nesta seção, trazemos à
baila as noções de enunciação e enunciado e os actantes discursivos por nós
considerados. Comecemos por definir enunciação e enunciado.
Por enunciação,
entendemos um acontecimento sócio-histórico pressuposto no aparecimento do
enunciado. Dada a existência de um enunciado – uma unidade de comunicação, de
interação -, há uma enunciação que é o próprio acontecimento que o produz.
Nessa enunciação, estão pressupostos um enunciador e um enunciatário, que podem
ser instalados no enunciado, caso em que se tornariam locutor e interlocutor.
Um enunciado como “Eu disse a você que viria” patenteia que o enunciador
instala um locutor “Eu” e um interlocutor “você” no enunciado. No entanto, dado
o enunciado “Ele veio”, há um enunciador, uma instância implícita responsável
pela enunciação, e um enunciatário, também implícito, a que o enunciado se
destina. O pronome “ele” que aí aparece recobre o âmbito da não-pessoa (‘pessoa
ou coisa de que se fala’).
O enunciado é
o produto de uma enunciação, independentemente da complexidade e extensão de
sua estrutura sintagmática. Assim, mesmo a forma “Fogo!”, produzida com uma
entonação ascendente, num contexto em que alguém pretende alertar sobre um
incêndio, é um enunciado. Enunciados são construções linguísticas dotadas de
função comunicativa. O enunciado, com frequência, encerra marcas que remetem à
instância da enunciação, tais como pronomes pessoais, demonstrativos,
possessivos, adjetivos e advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e
temporais. Sempre que essas marcas se inscreverem no enunciado,
pode-se dizer que estamos em face de uma enunciação enunciada (Fiorin,
2005,p. 36).[1]
Passemos a considerar,
tendo em conta a distinção entre enunciação e enunciado, os actantes que tomam
parte, em níveis diferentes, do discurso. É preciso reconhecer que nossa
análise toma para objeto um texto escrito e isso implica outro modo de
organizar-se o aparelho formal da enunciação.
Admita-se que a
enunciação apresenta dois níveis. O 1º nível da enunciação abriga o enunciador e
o enunciatário. O enunciador é o destinador implícito da enunciação;é
a instância pressuposta pela existência do enunciado; o enunciatário,que
identificaremos com o leitor, é o destinatário implícito da enunciação. Fique
claro, pois, que enunciador e enunciatário são instâncias da enunciação, e não
do enunciado.
O 2º nível da enunciação
recobre um destinador e um destinatário, os quais são instalados no enunciado.
Esses actantes serão chamados de locutor e interlocutor
respectivamente. Eles são actantes instalados no enunciado. O locutor é a
instância correspondente ao enunciador; e o interlocutor a instância
correspondente ao enunciatário. O locutor sempre é explícito (que diz eu).
O interlocutor pode estar explícito, se o narrador se dirigir a ele (Fiorin,
2005, p. 66).
A quinta e última
instância que consideraremos é a do alocutário. O alocutário é a
voz de outrem que ressoa no enunciado de um enunciador/locutor. É a fonte
enunciativa responsável por um dado enunciado incorporado no discurso do
enunciador. A noção de locutor marca o dialogismo e a intertextualidade e
ajuda-nos a compreender a quem devemos atribuir a responsabilidade pelo dizer,
quando retomamos as palavras de outrem.
A importância de
considerar essas diferentes instâncias enunciativas repousa em que, através
delas, se revela um modo fundamental de funcionamento do discurso, conforme nos
dá testemunho Fiorin:
As diferentes
instâncias enunciativas e as diferentes vozes presentes no enunciado constituem
um modo fundamental de funcionamento do discurso, aheterogeneidade. Com
ela, o discurso torna-se um espaço conflitual e heterogêneo ou contratual e
homogêneo onde vozes discordantes ou concordantes tomam lugar em níveis
diferentes. Essas vozes concordam, discordam, constituem-se (Fiorin, 2005, pp.
71-72, grifo nosso).
O leitor pode, às vezes,
passar do estatuto de enunciatário (destinatário) ao de alocutário, quando,
instalado no enunciado, ganha voz no discurso citante (p. ex. Diráo leitor que
me apresso em rejeitar tais coisas).
Tome-se o excerto (2),
abaixo, colhido do texto A ciência como Vocação[2], de Max Weber, com vistas a ilustrar a distinção entre actantes do
enunciado e da enunciação:
(2) “No campo científico, é absolutamente certo que carece
de personalidade quem entra em cena como “empresário” da causa a que se deveria
consagrar, ou tenta legitimar-se, mediante a sua “vivência” e continuamente
pergunta: como demonstrarei que sou algo mais do que um simples especialista”.
O enunciador responsável
pela enunciação é um EU implícito. A enunciação está pressuposta pela própria
ocorrência de (2). Servir-nos-emos desse mesmo exemplo para ilustrar outros
fenômenos importantes, mais adiante. Por ora, o que queremos mostrar é que há
um enunciador, que é pressuposto pela enunciação (o “eu” que se depreende das
ocorrências de “demonstrarei” e “sou” não é o locutor, mas uma pessoa
indeterminada; o prova a ocorrência do “quem” (que é um item não-referencial,
ao qual devemos remeter o “eu”, que não é narrador, mas qualquer pessoa “que
entre em cena como empresário da causa”). Note-se que o enunciador incorpora em
seu discurso um enunciado reportado a esse locutor indeterminado ou imaginado:
“como demonstrarei que sou algo mais do que um simples especialista”.
Trata-se de um caso assaz ilustrativo de como a função-autor instala, no
discurso, um cenário de máscaras enunciativas, criando ilusões enunciativas sob
as quais, escondendo-se, ela, paradoxalmente, se revela.
Quando, no exemplo, de
Locke, o enunciador faz uso da forma “argumenta-se que”, ele já encena uma
perspectiva diferente ou contrária no interior do discurso. Ora, naturalmente,
quem argumenta são enunciadores, não identificados, mas encenados, evocados não
de modo explícito (não ocorre um TU ou uma forma de terceira-pessoa); não
obstante, instaura-se um espaço dialógico, a partir do qual se ouve outras
vozes.
O leitor será sempre um
enunciatário quer do enunciador, quer do locutor instalado pelo enunciador, o
que não impede que seu estatuto varie. Por exemplo, o uso de um “nós”
genérico e inclusivo, para fazer referência à espécie, situa locutor e leitor
(enunciatário) num mesmo lugar discursivo. Dado um enunciado como “Eu disse a
ele que somos seres racionais”, o “nós” tem como escopo todos os seres humanos,
conjunto do qual fazem parte o enunciador “EU”, que diz “Nós somos seres
racionais”, e que instala um locutor na forma de um “nós” inclusivo, o
destinatário “ele”, que outrora fora um TU, e seu enunciatário, que é o
receptor do enunciado[3]. A instância do “nós” torna-se objeto de predicação e
referenciação, já que o locutor diz de um nós que são seres racionais e toma-os
como assunto do qual fala.
Esquematicamente, as
instâncias se organizam segundo os dois modelos seguintes:
Em a), um enunciador, que
é pressuposto pela existência do enunciado, pode instalar um locutor. Todo
enunciador pressupõe um enunciatário que, no texto escrito, será o leitor.
Embora seja menos frequente, o leitor pode ser instalado no enunciado,
assumindo o estatuto de interlocutor[1]. Em b), um enunciador instala no enunciado um alocutário que,
embora assuma a forma de terceira pessoa, é instância de um discurso que lhe é
atribuído.
A instância do alocutário carece de um
esclarecimento. Ela não é, para nós, entendida como “aquele a que o enunciado
do enunciador se destina”, mas “a voz que é incorporada na enunciação do
enunciador” (é comum que se ligue a essa instância um verbo de elocução, como
dizer, pretender, afirmar, sustentar, etc.); mas basta que se deixe claro que
ela assume uma posição que é evocada para caracterizá-la como outra instância
enunciativa incorporada. Fica, então, caracterizada a polifonia, a inserção de
outra voz. Embora ocorra na forma de terceira pessoa ou não-pessoa, seu
constituinte encerra o traço [+ humano]. Essa instância constitui outra
dimensão discursiva, que não é a do enunciatário ou interlocutor, mas encontra
eco no discurso do enunciador. O enunciador, por assim dizer, a faz falar.
Dado um enunciado como “Não compreendo por que ela não acredita no
que eu digo”, a parte “não acredita” não é de total responsabilidade do locutor
que diz “eu”; mas do alocutário “ela” instalado no enunciado. Ilustra-se aqui o
que se chama dediscurso reportado, que é a citação do discurso alheio
feita pelo enunciador/locutor, mas não apenas de palavras e sintagmas. O
discurso reportado consiste na inclusão de uma enunciação em
outra, de sorte que, na cena de enunciação, se distinguem um discurso citante e
um discurso citado.
Há, tradicionalmente, três estratégias reconhecidas, que atualizam
o discurso reportado, a saber, discurso direto, discurso indireto e discurso
indireto livre. No discurso indireto – que nos interessa propriamente – , o
discurso citado está subordinado à enunciação do discurso citante. Não se
verificam dois eu, mas há uma fonte enunciativa que não diz eu,
embora responsável por uma parte da enunciação de um eu. Essa fonte
enunciativa é o alocutário.
O enunciador dá sua versão do plano da expressão ou do plano do
conteúdo do discurso de um alocutário. Há, portanto, a variante analisadora da
expressão e a variante analisadora do conteúdo (Fiorin, 2005, p. 75). Há uma
única enunciação, que é a do enunciador. Todos os traços enunciativos da
enunciação do alocutário foram apagados.É esse apagamento que o torna
alocutário, isto é, uma voz incorporada na enunciação do enunciador. Destarte,
só existe a subjetividade do enunciador.
2.4.2.
A cena de enunciação
Ao procurar elucidar o conceito de cena da enunciação,
Maingueneau (2008) observa que nos discursos que expressam “a mais alta
autoridade” (p. 51), o locutor diz ao mesmo tempo que vai construindo o quadro
do próprio dizer. No processo dessa construção, o locutor também se encarrega
de forjar os dispositivos mediante os quais ele encena seu próprio processo de
comunicação, “uma encenação inseparável de sentido que procura impor” (ib.id.).
No entanto, a situação de enunciação não se confunde com um quadro
empírico. Essa situação é construída como cenografia pela
enunciação. O radical “-grafia” não deve levar a entender que
se trate de uma simples cena, ou seja, “um quadro estável do qual se
desenvolveria a enunciação” (ib.id.). Consoante adverte Maingueneau,
(...) –grafia é um processo de inscrição legitimante que
traça um círculo: o discurso implica um enunciador e um co-enunciador, um lugar
e um momento da enunciação que valida a própria instância que permite sua
existência. Por esse ponto de vista, a cenografia está ao mesmo tempo na
nascente e no desaguadouro da obra (ib.id.).
Maingueneau admite que é necessário reconhecer a cenografia como
um quadro e um processo ao mesmo tempo, mas sem reduzi-la ao “conteúdo”.
