A realidade não é como parece ser
O que exprimo aqui é uma intuição, uma intuição que os místicos hindus nos ensinam, intuição de que Schopenhauer também comunga, uma intuição que parece encontrar respaldo na física quântica. “A vida é como um sonho”. O que vemos, sentimos, experienciamos são apenas imagens deste sonho enigmático. Atores entram e saem de cena incessantemente. Aparecem e desaparecem para sempre como espíritos que se dissolvem no ar. Nada é substancial. Acidentes fatais, guerras, epidemias, catástrofes naturais, o tráfego dos pedestres, o barulho e a azáfama dos grandes centros urbanos, mares, tempestades, dia e noite, tudo isso é feito da matéria onírica. Nada deixará para trás um sinal, um vestígio. Nossas vidas frágeis e breves são feitas da matéria de que se fabricam os sonhos; elas têm o acabamento do sono. Eu não estou louco; ao contrário, encontro-me na mais profunda e cristalina Lucidez de quem chegou a compreender o Essencial. Todos vivemos sob a ilusão do véu de Maya. Acreditamos tocar uma realidade concreta com as mãos, mas, ao fazê-lo, ela se desmancha entre nossos dedos como castelos de areia; acreditamos existir independentemente de nós uma realidade exterior, maciça, cheia de luz e cores que captamos com nossos olhos. Erramos! É o nosso cérebro que constrói a realidade que experimentamos. O que vemos, sentimos, percebemos são modelos, imagens ou mapas mentais fabricados por nosso cérebro. É como o membro fantasma que mesmo amputado ainda é sentido. Algo estranho (fora do comum) acontece nessa experiência de quem tem uma perna amputada: a realidade e a sensação podem divergir, mas coexistir no cérebro. Os sinais não viajam de nossos olhos para o cérebro; é justamente o contrário que acontece: eles viajam do cérebro para os olhos. É o cérebro que constrói uma imagem do que prevê que os olhos devem ver. O realismo dependente do modelo, em física, não é uma forma de idealismo, porque não nega que existe um mundo exterior à nossa consciência. Mas o realismo dependente do modelo não se identifica com o realismo em sua versão tradicional, porque a realidade exterior existe na dependência de um modelo mental produzido pelo cérebro de um observador. A realidade não existe de modo autônomo, segundo a perspectiva do realismo dependente do modelo. Diz-nos o astrofísico Carlo Rovelli, “o que vemos não é uma reprodução do exterior. É o que esperamos ver, corrigido pelo que conseguimos captar”.
Não quero convencer ninguém da
razoabilidade destas epistemologia e metafísica. Assumo-as como fundamento de
uma ética de compaixão e solidariedade para com todos os viventes, cuja
existência está atolada na ilusão de Maya. Elas me ajudam a suportar o absurdo de
uma existência cujas condições não foram escolhidas por mim, elas me ajudam a
suportar o peso da perspectiva de minha morte inevitável, que avança insondável
à medida que envelheço; elas me ajudam a aceitar a vanidade que corrói, até as
raízes, todos os meus esforços, tudo aquilo que se me afigura como sumamente
importante. Ter sempre em conta o caráter insubstancial da vida, de tudo aquilo
que experienciamos constitui o princípio de uma ética do desapego, do
desprendimento.
Assim diz um excerto de “A
tempestade”, de Shakespeare:
“...as torres, cujos topos se deixam
cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes e o
próprio globo, grandioso, e também todos que nele aqui estão e todos os que o
receberam por herança se esvanecerão, e assim como se foi terminando e
desaparecendo essa apresentação insubstancial, nada deixará para trás um sinal,
um vestígio”.
Disse que, à luz dessa intuição,
corroborada pela física quântica, suporto o “ab-surdo”, isto é, o que é
desagradável aos ouvidos, o que é incompreensível, porque é “alogos”,
irracional, dissonante. Eis o absurdo: a absoluta gratuidade e contingência da existência.
Camus chama absurdo ao divórcio entre o desejo humano de logicizar, de explicar
racionalmente o mundo, de lhe conferir sentido e a realidade cruel, ilógica dos
acontecimentos, ou ainda, absurdo é, para Camus, o divórcio entre a opacidade
indiferente do universo e o desejo humano de sentido, clareza e felicidade.