domingo, 18 de abril de 2021

"Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores são eles, quer o saibam ou não" (Nietzsche)

                               







     OS ROSTOS DA CRUELDADE DO REAL

O homem e seus subterfúgios

 

É flagrante a inclinação humana habitual a recusar a crueldade do real, seja pelos mecanismos psíquicos de repressão, seja por denegação, seja ainda pelo recurso neurótico a disfarces e adornos metafísicos ou religiosos, que não só garantem a proteção contra o desespero e a angústia, como também acalentam a esperança de que esta realidade “crua”, com seus horrores, com sua nervura dilacerante e permeada pelo absurdo, pelo intolerável, pelos incompreensíveis golpes do acaso, não seja a “verdadeira” realidade, mas um simulacro da verdadeira e velada realidade beatífica, cujo véu será removido depois da morte. Casos há também, alguns dos quais excepcionais, em que a recusa humana da crueldade do real arraiga-se numa ilusão heroica e se expressa em formas sublimadas e conciliadas com o “sistema de heroísmo” (Becker) cultural, como, por exemplo, o recurso a uma série de pactos ou compromissos[1], alguns dos quais nobres, como o pacto surrealista que permite a estetização da dor pela arte.

Sejam quais forem os expedientes ou subterfúgios de que se vale o animal humano para evitar ser esmagado pelo desespero que lhe sobreviria, caso se demorasse na contemplação da crueldade do real e da insignificância radical de sua condição existencial, todos eles são enformados e justificados pelo “sistema de heroísmo” que é o mundo cultural, onde o animal humano se desenvolve, se civiliza, adoece como animal e se torna homo demens.

Assumindo que “a própria sociedade é um sistema codificado de heróis (...), que a sociedade, em toda parte, é um mito vivo do significado da vida humana, uma criação, aliás, que desafia significados” (2013, p. 26), Becker argumenta que é a cultura, enquanto sistema de heroísmo, que dá ao animal humano a possibilidade de justificar-se “desesperadamente como um objeto de valor primordial no universo”. (ibid., p. 22). Ademais, nutrida pelo sistema de heroísmo, a vida de cada indivíduo é dedicada a “dar a maior contribuição possível para a vida no mundo, mostrar que vale mais do que qualquer outra coisa ou pessoa”. (ibid.). Para poder viver sem que seja infligido pela ameaça constante de ser dilacerado pelo caráter cruel e aterrador do real, para tornar suportável o impacto dessa crueldade cotidianamente publicada pelos meios de comunicação, o animal humano, culturalmente domesticado, precisa desenvolver em si um sentimento básico de valor, consoante nos adverte Becker:

 

Não importa se o sistema de heroísmo de uma cultura é francamente mágico, religioso e primitivo ou secular, científico e civilizado. É, de qualquer forma, um sistema de heróis mítico, no qual as pessoas se esforçam para adquirir um sentimento básico de valor, para serem especiais no cosmo, úteis para a criação, inabaláveis quanto ao seu significado. Elas adquirem esse sentimento escavando um lugar na natureza, construindo uma edificação que reflita o valor do homem como um templo, uma catedral, um totem, um arranha-céu ou uma família que se estenda por três gerações. A esperança e a fé estão em que as coisas que o homem cria em sociedade tenham um valor e um significado duradouros, que sobrevivam ou se sobreponham à morte e à decadência, enfim, que o homem e seus produtos tenham importância. (ibid., p. 24).

