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terça-feira, 29 de março de 2016

"A felicidade começa quando não mais esperamos" (Sponville)





Materialismo, desespero e solidão
Porque toda filosofia é desesperada


Se fôssemos felizes – escreve Sponville – não precisaríamos filosofar”[1] e assim prossegue:


“E se não pudéssemos sê-lo, filosofaríamos em vão. A possibilidade da felicidade define, assim, parece-me o espaço aberto à filosofia. Trata-se de pensar de tal modo que a felicidade, de possível que era, se torne real e presente, e deixe de ser esperada para ser enfim vivida. Pensar sua vida, portanto, e viver seu pensamento: prazer e grandeza da filosofia”.


É porque não somos verdadeiramente felizes que precisamos filosofar. Todavia, a filosofia seria desnecessária, se a felicidade não fosse possível. Portanto, a condição de possibilidade para o exercício da filosofia é a possibilidade da realização da vida feliz. A questão sobre como é possível ao homem fruir uma vida feliz recebeu respostas diversas ao longo da história da filosofia. Neste texto, cingir-me-ei a apresentar e a discutir a resposta schopenhaueriana.  A maneira como Schopenhauer respondeu à questão sobre como é possível uma vida feliz é, de fato, desafiadora para quem pretende rejeitá-la. Uma de minhas preocupações, neste texto, é examinar a resposta schopenhauriana. Contudo, não me limitando à abordagem da resposta schopenhaueriana,  pretendo também, neste texto, fixar as bases de uma filosofia do desespero, que tomarei, seguindo de perto Sponville, como a única orientação filosófica que atende à pretensão da filosofia de ser uma atividade que, realizando-se através de discursos e raciocínios, objetiva desilusionar aquele que a ela se entrega. Os dois interesses que me levam a compor este texto não estão, de modo algum, desvinculados. Se a filosofia se define a partir da possibilidade da experiência da felicidade, então é necessário se ocupar das duas questões seguintes: qual felicidade? e qual filosofia?. Se a filosofia, como a define Epicuro, “é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”, é forçoso pensar qual das muitas filosofias ou orientações filosóficas propostas é a mais adequada a esse fim e também que felicidade é esta que nos seria possível e à qual a filosofia, de que então nos apropriamos como nosso modo próprio de viver, nos conduziria.
É preciso dizer, contudo, que a felicidade que Sponville pensa como possível não é a de Schopenhauer. Sponville, mais próximo de Espinosa também nessa matéria, não admitirá uma felicidade sem alguma parte de desespero, isto é, a felicidade não pode ser objeto de espera; só há felicidade desesperada, enquanto esperamos ser felizes, jamais o seremos. A felicidade absoluta é impossível; só há uma felicidade relativa, isto é, somos mais ou menos felizes, dependendo da hora, das circunstâncias em que nos encontramos. O que nos propõe Sponville, correndo o risco de simplificar demais a extensão e profundidade de suas reflexões, é que esperemos um pouco menos, mesmo a felicidade. A felicidade só parece possível, segundo o filósofo, na indiferença em relação a ela. O que afasta Sponville de Schopenhauer e o aproxima de Espinosa, no que diz respeito à questão da felicidade, é a concepção de desejo. Se Schopenhaeur, seguindo Platão, pensa o desejo como carência, Sponville, seguindo Epicuro e, sobretudo, Espinosa, pensa o desejo como potência. Essas duas interpretações do desejo indicam dois caminhos distintos para a compreensão do problema da felicidade. Sponville reconhece que, em muitos casos, o desejo é carência; mas, em outros, o desejo é potência de gozar ou o gozo em potencial, sendo o prazer seu próprio ato. É com exatidão que se diz de alguém que tem potência sexual para descrever sua capacidade de desejar e de gozar. Sponville inscreve o desejo no horizonte de uma filosofia trágica, pois que o desejo como potência nos impele a amar o real, a querer o real, e renunciar a desejar o irreal. Para ele, o desejo como carência ainda se inscreve no domínio semântico da esperança e, portanto, na nossa relação com o futuro.
Não estarei, contudo, preocupado em examinar como Sponville encaminha a questão da vida feliz. É das considerações de Schopenhauer acerca da vida feliz que me ocuparei. Mas de Sponville aproveita-me a proposta de uma filosofia do desespero. Tratarei de apresentá-la, avaliando em que medida ela responde bem à concepção negativa de felicidade de que Schopnhauer, e antes dele, Epicuro, nos dá testemunho. A preferência por Schopenhauer a Epicuro no que diz respeito ao tratamento da questão da vida feliz se deve ao fato de Schopenhauer, melhor do que Epicuro, ter aprofundado o problema do sofrimento como um obstáculo à fruição da felicidade.



1. Para começo de conversa: a felicidade outrora e hoje

Não obstante serem muito diferentes das nossas as condições sociopolíticas, culturais e econômicas em que viveram os antigos gregos, a felicidade, enquanto problema filosófico e existencial, é atemporal e importa ao ser humano em todas as épocas e lugares. Quem ousaria, mesmo hoje, discordar de Aristóteles no reconhecimento de que os seres humanos desejam naturalmente a felicidade? Com o objetivo de situar a questão da vida feliz, tal como fora desenvolvida pelos antigos gregos, principiarei por delinear o modo como eles procuraram determinar as condições para alcançar a felicidade. O que farei não será mais do que uma apresentação esquemática do encaminhamento da questão sobre a felicidade na Grécia Antiga[2]. Em seguida, atendendo ao mesmo critério de brevidade, buscarei mostrar como se constitui a experiência de felicidade na chamada hipermodernidade, tempo marcado por uma “felicidade paradoxal” (Lipovetsky, 2007)[3].


1.2. A felicidade no pensamento grego

Na Grécia Antiga, foram diversos os filósofos, em momento e escolas diferentes, que se dedicaram a refletir sobre a felicidade. Pode-se dizer que, em toda a grecidade, no período que se estende dos pré-socráticos (VI a IV a.C) ao helenismo greco-romano, a felicidade foi pensada relativamente:

a) à alma. A felicidade se encontra na alma, no exercício do pensamento;

b) à virtude. Uma vida virtuosa é necessariamente uma vida feliz. A felicidade depende da moderação das paixões;
c) à noção de justiça e de sabedoria.

Em claro contraste com a felicidade de nosso tempo, a qual é atrelada à efemeridade do gozo consumista, filósofos antigos preocupavam-se em pensar a felicidade na sua qualidade duradoura. Quer fosse um estado de espírito, quer uma atividade, quer ainda uma qualidade do viver, a felicidade deveria caracterizar-se pela duração; ela deveria acompanhar o indivíduo até o termo de sua vida. Embora possamos encontrar divergências de acento nas relações entre felicidade, prazer, sabedoria e virtude, os antigos gregos concordavam em dizer que a felicidade não podia ser alcançada no acúmulo da riqueza e por uma razão simples: a posse de bens materiais é instável.  Ademais, quem cumula bens materiais teme perdê-los, e uma vida com temor não pode ser considerada uma vida feliz. Tampouco pode a felicidade ser encontrada nas honras e glórias, visto que são igualmente transitórias. Para Aristóteles, a felicidade é o sumo bem, justamente aquilo em virtude do qual tudo o mais é feito. Um bem é mais perfeito do que outros quando o buscamos por si mesmo e não em vista de outra coisa. A felicidade é, pois, um bem desse gênero; ao contrário, bens como “honra”, “riqueza”, “prazer” e “poder” são buscados tendo em vista outros bens. O homem feliz, segundo Aristóteles, é aquele que se realiza plenamente, sem de nada mais necessitar.
Para Aristóteles, a felicidade também não podia consistir no prazer, porque o prazer é efêmero, e Aristóteles supunha que a felicidade deveria ser duradoura. O que é, então, a felicidade, para Aristóteles? Ela não é um estado de alma; é uma forma de atividade. A felicidade, segundo Aristóteles, é a atividade do intelecto. Aristóteles não diverge, essencialmente, de filósofos que o precederam, como Sócrates e Platão. Mas Aristóteles não reduz a felicidade à virtude. A felicidade, para Aristóteles, consiste na atividade contemplativa, consiste em viver segundo o intelecto. A felicidade perfeita identifica-se com a excelência intelectual. Por isso, o sábio é o homem mais feliz, já que é aquele que exercita a razão teorética ou, em outras palavras, vive dedicado ao exercício da parte mais nobre de sua alma: o intelecto. O homem feliz – repito – é aquele que realiza a atividade contemplativa através do exercício da razão teorética. Ao exercitá-la, esse homem se realiza plenamente, pois que vive segundo aquilo (o intelecto, a alma racional) que, em ato, é possibilidade para a (realização da) felicidade.
Sócrates (469-399 a.C.) submeteu os prazeres à sabedoria. Seu discípulo Aristipo de Cirene (435-356 a.C.), considerando o prazer um bem em si mesmo, submeteu a sabedoria aos prazeres. Mas ambos concordavam em fazer acompanhar o gozo dos prazeres da sabedoria. Por isso, mesmo o fundador da escola cirenaica, o qual sustentava ser o prazer um bem em si, estava de acordo com seu mestre na convicção de que sem sabedoria não é possível a felicidade. E não é possível porque, sem sabedoria, não há autonomia, e, na ausência desta, o indivíduo é dominado pelos prazeres, os quais levam ao excesso, à desmesura (hýbris) e acabam, assim, por se transformar em fonte de desprazer e infelicidade.
Se Aristóteles não aceitava a redução da felicidade à virtude, concordava com Sócrates e Platão (428/427-348/347 a.C.) em estabelecer um vínculo entre felicidade, sabedoria e virtude, muito embora Platão, por razões que não cabe serem apresentadas aqui, tenha advogado que a plena felicidade só poderia ser alcançada após a morte, quando a alma se separaria do corpo, o qual lhe era um obstáculo para atingir a sabedoria plena na contemplação das Ideias. Em todo caso, os três concordavam em que somos tanto mais felizes quanto mais sábios. Não somos mais felizes porque mais jovens, ou ricos, ou ilustres. O conhecimento que possuímos leva-nos a viver uma vida virtuosa, pois que o conhecimento nos orienta para o bem viver. Destarte, somos considerados sábios, porquanto a sabedoria que possuímos permite-nos tornar-nos virtuosos. Uma vida segundo a virtude é uma vida feliz, porque conduz à prática do bem a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade consiste no respeito às leis. O cidadão grego por excelência é aquele que contribui para a elaboração das boas leis. Felizes são aqueles que agem segundo a justiça e a temperança; infelizes, por outro lado, os que são injustos e se deixam arrastar pelo vício. Quem modera seus prazeres, seus desejos e pratica o bem para si e para a pólis é, necessariamente, feliz. Platão também aqui é fiel ao seu mestre: o conhecimento é a condição para o agir bem e para o viver moderado. O conhecimento leva à sabedoria; e a sabedoria, à virtude; e, por fim, uma vida virtuosa é a própria concretização da vida feliz.
No período helenístico, Epicuro (341-270 a.C.) dirá que a felicidade consiste no prazer; mas não em qualquer prazer.[4] Pela sabedoria, o homem pode discriminar os prazeres que contribuem para a serenidade da alma dos prazeres que lhe causam perturbação. O eudemonismo epicurista aspira à autarquia, a saber, à autonomia na escolha de prazeres que produzam uma felicidade autêntica. Para os epicuristas, a condição para a vida feliz é a liberdade. Um indivíduo que se deixa dominar por suas paixões, que se entrega à desmesura de seus prazeres atrai para si mais dor que satisfação, por isso não pode ser feliz. Epicuro também rejeita estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade.
Os antigos gregos estavam preocupados em pensar a felicidade como uma experiência duradoura ou constante. Quando nos debruçamos sobre a questão da felicidade em nossa época, marcada fundamentalmente pelo hiperconsumo, constatamos que o gozo das alegrias e prazeres prende-se ao consumo de mercadorias. Mas as mercadorias – o sabemos bem, sem necessitar de muita elaboração teórica – são coisas que, em pouco tempo, se tornam obsoletas. Assim como as mercadorias são dotadas de um prazo de validade, assim também nossas alegrias a elas associadas dão lugar, em pouco tempo, ao sentimento de vazio, ao tédio, à insatisfação. Os prazeres que o consumo das mercadorias nos promete são tão efêmeros quanto as próprias mercadorias consumidas. Em tais condições, é inevitável que o indivíduo experiencie o sentimento de vanidade em um modo de viver que consiste em consumir mais e mais na esperança de fruir uma felicidade duradoura que, embora prometida pelo hipercapitalismo, jamais pode ser alcançada . Descerei a considerações sobre nossa atual experiência de felicidade, doravante.