Tampouco se deve, segundo ele, pensar a oposição entre cena da enunciação e
enunciado como uma oposição entre forma (moldura, estrutura) e “conteúdo”. A
cena da enunciação constitui uma dimensão fundamental do “conteúdo”.
Considere-se o excerto, de resto, pertinente, com que Maingueneau ilustra o
conceito de cena de enunciação.
Em Descartes, por
exemplo, o Discurso do método é indissociável de uma
cenografia que, longe de ser apenas um procedimento a serviço de um pensamento,
modifica o próprio estatuto da filosofia. Nessa cenografia, um sujeito que se
apresenta como simples detentor da razão, homem honesto desprendido de
instituições religiosas e escolares, afirma a excelência do método, do
encadeamento dos argumentos, para um leitor que ele pressupõe ter uma única
qualidade: ser dotado de bom senso. O Discurso do método constrói,
assim, sua legitimação ultrapassando as fronteiras que, na época, eram
normalmente atribuídas ao discurso filosófico. Ele traz pessoas honestas para a
posição de árbitro autorizado: “Aqueles que se servem apenas de sua razão
natural em toda a sua pureza”, conforme as palavras de Descartes (pp. 51-52).
Este passo que evoca o Discurso de Descartes
chama-nos a atenção para a complexidade constitutiva do acontecimento discursivo.
Conquanto não possamos nos deter nesta questão, qualquer investigação sobre o
funcionamento do discurso deve ter em conta o fato de que, além da situação de
enunciação e do código linguístico, o discurso implica e constrói um ethos.
O ethos cartesiano, conforme vemos, é o de um sujeito
racional, que se reconhece como tal, que afirma a excelência de seu método, que
se lança à busca da certeza, pondo sob o abrigo da dúvida tudo aquilo que
aprendera, etc.
A fim de ilustrar uma cena de enunciação, segue-se um fragmento do
texto Sentir-se amado, de Martha Medeiros[2]:
(3) O
cara diz que te ama, então tá. Ele te ama.
Sua mulher diz que te ama, assunto encerrado.
Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas.
Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, uma diferença de
milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se.
O enunciador, que deixa
sua marca em forma de um irônico assentimento (“então tá”), instala,
inicialmente, dois alocutários e dois interlocutores: um homem indeterminado,
que diz amar (alocutário) e um interlocutor (o leitor) do sexo feminino; e uma
mulher indeterminada, que diz amar (alocutário) e um interlocutor (leitor) do
sexo masculino. Esses interlocutores são instalados no enunciado pelo uso da
forma clítica (te) correspondente ao TU, numa clara indicação de que o
enunciador (escritor) marca proximidade/intimidade na relação com o leitor.
Posteriormente, há um interlocutor “você” genérico, indefinido,
não-referencial. Esse “você” é qualquer pessoa que se encontre na situação
daqueles interlocutores. O enunciador se apresenta como sujeito que entende
sobre as “astúcias” dos relacionamentos amorosos. Ele parece saber a diferença
entre sentir-se realmente amado e acreditar que se é amado (ele diz, no
entanto, “saber-se”). A cena da enunciação se constitui, então, de uma
situação (um constructo socicognitivo) em que declarações de amor são postas em
questão. Uma análise mais cuidadosa, calcada sobre pressupostos da Análise do
Discurso, mostrar-nos-ia que estão sendo questionadas representações
imaginárias, socialmente construídas, do amor. “Personagens” são
instalados no discurso e são representados de modo a configurar a própria cena
da enunciação. Constrói-se uma imagem de mulher crédula do amor que
declara sentir seu amante e uma imagem de homem crédulo do amor que declara
sentir sua amante. Essas imagens são construídas na inscrição do sujeito-autor
nas representações ideológicas de que seu discurso é produto e constituição.
Cumpre lembrar que não é
o mundo real que está espelhado; ele é reconstruído no discurso. Não há uma
relação especular entre mundo e discurso. O discurso não nos permite acesso
direto ao mundo. O que temos é uma versão do mundo; um modo de a realidade
re-apresentar-se segundo a perspectiva de um sujeito social e historicamente
determinado.
2.4.3. Dois mecanismos de instauração das
instâncias discursivas
Segundo Benveniste
(1966), o fundamento da subjetividade é o estatuto linguístico da pessoa.
O eu deve sua existência por oposição ao tu, e o
diálogo é condição para a construção da pessoa, porquanto ela se constrói na
reversibilidade eu-tu (Fiorin, 2005, p. 41).
O eu não
se refere a um indivíduo nem a um conceito, mas é uma instância exclusivamente
linguística e, como tal, designa o locutor.
Há dois mecanismos de
instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado: a
debreagem e a embreagem. Aqui só nos ocupará a primeira
apenas. Entende-se por debreagem a atividade por meio da qual
a instância do enunciado se separa de si e projeta para fora de si certos
elementos que fundam o enunciado, a saber, a pessoa, o espaço e o tempo
(Fiorin, 2005, p. 43). É da debreagem actancialque trataremos.
A debreagem é chamada
de enunciativa quando, por meio dela, se inscrevem os actantes
da enunciação no enunciado (eu/tu), o espaço da enunciação (aqui) e o tempo da
enunciação (agora). A debreagem se diz enunciva quando, por
meio dela, se instalam no enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do
enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então).
A debreagem enunciativa,
na medida que instala simulacros do ego-hic-nuncenunciativos, aos
quais se associam apreciações de fatos, constrói um efeito de subjetividade;
por outro lado, a debreagem enunciva, apagando as marcas da enunciação no
texto, produz um efeito de sentido de objetividade (Fiorin, 2005, p. 45).
2.4.4. A terceira pessoa e a função-autor
2.4.4.1. A terceira pessoa
Se comparada às primeira
e segunda pessoas, a terceira pessoa não tem o mesmo estatuto. A terceira
pessoa emprega-se para referir-se à instância impessoal, da não-pessoa. Nesse
caso, relata-se um acontecimento ou evento cuja produção não se relaciona a
qualquer agente ou causa.
O eu e
o tu são, a cada momento do discurso, únicos; mas o ele pode
referir-se a um número ilimitado de sujeitos ou a nenhum (por exemplo, em
francês, em que o pronome de terceira pessoa preenche a função do impessoal).
O eu e o tu são reversíveis; essa
reversibilidade não é possível no uso de ele. A terceira pessoa é a
única instância de que se pode predicar qualquer coisa. Assim, não implicando
pessoa alguma, o ele pode representar qualquer sujeito ou
nenhum e esse sujeito jamais é instaurado como actante da enunciação.
Enquanto eu e tu são actantes da enunciação,
o ele é um acatante do enunciado. Veja-se um exemplo em que
“ele” faz remissão anafórica ao constituinte [- animado] grifado no interior do
enunciado.
(4) O juros subiram
cerca de 5% e eles serão debitados no cartão.
Esse “eles” não é um
destinatário. Seu uso instaura exclusivamente o espaço da não-pessoa, dos
objetos-de-discurso que constituem tema, assunto de que se fala. Coteje-se (4)
com (5), abaixo:
(5) Ele me disse que não
poderia vir hoje à escola.
Em (5), há um enunciador,
que instala um locutor (me) e um enunciatário, a que todo o enunciado se
destina (a pessoa a quem o enunciador se dirige); mas há também um “ele”, que
representa a terceira pessoa e que é instaurado como destinatário, porque seu
discurso é evocado (um intertexto é evocado). Ora, toda a sequência “que não
poderia vir hoje à escola” é de responsabilidade desse “ele” e não apenas do
enunciador (queremos dizer: é um dizer atribuído a esse alocutário). Tanto mais
que, se acaso o enunciatário se deparasse com essa pessoa na escola e chamasse
o enunciador de “mentiroso”, este poderia se defender dizendo que não disse
estar certo da ausência desse “ele” representado no enunciado.
2.4.4.2. A função-autor
Faz-se mister assumir que
o que comumente se chama de autor é um autor implícito,
cujo acesso só é possível por meio daquilo que ele enuncia. Ele não se confunde
com o falante empírico, ontologicamente determinado.
O autor implícito é
produto da leitura do texto. Autor e leitor reais pertencem ao mundo e não ao
texto. Somente o autor e o leitor implícitos pertencem ao texto. O leitor
implícito é uma imagem de enunciatário pressuposta pelo texto e com a qual o
escritor se identifica. O autor implícito é uma imagem de autor construído pelo
texto.[3]Somente o autor implícito importa à enunciação.
A função-autor será mais bem desenvolvida quando nos debruçarmos
sobre a proposta de Cossuta para articulá-la a nossa proposta. Por ora, convém
frisar dois níveis da enunciação. O primeiro nível da enunciação inclui o enunciador e
oenunciatário. Esse nível identifica-se com o da enunciação tomada como
um acontecimento logicamente pressuposto em virtude da própria existência do
enunciado. O enunciador é a instância implícita responsável pela enunciação e o
enunciatário é a instância implícita à qual se destina o produto da enunciação.
2.5.
O uso de nós no lugar do eu
Uma das formas pelas quais o locutor é instalado no enunciado é o
uso de nós. Com o uso de “nós” no lugar de “eu”, temos um plural
majestático, de modéstia ou de autor. Interessar-nos-ão os dois últimos tipos
de plurais.
No plural de modéstia, o “eu” evita dar realce a sua
subjetividade, diluindo-a no “nós” (Fiorin, 2005, p. 96). No plural de autor,
uso comum em obras científicas, filosóficas, em conferências, etc., o
enunciador usa “nós”, visto que, através de sua fala, uma comunidade
científica, filosófica fala também em nome da Ciência e do Saber: “o autor
estabelece-se como um delegado dessa coletividade cuja autoridade deriva da
instituição científica e, para além dela, da própria Ciência” (Fiorin, 2005, p.
96).
Cuidamos necessário
incluir uma subseção destinada à consideração de um fenômeno
linguístico-interacional assaz relevante numa proposta de método de leitura. A
inclusão dessa seção também se justifica pelo fato de termos observado no texto
de Hume vários enunciados marcados por modalização. O fenômeno da modalização
está intimamente ligado ao fenômeno da instalação dos actantes (marcas
pessoais) no enunciado. A própria instalação de um EU já patenteia um exemplo
de modalização, conforme veremos. A modalização é um fenômeno geral na enunciação.
Uma primeira dificuldade
que se deve enfrentar quando do tratamento da modalização é traçar uma
separação entre Linguística e lógica, visto que as categorias implicadas nesse
conceito (necessidade, contingência, possibilidade) pertenciam à alçada desta
última disciplina. A segunda toca à existência ou não de modalidade em todo
enunciado (Neves, 2006: 151).
Neves (p. 152) diz ser a
modalidade, em essência, “um conjunto de relações entre o locutor, o enunciado
e a realidade objetiva”, e acrescenta estar ela relacionada, mais ou menos,
diretamente à expressão das noções de ‘possível’, ‘real’ e ‘necessário’.
Falso foi o meu sonho
É possível que falso tenha sido o meu sonho
É necessário que falso tenha sido o meu
sonho.
