quinta-feira, 19 de agosto de 2021

"E desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro". (Marcos Nobre).

 

             



                    O BOLSONARISMO COMO SISTEMA DELIRANTE


Walter Benjamin, preocupado em dar conta das questões “ o que é a história?” “Quem enuncia a história?”, deu-nos a seguinte resposta: a verdade narrativa da história é apenas uma, qual seja, a do compromisso com os sacrificados pela história, a do compromisso com os violentados pela história. Tudo o mais é mentira. A única verdade é que a história produz violência. Mas os partidários da nova direita e do bolsonarismo não querem saber da história. Reprodutores de um sistema delirante, com base no qual eles veem na esquerda, nomeadamente nos governos do PT, um projeto deliberado de revolução comunista no Brasil, que precisa ser combatido com uma guerra de salvação nacional capitaneada pelo militarismo, dizem: “ não nos interessa a história, só nos convém a história que me interessa”. Enclausurada numa máquina simbólica mentirosa, a militância bolsonarista, em nome do propalado combate à corrupção, a qual é vista como um legado nefasto exclusivo do petismo (ignorando nossa tradição histórica de corrupção política sistêmica, da qual participam também os próprios partidos da direita, nomeadamente o MDB de Michel Temer, e as grandes empreiteiras), insiste em ignorar o fato histórico de que o governo de esquerda democrático de Lula foi um governo de mercado e de capitalismo nacional, que integrou grandes porções das camadas populares à economia de mercado. Foi um governo no qual o Brasil teve um crescimento econômico acima do PIB mundial. Em 2010, último ano do governo Lula, o crescimento econômico do país chegou à marca impressionante de 7,5%. Que o PT tenha cometido erros de governança nas áreas de infraestrutura e economia é um problema que não encontra lugar na paranoia da extrema direita, em virtude de seus partidários serem obtusos, néscios e estarem exclusivamente interessados em reproduzir suas crenças delirantes. Essa gente tem uma pretensão de saber aquilo que ignora. Não só ignora, rejeita: as verdades históricas. O governo lulista, que tanto desagrado causa às elites brasileiras que embarcaram na paranoia bolsonarista, foi um governo que aperfeiçoou o modelo de capitalismo financeiro, graças ao qual essas mesmas elites lucraram (e ainda lucram muito). Muita gente ganhou com os oito anos de governo Lula: os grandes proprietários do capital e as massas, então integradas à cultura de mercado, por meio da ampliação do mercado de consumo interno no país. Essa mesma cultura de mercado, que tem seu próprio fascismo ligado à produção de subjetivação - individualista, maníaco excitado e fetichista - coexiste hoje com o fascismo alucinatório político, violento e delirante da extrema direita no Brasil. Não conseguimos (e talvez não consigamos em curto e médio prazo) eliminar esse “fascismo comum brasileiro”, porque ele tem uma historicidade profunda que deita raízes em nosso passado escravocrata. E antes que me venha um bolsonarista acusar-me de construir uma narrativa mítica e gloriosa do lulismo, deixo aqui minha anuência às seguintes palavras de Tales Ab’Sáber, ao ponderar que o modelo de governança lulista “também produziu uma cultura anticrítica, que corroeu a vida a seu modo, rebaixando o espírito geral das exigências políticas”. E o preço alto que pagamos por esse rebaixamento das exigências políticas foi o retorno do recalcado, um não conhecido muito conhecido que retorna, um impensado que se faz presente, uma força corrosiva, daninha que agia subterraneamente e que hoje ameaça a já frágil democracia brasileira, que se arrasta capengando em meio à falência do sistema político brasileiro atual. Esse recalcado que retorna tem nome: Jair Messias Bolsonaro.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

"Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto." (Sartre)

 




A um amigo enlutado

 

Supondo oportuno este momento em que você ainda está em trabalho de luto, compartilho alguns sentimentos angustiantes que me são familiares e que, de um tempo para cá, têm se me tornado mais dilacerantes e assíduos. Estou eu cá com um livro, como de costume, envolvido em uma leitura densa... E subitamente sou tomado por uma carreata estrondosa de pensamentos e sentimentos que me levam a me questionar por que me dedico tanto aos livros, por que os cumulo, para que leio tanto, para que tenho tantos livros, se só tenho uma vida apenas, tão débil e incerta, que pode ser mais breve do que eu esperaria que fosse e que, portanto, pode apagar-se, a qualquer momento, como a chama de uma vela? Sartre dizia que a morte é absurda... sim, de fato... a morte é um corte muito profundo e irremediável, uma ruptura definitiva com tudo aquilo que valorizamos e amamos na vida... a morte não só nos priva do convívio com as pessoas que amamos, mas também com aquele mundo de coisas e atividades que apreciamos, como a leitura, por exemplo... quando eu morrer, não poderei mais ler os livros que gostaria de ler ou continuar lendo... e estes livros que hoje me valem tanto terão um destino que ignorarei, porque os mortos têm uma inveterada e impertinente mania de serem indiferentes, de serem desapegados, de serem insensíveis... ( e os livros serão doados? Vendidos? Destinados ao lixo? - que me importa!)...nunca mais os reencontrarei, nunca mais terei o prazer de lê-los... nunca mais estarei aqui com eles ao redor disponíveis para que eu os leia e me demore na nudez de suas páginas durante horas... nunca mais, nunca mais, nunca mais... a morte também me priva de tudo que eles me oferecem e me possibilitarão, dos saberes que esperava compartilhar... saberes que morrerão comigo... Quando envelhecemos, deveríamos nos habituar ao desapego... o envelhecimento é um processo de desligamento, de despedida gradativa de tudo aquilo que outrora superestimávamos... nós deveríamos evitar cumular coisas à medida que envelhecemos (embora eu conheça velhos que não fazem senão acumulá-las, num ato inconsciente de protesto e resistência vã contra o processo de desfazimento da vida)... mas eu também acumulo... acumulo livros que provavelmente se tornarão coisas inúteis, quinquilharias que o tempo, o mofo e as traças consumirão... à medida que os anos passarem, que as rugas fizerem sulcos em meu rosto, que o meu corpo ficar ressequido, debilitado, carcomido e que o sentimento da vanidade de tudo tornar-se o sentimento soberano e uníssono em minha existência, nem mesmo os livros valerão o tempo que lhes dedico... quando jovens, raramente o temos, tudo tem graça, vibração, colorido e sentido... mas o envelhecimento vai erodindo uma a uma nossas ilusões sobre a vida... “Amadurecer é aproximar-se da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”, escreveu Pondé... Como o negar?