1.3. A felicidade na hipermodernidade

O que Lipovetsky chama cultura globalizada surge e se desenvolve a partir da década de 1980 como uma cultura desprovida de fronteiras. Seu contexto sócio-histórico é estruturado pelos domínios axiomáticos a) do hipercapitalismo, força que impulsiona a globalização financeira, b) da hipertecnização, grau superlativo da universalidade da técnica moderna; c) do hiperindividualismo, supervalorização do indivíduo então liberto das coerções comunitárias à moda antiga; d) do hiperconsumismo, a forma hipertrofiada do hedonismo mercantil.
Essa cultura globalizada tem como meta a produção e a satisfação de uma sociedade universal de consumidores. Mercado, tecnociência e indivíduo constituem os princípios organizadores dominantes que deram origem a uma “cultura-mundo”, sem par na história. É nessa cultura-mundo que o homem experiencia um “novo mal-estar na civilização” (Lipovetsky, 2011, p. 32).
Em nossas sociedades hipermodernas, hiperindividualistas, hiperconsumistas e democráticas, nas quais a promessa de felicidade é extensiva a todos e os prazeres se acham disponíveis e são celebrados por toda parte, multiplicam-se as experiências deceptivas, quer na esfera pública, quer na esfera privada. Segundo Lipovetsky, o indivíduo hipermoderno, malgrado viver em condições sócio-históricas nas quais são inúmeras as ofertas de felicidade aqui na terra, não experimenta senão uma “felicidade paradoxal”: “a sociedade da distração e do bem-estar coabita com o aprofundamento da dificuldade de viver e do mal-estar subjetivo” (Lipovetsky, 2012, p. 26).
Na sociedade hipermoderna, a multiplicação de experiências deceptivas se acompanha da ausência de dispositivos institucionalizados que serviriam para amenizá-las. Nessa sociedade, os dispositivos de socialização e consolação religiosas se enfraqueceram e, em lugar destes, nossas sociedades hipermodernas dispõem de meios de estimulações incessantes para consumir, fruir e mudar. Destarte, “quanto mais se multiplicam as vivências deceptivas, mais são os numerosos convites para agir e as ocasiões de distração e de prazer” (Ibidem, p. 29).
O homem hipermoderno é um indivíduo constantemente estimulado a procurar a felicidade e cujo desejo de obtê-la é incessantemente renovado. A felicidade é prometida no próprio prazer de consumir. Esse homem ávido de consumir, ávido de prazeres cada vez mais intensos, convencido de conseguir fruir a felicidade prometida pelo mercado, é, no entanto, exposto às amarguras do presente, ao desencanto dos sonhos destruídos.

“Enquanto ser de desejo cuja essência é negar o que é – Sartre dizia do homem que ele não é o que é e é o que não é – o homem é um ser que espera e que, assim, não pode escapar à experiência da decepção. Desejo e decepção andam lado a lado, a diferença entre expectativa e real, princípio de prazer e princípio de realidade, raramente é satisfeita. (Lipovetsky, 2012, p. 27).


O hipercapitalismo, que produz este tipo consumidor das sociedades hipermodernas, promete-lhe a felicidade na busca de prazeres renovados, na busca de experiências sensitivas ou estéticas, comunicacionais ou lúdicas. Esse consumidor consome excitações e sensações, as quais são as mercadorias vendidas; ele é um comprador de experiências vividas. O consumidor das sociedades hipermodernas é um “colecionador de experiências” (Lipovetsky, 2007, p. 68).
Se as promessas de felicidade são extensivas a todos, nem todos podem desfrutá-la. Uma vez que a felicidade, numa sociedade hipermoderna, é associada ao consumo de bens e lazeres, os que não podem beneficiar-se dele, vivem num estado de frustração, autodesqualificação e fracasso pessoal permanente. Nem todos podem ser bons consumidores; portanto, nem todos podem provar de sua fatia de felicidade. O capitalismo do hiperconsumo, segundo nota Lipovetsky, se, por um lado, faz desaparecer a miséria absoluta; por outro lado, “aumenta a miséria interior, o ressentimento de viver uma “subexistência”” (Lipovetsky, 2011, p. 61). Miséria interior e ressentimento de viver uma “subexistência” são os mal-estares daqueles que se veem privados do acesso à felicidade consumista. Ainda segundo Lipovetsky, “a sociedade do hiperconsumo é a do “sempre mais”, mas não há “sempre mais felicidade” (ibidem).
Sucede, então, que a corrida em larga escala de consumidores ávidos de consumir cada vez mais não acarreta o aumento da felicidade, a despeito das promessas do mercado. O que, na verdade, esse consumo desenfreado assegura é a reprodução da esperança de que, na próxima compra, o consumidor conseguirá alcançar a tão anelada felicidade. O capitalismo produz, assim,  no consumidor as necessidades de consumir que ele acredita serem suas. Assim, o que o consumidor deseja é experienciar os prazeres que se lhe afiguram na imaginação, e cada novo produto que consome se apresenta a ele como uma possibilidade de satisfazer esse desejo. Acontece que logo experimenta a desilusão após uma compra, razão por que está sempre ávido de obter novos produtos prometedores de satisfação de desejos sempre renovados. Se o homem é, essencialmente, um ente desejante, ele não pode parar de desejar. Mas, enquanto ser desejante, porque todo desejo – se acompanharmos Platão – é carência, o homem está continuamente em estado de carência, e a satisfação obtida é sempre temporária. Numa sociedade de consumidores, o mercado precisa manter os indivíduos sempre num estado desejante (carência), produzindo neles necessidades ilimitadas e insaciáveis. O mercado capitalista aspira ao crescimento permanente e, para consegui-lo, precisa produzir nos consumidores uma ansiedade por satisfação de suas necessidades, algum dia.


2. Uma felicidade desesperada

Desespero quer dizer “não mais esperar”. Quem espera, ou seja, quem tem esperança tem medo. Esperança e medo são afetos inseparáveis. Assim, quem espera tornar-se rico tem medo, ao mesmo tempo, de ficar pobre. Onde há esperança há medo. Desespero quer dizer, portanto, nada a temer, nada a esperar. Não devemos atribuir à palavra desespero o sentido que tem no colóquio. As pessoas, em geral, se habituaram a falar de desespero como um sentimento de “desesperação”, “angústia”, “infelicidade”, “tristeza”. Devemos rejeitar a atribuição de tais significados à palavra “desespero”, se quisermos compreender o alcance existencial de uma filosofia do desespero. Trata-se de nos atermos ao significado etimológico de “desesperança”.
Costuma-se dizer que o desesperado é mais suscetível ao suicídio, que um homem se mata por desespero. Mas o bom senso contraria essa compreensão. Se esse homem estivesse verdadeiramente desesperado, a vida lhe seria indiferente e a morte não se lhe afiguraria como uma solução. Quem se suicida crê que a morte é sua única esperança. Habituamo-nos a pensar que o otimismo é a garantia de felicidade, que é preciso ver a vida sempre “pelo lado bom”, que é preciso sempre ter a esperança de que as coisas se encaminharão para o melhor, isto é, para a satisfação de nosso desejo. Na dóxa, todos somos prisioneiros da esperança. A verdade parece ser outra: as pessoas não se matam por desespero, mas por decepção. Segundo Sponville (2001, p. 407):


“As pessoas só querem morrer por demasiadas esperanças frustradas (é por isso que os verdadeiros pessimistas não se suicidam (...) ou quando a vida , tornando-se difícil ou dolorosa demais, não deixa mais nada a esperar, salvo o próprio nada – mas ainda é uma esperança!”