(Neves, 2006, p. 152)
Cada qual dos enunciados
abaixo representa, respectivamente, as noções de “real”, “possível” e
“necessário”. Neves atribui ao primeiro enunciado uma modalidade-zero. Os
exemplos apresentados, aos quais poderíamos acrescentar um enunciado como “É
provável que o Brasil ganhará da Argentina”, no qual a estrutura
“É provável que” expressa a projeção de uma atitude de incerteza do falante em
relação ao que enuncia, ilustram o fenômeno de modalização. Uma vez entendida
como a expressão de uma atitude modal, a modalização evoca a referência ao
conceito de modo, com o qual guarda certa afinidade.
O Dicionário de
Linguagem e Linguística (2008), de R. L. Trask, no verbetemodo, apresenta-nos
a seguinte definição: “[o modo é] a categoria gramatical que expressa o
grau ou tipo de realidade que se atribui a um enunciado” (p. 196).
Na gramática
tradicional, modo sempre esteve associado ao verbo e é
considerado uma de suas categorias. Cunha & Cintra (2001: 380) definem a
categoria de modo nos seguintes termos: “chamam-se MODOS as diferentes
formas que toma o verbo para indicar a atitude (de certeza, de dúvida, de
suposição, de mando, etc.) da pessoa que fala em relação ao fato que enuncia”
(ênfase no original).
Lendo atentamente a
definição esposada pelos autores, percebe-se a dificuldade de distinguir entre
modalização e modo. Não obstante, convém ter em conta, consoante observa Meyer
(1980), que limitar a manifestação do modo à forma verbal resulta de uma
perspectiva reducionista, que ignora a expressão de conteúdo emotivo, expressivo
ou intelectual, função a que se prestam outras construções diferentes de verbo.
No entanto, modo é mais abrangente, se considerado enquanto conceito, já que
compreende tanto o tipo de comunicação feita pelo locutor ao seu interlocutor
quanto a atitude daquele em relação ao que comunica. Após avaliar algumas
definições de modo oferecidas pela gramática tradicional, a
autora assim se expressa a respeito dos trabalhos consultados: “c) todos
condicionam a manifestação linguística do modo à forma verbal. Aí parecem
esquecer todas as expressões também “emotivas”, “expressivas” ou “intelectuais”
oferecidas pela língua e fora do verbo” (p. 16).
Houve trabalhos que
ofereceram definições que, segundo a autora, se aproximavam ao que se costuma
entender, atualmente, pormodalização. A modalização, na medida em
que traz à tona o papel do enunciador, deve ser entendida como um fenômeno mais
geral – portanto, não limitado à expressão de modo verbal -, e vinculado à
enunciação. A importância do papel do sujeito da enunciação – que deve ser
distinguido do sujeito do enunciado, em termos gramaticais – é patente no
seguinte excerto:
Modalidade e
modalização se diferenciam, para nós, quanto ao seu plano de atuação: enquanto
a primeira se refere ao enunciado, ao produto, a segunda se refere à
enunciação, à produção. Muitas vezes, no entanto, o locutor poderá usar a
modalidade como elemento modalizador (...). Na realidade, haverá uma relação
muito forte entre a modalidade e o sujeito – da enunciação e do enunciado.
Quando a modalidade surgir no enunciado ligada ao sujeito do enunciado, não
será modalizadora – é o caso de, por exemplo, “Ele acha que vai chover amanhã”.
Quando, porém, ela vier ligada ao sujeito da enunciação, sua função será
claramente modalizadora: este é o caso de “Eu acho que amanhã vai chover”, em
que eu acumula as funções de sujeito do enunciado e sujeito da
enunciação”.
(Meyer, 1980, p. 23)
Note-se, de passagem, que nesse trecho, já
de início, a autora nos esclarece sobre a diferença entre modalidade e modalização.
O caso da modalização, reconhecidamente complexo, não se manifesta tão-só no
nível segmental, mas também no nível supra-segmental, caso em que consideramos
a entonação. Atente-se para a consideração feita pela a autora, atinente ao
exemplo seguinte:
Tomemos como exemplo a
sentença “Valerá a pena fazer regime?”. Trabalhando com o conceito de
modalização, vejamos qual o estatuto desta frase. Podemos afirmar,
simplesmente, que é uma interrogação (ou seja, que busca um comportamento
específico do interlocutor: resposta verbal); mas não poderíamos considerá-la,
após observação mais cuidadosa, a expressão da dúvida marcada não por meio de
elementos lexicais, mas por um elemento prosódico – a entoação – associado ao
tempo verbal? Pois apesar da entoação interrogativa, não nos parece que esta
sentença seja necessariamente uma interrogação (...), tanto, que pode ser
considerada a “Não sei se vale a pena fazer regime” ou “Tenho dúvidas quanto à
validade de se fazer regime ( Meyer, 1980, pp. 24-25).
Como não seja nosso
interesse fazer incursão na problemática de que se ocupou a autora, no que toca
ao conceito de modalização, gostaríamos apenas de captar o que nos parece ser a
sua posição. Pensamos não incorrer em erro ao entender que, para Meyer, a
modalização é adesão, é assumir responsabilidade, é compromisso (Meyer, p. 14).
Assim, nas palavras da autora, “encontraremos modalização, portanto, em todos
os discursos: sempre o locutor terá que ser definitivo,
enfático, reticente, cético, não importa. Uma atitude sua estará sempre visível
– em maior ou menor grau – no enunciado” (p. 34).
Para Meyer, a própria
atualização da forma “eu” no enunciado já é indicativo de adesão: caso não
quisesse se responsabilizar pelo que enuncia, caberia ao locutor ocultar-se, ou
seja, não deixar no enunciado a sua marca. Uma vez entendida como adesão, a
modalização deixa de ser pensada como relação entre enunciador e seu enunciado,
ou mesmo entre aquele e o enunciatário. O que importa, segundo a autora, é “o
fato de o locutor deixar-se claro ou não no enunciado” (p. 35). Nesta mesma
página, encontramos a definição de modalização, proposta por ela: “(...)
podemos definir a modalização da seguinte maneira: é um processo contínuo de
adesão do locutor ao seu enunciado evidenciado neste enunciado através de
elementos descontínuos”.
Finalmente, com Meyer,
devemos reconhecer que a adesão se estende numa linha contínua, na qual
distinguimos entre dois pólos: um de máxima e outro de mínima adesão. O que se
verifica, aí, é “uma progressão de maior ou menor adesão, mais ou menos
compromisso com o enunciado produzido” (p. 36).
Concordamos em que, ao
assumir a palavra, ao produzir um enunciado, o locutor expressará sempre algum
grau de adesão; no entanto, intentando satisfazer aos objetivos de nossa análise,
não consideraremos a modalização como um fenômeno geral a toda enunciação.
Assim é que há enunciados não modalizados. O conceito de modalização encerra a
ideia do “como se diz”, cremos ser necessário reconhecer que modalizar um
enunciado significa pretender assumir responsabilidade pelo que se enuncia; de
certo modo, a modalização “reforça” ou “atenua” o comprometimento do locutor,
de sorte que o interlocutor também se sinta disposto a compartilhar com o
locutor a responsabilidade pela adesão.
Retome-se o exemplo de
Weber, referido por nós na página 13, a fim de que se evidencie uma
marca de modalização:
(1) “No campo
científico, é absolutamente certo que carece de personalidade
quem entra em cena como “empresário” da causa a que se deveria consagrar, ou
tenta legitimar-se, mediante a sua “vivência” e continuamente pergunta: como
demonstrarei que sou algo mais do que um simples especialista”.
Uma vez compreendida a
modalização em termos de adesão maior ou menor do enunciador ao seu enunciado,
não parece haver dúvida de que, em (1), reproduzido acima, o enunciador adere
completamente ao que enuncia em “que carece de personalidade quem entra em cena
como empresário...”. O enunciador diz estar “absolutamente certo” de que quem
se comporta como um empresário num empreendimento científico a que deveria
consagrar toda a sua vida carece de personalidade. O enunciador se compromete
totalmente com o conteúdo de seu enunciado. O enunciador se mostra (a
modalização marca esse “mostrar-se” do enunciador) seguro de que é esse o caso
afirmado. Não nos escusamos de lembrar que ainda não há um EU explícito (o
enunciador não diz “estou absolutamente certo”); mas sua ausência linguística é
presença enunciativa através da marca modalizadora “absolutamente certo”.
3. A proposta
de Cossuta
Em seu Elementos para a leitura dos textos filosóficos (2001), sem embargo do reconhecimento dos problemas implicados por um método de leitura, Cossuta busca ultrapassá-los, propondo uma via de acesso à aprendizagem da leitura que, segundo ele, “só pode ser filosófica” (p.4), na medida em que não escusa a reflexão. O pressuposto segundo o qual é possível ensinar a ler atravessa todas as reflexões que se ocupam dos mecanismos de produção textual de sentidos na Linguística moderna. E no horizonte dessas reflexões a questão do método se impõe desde o limiar. Os professores percebem o anseio de seus alunos por um caminho que lhes permitam ler melhor; não raro, eles esperam que os professores lhes ofereçam ferramentas pelas quais eles possam interpretar e compreender os textos que leem com mais eficiência e profundidade. Ler com mais eficiência e profundidade significa ser capaz de não só penetrar as camadas subjacentes de sentidos de um texto, mas também de ir além do texto-alvo. É nesse ir além que reside a competência intertextual do leitor: o leitor eficiente é aquele que não vê o texto como mera superfície de palavras, como uma complexa estrutura sintagmática encerrada em si mesma, mas aquele que reconhece relações entre o texto-alvo e outros textos, quer porque esses textos estejam, de algum modo, presentes no texto-alvo, quer porque ele, leitor, é capaz de recuperá-los em sua memória. Eficiência e profundidade envolvem, portanto, ultrapassamento da linearidade textual, abertura sociointeracional para além do texto-alvo. A eficiência em leitura se mede pela capacidade de o leitor ultrapassar os domínios da horizontalidade, verticalidade e superficialidade do texto.
Cremos também, com
Cossuta, que uma proposta de método de leitura deve começar por uma elaboração
teórica sobre elementos tangíveis num texto – elementos que, embora tangíveis,
já remetam o leitor para níveis de significação não explícitos. Nosso intento,
nesta seção, é apresentar e esclarecer a proposta de Cossuta, destacando as
etapas que melhor nos conduzirão ao longo de nossa análise.
3.1. A cena filosófica
O conceito de cena
filosófica, que alude ao conceito de cena da enunciação, já
apresentado e definido aqui, servirá para situar os fatos sobre os quais nos
debruçaremos no desenvolvimento de nossa análise. Segue-se o que nos escreve
Cossuta no que toca à cena filosófica:
O texto se apresenta como uma polifonia enunciativa
organizada em torno de uma referência constituída pelo nome próprio, pelo
pronome pessoal em primeira pessoa ou pelas denominações de escolas. Ele
coloca o movimento da reflexão sob a dependência de um locutor que é tido como
aquele que o produz ou que assume sua responsabilidade (...) (p. 11, ênfase no
original).