 

 

Nunca é demais lembrar o papel que desempenham os universos simbólicos, criação de cada cultura, como as extensões máximas da projeção humana dos significados humanos. Porque se apresentam como a totalidade da realidade humanamente dotada de sentido, os universos simbólicos apelam para o cosmo inteiro para dar validade significativa à existência humana. O mundo da cultura é edificado pelo animal humano como uma teia de símbolos, de significados, de “ficções” (do latim fictio-onis, cujo radical fict é o mesmo de fingere, ‘modelar, criar, inventar’); e esse mundo criado pela sua atividade é seu recurso próprio para a sobrevivência, e é a esse mundo próprio que ele deve a construção de redes simbólicas que dotam sua existência de valor e sentido – valor e sentido que não só não encontra no seio da natureza, como também lhe são continuamente recusados aí. O universo simbólico integra e unifica todos os processos institucionais separados. A sociedade inteira, de agora em diante, se dota de sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados em um mundo compreensivamente dotado de sentido. Além disso, programas institucionais são internalizados na consciência do indivíduo, guiando-o no seu agir e tornando-o um experienciador de um sentido do qual ele passa a acreditar que é autor. Os programas institucionais são organizados na consciência em processos de camadas múltiplas. Na socialização primária, fixam a base fundamental da construção da identidade pessoal; posteriormente, na socialização secundária, fazem o ajustamento do indivíduo aos papéis que lhes são atribuídos na realidade social e, sobretudo, o introduzem no mundo do trabalho. Todos esses momentos do controle institucional vão possibilitar que as estruturas da sociedade se tornem as estruturas da consciência, para o que a linguagem simbólica desempenhará um papel fundamental. Assim é que escravos e senhores, trabalhadores e capitalistas comportam-se em conformidade com seus papéis, como também pensam, sentem e se consideram a si mesmos de modo correspondente à conduta própria do seu papel. Mas é claro também que a subjetividade do indivíduo não precisa estar conformada plenamente com a realidade objetivamente definida pela sociedade. No processo da socialização dele, haverá pequenas fissuras, ou pode haver grandes rupturas. Não obstante a possibilidade destes eventos, é pouco provável que, mesmo quando disposto a empreender grandes rupturas institucionais, o animal humano ouse agir movido por um impulso libertário conforme deseja Cioran, no seguinte passo:

 

Como eu gostaria que todas as pessoas têm ocupações ou missões, casadas ou não, jovens ou velhas, homens e mulheres, sérias ou superficiais, tristes ou alegres, saíssem um dia de suas casas e escritórios, renunciando a todo tipo de deveres e obrigações, tomassem as ruas e não quisessem fazer mais nada. Toda essa gente embrutecida, que trabalha sem sentido ou que se ilude quanto ao seu aporte pessoal para o bem da humanidade, que trabalha para as gerações futuras movida pelo impulso da mais sinistra ilusão, viveria em semelhantes momentos capitais uma vingança por toda vida nula e estéril, por todo o desperdício de energia que nada emprestou da excelência das grandes transfigurações. (Cioran, 2011, p. 65).

 

        

A história humana, entanto, nos patenteia que, mesmo nos momentos de grande convulsão social, em que grupos revolucionários de homo sapiens se mobilizaram para transformar o establishment, eles não fizeram senão lutar pelo direito de criar outros cárceres simbólicos e institucionais que, subjugando-os, encarcerando-os, escravizando-os, mantiveram-nos protegidos contra a angústia e o desespero que os fariam contorcer-se de uma dor lancinante: a do desamparo cósmico que lhes recusa a Providência.

Tendo, então, assinalado ser a recusa da crueldade do real a condição normal do homem, como ser social cuja existência só é possível se sustentada numa rede de significados culturalmente produzidos e reproduzidos, passo, então, a aduzir os objetivos a que visa este texto. São duas, portanto, as tarefas que levarei a efeito na produção deste texto. Em primeiro lugar, tenciono demonstrar em que sentido a realidade é cruel e por que devemos considerá-la como intrinsecamente cruel. Em segundo lugar, procurarei examinar os expedientes, os pactos através dos quais os Homo Sapiens Sapiens procuram tornar essa crueldade suportável.

