Na filosofia
moderna, na esteira de Descartes, por intuição entende-se a apreensão
de qualquer objeto mental. Intuição, nesse sentido, recobre tudo que o
pensamento experimenta com precisão em si mesmo ou na imaginação. Locke não
dirá diferente disso – intuitivo é o conhecimento que percebe a concordância ou
discordância entre duas ideias imediatas. É por intuição, portanto, que chego a
compreender que, depois de Nietzsche, é impossível fazer filosofia como a
fizeram seus antecessores. O que significa essa
impossibilidade? Para mim, ela significa duas coisas: 1)
impossibilidade de sustentação de um pensamento filosófico afinado com os
pressupostos hermenêuticos à luz dos quais se orientou a tradição; 2)
insistência em manter silêncio sobre as consequências radicais para a reflexão
filosófica advindas da perturbação desse que é o “mais sinistro de todos os hóspedes”
– o niilismo.
A confiança na razão é a essência de toda empresa
filosófica. A história do pensamento filosófico, desde suas origens,
orientou-se pela busca de princípios capazes de conferir sentido ao conjunto da
experiência humana. Quando admitimos que a filosofia se desenvolveu, desde suas
origens pré-socráticas, como uma prática discursiva assentada na confiança na
razão, queremos dizer que a experiência filosófica é ela mesma uma experiência
destinada ao trabalho com o sentido. A filosofia tem como preocupação a
determinação de um sentido para o mundo. Historicamente, portanto, a filosofia,
buscando explicar, num registro racional, os problemas já colocados pelo mito e
a religião, assumirá alguns pressupostos que, na modernidade (e, sobretudo, depois
do trabalho da desconstrução), se tornaram ineficazes para conferir sentido à
vida humana. Dentre esses pressupostos, destaquem-se três:
a) o mundo constitui uma totalidade ordenada e
inteligível, cuja história obedece a um desenvolvimento explicável;
b) Esse mundo ou cosmo apresenta uma ordem eterna,
divina, bela (boa); em última instância, inteligível.
c) o sentido da vida humana consiste em ajustar-se
a essa ordem divina e bela que constitui o cosmo.
Toda a história da filosofia ocidental, sobretudo a
partir de Platão, orientou-se pelo pressuposto de que um ente, quanto mais
real, quanto mais verdadeiro, quanto mais eterno, mais bondade e perfeição
possuiria. A vida humana deveria orientar-se pelo mais real, pelo que é em si.
Com o anúncio nietzschiano da morte de Deus, se
esgota o sentido no próprio coração do universo. Com ela, apaga-se a
ulterioridade do princípio, desaparece o “lugar” da constituição dos valores
superiores. O homem sente a proximidade desse que é “o mais sinistro dos
hóspedes” – o niilismo.
De fato, o niilismo, enquanto uma forma de
pensamento obcecado pelo nihil – o nada, pode ser rastreado em toda a história
do pensamento ocidental. De Górgias com suas famosas teses “nada é, e se alguma
coisa fosse, não poderia ser conhecida, e se fosse conhecível, seria
inexprimível” – à teologia negativa do poeta e filósofo italiano Giacomo
Leopardi, para quem o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas, o
niilismo impregnou o existencialismo francês cujos maiores expoentes são Sartre
e Camus. Mas foi, sem dúvida, Nietzsche o maior profeta e teórico do niilismo.
É com ele que o niilismo se erigirá em categoria histórica e em objeto de
reflexão filosófica. Niilismo, a despeito de seu caráter multívoco, pode ser
definido como uma doutrina que opera segundo uma série de reduções: os entes,
as coisas, o mundo e, em particular, os valores e os princípios – são negados e
reduzidos a nada. Do ponto de vista ontológico, o niilismo é a afirmação de um mundo
do qual não se pode sair, de um mundo sem transcendência, sem valores
superiores, sem alhures. Estar sempre de luto, reconhecer que nossa relação com
o sentido originário, com os deuses, com o fundamento é uma relação marcada
pela ausência, pela perda, pelo desaparecimento – eis, em suma, a essência da
experiência niilista.
Me parece razoável dizer que toda a filosofia
subsequente ao anúncio da morte de Deus constituiu um esforço de
ultrapassamento do niilismo, uma busca por fazer viger alguma experiência de
sentido no deserto que se tornou o mundo, após a devastação levada a cabo pelo
trabalho da desconstrução. A filosofia, por razões que suponho estejam claras,
não pode coexistir com o niilismo; o niilismo constitui uma ameaça à própria
possibilidade da experiência filosófica. Pelo menos, me parece ser esse o
perigo que mesmo Nietzsche e os filósofos que o sucederam souberam entrever.