Tendo em vista o exposto
nesse passo, convém precisar o que nossa análise recobrirá. Em primeiro lugar,
estaremos interessados em dar a conhecer a dimensão polifônica do texto, para o
que descreveremos as formas como o enunciador é marcado no texto e os modos
como ele instaura outras vozes com as quais dialoga. Em segundo lugar,
interessar-nos-á fazer ver que o próprio processo de desenvolvimento do
pensamento do filósofo se dá em dependência das demarcações que ele faz
relativamente a essas outras vozes com as quais dialoga.
Em suma, pode-se dizer
que nos ocuparemos em descrever o aparelho formal da enunciação
filosófica (Cossuta, 2001, p. 12), o qual constitui “a matriz que
produz o conjunto de marcas textuais que atestam a presença de sujeitos
falantes”.
3.2. A função-autor em Cossuta
“Ler um texto – escreve
Cossuta – é colocar-se de imediato diante das operações que efetuam seu sentido
e lhe conferem sua unidade” (p.7). Cossuta se debruça sobre duas funções: a
primeira das quais recobre o conjunto de regras e procedimentos que é
responsável por conferir ao texto sua coesão interna[5]. Esse segundo conjunto compreende as unidades linguísticas
referenciais responsáveis pela tessitura do texto, contribuindo para a
construção do processo de leitura linear do texto. Conquanto estejamos de
acordo com Cossuta no tocante ao seu reconhecimento de que “ler é proceder a um
constante movimento de vaivém que liga e sobrepõe simultaneamente os
constituintes da frase e as frases entre si” (ib.id.), é preciso entender que,
ao contrário do que parece sugerir Cossuta, “a unidade de sentido global” não
se reduz a esse movimento, que se dá no nível da materialidade textual. A
unidade de sentido global é um fato de coerência, e não propriamente de coesão,
muito embora a coesão contribua para o estabelecimento dela. No entanto, a
unidade de sentido global, a que é capaz de atingir o leitor, prende-se à capacidade
que ele tem de calcular um sentido para o texto, tarefa para cuja realização
ele mobiliza uma série de conhecimentos prévios armazenados em sua memória, mas
não fornecidos pelo texto, embora ativados pelas expressões linguísticas que
compõem a sua superfície. Ademais, aquela unidade depende de que o leitor ponha
em movimento sua capacidade de inferenciação, mediante a qual, utilizando seu
conhecimento de mundo, ele estabelece relações não explícitas entre elementos
do texto, ou entre esses elementos e os conhecimentos de que ele já dispõe e
que são necessários à compreensão do texto. É, portanto, desse trabalho
realizado pelo leitor que depende a coerência. A coerência não está no texto em
si, mas se constrói na relação autor-texto-leitor. Evidentemente, quem escreve
tem um projeto de dizer que pretende seja coerente e o realiza através de um
texto, e quem interpreta precisa reconstruir a coerência pretendida pelo autor.
A segunda função de que se ocupa Cossuta se depreende do seguinte
excerto, referido abaixo:
[ela] concerne a tudo o
que se relaciona com a unidade referida pelo nome próprio, pela função-autor,
pela voz que subentende o texto ou se esconde atrás da impessoalidade do
conceito. Essas referências enunciativas permitem
compreender como se organizam os modos de exposição, a forma do processo de
pensamente, a repartição da fala e a disposição dos pontos de vista. (p.
9, ênfase no original).
Basicamente, este trabalho tomará para unidade central e
orientadora da análise a chamada função-autor, dada a sua
importância na estruturação do aparelho formal de enunciação filosófica.
Ademais, a centralidade da função-autor se justifica por sua importância
decisiva no estabelecimento de uma cena filosófica – “o resultado desse
trabalho de escrita pelo qual o filósofo representa o processo de pensamento no
próprio âmago do texto” (p. 14).
Dizer que nossa análise se orienta pela função-autor não é o mesmo
que dizer que ela se reduz a essa função. Se tomamos como ponto de ancoragem do
percurso analítico a função-autor, é porque também reconhecemos ser ela a
instância que assegura a unidade do discurso, a sua paternidade e o seu
controle (Cossuta, p. 17).
A função-autor não se confunde com o autor empírico, e ela está
longe de ser uma unidade enunciativa; é uma função do discurso plurivocal.
Veremos que, não obstante ser ela responsável por “atribuir papeis, distribuir
a fala e coordenar os elementos de análise em um ponto de vista unificado”
(p.15), ela mesma funda uma estratificação enunciativa, já que dela depende a
possibilidade da variação nas formas como se apresentam os sujeitos no interior
de um mesmo texto (Cossuta, p. 18).
Não nos poderíamos escusar de notar que é a função-autor também
responsável pelo regime enunciativo, o qual “designa num fragmento,
num trecho ou num livro a forma predominante da incumbência enunciativa” (p.
16). O regime enunciativo é, portanto, a situação discursiva em que se verifica
a predominância de uma forma de sujeito no interior do discurso. Consoante
lembra Cossuta, predominância não se confunde com exclusividade. Assim, num
dado discurso, é possível que, predominando um sujeito enunciador universal
apagado, outras formas-sujeito se subordinem a ele.
3.2.1. As formas enunciativas da função-autor
Como seja nossa pretensão desenvolver, neste trabalho, um sistema
de reflexões que possa nos orientar em nossa prática pedagógica e em futuras
pesquisas, quer no campo da filosofia, quer mais imediata e diretamente no
campo da linguística, nossa área de especialização, passaremos em revista as
quatro formas de sujeito que nos dá a saber Cossuta, não sem ter em vista a
pertinência delas à nossa análise.
A primeira forma de sujeito é a do sujeito enunciador
universal que compreende numa única forma todas as referências
possíveis, inclusive a segunda e terceira pessoas. Nesse caso, o filósofo apaga
os vestígios da construção da reflexão e representa os estados-de-coisas como
se eles fossem fatos cuja existência não dependesse de um ponto de vista que os
constrói. O filósofo suprime a noção de ponto de vista, deixando “a verdade
falar por si mesma” (Cossuta, p. 15). É preciso, no entanto, ter em conta o
fato de que esse apagamento não é absoluto; é uma estratégia, uma manobra
discursiva de que se vale o enunciador, que produz a ilusão de objetividade,
qual seja, a crença em que às ocorrências do mundo de que trata o discurso se
liga a transparência da verdade. Um leitor experiente, no entanto, deve ser
capaz de reconhecer que quem diz o mundo constrói sempre uma versão
sobre o mundo. O discurso dispensa um trabalho, ou um tratamento sobre o
mundo. O real entra na consciência dos sujeitos estruturado nas categorias
disponibilizadas pela linguagem e organizadas na forma de discursos. O mundo
experienciado pelos homens não entra na sua consciência de modo caótico, mas
organizado, estruturado pelas categorias da linguagem, isto é, na forma de
conhecimento, textualmente fundado. Passemos, agora, à segunda forma de
sujeito.
A segunda forma de sujeito é a do sujeito enunciador de
referência, que assegura a função autor. Segundo Cossuta (p. 22), seu
conteúdo se neutraliza, mas pode abrigar remissões situacionais e biográficas.
Essa função está no cerne da elaboração da cena filosófica e da construção do
espaço textual.
A terceira forma de sujeito é a do sujeito de
identificação, a qual torna possível a exteriorização de um conteúdo de
consciência, muito embora, por força de sua generalidade, tem alcance
universal. Essa forma se expressa pela primeira pessoa, a qual garante o
processo de análise, porquanto “é ao mesmo tempo forma de exposição e conteúdo
exposto” (ib.id.). Nesse caso, o “eu” enunciador identifica-se com o “ele”,
instalado no enunciado. Por isso, embora seja um índice de subjetividade (eu
penso, eu digo), é propenso à universalidade (p. 20).
Finalmente, a quarta forma de sujeito recobre a forma do sujeito
enunciador singularizado, que está enraizada numa biografia e que é
responsável por elucidar elementos objetivos (cronológicos, factuais,
biográficos) ou por produzir enunciados em correlação com uma singuralidade que
se apresenta como exemplar. O Discurso do Método de Descartes
parece um exemplo adequado para ilustrar essa forma de sujeito.
Cumpre, atentar, em suma, para o que se segue: “a análise
cuidadosa do regime enunciativo ou de suas transformações oferece uma mina de
informações sobre a imagem intrafilosófica da atividade filosófica ou do
filósofo que transparece ou se mascara no texto” (p.30).
3.3.
A função de endereçamento
Urge encetar essa subseção retomando nossa posição sobre o lugar
enunciativo que conferimos ao leitor, para, em seguida, apresentar e discutir a
perspectiva de Cossuta sobre o papel do destinatário. Neste
trabalho, assumimos a posição - que, em todo caso, não é nova na seara da
linguística enunciativa -, segundo a qual o leitor é um enunciatário, isto é,
uma instância pressuposta pela enunciação, uma entidade da enunciação,
correlata ao enunciador; e delegamos a função de alocutário a outros seres do
discurso aos quais o enunciador/locutor dá voz. Enunciatário e destinatário são
termos intercambiáveis para se referir ao leitor.
Considere-se o que se segue, a fim de que fique claro o
escopo da noção de destinatário para Cossuta:
O destinatário,
de fato, não é somente um alvo visado por si mesmo, mas constitui
uma mediação entre o autor e ele mesmo, por um lado, e, por outro,
entre a fonte enunciadora e a comunidade mais ampla que é visada. O
destinatário não é puramente passivo, ele opõe resistência potencial de sua
incompreensão, de seus preconceitos e mesmo de suas objeções. Todo esse jogo
pelo qual o texto figura uma resistência pode se efetuar tanto no diálogo
interior de uma consciência que se cinde e se opõe a si mesma, quanto na
filosofia dialogada (quer o diálogo seja construído de maneira homogênea por um
único locutor, quer ele suponha realmente dois interlocutores) (p.23, ênfase no
original).
Já de início avulta uma questão que, de fundo, é filosófica, qual
seja, a que diz respeito à possibilidade de todo discurso ser dialógico, a
despeito de sua pretensa monologicidade. Por exemplo, mesmo quem escreve num
diário, o faz supondo um outro-eu, uma alteridade-de-si-mesmo (o paradoxo é
sugestivo), que toma como leitor. É interessante pensar também em que, enquanto
escreve, o eu está lendo o que escreve, é, ao mesmo tempo, escritor (produtor)
e leitor (destinatário). O gênero discursivo denominado de diário é
ilustrativo da referida cisão a que se refere Cossuta e que nós, aqui,
sugerimos ser uma questão filosófica, por excelência (e psicanalítica, certamente).