O desespero, no significado que lhe empresto no contexto desta discussão, pretende redefinir nossa relação com o tempo. O homem desesperado é alguém liberto do futuro que nos atormenta, dos sonhos que nos distanciam da vida aqui e agora. O homem desesperado é alguém reconciliado com o presente, isto é, com o real. O real deverá ser entendido à luz da filosofia materialista clássica. Antes, porém, de esclarecer o que devemos entender por real, necessário será elucidar os outros dois domínios previstos por uma filosofia do desespero: a solidão e o materialismo.
O desespero é, portanto, abandono das esperanças, abandono, fundamentalmente, de toda e qualquer esperança religiosa. Solidão é o que resulta da constatação, sempre difícil e dolorosa, de que entre dois indivíduos jamais há qualquer transparência. Solidão quer dizer: impossibilidade de qualquer comunhão ou fusão absoluta com o outro. Desespero, materialismo e solidão são ideias que se assentam numa recusa. No respeitante ao materialismo, desde Demócrito, Epicuro e Lucrécio, ser materialista é recusar as superstições, as teorias idealistas, finalistas e religiosas. Não há Espírito imaterial; não há divindades; não há mundo inteligível nem valores absolutos. O materialismo celebra a positividade do real, e o real “é o que resta... quando nos calamos” (Sponville, 2001, p. 402).
Os antigos gregos estavam de acordo quanto a esta proposição: nada nasce do não-ser. O ser é eterno. O materialismo, o desespero e a solidão negam o que não é e, por isso, afirmam a totalidade do que é; em uma palavra, o real mesmo, tal como é e aparece para nós.
Para os materialistas, particularmente Epicuro, nossa imaginação, as ilusões de nossos sentidos, os terrores de nossa alma são reais. Não são as imagens, as ilusões ou as percepções que são falsas ou verdadeiras. As qualidades de falso e verdadeiro só se aplicam às proposições ou juízos que formamos com base em nossas percepções ou imagens. Portanto, dizemos que este enunciado ou juízo é falso ou verdadeiro. O real é, necessariamente, verdadeiro. Assim, o real não se presta à distinção entre falso e verdadeiro. O real tal como é e aparece e porque é e aparece é verdadeiro.
O que é, então, o real, à luz do materialismo? O real é o que resta quando silenciamos todo dizer a respeito dele. O real é o silêncio. O silêncio é o próprio real quando calamos todo palavrório a respeito dele. Podemos, agora, compreender o que nos escreve Sponville no seguinte excerto:


“Começar pela angústia, começar pelo desespero: ir de um ao outro. Descer. No fim de tudo, o silêncio. A tranquilidade do silêncio. A noite que cai aplaca os temores do crepúsculo. Não mais fantasmas: o vazio. Não mais angústia: o silêncio. Não mais perturbação: o repouso. Nada a temer; nada a esperar: Desespero.” (Sponville, 2001, p. 15).


Esse começo pela angústia é o da solidão que eu sou. Na solidão, se me revela o nada que eu sou. A verdade da angústia é o vazio em mim de minha presença; porque nada sou, nada há em mim a descobrir, nada a compreender, nada a conhecer. Solidão da angústia: a alma não existe. O desespero é a perda da esperança – está claro. Mas é preciso acrescentar que o desespero não é um estado; é uma ação. Materialismo e desespero se encontram na recusa de toda ilusão, de toda superstição, de toda esperança. A natureza é indiferente. O materialismo é a própria desilusão. Sponville nos dá testemunho de que nosso tempo ainda é incapaz de se apropriar do ensinamento materialista com todas as suas consequências:


“Nosso tempo não é o do desespero, mas o da decepção. E da decepção suprema: a de não sermos imortais. É que esperamos demais, sempre demais. Empurramos nossos rochedos, e ei-los que tornam a cair... Mas de que outro modo poderiam fazer? São rochedos... E tornamos a descer com eles, chorando sobre nossas ilusões perdidas e já sonhando com as próximas...”. (Sponville, 2001, p. 35-36).


Compreendamos o que é este silêncio de que nos fala Sponville. Insistirei neste ponto: o silêncio é o real, é a verdade quando suprimimos nossos signos (palavras), nossas lembranças ou nossas esperanças; o real é pura imediatidade de sua presença. O real é o silêncio, porque o real não tem nada a nos dizer. No silêncio, tudo se equivale (e não vale nada). O real não tem sentido. Sentido quer dizer finalidade, significação e valor. A verdade, a cujo desvendamento aspira toda empresa filosófica, está, para os materialistas, “no fundo do abismo”. Entendamos: ela não só é difícil de conhecer, como também é independente de qualquer juízo ou de qualquer discurso. A verdade habita o silêncio - sem significação, sem valor e sem finalidade - do real.
Para os materialistas, o essencial não é a filosofia, mas a sabedoria; não é o pensamento, mas a vida.  A filosofia deve ser uma arte de viver e isso se chama ética. Trata-se de pensar nossa vida e viver nosso pensamento. Uma filosofia que tem em vista a si mesma não tem valor algum.
O que pretende o materialismo?[5] O materialismo, em filosofia, é, fundamentalmente, ateísmo. Seu princípio consiste em submeter o pensamento unicamente à verdade. A felicidade não é a norma (devo ser feliz, tenho de ser feliz). Assim, a filosofia não deve ter em vista a felicidade; esta é acrescentada à submissão do pensamento à verdade. A norma do pensamento filosófico é a verdade.
Não é que não possamos querer a felicidade; mas trata-se de querê-la não na forma de consolo, de esperança ou da fé. A esperança acompanha a religião: a felicidade é, assim, aguardada para um além-mundo. O materialismo é um ateísmo generalizado que recusa tomem-se os desejos pelo real. O materialismo disjunge o ser e o valor, o verdadeiro e o bem, o real e o sentido. O materialismo não toma o valor por verdadeiro, já que os valores não dizem respeito ao conhecimento, mas ao desejo. Desejamos uma coisa não porque ela vale, mas é porque a desejamos que ela vale. O real é objeto de conhecimento e indiferente ao nosso desejo. Nenhuma verdade é normativa; nenhuma norma é verdadeira.


“Ser materialista, portanto, é recusar não apenas o Bom Deus, mas também todas as divindades substitutas (a boa historia, a boa ciência, a boa razão, o bom inconsciente...) (...) Porque toda religião é feita de esperança, todo materialismo é feito de desespero ou, dá na mesma, de desilusão. É o que eu chamaria, com muito gosto, após Freud e num sentido mais geral, de trabalho de luto. Quem pode desesperar sem sofrer?” (Sponville, 2001, p. 411).




 2.1. Uma sabedoria desesperada


Há um ponto pacífico entre os filósofos materialistas: não há sabedoria sem felicidade. Uma vez que admitamos essa proposição, precisamos dar conta de duas questões que ela implica. A primeira delas é a seguinte: qual é a sabedoria que pode nos encaminhar à felicidade? E a segunda questão é: que felicidade nos é possível?
No tangente à sabedoria, importa entender que só há felicidade na sabedoria desesperada. Em primeiro lugar, porque o sábio não carece de nada, não precisa esperar nada. Nós só esperamos aquilo que não temos; e o sábio não tem falta de nada. É porque não tem falta de nada que o sábio é plenamente feliz.
Não carecendo de nada, o sábio é desesperado; porque é desesperado, nada lhe falta. A felicidade do sábio é desesperadora, porquanto se realiza quando já não mais aguarda nada. Basta o real, isto é, o presente. Avancemos um pouco mais esse raciocínio. A sabedoria materialista é desesperada também porque recusa qualquer esperança. Ora, a esperança é desejo sem gozo. A esperança é desejo que remete ao futuro. Enquanto esperamos, carecemos daquilo que esperamos possuir. Ninguém espera o que tem e o que faz. Toda esperança é, portanto, carência. Esperança é não só desejar sem gozar, é também desejar sem poder e sem saber. A esperança é desejo que remete ao futuro e é em relação ao futuro que somos impotentes. O futuro é objeto de desejo e de ignorância, já que desejamos aquilo que não temos (que esperamos ter) e do futuro nada sabemos.
O sábio não é livre da esperança por saber tudo, nem por poder tudo. Ele é livre de esperança, porque cessou de desejar outra coisa além do que ele sabe ou pode. Trata-se de desejar um pouco menos e de querer um pouco mais. Em filosofia, o querer é a vontade; e, embora a vontade seja desejo, nem todo desejo é vontade. Vontade ou o querer é o ato mesmo do desejo ou, se preferirmos, o ato da vontade.  O desejo pode ser conflituoso: posso desejar comer e não comer, posso desejar sair para dançar e desejar ficar em casa ao mesmo tempo. Mas não posso querer sair para dançar sem já tomar a resolução de fazê-lo. Na vontade, causa e efeito são simultâneos: querer estender o braço é estender o braço, ou, havendo algum obstáculo que me impeça de fazê-lo, é esforçar-se por estendê-lo. Que a vontade não é livre é o que pensam filósofos como Espinosa e Nietzsche. Para Nietzsche, nossos valores, mormente, nossas paixões determinam nosso querer. Que a vontade seja determinada por paixões, apetites, pulsões, valores basta para nos libertar da crença no livre-arbítrio; mas afirmar que a vontade não é livre não significa negar que a vontade é ativa. A vontade é simultânea à ação. Se nossos desejos são muitos e podem ser contraditórios, a vontade é uma, ou não é. A vontade é o próprio desejo, mas apenas enquanto age.