                                    

 

                                                            PARTE 1

 

 

1. A crueldade do real

 

É, em seu livro Princípio de crueldade (1989), que o filósofo francês Clément Rosset se debruça sobre o que chama “a crueldade do real”. A sua preocupação é, especialmente, denunciar toda uma tradição filosófica que se orientou pela recusa em considerar a “crueza” do real, ou seja, que fez silêncio sobre o caráter inapelável e irremediável da realidade. Leia-se como Rosset define o que ele entende por crueldade do real.

 

Por “crueldade” do real entendo, em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. Não me estenderei sobre este primeiro sentido, mais ou menos conhecido de todos, e sobre o qual aliás tive a ocasião de falar alhures mais do que abundantemente; basta-me lembrar aqui o caráter insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente, irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la a distância e de atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. (ibid., p. 16-17, grifo meu).

 

O destaque em negrito o fiz para deixar claro ao leitor o segundo sentido em que Rosset fala em crueldade. A crueldade do real não só recobre o caráter trágico, doloroso, aterrador da vida, mas também designa o caráter único, inapelável e irremediável da realidade. Se Rosset insiste nesse segundo sentido de crueldade, é que a tradição filosófica, desde Platão, valorizou um real que aparece como “duplo”, como uma instância suprassensível da qual o real mesmo de que o homem tem experiência seria uma cópia, um simulacro. Por isso, recorrendo à etimologia de “cru”, que remonta ao latim crudus, que deu origem também a “crudelis” (cruel), Rosset argumenta que a realidade é cruel tanto no sentido de que é indigesta, não digerível, porque “crua” como uma carne ensanguentada e escorchada (tem um custo muito alto), quanto no sentido de que “a coisa mesma privada de seus ornamentos ou acompanhamentos ordinários (...) e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta” (ibid., p. 17) se impõe a nós inapelavelmente. Assim, ajunta o autor:

 

(...) a realidade é cruel e indigesta -  a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em si-mesma: tal como uma condenação à morte que coincidisse com sua execução, privando o condenado do intervalo necessário à apresentação de um pedido de indulto, a realidade ignora, por apanhá-lo sempre de surpresa, todo pedido de apelo. (ibid.).

 

Despojá-la de tudo que ela não é significa recusar-se a duplicar a realidade, a justificá-la pelo recurso imaginário a uma  realidade transcendente. É isso o que significa assumir a crueldade do real, a saber, é dizer um sim trágico, alegre à sua crueza, ao seu caráter indigesto. É também aceitá-la como quem aceita uma condenação à morte. Como nos recorda Becker, inspirando-se em Freud, “os homens estão condenados a viver em um mundo esmagadoramente trágico e demoníaco” (Becker, 2013, p. 334). É claro que acentuar o caráter “demoníaco” do mundo é mascarar as alegrias que nos é possível gozar. E eu não ignoro que a vida nos presenteie com alguns momentos (breves) de prazeres, satisfações, alegrias, que justificam a obstinação com que nós lutamos por ela. Todavia, tais momentos não podem obnubilar o seu caráter cruel, irracional, doloroso e trágico. A afirmação trágica é um sim incondicional à existência com tudo aquilo que a torna contraditória, irracional, bela, cruel, plena de sofrimentos e também de alegrias. Embora meu temperamento oscile entre uma disposição afetiva trágica e uma disposição afetiva pessimista, sinto-me, confessadamente, mais seduzido pela filosofia pessimista que se esforça por edificar a existência humana no terreno da Lucidez e por convidar os homens a voltar a habitá-lo. Este escrito é minha modesta contribuição nesse sentido.

Retomando o fio discurso, cumpre ainda dizer que, para Rosset, é bastante razoável admitir que “a realidade é cruel por natureza, mas também e, por uma espécie de último refinamento de crueldade, verdadeiramente”. (ibid., p. 17). E deve-se acrescentar que quem não o admite é pouco razoável. O homem comum, tão acostumado a recusar a crueldade do real, leva uma vida pouco razoável.