Mas é preciso avançar na compreensão desse passo de Cossuta. O leitor não é
passivo, já que, como leitor, ele produz um gesto de interpretação,
ele mesmo é um agente socio-histórico (como tal, um sujeito atravessado por
preconceitos, crenças, opiniões, ideologias, valores que traz para o ato de
leitura); é um co-autor: autor de sua leitura, autor de uma leitura cuja
possibilidade o autor pressupõe que ele, leitor, poderá fazer; o leitor é,
portanto, co-autor porque intervém no domínio do imaginário do autor ao longo
do processo de produção do texto. Lembramos que o autor constrói uma imagem de
leitor e este, por sua vez, constrói uma imagem de autor. Vejamos outro
passo de Cossuta, no qual o que expomos aqui ficará mais claro. Acreditamos o
que nos ensina Cossuta neste passo é extensivo a outros domínios de
discurso; não se limita ao filosófico:
(...) a escrita, pela
referência ao leitor, permite introduzir o ponto de vista adverso que será
necessário reduzir ou compreender, e autoriza uma estratégia discursiva que,
servindo-se dos meios da explicação, da convicção, busca transformar o campo
geral dos pontos de vista em filosofia (p. 23).
Cossuta seguirá sustentando que o destinatário não só permite a
recepção do texto pelo contexto social e institucional em que se inscreve, mas
também serve de ponto de referência para a estruturação interna do texto, “já
que define em grande parte as condições de sua legibilidade” (ib.id.). Vale
dispensar sobre este fragmento alguma consideração. A expressão “condições de
legibilidade” significa condições de possibilidade de leitura. O produtor do
texto escreve visando a determinados leitores, isto é, em seu projeto de dizer,
está prevista uma comunidade de leitores em potencial. No momento em que ele
leva em conta esses leitores potenciais no curso mesmo de produção de seu
texto, ficam assegurados todos os aspectos que tornam possível a legibilidade
do texto. O texto, então, produzido comporta em si as condições que tornam a
leitura dele possível em virtude de o produtor ter levado em conta leitores em
potencial para o seu texto. Isso define, entre outras coisas, a escolha
temática, um dado conjunto de questões da qual se pretende tratar, uma forma de
abordagem dessas questões, o vocabulário, os objetivos perseguidos, as
estratégias mobilizadas para satisfazê-los, etc.
Tendo em vista o exposto, Cossuta insta-nos a que consideremos o
que chama de função de endereçamento. Considere-se o trecho a
seguir, em que o autor nos chama a atenção para a importância de levar em conta
essa função ao ler um texto:
Essa posição inicial de
uma referência enunciativa que relaciona o texto a um instância que o produz e
que por ele responde determina as marcas pelas quais o processo de leitura e o
papel do leitor são simultaneamente definidos. O fato de dirigir-se ao leitor,
de tentar persuadi-lo, de exortá-lo a filosofar, não é indiferente;
negligenciamos com muita frequência o estudo dessa função de
endereçamento (p. 11, grifo no original).
Essas marcas que definem tanto o processo de leitura quanto o
papel do leitor tocam tanto ao desenvolvimento da reflexão quanto dão forma à
presença de um leitor em potencial. Essas marcas fixam para o leitor real uma
posição que ele pode aceitar ou recusar, “conforme o trabalho de convicção faça
dele um discípulo, um observador distante ou um adversário” (p. 12).
Na subseção, vamo-nos deter a definir as formas de destinatário
propostas por Cossuta.
3.3.1.
Variações do Destinatário
É o sujeito enunciador na primeira pessoa que fixa o lugar da
segunda pessoa e da não-pessoa (3ª pessoa), a qual não se confunde com a
instância que aqui chamamos de alocutário. É preciso distinguir entre um “ele”
que é instalado no enunciado, que pode fazer referência a substantivos [+
humano] ou [- animado], e um “ele” que, instalado no enunciado e referindo-se a
substantivos [+ humano], é uma voz cuja fala é citada, ou à qual se atribui um
momento de discurso. Assim, num enunciado como “Fale com ele”, há que
distinguir um “eu” enunciador que diz “Fale com ele”, um enunciatário
pressuposto na enunciação, e um “ele” instalado no enunciado para demarcar
simplesmente o domínio da não-pessoa (mas não do alocutário). Compare-se esse
enunciado com o seguinte: “Ele disse que você o rejeitou”. Nesse caso, além do
enunciador e do enunciatário (a pessoa a que o enunciado se destina), há um
destinatário outro a que a oração “você o rejeitou” assume a forma de um dito
referido a esse alocutário “ele”. É evidente que, ao recuperar o discurso do
outro, o enunciador pode não ser fiel (em se tratando de discurso indireto, há
sempre um grau de análise quer da forma quer do conteúdo do que é incorporado)
às escolhas lexicais e a estruturação sintagmática feitas por esse outro. O que
se verifica, nesses casos, é uma paráfrase; portanto, não se evocam as palavras
realmente proferidas por esse outro, de modo que a ideia original já está
transformada na reelaboração feita pelo enunciador. Seja como for, importa
distinguir entre o que é de responsabilidade do enunciador e o que é de responsabilidade
do alocutário, cuja fala é recuperada. Não é tão-só o enunciador quem diz “você
o rejeitou”; o conteúdo desse enunciado é responsabilidade atribuída ao “ele”
instalado no enunciado.
Considerem-se as três formas de destinatário apresentadas por
Cossuta (p.24). A primeira forma de destinatário é a do destinatário
universal, que se confunde com a função geral do enunciador e cuja presença
pode, no entanto, ser atestada indiretamente. Essa forma de destinatário inclui
tanto o leitor quanto outros possíveis alocutários a que o enunciado diz
respeito.
A segunda forma é a de destinatário inclusivo, caso em
que o enunciador e o leitor são representados sob a marca da primeira pessoa
plural (nós), primeira pessoa referencialmente pluralizada (a gente)[6] e outras
construções substantivas que façam referência ao eu e ao leitor.
Finalmente, há um destinatário
de exclusão, assentado numa diferenciação marcada por um “você” (ou “vós)
de que se distancia, um “a gente” ou “o leitor” impessoal e neutralizador, ou
ainda marcada pela assimilação aos “outros”, que se representam como
adversários ou pertencem à massa de opinião.
Não vemos que haja
qualquer conflito semântico entre o conceito de enunciatário, esposado por
nós, e o de destinatário, adotado por Cossuta. O leitor é, do ponto de
vista da teoria da enunciação, quando se considera o texto escrito, o
enunciatário – o correlato enunciativo do enunciador, no nível da enunciação.
Operacionalmente, a noção de destinatário, tal como apresentada e desenvolvida
por Cossuta será pertinente. O que chamamos de alocutário é
que deve ser distinguido dessas formas de destinatário a que se refere Cossuta,
pois que alocutário não é aquele a que o enunciador se dirige,
mas àquele a quem o enunciador atribui um dizer, um momento do discurso – um
dizer que é incorporado no discurso do enunciador.
3.3.2. A terceira pessoa: as funções
dialógica e polêmica
Já nos referimos, na
seção 2 deste trabalho, à reversibilidade entre os actantes “eu” e “tu”.
Cossuta (p. 30) assinala a solidariedade entre essas formas. A primeira pessoa
instaura uma referência enunciativa constante; a segunda transforma-se à
proporção que se desenvolve a convicção do enunciador.
Instalada num domínio
oposto às duas pessoas na base das quais se organiza a atividade discursiva, se
acha a não-pessoa que “constitui um lugar vazio no processo enunciativo,
suscetível de acolher qualquer referência contextual (p. 30)”.
O domínio dessa
não-pessoa pode abrigar, portanto, doutrinas contemporâneas ou antigas,
autores, instituições, práticas e saberes, os quais podem ser referidos,
citados ou representados pelas vozes dos sujeitos enunciadores que os
representam e que são evocadas no texto.
O dialogismo de que nos
ocupamos na seção 2, é resultado desse “jogo múltiplo de referências”
instaurado no texto. Consoante nota Cossuta, cabe ao leitor, em face do
reconhecimento da função dialógica fundadora de todo discurso, “(...) levantar
todas as formas através das quais se efetuam essas referências: formas
explícitas (que podem chegar à alusão – “pode ser que objetem que...”), mas
também implícitas (subentendido)” (p.31).
Não menos importante é
determinar a que instância enunciativa são atribuídos os enunciados e de que
modo o são.
(...) com efeito, se o
texto, através da função dialógica, constrói sua abertura no campo plural das
posições filosóficas, ele se fecha e se encerra no mesmo movimento, pois é o
sujeito enunciador na primeira pessoa que está no centro da perspectiva e
assegura a preparação do que é assim integrado (ib.id.).
Como se vê, a função
dialógica se esteia sobre um movimento dialético que põe em contato permanente
a abertura à pluralidade e o encerramento na unidade. A pluralidade das vozes
discursivas e a unidade discursiva sempre pretendida pelo sujeito-autor (a
função-autor quer ser garantia dessa unidade) estão dialeticamente articuladas.
A “síntese” é atingida na encenação, momento em que “a pluralidade é
apresentada ora de maneira neutra e distanciada, o mais objetivamente possível,
ora fica submetida a uma dramatização intencional” (p. 31).
Essa “síntese” se faz
tanto mais necessária e compreensível quanto mais conscientes estivermos de
que, malgrado o fato de todo discurso supor uma estrutura dialogizada e, por
conseguinte, abrir-se a uma pluralidade de vozes, sua existência se funda numa
subjetividade que se pretende centralizadora, que se esforça sempre por
garantir a unidade do sentido, sustentando um ponto de vista, nem que tenha de
se servir da pluralidade para assegurar seu intento, já que a unidade
pretendida precisa ser atingida silenciando a pluralidade, ou invalidando as
teses que ela sustenta. Como a pluralidade discursiva é condição de existência
do próprio discurso, está sempre já-aí, é pressuposta pelo discurso, por vezes,
as vozes conflitantes ou “ameaçadoras” precisam ser incorporadas, visto que
dessa incorporação depende o progresso e o sucesso do empreendimento
argumentativo levado a efeito pelo autor; mas essas vozes são trazidas à cena
discursiva para que suas posições sejam examinadas, conciliadas ao projeto de
dizer do autor, ou refutadas, sempre tendo em vista a unidade de sentido. Enquanto
a pluralidade é um fato do discurso (de todo e qualquer discurso), a unidade
situa-se no âmbito do projeto de dizer do autor. Mas esse autor é um sujeito
atravessado por muitos dizeres, por muitas formações ideológicas; é um sujeito
sócio-histórico que tem a pretensão de ser senhor do que diz, de ser centro do
seu discurso, sem ter consciência de que outros dizem através de seu discurso.
A pluralidade do discurso pode, portanto, estar explícita, ou situar-se nos
bastidores do dizer do sujeito que tem a ilusão de estar sob o controle total
do que diz. Leiamos, novamente, Cossuta:
Assim como uma filosofia pressupõe o espaço aberto da
discussão e do exame, ela deve situar-se invalidando as teses adversas. Mesmo
que o diálogo filosófico rompa com a violência, ele perpetua o antagonismo e a
luta pelo reconhecimento da verdade, e, por isso, comporta explicitamente a
dimensão do combate como um de seus componentes fundamentais (p. 34).
Subjacente a esse passo
de Cossuta, está o pressuposto segundo o qual o discurso é uma arena de
conflitos. Essa visão não será objeto de elucubrações aqui, evidentemente.