2.2. A felicidade negativa

Todos os homens desejam naturalmente ser felizes. A felicidade é o sumo bem, aquele a que todo homem tende por si mesmo, e não em vista de outra coisa. A felicidade é o que desejamos absolutamente; é o bem que se busca sem ter em vista outra coisa. A felicidade é sempre desejável em si mesma; é o mais desejável de todos os bens. Eis o que, em síntese, nos ensinou Aristóteles. Mas o desejo, mantém Platão, é carência, já que desejamos o que não temos. Porque o desejo é carência, e a felicidade é o bem que mais desejamos, resulta que a felicidade nos escapa. O desejo é carência, logo sempre nos falta o que desejamos (carência é sofrimento). Enquanto desejamos, carecemos e sofremos por não ter aquilo que desejamos. Carecer do que desejamos é uma infelicidade. Seríamos, então, felizes quando obtivéssemos aquilo que desejamos? Será que a felicidade depende da satisfação de nosso desejo?
Schopenhauer mostrará que não. O homem é desejo e desejo é carência. Todo desejo tem por princípio uma necessidade, uma carência, uma dor. A carência é sofrimento; a satisfação é prazer. Mas a felicidade não se segue da satisfação do desejo. É que nenhuma satisfação é duradoura. Tão logo estejamos satisfeitos, somos arrastados por um novo desejo, e nos encontramos novamente em carência. A satisfação que suprime momentaneamente a carência (o desejo) não é a felicidade certamente. A satisfação suprime o sofrimento da carência; todavia, o que ela carreia é o tédio. Em vez da felicidade esperada, estando satisfeito o desejo, o que resta é a marca do desejo desaparecido. A felicidade nos falta quando sofremos e nos entediamos quando, satisfeitos, não sofremos mais. Destarte, o sofrimento é carência de felicidade; e o tédio, ausência da carência da felicidade. A ausência da ausência (carência) é ainda uma ausência. Não escapamos ao ciclo do ‘desejo-satisfação-tédio-desejo’. Nossa condição é de seres continuamente desejantes e perpetuamente insatisfeitos: ou desejamos o que não temos e sofremos por causa dessa carência; ou temos o que não mais desejamos (porque temos), e nos entediamos.
Schopenhauer, portanto, conduz-nos à conclusão de que a felicidade simplesmente não existe, ou só existe na imaginação, visto que a felicidade sempre falta, no desejo, que é carência e sofrimento, ou no tédio, quando satisfeita a carência, não há mais a condição prévia para o gozo. Toda felicidade repousa na esperança; e a vida é decepção. Atentemos para o que nos escreve Schopenhauer em Do mundo como Vontade e Representação (2012):

“A vida humana transcorre, portanto, toda inteira entre o querer e o conquistar. O desejo, por sua natureza, é dor: a satisfação bem cedo traz a saciedade. O fim não era mais que miragem: a posse lhe tolhe o prestígio; o desejo ou a necessidade novamente se apresentam sob outra forma, que do contrário vem o nada, o vazio, o tédio, e contra isto é tão penosa a luta como contra a miséria” .(p. 82).


Se nenhuma satisfação garante o prazer duradouro, a felicidade desejada, se em cada desejo satisfeito, o homem se vê, em pouco tempo, entediado, condição da qual só escapa quando lhe sobrevém outro desejo, outra carência, deve o homem não mais perseguir prazeres. “O sábio não persegue o prazer, mas a ausência de dor”, lição esta que Schopenhauer toma da pena de Aristóteles. A eudemonologia schopenhaueriana combina entre si a ética aristotélica, a ética epicurista e a ética estóica. Schopenhauer, seguindo de perto Aristóteles e Epicuro, aconselha-nos a fixar nossa atenção não nos gozos e diversões, mas nos meios de evitar males possíveis e inumeráveis. É o que podemos ler no trecho abaixo, colhido de A Sabedoria da Vida (2012):

“Assim, pois, quando se quer fazer o balanço da vida, do ponto de vista eudemonológico, não temos que levar em conta os prazeres que saboreamos, mas os males que conseguimos evitar”. (p. 118).


A eudemonologia é o tratado da vida feliz, e “vida feliz”, para Schopenhauer, significa vida “menos desgraçada”, isto é, tolerável.

“O homem mais feliz é, pois, aquele que passa a vida sem grandes dores, tanto morais como físicas, e não o que tem de sua parte as alegrias mais vivas e os gozos mais intensos”. (p. 119).




Por que devemos evitar os júbilos excessivos? Devemos evitá-los, diz-nos Schopenhauer, porque eles assentam na ilusão de termos encontrado na vida a satisfação durável dos desejos, mas a satisfação durável é impossível. As dores excessivas também fundam-se na ilusão de sua permanência. A sabedoria de vida schopenhaueriana propõe-nos, portanto, uma felicidade negativa. A tese em que se estriba essa sabedoria se topa no seguinte excerto, colhido de A arte de ser feliz (2001):

“O caminho da sabedoria de vida consiste em partir da convicção de que toda felicidade e todo prazer são de natureza apenas negativa, enquanto a dor e a indigência têm caráter real e positivo. Partindo-se desse pressuposto, todo projeto de vida direciona-se com a intenção de evitar a dor e de afastar a indigência; nesse sentido, pode-se obter algum resultado, mas isso só é possível com certa segurança se o projeto não sofre a interferência da aspiração à quimera da felicidade positiva”. (p. 62).



Enfatize-se que, para Schopenhauer, a felicidade positiva é uma quimera. Uma felicidade positiva é uma felicidade que teria um conteúdo determinável (é isto ou aquilo...); é uma felicidade que experienciaríamos pela fruição de prazeres, de alegrias que nos encheriam a alma de satisfação. Mas todo prazer possível ou toda felicidade real consiste na ausência de perturbação da alma e do corpo. No primeiro caso, temos o que os gregos chamavam de ataraxia; no segundo, aponía. A felicidade negativa consiste, portanto, na ausência de perturbação e de dor na alma e no corpo. Essa felicidade se diz negativa porque se define pela ausência daquilo que não é ela (a dor, a perturbação, o sofrimento). Estou feliz se me encontro num estado anímico de serenidade, se nada me perturba a harmonia da alma com o corpo. Aqui Schopenhauer é claramente um epicurista: o sumo prazer consiste na ausência de dor. A única felicidade possível ao homem consiste em encontrar-se no estado de impertubabilidade, de serenidade. Schopenhauer foi um grande especialista no drama da condição humana. Na máxima 16 de seu A arte de ser feliz (2001), o filósofo escreve:



“Todos nós nascemos na Arcádia, todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer, e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer, até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso, mas tudo é dele, uma vez ele detém um direito incontestável não apenas sobre nossas posses e nossos ganhos, mas também sobre nossos braços e nossas pernas, nossos olhos e nossas ouvidos, e até mesmo sobre nosso nariz no centro do rosto. A experiência vem em seguida e nos ensina que a felicidade e o prazer não passam de uma quimera, mostrada a distância por uma ilusão enquanto o sofrimento e a dor são reais e manifestam-se diretamente por si só, sem a necessidade da ilusão e da espera. Se seu ensinamento se torna infrutífero, deixamos de buscar a felicidade e o prazer e passamos a nos preocupar apenas em fugir ao máximo do sofrimento e da dor”. (p. 47).