Não obstante, a par do aspecto negativo do
niilismo, há nele um aspecto positivo. Num sentido positivo, o niilismo, na
esteira de Nietzsche, permite uma nova posição de valores baseada na vontade de
poder como caráter fundamental de tudo que é. É esta dimensão positiva do
niilismo que precisa ser mais bem aprofundada. Para mim, portanto, a grande
questão filosófica, o problema que mais interesse tem-me despertado
em minha lida diária com a filosofia, é como fazer filosofia em face da
presença impregnante e perturbadora desse hóspede sinistro, que resiste a toda
ordem de despejo. Em suma, como é possível filosofar em face da presença do
signo da Morte, da tentação do suicídio, da natureza emergente do Nada, que
ameaça, por todos os lados, a pretensão de conferir sentido à série de esforços
mobilizados pelos homens na tentativa de suportar o que eles, não raro,
pressentem como um fardo, um peso, a saber, a própria existência? Eu me sinto
tentado, quase por intuição, a anunciar uma resposta cuja elaboração supõe a
defesa de uma filosofia da banalidade do real. O niilismo não encerra tão
somente um aspecto negativo; ele não pode ser compreendido e experienciado
apenas como ausência dos fundamentos, vazio, abandono, náusea, aniquilamento.
Como o niilismo encerre também um aspecto positivo, ele deve ser compreendido e
pode ser experienciado como afirmação da banalidade da vida, como
desmitificação, como renúncia às formas nocivas de autoengano, como recusa do
esgotamento da vontade, da tirania dos valores “superiores” que divorciaram o
homem do real, que asfixiaram a vida instintiva no próprio homem. O niilismo
pode ser o modo próprio de a vida instintiva dar-se ao homem como gratuidade,
como um viver-se que é vontade de vida, potência de ser, que se afirma sob a
forma de um novo Aufklärung (esclarecimento). Na medida em que o niilismo constitui a categoria
fundamental através da qual devemos pensar a constituição histórica do homem
ocidental, na medida em que o niilismo se tornou “a condição normal” de nosso
tempo, será necessário também examinar as formas atuais assumidas por um “niilismo
incompleto”, que reduziram a vida do homem comum à vida besta em escala
planetária, a uma forma de vida depauperada. O niilismo contemporâneo é um
niilismo que não atingiu suas últimas consequências, a saber, a libertação do
homem e da vida no homem da tirania das ficções, dos produtos da criação do
“imaginário radical, para usar um conceito de Castoriadis, com o qual ele busca
compreender o caráter ficcional ou imaginário da instituição da ordem
social. Esse niilismo incompleto encontra numa bioascese seu modus
operandi mais devastador, porque produz uma forma, cientificamente controlada
e balizada, de esgotamento do corpo, porquanto funciona como um biopoder que
busca obsessivamente, por um lado, ajustar o corpo às normas científicas de
saúde, de longevidade; e por outro, às normas da cultura do espetáculo,
conforme o modelo das celebridades. Vige ainda aí, de modo explícito, a crença
na Ciência como o caminho redentor do homem de sua condição existencialmente
precária e mortal. O niilismo contemporâneo revela uma nova forma de
aprisionamento do homem, de escravização da vida: a tirania da imagem
corporal ideal, que se persegue mesmo à custa do bem-estar, mesmo que
sejam necessárias as mutilações do corpo que comprometem esse bem-estar. O
corpo é um corpo reificado e a imagem corporal como signo do Belo almejado, um
Belo que não é uma Essência a habitar o mundo platônico das Formas, mas um Belo
que toma corpo, que “se faz carne” e se torna objeto de adoração, idolatria;
essa imagem corporal que expressa o Belo ideal é absolutizada. O niilismo
incompleto contemporâneo, sob a forma de biopoder, produz meros sobreviventes:
ele separa, no homem, a vida orgânica da vida animal, o não humano do humano.
Sua ambição suprema é a separação definitiva do zoé e bios.
Fazer sobreviver significa reduzir o homem à vida vegetativa; significa, em última
instância, reduzir a vida humana a um mínimo biológico, à vida nua, ao mero
fato da vida.