Limitamo-nos a enfatizar a ideia de antagonismo e de luta que, à luz de uma
concepção marxista da linguagem (veja-se Bakhtin), com a qual se busca pensar o
funcionamento do discurso: cada palavra se apresenta como uma arena em que se
inscreve a luta de classes, o conflito entre posições ideológicas. Em suma, é o
lugar onde se dá a luta pelo exercício do poder.
Considere-se, agora, a
questão do apagamento do ponto de vista. Circunstâncias há, em que, segundo
Cossuta (p. 32), o texto elimina, aparentemente, qualquer consideração de ponto
de vista. Pode suceder, inversamente, que a “abolição do ponto de vista” se
expresse na forma de um ponto de vista único, sustentado num texto que,
aparentemente, não se funda numa função dialógica.[7]
Interessa-nos, no tangente ao apagamento desse ponto de vista,
ressaltar a função que cumpre o pronome “-se” anexado a verbos na terceira
pessoa do singular (verbos que, na tradição gramatical, se classificam de
transitivos indiretos[8]). Tais construções com “-se” são tipicamente genéricas. Pelo uso
delas, o sujeito torna-se bastante indeterminado, e todas as pessoas do
discurso são abrangidas. Do ponto de vista pragmático, isto é, considerando-se
sua função no uso da língua, tais construções podem sinalizar a frouxa ou
apagada adesão do enunciador ao valor de verdade ou validade do que enuncia. O
emprego do “-se”, nessas construções, serve à estratégia de desresponsabilização
do enunciador pelo conteúdo enunciado. De certo modo, o enunciador não se
compromete totalmente pelo que enuncia; ele pode até aderir à posição
enunciada, pode anuir ao que é enunciado, dependendo da construção em que o
“-se” figura, mas compartilha sua adesão com outros enunciadores que não estão
determinados. Por exemplo, em “Sabe-se que o consumo excessivo de álcool é
prejudicial à saúde”, a adesão do enunciador ao que é comunicado não está
manifesta. Esse saber é compartilhado com uma comunidade de falantes, da qual
faz parte a comunidade científica. Ao escolher o uso de “sabe-se”, o enunciador
tem a intenção de mostrar que esse saber é de ordem geral, é um saber já
popularizado; quem tem o mínimo de cultura científica sabe que o consumo
excessivo de álcool é prejudicial. Assim, o enunciado expressa uma verdade que
se impõe, que deve ser reconhecida, porque não se reporta a uma fonte
subjetiva; trata-se de uma verdade objetivada, apropriada por um senso-comum.
Note-se que, ao usar “sabe-se”, o enunciador diz implicitamente “não sou eu
quem o diz”; o conteúdo do saber é do domínio do senso comum, de modo que esse
enunciado poderia ser dito tanto por um médico quanto por qualquer pessoa leiga
que reconheça o malefício do consumo excessivo do álcool. De passagem, cabe
notar que a oração que se prende ao verbo “saber” encerra um fato pressuposto.
Quem diz “sei que x é o caso”,assume ser um fato toda a sequência
que integra a valência do verbo “saber” (p.ex. Sabemos que Luís não
virá à aula hoje. O trecho sublinhado é um fato pressuposto por força do
uso do verbo “saber”, que se diz, por isso, um verbo factivo).
No tangente ao
funcionamento polêmico do discurso, cingimo-nos a notar que um discurso se diz
polêmico, sempre que a polissemia é controlada, uma vez que seus interlocutores
procuram cada um por si dar uma direção ao referente do discurso. Há uma
disputa sobre o sentido de que tem de se revestir esse referente (Orlandi,
2006, p. 29).
Toda a filosofia se
desenvolve e se constitui a partir de uma outra. Isso é verdade também para
qualquer domínio discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base
de outros discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta, “(...) cada filosofia
pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta “todo começo
é apenas recomeço” (p. 33). Aqui nos parece estar a especificidade do discurso
filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns aos outros
(no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela reelaboração, pelo
retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as teses, os argumentos, a
abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova etapa
de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que seja para dela
se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzscheano. Esse
recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é ele o
próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento que,
retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia
permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo
Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade
do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade,
jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por
isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da
verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os
mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas
nesse percorrer.
Se não há um discurso
inaugural, tampouco há um sujeito adâmico, também o discurso filosófico
engendrará suas formas na herança de enunciações filosóficas (daí o recomeço).O
filósofo mobiliza uma série de atitudes, de estratégias pelas quais essa
herança se faz presente em sua obra. Essa é uma questão que, no entanto, não
nos ocupará aqui, por limitações de tempo e espaço. Na próxima seção,
desceremos a analisar o texto de David Hume, com vistas a compreender o
processo de desenvolvimento de seu pensamento pelo reconhecimento do modo como
as marcas de sujeito são instaladas nos enunciados e do modo como se vai
construindo o domínio do endereçamento e da não-pessoa.
À luz das considerações
desenvolvidas nesta subseção, cuidamos que se pode pensar toda a história da
filosofia como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de
modos vários e complexos. Pensamos também que é tarefa do estudioso e estudante
de filosofia também o debruçar-se sobre a história do pensamento filosófico,
com vistas a investigar as formas como os discursos que compõem essa memória
discursiva se articulam, se constroem por assentimento ou refutação, por
retomadas, reelaborações, alusões, tendo sempre em vista o diálogo constante
que os atravessa, mesmo quando esse diálogo, paradoxalmente, assume formas de
silenciamentos. Aqui, vale lembrar uma lição cara aos analistas do
discurso: em matéria de linguagem, as formas de silêncio, o não-dito
também significam, também dizem.
4. Análise do texto de David Hume
Antes de encetar nossa
análise do texto de Hume, cujo objetivo basilar será dar a conhecer o modo como
o desenvolvimento do pensamento do filósofo mantém estreita relação com as
formas como a função-autor se desdobra, instaurando diferentes marcas
enunciativas, delimitando domínios dialógicos e estabelecendo o domínio da
não-pessoa – domínio que é despojado de representação enunciativa[9] e que recobre os
objetos de que trata o discurso.
Na parte introdutória, de cuja análise nos ocuparemos,
inicialmente, Hume examina o alcance das descobertas filosóficas e científicas,
ao mesmo tempo em que expõe os objetivos modestos de sua investigação. Nessa
parte, é importante ver que Hume já situa seu discurso num espaço dialógico, já
estabelece relações dialógicas com as comunidades filosófica e científica. Ao
estabelecer esse espaço dialógico, sua preocupação é criticar a atitude
assumida por filósofos e cientistas em face do legado da tradição. Em outras
palavras, Hume critica os filósofos e cientistas que tendem a depreciar os
conhecimentos legados pelos que os precederam, ao passo que deixam entrever
elogios aos seus próprios sistemas.
Na parte 1, que ostenta o título Das ideias, sua origem,
composição, conexão, abstração, etc., Hume se ocupará, em seções distintas,
do problema da fonte do conhecimento humano, para o que ele empreende uma
investigação sobre a origem e a natureza das nossas ideias, bem como suas
relações. Não se ignore que a obra se destina ao tratamento da natureza humana.
Hume está interessado em propor uma ciência da natureza humana, para cuja tarefa
ele assume ser a natureza humana fundamento para a compreensão das demais
ciências. Hume, tendo em vista o estudo da natureza humana, reconhece a
concorrência entre duas abordagens: na primeira das quais, os seres humanos são
vistos como criaturas sociais e ativas, cujo comportamento é influenciado por
motivos e sentimentos; na segunda, enfatiza-se o aspecto racional deles. Embora
Hume aceite que ambas as abordagens captam aspectos relevantes da natureza
humana, elas são insuficientes na tentativa de dar conta da totalidade e
complexidade dessa natureza.
O método proposto por Hume para se ocupar do estudo da natureza
humana é, em parte, o método experimental de que se serviu Newton, no seu Principia.
Hume pretende estendê-lo ao domínio da filosofia moral.
Cremos que essa síntese, fornecendo uma contextualização
suficiente das preocupações de Hume, possibilitará que nosso curso analítico se
desenvolva sem que precisemos alargar os limites de seus objetivos, isto é, sem
que precisemos, durante a análise, discorrer sobre os problemas de que se ocupa
Hume. Decerto, escapa aos propósitos desse trabalho uma discussão detida sobre
as questões sobre as quais se debruça Hume.
4.1. As
marcas enunciativas no texto de Hume: função-autor, endereçamento e não-pessoa
Começaremos por considerar um trecho em que o enunciador não deixa
nenhuma marca explícita no enunciado. Nesse caso, embora a adesão do enunciador
ao que enuncia não seja marcada, ela se manifesta na medida em que o enunciado
parece enunciar-se por si mesmo, parece dar a conhecer uma verdade que se
impõe, sobre a qual parece haver um consenso.
(6) Nada é
mais usual e mais natural, para aqueles
que pretendem oferecer ao mundo novas descobertas filosóficas e científicas, que insinuar elogios a seu próprio sistema
depreciando todos os que foram propostos anteriormente.
Em (6), o enunciador, pressuposto na enunciação, não se marca como
locutor. Identifica-se com o sujeito universal. Assume como fato usual e
natural, e indiscutível, a forma como certos estudiosos da filosofia e da
ciência se comportam em face do legado dos que os precederam. O trecho
sublinhado mostra que a sequência “que pretendem oferecer ao mundo novas
descobertas filosóficas e científicas” não é de responsabilidade do enunciador,
mas do destinatário reportado “aqueles”, ou seja, um alocutário a que se
atribui uma dada posição. O “aqueles” recorta, formalmente, o espaço da
terceira pessoa, que trazida à cena enunciativa, sinaliza o espaço dialógico no
discurso. Hume começa a desenvolver seu discurso, começa a demarcar os limites
de seu discurso a partir do confronto com uma atitude outra, com certa outra
forma de ver, de compreender, da qual ele se distancia. O leitor é posicionado
como um destinatário de exclusão, já que é mantido no lugar de mero receptor do
enunciado; é posicionado à margem da cena enunciativa representada. Veja-se o
que se segue a esse trecho:
(7) De
fato, se se contentassem em lamentar a ignorância que ainda nos envolve nas mais importantes questões que pode enfrentar o
tribunal da razão, seriampoucos os que, tendo alguma familiaridade com
as ciências, não concordariam com eles.
Agora, o locutor, por força do uso do “nos”, se inclui na classe
dos que se percebem envolvidos pela ignorância. O pronome “nos” tem como escopo
tanto o locutor, quanto os cientistas e filósofos indeterminados pela forma
“aqueles” (veja-se o exemplo (6)). Em suma, “nos” é uma marca inclusiva: reúne,
num mesmo grupo referencial, vários interlocutores para os quais a ignorância
sobre certas questões é um problema a ser enfrentado. Em seguida, o locutor
inclui na esfera da concordância no que toca à nossa ignorância, uma maioria de
pessoas “familiarizadas com as ciências”. Há, então, encenadas as vozes do
“nós”, especialistas em ciência e filosofia, que devem reconhecer sua
ignorância acerca de muitas questões enfrentadas pela razão, e a de “outros”
(eles), que recobre o grupo de pessoas familiarizadas com a ciência e que, por
isso, forçosamente, deveriam consentir nesse estado de ignorância. Cremos que é
nesse grupo, constituído pelos “poucos”, que se deve incluir o leitor. O leitor
se identifica com um destinatário universal.