A Arcádia era uma província grega que veio a se tornar pela pena dos poetas e artistas do Renascimento e do Romantismo uma região imaginária, um ambiente idílico onde reina a felicidade, onde desejamos estar para desfrutar da paz e da vida simples. Buscamos avidamente o prazer e, uma vez que nós consigamos dele desfrutar, desejamos permanecer nesse estado indefinidamente; portanto, nessa Arcádia. Mas a realidade (ou o destino) manifesta-se em desacordo com nosso desejo. Somente a dor e o sofrimento são positivos (isto é, reais); a felicidade é uma quimera, e a experiência por si mesma o prova. Schopenhauer pede-nos que não ignoremos o que a experiência nos ensina. Uma vez acolhamos o ensinamento da experiência, devemos nos preocupar em escapar ao máximo do sofrimento e da dor – “porque o melhor meio de não ser infeliz é não desejar ser muito feliz”. Se o destino é que determina todo o curso de nossas vidas por uma necessidade inflexível, devemo-nos contentar com um presente tranquilo e sem dor. Se pudermos desfrutar desse presente, devemos fazê-lo sem ansiar por alegrias imaginárias e sem nos preocupar com o futuro, sempre incerto, dado que, em que pese aos nossos esforços, o futuro não depende de nós, mas é inteiramente jurisdição do destino.
A filosofia schopenhaueriana pode ser interpretada como o enfrentamento de uma única verdade, que constitui seu postulado, tomado ao ensinamento budista: viver é sofrer. O pensamento de Schopenhauer foi devedor do misticismo oriental, particularmente do hinduísmo e do budismo. O budismo mantém que toda existência é sofrimento, e a origem do sofrimento está no desejo. A primeira das Quatro Nobres Verdades budistas reza que “nascer é sofrer, envelhecer é sofrer, morrer é sofrer”. “O sofrimento tece as malhas da existência” – esta minha frase, que se me formou no espírito há alguns anos, reverbera o ensinamento budista e schopenhaueriano. Viver é, essencialmente, sofrer – o budismo o reconhece e Schopenhauer o demonstrará. Buda ensinou que toda a existência é impregnada de sofrimento, porque tudo é passageiro. Quem não consegue compreender que o mundo é inadequado ao homem é uma pessoa cega. Budismo heraclitiano: a realidade está em constante mudança; tudo muda, nada permanece. Tudo aquilo que amamos e a que nos apegamos simplesmente não vai durar. Nisso consiste a fragilidade da vida: a vida é um fluxo constante que pode cessar num átimo.
Para Buda, o sofrimento tem sua origem no desejo. Desejo envolve, sobretudo, ânsia de prazeres sensitivos, físicos. O problema é que esse desejo nunca é plenamente saciado, e a insaciabilidade do desejo acarreta sempre um sentimento de desprazer. Até mesmo o desejo de sobrevivência mantém o sofrimento. Quem se apega à vida, crendo possuir uma alma, permanece no sofrimento. Mas o suicídio – e aqui também podemos ver a influência do pensamento budista sobre a filosofia de Schopenhauer – não é uma solução. Quem atenta contra a própria vida ou comete suicídio permanece atado à existência. Em primeiro lugar, porque o desejo de matar-se ou o próprio suicídio envolve a crença de que o ser humano tem uma alma que pode ser eliminada. Em segundo lugar, porque aquele que deseja se matar ou que se mata não leva em consideração o carma. O suicídio, assim, não liberta a pessoa do samsara, isto é, do ciclo de renascimentos. O budismo não oferece paraíso; não há milagres nem vida além-túmulo. A morte, para o budismo, “é dissolução da forma perceptível aos nossos sentidos, de um agrupamento de elementos que vão se reagregar em novas combinações” (Barbeiro, 2009, p. 64). Schopenhauer anuirá tanto à necessidade de fazer cessar o que, em sua linguagem, chamará de “vontade” (o querer-viver), quanto à rejeição do suicídio como solução para os tormentos da vida. Aqui não é o lugar para me deter na apresentação das razões por que Schopenhauer, a exemplo da doutrina budista, rejeita o suicídio; mas o essencial pode ser dito assim: o suicídio é um ato inútil porque elimina o fenômeno individual, mas não a vontade de viver, a qual permanece in aeternum.
Feita essa incursão pela influência budista no pensamento schopenhaueriano, podemos compreender melhor por que, em Schopenhauer, a sabedoria da vida que pretende nos iluminar o caminho para a felicidade não pode esquivar-se do enfrentamento do maior dos problemas: viver é, essencialmente, sofrer. A influência budista repercute claramente no pensamento schopenhaueriano no seguinte trecho, colhido de As dores do mundo (2014):


Querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida. A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina: uma história natural que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados”. (grifos meus, p. 39).



Ensina Schopenhauer que o homem que superou o egoísmo com base no qual se via como distinto do resto mundo pode apropriar-se da dor universal, isto é, pode compreender que a dor, o sofrimento e os tormentos infinitos são extensivos a todos os seres que possuem vida. Este homem “vê tudo quanto existe condenado a contínuo aniquilamento, a vãs esperanças, ao autoconflito e à dor sem trégua” (Schopenhauer, 2012, p.167). Esse homem, no qual o princípio de individuação atingiu os limites extremos, permitindo-lhe compreender que a vontade é idêntica em todos os seus fenômenos, é, enfim, capaz de reconhecer que a dor é a essência da existência. Para onde quer que olhe, verá o animal sofrer e o mundo dissolver-se. Nas palavras de Schopenhauer, “a visão já não lhe está constrita sobre a sua felicidade e desventuras pessoais, como sucede com aqueles que o egoísmo domina para sempre”. Superado o egoísmo, o homem torna-se capaz de compaixão: ele se compadece de todo sofrimento que faz gemer os viventes suscetíveis à dor. Essa ética baseada no reconhecimento do caráter universal da dor, que levaria o homem a se solidarizar com o sofrimento dos viventes mais suscetíveis a ela, é incompatível com uma compaixão cristã, que se inscreve num horizonte hermenêutico à luz do qual o sofrimento deve ser portador de um sentido e que, a despeito disso, não pode (ou pouco pode) explicar o sofrimento dos animais. A dor e o sofrimento não têm sentido. Dor e sofrimento são constitutivos do tecido do real, e justamente porque são constitutivos do real, que é silêncio, que não tem sentido, não podem também fazer sentido algum.
Dispensando atenção ao excerto supracitado, gostaria de dilucidar os seguintes fragmentos: 1) “querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda existência é essencialmente dor”; 2) “quanto mais elevado é o ser, mais sofre”; 3) “a vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Com vistas a esclarecer esses três fragmentos, preciso dizer, desde já, que Schopenhauer concebe a vida como uma luta incessante entre nascimento e morte. Nascimento e morte equilibram-se como dois polos do fenômeno total da existência. Essa compreensão do viver Schopenhauer deve ao ensinamento hinduísta.
Intentando esclarecer os três fragmentos destacados do excerto supracitado, precisarei lançar algumas luzes sobre o conceito de Vontade, que constitui o alicerce de todo o pensamento metafísico de Schopenhauer. Schopenhauer empreende sua investigação sobre o mundo segundo dois pontos de vista: o da representação e da Vontade. O mundo como representação, isto é, o mundo fenomênico, o mundo tal como aparece para o sujeito cognoscente é a objetivação da Vontade. A Vontade é, então, a coisa-em-si, a essência do mundo. Schopenhauer define a Vontade (com “V” maiúsculo) não como a vontade do homem, embora o indivíduo humano seja a manifestação fenomenal da Vontade, mas como a essência do Universo; a Vontade é aquilo que é comum a todos os fenômenos. Cada indivíduo é a manifestação específica da Vontade que anima todo o Universo.
Schopenhauer escreverá “meu corpo e minha vontade são a mesma coisa”. O corpo se dá ao sujeito do conhecimento sob dois modos: como representação no conhecimento fenomênico, isto é, como objeto entre outros objetos no mundo; e como Vontade. A ação do corpo é a Vontade objetivada. A Vontade é o querer-viver, a tendência à vida por parte de toda criatura. A Vontade é impulso de ser, de viver e de agir. Ela sustenta o mundo, torna-o fecundo e diversifica-o. A Vontade, no entanto, está fora do tempo e do espaço, embora as formas de sua objetivação ocupem o espaço e o tempo. A Vontade permeia todo o mundo inorgânico e orgânico. No primeiro, por meio de causas; no segundo, por meio de motivos. Aprofundemos um pouco mais a compreensão do conceito de Vontade, lendo o que a respeito dele nos escreve o próprio Schopenhauer:


“A vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples tendência, cega e irresistível, a qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do vegetal e nas suas leis, como também na parte vegetativa da nossa vida; mas pelo acréscimo do mundo da representação que se desenvolveu pelo seu uso, ela adquire a consciência do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo que quer não é outra coisa senão o mundo e a vida como são; dizemos, por isso, que o mundo visível é a sua imagem ou a sua objetividade; e como o que a vontade quer é sempre a vida, pois que a vida para a representação é a manifestação da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro pleonasmo se em vez de dizer “a vontade”, dissermos “a vontade de viver” (grifos meu, Schopenhauer, 2012, p. 31)


O que quer a Vontade? Quer o mundo e a vida como são. Quer encontrar na matéria seu meio de manifestação. A Vontade é o mesmo que “vontade de viver”. A Vontade é a coisa-em-si, a substância, a essência do mundo. A vida, o mundo visível ou o fenômeno é o espelho da Vontade. Vida, mundo ou fenômeno é inseparável da Vontade, tal como é a sombra inseparável do corpo: “onde houver Vontade, haverá também vida, mundo”. A vida é garantida pelo querer viver. A Vontade não quer senão a vida; a Vontade é um querer-viver incessante.
Tudo quanto a natureza compreende, isto é, o conjunto dos fenômenos, é absolutamente necessário. O mundo fenomênico é regido pela lei da causalidade. O mundo, com todos os seus fenômenos, é objetivação da Vontade, mas a Vontade, porque não é nem fenômeno, isto é, representação, nem objeto, mas a coisa-em-si, não está submetida ao princípio da razão; por conseguinte, a Vontade não é efeito de uma causa e, por isso, necessariamente, a Vontade é livre: “qualquer coisa, como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessária: em si, a vontade é inteiramente e eternamente livre.” (Schopenhauer, 2012, p. 46).
A Vontade não é objeto de conhecimento intuitivo, dado que esta forma de conhecimento está ligada às condições de tempo e espaço. Todavia, podemos apreender a presença da Vontade em nós e nos outros corpos da natureza. A Vontade atua no mundo inorgânico por meio de causas e na vida animal por meio de motivos. No mundo vegetal, ela se manifesta através da excitação ou irritabilidade. Também verificamos a excitação na parte vegetativa da vida animal, de modo que a excitação (ou irritabilidade) está a meio caminho entre a causa e o motivo (causalidade consciente).
Finalmente, devemos ter em mente que a Vontade não tem nenhum escopo final. Ela é aspiração perpétua que não pode ser exaurida por nenhum escopo que ela possa atingir. Não há satisfação final para a Vontade. Não há um instante sequer em que ela se encontre em repouso. Não há corpo sem aspiração. A Vontade quer manifestar-se nas formas fenomênicas. A Vontade é o fundo de todos os fenômenos. A matéria é o “lugar” onde as forças naturais, que são objetivações da Vontade, querem se manifestar. A Vontade é cega, é inconsciente; ela atua sem qualquer finalidade, ela não quer outra coisa senão um ‘corpo’ para se manifestar. Mas a Vontade que não quer senão a vida não deixa de encontrar obstáculos. Ela, a Vontade, é o próprio esforço para a objetivação do seu querer.

