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Um
instante radiográfico
Que me conta a radiografia de
minha vida nestes últimos dez anos? Abalos, explosões, êxodos, sismos,
cataclismos. Sofri uma fratura da qual jamais me recuperei. Na alma, carrego
cicatrizes que me doem mais porque não se pode tocá-las, porque não se estampam.
Por vezes – muitas vezes -, ao acordar, fico imobilizado por um debilitante
sentimento de abismo. Tantos pensamentos embaraçados e indiscerníveis me
assaltam o espírito. Quedo na cama. Fico a sentir as explosões de minhas
guerras – as guerras que hospedo em minha alma, em meu corpo. Delas um dia fui
prisioneiro; hoje, tornei-me um comandante suspeito, suspeitoso.
A poesia de outrora, que tantas
noites embalavam, caducou. A filosofia promitente é mal compreendida; e
ensiná-la parece-me uma desnecessidade. O público se ausenta com frequência.
Não se é filósofo com frases feitas, de efeito. Acho graça de quem supõe que é
assim que se fazem os filósofos. Aliás, filósofos não se fazem; eles acontecem.
Também os poetas não se formam; eles nascem. A filosofia não é democrática;
tampouco o é a arte. A poesia é um privilégio; a filosofia, ou é uma
necessidade, para a qual a vida nos lança (por isso, ninguém escolhe ser
filósofo), ou não é nada mais que uma dimensão da cultura, que se reúne a
outras tantas formas de sua manifestação (a música, a pintura, a literatura, o
cinema..), numa nota de rodapé.
Toda a humanidade pode se dividir
em dois grupos, e apenas nestes: o grupo dos que marcham em direção à morte
inevitável; e o grupo dos que marcham em direção à morte inevitável com alguma
inquietude intelectual a respeito do SER. Para os que compõem este último
grupo, o fato de haver mundo é extremamente espantoso. O fato de
sermos-no-mundo com os outros é causa de profunda inquietação. No mais, os
integrantes de ambos os grupos não se distinguem fundamentalmente. O cotidiano
os homogeneíza na engrenagem do viver segundo hábitos fixados por uma ordem que
os transcende. No cotidiano, o viver é banal, é medíocre. É o cotidiano o
habitat do homem medíocre. Nesse domínio, todos são como todos, e ninguém é em
si mesmo.
O que, no homem, é causa de
comiseração não é tanto a facilidade com que se ilude. Não se vive sem ilusões.
O mal do homem está em iludir-se sobre suas ilusões. Este homem é suscetível de
nossa comiseração. Há, portanto, os que sabem que alimentam ilusões e os que,
iludidos, têm ilusões sobre suas ilusões. Se não é possível viver sem ilusões,
é possível pensar sem mistificações. Ora, desmitificar-se não é livrar-se das
ilusões, mas reconhecê-las como tais, como ilusões.
Desmitificar-se tem sido para mim
o inequívoco grandioso projeto a que me tenho lançado. Por isso, a obstinação nos livros; por
isso, a dedicação à filosofia. Não se segue daí que a filosofia seja, para mim,
apenas um meio de desmitificação. Ela é um exercício de existência, um exercício
de ultrapassamento, um trabalho de preparação para a morte. É preciso aprender
a viver e é preciso aprender a morrer.