Seguem-se alguns exemplos em que o locutor é marcado no enunciado.
(8) É daí que surge, em
minha opinião, o preconceito comum contra todo tipo de raciocínio
metafísico, mesmo por parte daqueles que se dizem doutos e que
costumam avaliar de maneira justa todos os outros gêneros literários. Entendem
eles por raciocínio metafísico, não os raciocínios de um ramo
particular da ciência, mas qualquer espécie de argumento que seja de alguma
forma abstruso e requeira alguma atenção para ser compreendido.
(9) De minha parte,
não tenho a pretensão de que a filosofia aqui desenvolvida
goze de tal privilégio, se fosse tão fácil e óbvia, aliás, isso seria para
mim um forte motivo para se suspeitar dela.
(10) As percepções da mente
humana se reduzem a dois gêneros distintos, quechamarei de
IMPRESSÕES e IDEIAS.
(11) Percebo,
portanto, que embora haja em geral uma grande semelhança entre nossas
impressões e ideias complexas, não é uma regra universalmente
verdadeira que elas sejam cópias exatas umas das outras. Consideremos agora
o que ocorre com nossas percepções simples.
Nos fragmentos acima, o locutor se manifesta claramente. Em (8), é
marcado pela expressão que delimita sua posição pessoal “na minha opinião”,
segundo a qual há um preconceito comum contra toda sorte de raciocínio
metafísico. Essa posição se desenvolve em contraste também com outro
destinatário reportado, referido por “aqueles que se dizem doutos e que
costumam avaliar de maneira justa todos os outros gêneros da literatura”.
Novamente, cumpre notar que esses outros enunciadores não estão identificados,
mas podem ser inferidos pelo co-texto. Esses outros enunciadores aos quais se
atribui um momento de discurso (já que são eles quem se consideram doutos e que
costumam avaliar de modo idôneo outros gêneros da literatura) são tomados como
referentes face aos quais o discurso de Hume vai construindo sua perspectiva.
Em (9), o locutor, procurando delimitar o lugar de sua investigação, cujo fim é
atingir a verdade, em face de outras posições, nega que tal fim possa ser
alcançado por ela sem grande esforço. A credibilidade de uma filosofia é
dependente do esforço dispensado na busca pela verdade, segundo nos faz crer o
locutor.
O exemplo (10) patenteia o momento em que o locutor, assumindo a
forma de primeira pessoa do singular (EU), começa a desenvolver a sua
perspectiva filosófica sobre as questões de cujo domínio se ocupará. Tanto em (10)
quanto em (11), o locutor, por força da forma EU, manifesta forte adesão aos
seus enunciados. Em (11), é o locutor que entende não ser universalmente
verdadeiro que impressões e ideias complexas sejam cópias exatas umas das
outras. Ainda em (11), a ocorrência da forma “consideremos” serve para exortar
o leitor a que acompanhe o desenvolvimento do pensamento que, desde então, se
estenderá sobre “as nossas percepções simples”. Trata-se das percepções comuns
a todos os seres humanos, de cujo gênero, evidentemente, faz parte o leitor. O
leitor é um destinatário inclusivo.
Até onde é possível estender o escopo de nossa análise, parece-nos
lícito dizer que o leitor deste texto de Hume é posicionado no lugar de um
enunciatário a quem se destina um saber, do qual o leitor precisa se apropriar,
sobre o modo como nós, seres humanos, adquirimos nossas ideias. Em termos mais
radicais, o sujeito humeano, na medida em que se alinha com o discurso das
ciências experimentais, delimita o lugar dos especialistas, dos que partilham
de um poder-saber, tendo em vista as questões lhes dizem respeito, e o lugar do
leitor, que ora parece identificar-se com os poucos familiarizados com a
ciência, ora com aqueles que precisam aprender algo sobre o entendimento humano
com a leitura do texto. De modo geral, o discurso de Hume se desenvolve de modo
a cercear sítios de uma emergência dialógica do leitor com a função-autor. O
leitor é mantido na posição de quem precisa entender e cuja adesão é
pretendida. Não há formulações explícitas que o interpelem, que lhe permitam
inscrever-se no texto como uma instância polemizadora, conflitiva.
Vejamos mais um exemplo em que um alocutário se
manifesta no texto de Hume:
(12) Podemos observar
que, a fim de provar que as ideias de extensão e de cor não são inatas, os
filósofos nada mais fazem que mostrar que elas são transmitidas por nossos
sentidos. Para provar que as ideias de paixão e desejos são inatas, eles
observam que experimentamos previamente em nós mesmos
essas emoções. Ora, se examinarmos cuidadosamente esses
argumentos,veremos que eles nada provam, senão que as ideias são
precedidas por outras percepções mais vívidas, das quais derivam e as quais
elas representam.
Notemos, inicialmente, que, neste exemplo, a forma “podemos” é o
caso típico de um plural de autor, já que, através do dizer do locutor, fala
uma comunidade de saber especializada. Não é só ele, locutor, que pode
observar, mas é toda a comunidade de saber a que ele se afilia que o pode. É
possível ainda dizer que o leitor também é capaz de alcançar o mesmo
entendimento. Por conseguinte, esse “podemos” inclui o locutor, a comunidade de
saber, de que ele é um porta-voz, e o próprio leitor. Avancemos, pois. Esse
exemplo é ilustrativo de como a posição de Hume, de um locutor humeano, vai se
fixar, se legitimar. Sabemos que Hume era um partidário da filosofia empirista,
a qual, na história da filosofia, duelava com o racionalismo. Os empiristas
atacavam, especialmente, a tese racionalista do inatismo com que se explica a
origem de certas ideias do homem (como a que sustentou Descartes, por
exemplo). No entanto, se nos detivermos na leitura do texto novamente, veremos,
sem dificuldade, que o locutor posiciona-se contrariamente a filósofos que se
opõem à perspectiva racionalista, eles mesmos, supostamente, partidários do
empirismo. Esses filósofos preenchem o lugar de destinatário reportado, já que
lhes é atribuída uma posição. Ora, está claro que o trecho “nada mais fazem que
mostrar que elas são transmitidas por nossos sentidos”, bem como o trecho
que começa com “observam que”, são atribuídos a esses filósofos. Queremos dizer
que não é de total responsabilidade do locutor.
A ocorrência do “nós”, em “nós mesmos experimentamos”, indica se
tratar de todos os seres humanos. As formas “examinarmos” e “veremos”, com que
o locutor termina esse passo de seu discurso, têm o mesmo valor enunciativo da
forma “podemos observar”. Seu escopo inclui o locutor, os locutores e o próprio
leitor. Ficam, pois, estabelecidas instâncias diferentes na atividade
enunciativa. É imperioso atentar para o fato de que o locutor, confrontando sua
posição com a de outros, visa a causar a adesão do leitor à sua posição.
Expondo a fragilidade da posição a que se opõe, o locutor procura encaminhar
sua argumentação no sentido de causar no leitor uma anuência à abordagem que
ele, locutor, se está esforçando por desenvolver.
Considerem-se, doravante, ocorrências em que se verifica o uso de
um “-se” indeterminador e formas de modalização, que marcam a presença do
enunciador.
(13) Observe-se entretanto
que, apesar dessa imperfeição, podemos evitar dizer absurdos acerca desses
temas e somos capazes de perceber qualquer incompatibilidade que haja entre as
ideias, tão bem como se as compreendêssemos inteiramente.
(14) É impossível explicar
as causas últimas de nossas ações mentais. Bastasermos capazes de
dar uma explicação satisfatória dessas ações com base na experiência e por
analogia.
(15) É certo que
a mente jamais teria sonhado em distinguir uma figura de um corpo figurado –
uma vez que, na realidade, estes não são nem distinguíveis, nem diferentes, nem
separáveis -, se não houvesse observado que, mesmo nessa simplicidade, poderiam
estar contidas várias semelhanças e relações diferentes.
(16) Nada é mais
admirável que a rapidez com que a imaginação sugere suas ideias,
apresentando-as no instante mesmo em que elas se tornam necessárias e úteis.
Tomando-se o exemplo (13), vale dizer que ele se prende a todo o
excerto anterior que se inicia com “acredito que todo aquele que examinar o que
acontece com sua mente ao raciocinar irá concordar comigo que nós não
vinculamos ideias distintas e completas a todos os termos que utilizamos
(...)”. A ocorrência da forma “acredito”, não só marca a presença do
locutor, mas apresenta a posição do locutor de modo modalizado, pois não se
trata de um saber, mas de uma crença: o locutor projeta sobre seu enunciado uma
atitude de incerteza; atenua seu compromisso com o que enuncia. Tudo que se
segue à conjunção “que”, em “acredito que”, assume o estatuto de uma crença do
locutor. A forma “observe-se” é injuntiva e vale por “seja observado”. A
observação a que faz apelo o locutor se impõe a qualquer um de nós, quer
sejamos cientistas, filósofos, em suma, especialistas, quer sejamos leitores.
Vimos que o pronome “-se”, nessas construções, tem alcance geral. Com o uso de
“observe-se”, o locutor quer fazer ver tanto aos interlocutores quanto ao
enunciatário, leitor, que é um absurdo, entre outras coisas, pretender que nós
associamos ideias distintas e complexas a cada termo que utilizamos; assim
também é absurdo, segundo o autor, pretender que, ao falarmos de “igreja” e
“negociação”, por exemplo, explicitamos sempre todas as ideias simples de que
se formam as ideias complexas (Hume, 2009, p. 47). Esse absurdo é algo,
segundo pensa o locutor, que se impõe à observação de quem quer que
esteja preocupado em investigar questões de tal ordem.
Os exemplos (14), (15) e (16) dão testemunho de ocorrências de
construções que sinalizam a presença do enunciador no enunciado. Ademais, na
medida em que são índices de modalização, marcam modos de o locutor projetar
atitudes sobre o enunciado. Em (14), atualiza-se a modalidade do impossível.
Pragmaticamente, devemos entender que, na opinião do locutor, é impossível que
as causas últimas de nossas ações mentais sejam explicadas. Ele adere a essa
impossibilidade. A forma “basta” também indica uma adesão do locutor ao
conteúdo do seu enunciado. Nesse caso, ele adere à ideia de que é suficiente a
capacidade de dar uma explicação satisfatória daquelas ações com base na
experiência e na analogia. Ele, locutor, se compromete com o que enuncia. Em
(15), o locutor se manifesta na modalidade da certeza. É ele quem está certo de
que a mente humana não poderia jamais ter distinguido uma figura de um corpo
figurado se não contasse com o testemunho da experiência sensível. Aqui, o
locutor assume plena responsabilidade pela pretensão de verdade de seu
enunciado.