“(...) em todo lugar as diversas forças da natureza e as formas vivas disputam mutuamente a matéria, todas tendem a usurpá-la, cada uma possui justamente o que arrancou às outras; assim se mantém uma guerra eterna, em que se trata de vida e de morte. Daí resultam resistências que de todos os lados opõem obstáculos a esse esforço, essência íntima de todas as coisas, reduzem-no a um desejo mal satisfeito, sem que, contudo, ele possa abandonar aquilo que constitui todo o seu ser, e o forçam assim a torturar-se, até que o fenômeno desaparece, deixando o seu lugar e sua matéria imediatamente açambarcadas por outras”. (grifo meu, Schopenhauer, 2001, p. 324).



As forças da natureza e as formas vivas são graus distintos da objetivação da vontade. As forças da natureza são o grau mais baixo dessa objetivação. As forças da natureza e as formas vivas disputam a matéria na qual querem se manifestar. Essa disputa perpetua uma guerra na qual umas sobrepujarão as outras. Mas o que sucumbe é o fenômeno, por exemplo, este ou aquele animal, mas nunca a Vontade em si. Schopenhauer mostra que o sofrimento é o obstáculo que se interpõe entre a aspiração da Vontade e o seu escopo momentâneo. O sofrimento continuará existindo até que a aspiração seja satisfeita; mas, como não é possível satisfação duradoura, esta termina por ser o ponto de partida duma nova aspiração sempre obstada de todos os modos. Há, portanto, sempre luta, sempre dor. Não há, para a aspiração, um escopo final, nenhum termo para o sofrimento.
Consoante Schopenhauer, quanto mais perfeito é o fenômeno da vontade tanto mais patente é o sofrimento. A intensidade do sofrimento é proporcional ao grau de aperfeiçoamento do fenômeno da Vontade. O sofrimento é tanto mais elevado quanto mais claro é o conhecimento e desenvolvida a consciência. Assim,


“À medida que o conhecimento se torna mais claro e que a consciência aumenta, o sofrimento cresce, chegando no homem ao grau supremo: e é neste ponto tanto mais violento quanto melhor é o homem dotado de lucidez de conhecimento, quanto mais é excelsa a sua inteligência: aquele em quem está o gênio é sempre aquele que maiormente sofre” (Schopenhauer, 2012, p. 77).


O sofrimento é, portanto, proporcional ao grau de aperfeiçoamento do fenômeno da Vontade. As plantas não sofrem, segundo Schopenhauer, porque carecem de sensibilidade. Nos insetos, a faculdade de sentir e sofrer é mínima; mas nos vertebrados essa faculdade atinge um grau muito elevado, visto que eles possuem um perfeito sistema nervoso. Quanto maior é a inteligência nestes, maior será o sofrimento. Por isso, no homem, a capacidade de sofrer atinge seu grau supremo. Mas, mesmo entre os homens, existem os que sofrem de modo mais violento, porquanto dotados de lucidez. Quanto mais ciência adquire um homem maior será sua capacidade de sofrer. Esse homem sofre mais, sobretudo porque é mais suscetível à angústia. Por ser lúcido, reconhece que seu sofrimento não é senão a própria objetivação particular da essência mesma da vida, qual seja, a dor. Seu sofrimento não é mais do que a consequência inevitável da aspiração cega e inconsciente da Vontade.
“Querer é, essencialmente, sofrer” e “toda existência é, essencialmente, dor”, porque a existência é luta sem trégua entre as objetivações da Vontade que tendem a disputar a matéria em que querem se manifestar. Toda satisfação é momentânea e serve de ponto de partida para nova aspiração que terá de enfrentar resistências. Como a existência é luta entre nascimento e morte, mesmo o homem, que é mero fenômeno da Vontade, não escapa a esse movimento tendente da vida para a morte. Não importam seus inúmeros esforços por perseverar no ser, ao fim e ao cabo, é a morte que vencerá.


3. Considerações finais

Uma filosofia do desespero que pretende desilusionar o homem, libertando-o de suas esperanças vãs, sobretudo as de felicidade que, incompatível com a constituição afetiva do desejo, não passa de uma miragem, deverá encarar com perícia cirúrgica o problema do sofrimento, que, à luz de um exame sem pressupostos teológicos, apresenta-se como o modo próprio de constituição do viver. A sabedoria do desespero, tal como a que propõe Sponville, insistindo no cuidado com o presente, é compatível com a concepção schopenhaueriana de vida feliz. O próprio Schopenhauer celebra o presente: “O presente é a única coisa que existe sempre, sempre estável, inabalável” (Schopenhauer, 2001, p. 293). E acresce:


“Antes de tudo, o que é preciso compreender bem é que a forma própria de manifestação do querer – por consequência, a forma da vida e da realidade – é o presente, só o presente, não o futuro nem o passado: estes têm apenas existência como noções, relativamente ao conhecimento (...) Jamais homem algum viveu no seu passado, nem viverá no seu futuro: é só o presente que é a forma de toda a vida” .(Idem, p. 292).


Que felicidade é, então, possível ao homem? Aquela que nos mantém provisoriamente imperturbáveis enquanto não nos atormentam as dores que o mundo, inevitavelmente, nos reserva.



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COMTE-SPONVILLE, André. Uma Educação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2012.

______________. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

____________. Felicidade Paradoxal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. Do mundo como Vontade e Representação – Como Vontade – Segunda consideração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

________________. O mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.






[1] COMTE-SPONVILLE, André. Uma Educação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 398.
[2] A expressão Grécia Antiga recobre os períodos arcaico (fins do século VIII a.C. ao início do século V a.C.), clássico (do século V a.C ao IV a.C.) e helenístico ( do século III a.C. ao III d.C.). Se considerarmos o helenismo como o período que abriga uma filosofia greco-romana e doutrinas cristãs, então a filosofia antiga se estende até o século VI d.C. Teríamos, então, ao todo, dez séculos.
[3] LIPOVETSKY, Gilles. Felicidade Paradoxal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[4] Uma exposição sobre a ética hedonista de Epicuro o leitor poderá encontrar no link: http://escritosdobar.blogspot.com.br/2015/07/que-ninguem-hesite-em-se-dedicar.html
[5] Uma discussão detida da filosofia materialista encontra-se em:

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

"Quem nunca na vida foi absolutamente só não saberá o que é a necessidade da filosofia" (Sponville)

                             



                             A minha filosofia
                  primícias de uma arquitetura


A produção deste texto é motivada pela necessidade que senti de assentar os alicerces sobre os quais um pensamento filosófico que me seja próprio possa, a longo prazo, edificar-se. Pretendo, neste texto, tão-somente dar a conhecer a estrutura das fundações. Trata-se de dar bases sólidas, de estruturar uma forma de pensamento que tem sido, há muito, uma espécie de lente com a qual percebo e interpreto o mundo, o real, a existência. O percurso de minhas reflexões será traçado com o objetivo basilar de dar a conhecer a coerência não só entre o meu estar-em-relação-com-o-mundo e as formas como eu compreendo este mundo, que não me são acessíveis senão nessa relação, mas também entre formas de representação, entre posições que foram, ao longo do tempo, edificando uma plataforma filosófica que se apresenta em reação às representações sociais que dão forma à mentalidade predominante numa época. Trata-se de uma plataforma filosófica refratária ao conformismo, aos sistemas de crenças dogmáticos, às formas de pensar que não vão além do estabelecido e que, por isso, o reproduzem como um dado natural, inalterável, em face do qual não resta senão manter-se num estado de resignação intelectual.
Filosoficamente, percebo-me como um materialista. Não basta, contudo, afirmar-me como tal, sem demonstrar em que medida isso é uma verdade, pelo menos, para mim. Esforçar-me-ei por fazer-me compreender. Para tanto, é preciso que se compreenda que, uma vez se assuma uma posição ateísta em face do mundo, necessário é que se reconheça o compromisso dessa posição com uma posição materialista. Não quero sugerir que o materialismo sempre foi uma forma de ateísmo, ou que todo ateu deve, necessariamente, ser materialista. Em primeiro lugar, Epicuro, reconhecido materialista, não era propriamente ateu (lançarei, adiante, algum olhar sobre o materialismo de Epicuro). Por outro lado, um ateu pode ignorar, durante toda vida, as posições materialistas e, por isso, pode sequer cogitar de que elas lhe estejam ligadas às formas de pensar o mundo como pressupostos. No curso de minha tentativa de assentar os alicerces de meu próprio pensamento filosófico, também procurarei sinalizar a filiação entre as posições ateísta e materialista.
Para mim – já que se trata de alicerçar minha própria perspectiva filosófica, cujo desenvolvimento adequado dependerá ainda de mais alguns anos de estudo -, a assunção do ateísmo está intrinsecamente ligada a uma posição materialista que, neste texto, trato de desenvolver.
Começarei, pois, apresentando uma definição de materialismo, colhida da obra Dicionário Básico de Filosofia (2010), de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú. Pretendo, citando-a, tão-só situar o materialismo como problema de que me ocuparei doravante:

“Doutrina que reduz toda a realidade à matéria” (p. 181)


Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo; mas ela se nos tornará mais clara ao longo do texto. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
Um dos problemas implicados no materialismo é a noção de matéria; mas deixarei para esclarecê-la numa seção mais adiante. Outro problema diz respeito à variedade de materialismos. O materialismo, nota Sponville (2001, p. 103) é uma tradição; por isso, não há apenas um materialismo, mas vários materialismos que, embora se sucedendo em intervalos de tempo extensos, revelam afinidades, solidariedades e pontos de contato.
Claro deve estar ao leitor que trato aqui do materialismo filosófico e não do materialismo na sua acepção trivial, como maneira de viver daqueles que valorizam apenas os prazeres físicos, os bens adquiridos com o dinheiro e o próprio dinheiro como signo de riqueza. Estando claro que trato do materialismo como doutrina filosófica, é urgente pensá-lo como um esforço crítico das ilusões idealistas, espirituais e religiosas. Os filósofos materialistas repensam o valor do corpo e dos seus prazeres. Se é verdade que eles também podem nutrir um ideal, não podem, contudo, se deixar iludir totalmente por ele. Para um materialista, o corpo comanda, enquanto a alma precisa ser criada.
O materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo, se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo (“tudo se faz no corpo como se não houvesse alma” (Sponville)). A noção de corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material. Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Vale esclarecer o que é o espiritualismo. Trata-se da doutrina que afirma existir uma substância espiritual (a alma ou o espírito) independente da matéria, que, no homem, seria o princípio da vida. Mas o espiritualismo é uma forma de idealismo.
O materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma filosofia do corpo. Denominam-se materialistas os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma. Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. Essa ideia não é, de modo algum, clara.
Retendo o principal até aqui, vale sublinhar que o materialismo é um monismo físico, porque entende existir apenas a matéria. Sob o rótulo de materialistas, podem-se reunir Epicuro, Demócrito, Hobbes, Diderot e Marx.


                              O materialismo de Epicuro: um esboço

Poder-se-ia objetar que Epicuro não deve ser incluído entre os materialistas, porque sua filosofia reconhece duas substâncias: a matéria e o vazio. Nesse tocante, ele segue a tradição dos atomistas da Antiguidade.
No entanto, como o vazio é nada (é um não-ser, por que se movem os átomos), segue-se que tanto para Epicuro quanto para os atomistas, só existe a matéria e nada mais. Claro é que não devemos esquecer a posição de Demócrito, para quem o nada existe tanto quanto algo. Mas, nesse caso, ainda é possível sustentar que a matéria recobre a totalidade do ser apenas, ainda que não esgote a totalidade de tudo (esse “tudo” inclui o vazio, o não-ser). Não estranhe o leitor o pleonasmo da expressão “totalidade de tudo”. Com ela, quero dizer que o ser, segundo essa interpretação, não corresponderia ao tudo, de modo que seria possível pensar que esse tudo inclui também o vazio.
Tome-se o problema da existência do pensamento à luz da doutrina materialista. Devemos ainda ter em conta Epicuro. Seria absurdo que um filósofo negasse completamente a existência do pensamento, já que, se o fizesse, negaria a si mesmo, além de pensar que não pensa, o que seria absurdo. O materialismo monista – vale frisar – não nega a existência do pensamento; nega a sua independência relativamente à matéria. O que um materialista nega é que o pensamento tenha existência autônoma. Trata-se, pois, de dizer não que o pensamento não existe, mas que ele é material como tudo o mais. O pensamento seria ele mesmo um corpo (posição dos estóicos), ou seria explicado por um “movimento sutil da matéria” (Epicuro) – ainda que essa ideia não explique nada.
Faz-se mister notar uma conclusão provisória:

São materialistas os filósofos que afirmam que tudo, exceto o vazio, é material. Nesse tudo, devemos incluir o pensamento.



                              A variedade de materialismos e a noção de matéria

Nesta seção, discutirei um problema que se revelará aporético ao termo da exposição. Lembro que a aporia é uma dificuldade lógica insolúvel. Não obstante, a compreensão dessa dificuldade ajudar-nos-á a fixar um lugar para o materialismo na história da filosofia e nos instrumentalizará para defender a posição materialista de ataques de adversários.
Há duas dificuldades que tratarei de expor e explorar: uma diz respeito à definição do próprio materialismo; a outra, à definição de matéria. Há vários materialismos, conforme já notei; e há várias opiniões acerca do conceito de matéria.
Essas dificuldades podem ser expressas nas seguintes alternativas: ou se deixa indefinida a noção de matéria e, consequentemente, também indefinido o próprio materialismo. Ou se define a matéria, não positivamente (o que suporia saber a sua natureza última, empresa esta a que renunciou, há muito, o materialismo), mas negativamente, ou seja, como não sendo pensamento ou espírito.
Acontece que, ao propor definir a noção de matéria de modo negativo, está-se a opor a matéria ao pensamento. Essa oposição não é autorizada pela definição tradicional de materialismo, cujo exemplo apresentamos anteriormente. Ora, se o materialismo é a doutrina que reduz a realidade à matéria, então não há lugar para a oposição entre matéria e pensamento, já que o próprio pensamento é corpo, forma de matéria. Para preservar o princípio de identidade, não se pode manter que haja diferença entre matéria e pensamento. Do mesmo modo, violar-se-ia o princípio de contradição se se afirmasse que tudo incluiria e, ao mesmo tempo, excluiria o pensamento. Vê-se, logo, que o materialismo seria uma anomalia lógica.
Uma primeira solução consiste em eliminar a oposição entre matéria e pensamento, afirmando que tudo é matéria e que a matéria a nada se opõe, exceto ao nada, que é o vazio. A oposição fica suprimida, pois a matéria não se pode opor ao nada. Sucede, contudo, que essa solução se nos demonstra imediatamente frágil, fazendo irromper nova dificuldade, qual seja, se a matéria não se opõe ao pensamento, então ela se torna sinônima do ser. Por conseguinte, o materialismo se apoiaria numa tautologia sem valor algum, segundo a qual tudo é do domínio do ser. É como se estivéssemos dizendo que a totalidade do ser é o ser. Sponville observa que o materialismo seria uma “espécie de pan-ontologismo (um monismo do ser), e cessaria por conseguinte de ser materialista” (p. 112).
Não há lugar para um materialismo monista radical: se existe apenas um tipo de ser (a matéria), este tipo de ser deve, necessariamente, encerrar o pensamento.
Pode-se resolver o problema, afirmando que é a matéria que pensa. A matéria e o pensamento não se distinguem como duas substâncias, mas como causa (matéria) e efeito (pensamento). Os marxistas e os materialistas do século XVIII estão de acordo nesse ponto. O espírito é, pois, o produto mais elevado da matéria. É a matéria que pensa (o cérebro, no homem, que pensa; a própria mente não seria mais do que uma função do cérebro, aquilo que ele faz); é a matéria que produz o pensamento, portanto. Eis o que se chama de primado da matéria.
Se nos detivermos a refletir sobre o problema, veremos que ele não é suprimido totalmente. De alguma forma, ele permanece. Senão vejamos. Uma vez que se admite que o pensamento é da mesma natureza que a matéria, ou seja, é material, segue-se que a matéria não produz nada além dela mesma. Assim, suprime-se o primado da matéria. Se a matéria é diferente do pensamento, suprime-se o monismo.
A aporia se instala: o materialismo chega ao seu limite. Ou só existe negando a si mesmo como monismo, caso em que terá de admitir, forçosamente, a oposição entre matéria e pensamento, ou se define como monismo, anulando-se como materialismo, caso em que não há mais primado da matéria. Lembro que só podemos falar em primado da matéria se houver lugar para o pensamento na doutrina materialista. A própria noção de primazia supõe a superioridade de um termo sobre outro.
Sponville nos fornece uma solução final. O materialismo é, segundo o autor, uma filosofia do combate. Ele supõe um adversário e se define em oposição a ele. Portanto, o materialismo não acredita nos sistemas filosóficos (entendidos como formas de pensamento que visam a atingir um saber sistemático, isto é, um saber que integra as questões da filosofia, da ciência e de vários tipos de saber numa totalidade articulada na qual as várias respostas oferecidas são vistas como diferentes facetas de um mesmo tipo de problema). Dizer que o materialismo não acredita nos sistemas é dizer que não acredita na construção de um saber totalizante do real, cujas regiões estão interligadas, de modo que uma parte remete, necessariamente, a outra. O materialismo pensa contrariamente; pensa na forma de confronto. Nas palavras de Sponville,

“O materialismo seria então contraditório (ou, se preferirmos, dialético) na mesma medida em que seria reativo. O dualismo seria seu terreno de luta (que ele compartilha necessariamente com o adversário) e o monismo, seu horizonte (que ele ainda não atinge)”.
(p. 118)


Do excerto de Sponville, segue-se que sua solução deve deixar claro que:

1) o problema da definição do materialismo não é, necessariamente, de ordem filosófica; porque coloca em questão o estatuto do pensamento. Assim, pode ser um problema para as ciências naturais;

2) o materialismo, como lugar de confronto, pode aceitar que o pensamento e o próprio pensamento materialista, às vezes, conheçam limites;

3) o materialismo reza que o substrato de tudo que existe não é da ordem do pensamento; por isso não é razoável sustentar que o pensamento deveria abranger tudo.

Em 3), fica clara a forma como o materialismo pode-se definir: em oposição ao idealismo. O materialismo não afirmaria dogmaticamente que o real se reduz à matéria, mas que, certamente, não se reduz ao pensamento.
O materialismo não aspira, de modo algum, a um saber absoluto; não se alicerça sobre a ideia de que o ser é completamente transparente ao pensamento, o que lhe permite reconhecer seus limites. Esses limites seriam, pois, formas de confirmação de sua plausibilidade.

“A ideia de um saber absoluto só tem sentido se o absoluto é da ordem de um saber; e é precisamente o que o materialismo rejeita e recusa”. (p. 119)


Está claro que o absoluto, para o materialismo, é incognoscível. Por isso, o materialismo é uma forma de pensamento que reconhece a finitude inerente a todo pensamento; reconhece-se como pensamento finito. O materialismo é um pensamento inacabado. O inacabamento de seu pensamento é justamente o que impede o término do movimento do próprio pensar: “o infinito – diz Sponville – não está no resultado mas no processo” (p. 119). Trata-se de um pensar que não conhece fim.