O que chamamos neste trabalho de alocutário é
uma posição enunciativa cuja a forma é de terceira pessoa ou de não-pessoa
(pronome ou substantivo). Casos há em que se instaura o domínio da
não-pessoa sem atualizar um alocutário, como no exemplo (17), abaixo:
(17) O homem dotado
de discernimento e de saber percebe facilmente a fragilidade do
fundamento, até mesmo daqueles sistemas mais bem aceitos e com
as maiores pretensões de conter raciocínios precisos e profundos.
Nesse excerto, o enunciador se apaga como locutor. Não há marca
explícita de sua adesão ao enunciado. O que se expressa é uma verdade que se
impõe. As partes sublinhadas indicam os domínios da não-pessoa instauradas no
enunciado. Essas formas não são destinatários reportados. São apenas domínios
de estado-de-coisas descritos no enunciado em face dos quais toma uma posição,
ainda que velada, ou não-marcada, o enunciador. O constituinte “o homem dotado
de discernimento e de saber” refere-se a cada indivíduo da classe cujos membros
são dotados da capacidade de discernir e de conhecimento, os quais são,
portanto, capazes de perceber a fragilidade do fundamento em que se baseiam os
sistemas cujos autores o locutor evoca.
5.
Considerações finais
Este trabalho se inscreve no intercurso entre linguística e
filosofia e visou dar a conhecer uma amostra, não exaustiva, de análise de um
texto filosófico com base num instrumental teórico elaborado pelas disciplinas
linguísticas que se ocupam dos mecanismos de produção de sentidos do texto e/ou
discurso. Parte desse instrumental teórico encontra-se apresentado e desenvolvido
em Cossuta (2001), em cuja proposta metodológica de leitura nos baseamos.
Esperamos que esta exposição tenha contribuído para tornar patente
a importância fundamental que desempenha o desenvolvimento de uma competência
de leitura em todo aquele que se exercita na filosofia, quer enquanto
interpretante de textos filosóficos, o qual não é, como mostramos, jamais
um sujeito passivo para quem o texto é um objeto chapado e a leitura um mero
processo de decodificação de sinais, mas um sujeito atuante, produtor de
sentidos, que deve ser capaz de realizar um gesto de interpretação, quer
enquanto produtor de textos filosóficos, cuja confecção não é possível sem o
exercício dialógico, pela leitura, que coloca o filósofo em contato permanente
com a tradição.
Os mecanismos discursivos de cuja descrição nos ocupamos aqui não
esgotam, evidentemente, o repertório de fenômenos textuais e discursivos cuja
apreensão deve estar na agenda de qualquer leitor que mantenha um convívio
aturado com textos escritos. Um dos méritos do trabalho de Cossuta é chamar-nos
a atenção para o fato de que os textos são processos interacionais de produção
de sentidos e que, como tais, fundam-se numa abertura dialógica para outros
textos, outros discursos, outras vozes que se encenam, que enunciam, que
representam outros pontos de vista.
Uma vez se considere que uma grande dimensão da labuta filosófica
seja recoberta, necessariamente, pela prática de leitura incessante, cremos que
o legado produzido pelas teorias da Linguística que tomam para objeto de estudo
os mecanismos de produção de sentidos pode ser extremamente vantajoso para o
alargamento do saber filosófico e para o aperfeiçoamento do exercício do
filosofar, que não se dá senão através da palavra, do discurso.
Estamos cientes das limitações deste trabalho; reconhecemos que
muitas questões aguardam um desenvolvimento mais acurado; não obstante,
esperamos que algumas luzes tenham sido lançadas sobre os caminhos
pluridirecionais por onde se estende a significação que, longe de nos ser dada,
precisa ser produzida.
____________________
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[1] Nesse caso, é preciso distinguir duas formas de
instalar o leitor no enunciado: como um interlocutor que diz “eu” e toma parte
de um diálogo encenado ou como um alocutário cujo dizer é incorporado na
enunciação do enunciador/locutor; é parte dela.
[3] À luz da
psicanálise, o ato de escrever compreende projeções inconscientes do autor
real, de sorte que o autor implícito seria essa imagem que revelaria a
personalidade inconsciente do autor.O marxismo, desde Luckás (1967) preconiza
que o autor projeta em sua obra uma imagem de valores de sua classe social,
ainda que disso não esteja consciente.
[4] O que se seguirá é o desenvolvimento de uma seção que
constituiu parte de um trabalho elaborado na disciplina Aspectos Interacionais
do PL2E no curso de doutoramento na PUC-Rio.
[5] Textos filosóficos
estão entre os textos estruturados com elementos coesivos, decerto. No entanto,
é preciso ter em mente que nem todos os textos existentes se constroem com
elementos coesivos. Há textos aos quais faltam elementos de coesão explícita,
sem que sua coerência seja afetada. Há, portanto, textos coerentes sem coesão
(Koch, 2003).
[6] O “a gente” é, no português moderno, uma forma
variante de pronome de primeira pessoa do plural, embora, formalmente, se
comporte como pronome de terceira pessoa. Por isso, o emprego de referencialmente,
já que, no domínio semântico-referencial, o “a gente” recobre o “eu mais
outro(s)”.
[7] Cossuta fornece como
exemplos desses textos os aforismos e os “sistemas apresentados em blocos
monolíticos”(p.32). É preciso notar – e o próprio Cossuta deixa entrever sua
consciência disto – que a abolição do dialogismo é uma estratégia e não uma
realidade, pois que, mesmo os textos supostamente monológicos, tomam parte de
uma corrente de discursos configuradora de uma memória discursiva.
[8] Essa visão limitadora não corresponde aos fatos, quando
pensamos o uso da língua, pois os falantes, mesmo quando empregam o pronome com
verbos que exigem complementos (verbos transitivos diretos) têm a intenção de
indeterminar a entidade que preenche a posição do sujeito. Por isso,
construções como “sabe-se que” e “espera-se que” sinalizam a indeterminação na
referência a quem sabe e a quem espera.
[9] Queremos dizer com
isso que esse domínio não toma parte da configuração da estrutura dialógica do
discurso. Se dissemos “Todo homem é mortal”, “homem” é um objeto de que o
enunciador predica uma propriedade, mas não uma instância enunciativa. Por
isso, “homem” recorta o domínio da não-pessoa.
[1] Temos um enunciado
enunciado se, por outro lado, aquelas marcas estiverem ausentes do
enunciado (ib.id.).
[2] WEBER, MAX
[3] O enunciatário seria
o leitor, caso esse enunciado se apresentasse na modalidade escrita da língua.
[1] A noção de sujeito
discursivo ou do discurso será definida na próxima seção. Assumir que
o leitor é também um sujeito discursivo não significa identificá-lo com os
demais sujeitos discursivos. O leitor tem um estatuto que lhe é específico na
emergência do acontecimento discursivo. Do estatuto do leitor nos ocuparemos ao
considerar a função-autor nas duas próximas seções.
[2] Nas duas seções seguintes, essas dimensões serão
devidamente definidas. Por ora, cingimo-nos a notar que a instância da
não-pessoa é aquela que não está envolvida diretamente na interação verbal; é,
grosso modo, tudo aquilo de que se fala.
[3] Seguimos a prática
comum, nos estudos linguísticos de base sócio-interacionista, de tomar como
equivalentes os termos língua e linguagem, por força de, no inglês, língua em
que esses trabalhos foram originalmente produzidos, haver apenas a forma language para
recobrir uma distinção, que, no entanto, se verifica em português.
[4] Trata-se de uma questão assaz importante, da qual, no
entanto, não nos ocuparemos neste trabalho. Cumpre, notar, não obstante, que
ela atravessa as contribuições da Análise do Discurso, mormente a de vertente
francesa, a partir dos anos 60. A ideologia, assumindo a natureza de
formação ideológica – termo inspirado no conceito de formação
discursiva de Foucault (2008) – recobre, naqueles estudos, o conjunto
de ideias e/ou representações por meio das quais uma dada classe social
compreende o mundo. Nesse sentido, todo discurso é constituído de formações
ideológicas, visto que o próprio sujeito é produto dessas formações; o sujeito
é atravessado por elas.
[5] Mesmo um intelectual
como Voloshinov, membro do Círculo de Bakhtin, não se sentiu obrigado a aderir
a uma concepção marxista de ideologia. Para ele, a ideologia constitui “todo o
conjunto de reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem
lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras
formas sígnicas” (Voloshinov, 1930 apud. Miotello. In: BAKHTIN
–conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005, pp. 168-176)
[6] Na medida em que se reconhece que a argumentatividade
é uma propriedade da linguagem, deve-se assumir o fato de que mesmo gêneros
discursivos que, tradicionalmente, não são vistos como casos de discurso
argumentativo, tais como “contos”, “romances”, “poemas”, comportam algum grau
de argumentatividade. Assim, há textos explicitamente argumentativos (porque
constituído de estruturas tipicamente destinadas à argumentação, tais como
artigos de opinião, teses de doutoramento, etc.) e textos em que a
argumentatividade é menos clara, porém está presente. Mesmo um narrador (que
pode identificar-se ou não com o autor) de um conto pretende causar no seu
leitor a adesão à visão de mundo, aos valores que o texto expressa.
[7] Nas frases
declarativas, o estado-de-coisas é equivalente do conteúdo proposicional. A
noção de proposição, tomada à Lógica, é usada na Linguística como um componente
de análises semânticas e recobre uma unidade de significação que constitui o
assunto de uma afirmação na forma de uma frase declarativa. Na Gramática de
Casos, cada proposição é analisada como conjunto resultante da articulação de
um predicado (namorar) aos argumentos a ele associados (Pedro, Bianca).
[8] Por ora, usamos a palavra “autor” sem lhe dispensar
considerações, que, no entanto, serão feitas no lugar oportuno.
[9] O que não é o mesmo que dizer serem possíveis todos
os sentidos. Os textos preveem muitos sentidos, mas não todos. Embora não caiba
aqui desenvolver essa discussão, essa impossibilidade de produzir todo e
qualquer sentido e toda e qualquer interpretação diz respeito ao fato de tanto
os sentidos quanto as interpretações serem trabalho da história, como tal,
estão sujeitos a determinações históricas.
[10] Um ato ilocucionário é dotado de uma determinada
“força”, a qual combina uma intenção e certa entonação. Todo ato ilocucionário
realiza uma ação verbal, provoca um efeito verbal ou não verbal no
interlocutor. Pelo simples fato de ser enunciado, ele realiza a ação que nomeia
(p. ex. Vai embora! – realiza-se a ação de ordenar).
[12] http://www.notibras.com/site/ativista-teria-dito-que-homem-do-rojao-era-ligado-a-marcelo-freixo/ (17/05/2014).
[13] Cumpre notar que a intertexualidade apresenta-se sob
duas formas: a explícita e a implícita. Em linhas gerais, a intertextualidade
explícita ocorre quando há citação da fonte do intertexto; é implícita, quando
não se verifica a citação da fonte, caso em que o leitor/interlocutor precisa
recuperá-la em sua memória.