                              Síntese provisória

O materialismo é a doutrina que sustenta que tudo é matéria ou produto da matéria – exceto o vazio – e que, consequentemente, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. Nessa definição reúne-se um materialismo antigo ao materialismo marxista.
Por outro lado, dado que o materialismo se define em confronto, o idealismo – seu adversário -, em sentido lato, é toda doutrina que afirma ser independente, primeira e exclusiva a existência do pensamento, quer tomado como espírito subjetivo (Descartes, Bergson...), quer tomado como idealidades objetivas (Platão, Hegel...).
Compreendido dessa forma, deve-se distinguir, no materialismo, o que se segue:

a) um monismo ontológico, porque só existe uma substância, que é a matéria;
b) um realismo gnoseológico, porque a matéria é cognoscível, mas não se reduz ao conhecimento que podemos ter dela;

c) um relativismo teórico, porque não há valores absolutos (não há um Bem em si, um Belo em si...); porque todo valor é relativo a um corpo individual ou social ou à história.

O materialismo se situa, negativamente, em oposição ao dualismo e ao espiritualismo (deve-se entender que não há, para um materialista, nem mundo inteligível, nem alma imaterial). Assim, ser materialista é ser antiplatônico. O materialismo também se define em oposição ao ceticismo e ao criticismo (Kant); porquanto rejeita a ideia de que a realidade em si seja incognoscível. Um materialista não admite uma dimensão numênica do real (a coisa-em-si kantiana).
Por fim, o materialismo é incompatível com toda forma de religião fundada na crença num Deus imaterial, criador e legislador. Não se trata de opor o materialismo a qualquer forma de religião, pois que o próprio Epicuro não era ateu (ele julgava os deuses como seres materiais). O materialismo é, portanto, como sublinha Sponville, “um pensamento de recusa, de combate”. Na esteira de Lucrécio e de Marx, o materialismo é um esforço filosófico para suplantar a religião, a superstição, a ilusão em geral.
O materialismo é uma filosofia que busca explicar o espírito por recurso a processos materiais. Assim procedeu Marx, que explicou o fenômeno espiritual como produto de relações na base econômica, e Freud, que explicou o psiquismo pelas pulsões sexuais. O materialismo é um monismo pluralista (p. 121). Recusa a ideia de Um e assume como consequência da asserção de que “tudo é matéria” a proposição “tudo é múltiplo”.

Tendo em conta a coerência entre a assunção de uma visão materialista de mundo e a rejeição a certas filosofias idealistas, a cuja exposição tenho consagrado estas reflexões, notemos com Onfray (2008), que um materialista deve-se opor

a) à tradição platônica, transmitida pelo cristianismo. Nietzsche observou, a esse respeito, que o cristianismo é um platonismo para o povo;

E deve

b) dar razão a Demócrito em lugar de dá-la a Platão. A oposição ao platonismo e ao neoplatonismo cristão se expressa na forma de rejeição a uma filosofia de renúncia à existência; em suma, a uma filosofia que ensina:

“(...) as ideias, os conceitos puros que evoluem num mundo celeste, cultua uma potência demiúrgica e dá aos deuses o poder arquitetônico sobre o mundo; ensina a desviar-se do sensível, em proveito do inteligível, enfim transforma a existência em perpétua ocasião de renúncia”.
(p. 54)


Longe de instilar o pessimismo aborrecido, o materialismo se alinha bem com o hedonismo de um Hiparco, para quem a filosofia é uma oportunidade de sabedoria e reconciliação do si consigo mesmo, com os outros e com o mundo (Onfray, p. 78).




                     O que é a matéria?

As ciências da natureza nos dizem o que é matéria sem saber realmente o que ela é. Ondas ou corpúsculos? Corpo ou energia? Quais corpos? E qual energia? Quarks, léptons são as últimas realidades? É provável que a matéria seja inesgotável.
Para a filosofia materialista, importa pensar a matéria como tudo cuja existência independe do pensamento ou do espírito. A matéria é o fundo não espiritual do real. Ela carece de consciência, não tem memória, nem projeto, nem vontade. É o ser sem vida e inconsciente. É o todo que se oferece ao espírito na forma de silêncio e indiferença.
Definida assim a matéria, vê-se com nitidez a filiação do materialismo com o pensamento trágico, isto é, com a “lógica do pior”, através da qual a vida se revela sem mentira, na sua nudez verdadeira, e sem esperança, na sua irremediável fragilidade (certamente também sem alegria nem grandeza, “sobre um fundo de morte ou de nada” (Sponville, p. 132).
Na sua relação com o trágico, o materialismo não propõe uma salvação da morte (que seria a promessa da religião, ou uma forma de esperança), mas o tornar possível a realização plena do que vai morrer. Portanto, o sábio materialista vive desesperadamente a única vida possível e verdadeira; por isso o presente, para ele, é o próprio real. Por isso, ele vive o presente, e a morte, que é o fundo do próprio real, não é nada para ele. Lição materialista: o silêncio, o desespero (ausência de esperança) e o esquecimento; mas também a paz e o estímulo a viver. Todo materialismo afirma a vida, não sob a forma da esperança, da promessa ilusória, mas reconhecendo sua plenitude presente na própria impermanência a que todas as coisas estão destinadas. Afirma a vida não mascarando a morte, numa intransigente inversão valorativa: não é a certeza da morte que destitui a vida de importância; é a própria crença na eternidade além-túmulo que a torna depreciável. A inexorabilidade da morte torna a vida válida, na medida em que a percebemos como urgência que deve ser vivida no aqui e agora.

“Nascemos uma vez, não é possível nascer duas vezes, e temos de não ser mais para a eternidade: tu, portanto, que não és amanhã, tu adias a alegria; a vida perece pelo prazo; e cada um de nós morre atarefado”.

(Lucrécio, livro III)


Uma vez que o materialismo afirma o valor desta vida, uma vez que afirma que não há nada a esperar, que é urgente viver a presença plena do real, ele é compatível com uma ética da felicidade, à luz da qual a felicidade se situa no real (presente) como possibilidade da própria experiência humana. Trata-se de uma possibilidade emergente porque acessível a nós e urgente, porque jamais percebida como algo que devemos adiar para um além-mundo. Não projetar a felicidade para o futuro, mas encará-la como possibilidade presente; portanto, do próprio real.
No entanto, o materialismo, porque não se deixa seduzir pela ilusão, pelas esperanças vazias, reconhece a fragilidade tanto da vida quanto da felicidade. O real nos proporciona uma felicidade trágica – uma antítese que se impõe como consequência da relação do materialismo com o pensamento trágico. Uma vez que devolve a felicidade ao domínio do real, os materialistas, não podendo excluir, por isso, o trágico (já que o real o abriga tanto quanto a possibilidade de felicidade), buscam pensar os conflitos, as tensões, as contradições que permeiam a relação entre a felicidade como possibilidade do real e o trágico como dimensão que lhe é estruturante.
Não estão ainda amadurecidas as  reflexões que visem a demonstrar de que modo um pensamento materialista pode admitir a possibilidade da felicidade, ao mesmo tempo em que reconhece o trágico como dimensão estruturante do real. No entanto, a experiência parece nos assegurar que, apesar do trágico, a felicidade é possível a um grande número de pessoas. A mim, o trágico tanto quanto a felicidade é experiência que deve ser examinada em suas articulações, tensões com a fragilidade e efemeridade da vida.
Proponho que se reconheça que assim como não há momentos felizes (a linguagem aqui constitui uma fonte de engano), mas experiências de felicidades em circunstâncias determinadas, assim também não há acontecimentos trágicos em si, mas experiências do trágico. Trata-se de pensar o trágico não como atributo dos acontecimentos, mas como um modo de perceber e sentir o mundo. Um universo indiferente, silencioso, sem qualquer propósito ou significado em si não pode comportar o trágico, embora – o que não deixa de nos causar espanto - nos torne capazes de experienciá-lo como uma verdade para nós, mas inexistente para os demais entes. Evidentemente, se nossa consciência evoluiu de tal modo que nos permitiu também a experiência do trágico é porque o trágico é uma possibilidade do real, uma dimensão estruturante dele.  Mas o trágico só é uma ocorrência do real na medida em que nós o experienciamos como tal. A morte de milhares de pessoas num terremoto só é uma tragédia para nós, seres humanos, capazes de experienciá-la como tal. Uma natureza indiferente não reconhece o trágico.
O materialismo se harmoniza com o pensamento de Nietzsche num aspecto importante: na superação da noção de “mundo das aparências sensíveis”. Abolir o mundo sensível significa eliminar o equívoco do platonismo.
Finalmente, chamo a atenção para o fato de que a visão segundo a qual os valores são relativos, por exemplo, à história – de que um materialismo como o marxista nos é uma expressão fidedigna -  se afina com a obliteração da crença num mundo espiritual ou divino. Para um materialista, não faz sentido algum ver nos valores um fundamento supra-sensível. Na ausência de Deus como fundamento dos valores, resta ao materialista tomar o homem, no processo histórico, como o fundamento sem fundamento de todos os valores. A relatividade de todos os valores é matéria inteligível mesmo a uma consciência religiosa bem educada que, não obstante aceitá-la, pode – paradoxalmente – tomar Deus como fundamento absoluto de todos os valores.  E, nesse caso, se depõe o rigor exigido pelo trabalho do pensamento filosófico para estender-se sobre a mentalidade das pessoas o poder  das estruturas contraditórias de pensamento religioso.