Urge, agora, esclarecer que considerar a realidade em si mesma, como nos pede Rosset, não pode nos levar a crer que ao homem seja possível ter acesso a uma realidade em-si. Gostaria de dilucidar qual é minha posição epistemológica. Esclarecê-la se faz mister, porque, certa feita, se me foi feita uma objeção em cujo cerne reside uma confusão. Disseram que o real, em si mesmo, não é cruel, só o é para o homem. Evidentemente, acho que ninguém se atreveu a consultar um chimpanzé para saber se ele considera cruel a realidade. Naturalmente, a crueldade do real se coloca como uma questão existencial somente para o animal humano que a vive na pele e sabe que a vive, e que a toma para reflexão. Isso não significa dizer que somente o animal humano a sofre. De modo algum. Os animais dotados de um sistema nervoso central, os animais capazes de sentir dor e sofrer também são flagelados pela crueldade do real.  E isso ficará evidente ao longo deste texto. O ponto que quero esclarecer diz respeito ao fato de que a realidade “em si” é uma ficção (do imaginário), uma ilusão.

O senso comum de nossa sociedade toma por realidade a totalidade das coisas existentes e exteriores à mente humana. A palavra “realidade” provém do latim medieval “realitas” e designa simplesmente “tudo aquilo que existe”. Assim também real, que provém do latim medieval realis, res (coisa), diz-se daquilo que existe, diz respeito às coisas existentes. Este é o sentido com que a palavra é usada no senso comum. Diz-se realidade objetiva para designar o mundo exterior existente independente de nosso pensamento. Mas, desde Descartes, a existência do “mundo exterior” foi problematizada, ou seja, questionada. Descartes argumentou que o objeto de conhecimento é a ideia, de modo que a realidade acessível a nós é a ideia, e não o mundo exterior cuja existência parece duvidosa. Ora, assim como a pintura não prova a existência do objeto representado, assim também a ideia, que representa a realidade, não prova que esta verdadeiramente existe. O empirismo de Berkeley e Hume reduziu a realidade das coisas ao ser percebido. Assim, a realidade não tem existência autônoma fora da experiência ou percepção.

Coube a Kant, e não a Descartes, nos ensinar que não é possível a nós ter acesso à realidade em si. Depois da crítica radical de Nietzsche, ficou claro que “o em si”, ou a realidade em si, é uma ficção, ou seja, uma criação humana. O que nós, Homo Sapiens Sapiens, acreditamos ser a realidade é sempre um modelo, uma imagem construída pelo nosso cérebro. Não temos acesso direto ao real. A realidade é apreendida pelo homem através de uma lente (a estrutura interpretativa de seu cérebro) complexa, moldada na interação entre percepção-cognição, linguagem e cultura. Sem me alongar sobre essa complexa interação entre percepção-cognição, linguagem e cultura, é importante esclarecer por que não percebemos diretamente uma realidade já dada, pronta, previamente organizada, limitando minhas considerações ao papel fundamental desempenhado pelo cérebro humano.

Dawkins (2005, p. 87), comentando o papel da evolução na constituição de nossos órgãos sensoriais, faz a seguinte observação:

 

Poderíamos pensar que eles foram moldados para nos dar um retrato “verdadeiro” do mundo como ele “realmente” é. É mais seguro presumir que eles foram moldados para nos fornecer um retrato útil do mundo, que nos auxilie em nossa sobrevivência. De certo modo, o que os órgãos sensoriais fazem é ajudar o nosso cérebro a construir um modelo útil do mundo, e é nesse modelo que nos movemos. É um tipo de “realidade virtual”, de simulação do mundo real.

 

 

Nossa percepção do mundo não é direta, mas moldada pela estrutura interpretativa de nosso cérebro. Dawkins tem razão ao dizer que não temos acesso à realidade em si, mas ao retrato, melhor dizendo, ao modelo útil de mundo construído por nosso cérebro. Mas discordo do autor ao sugerir que há um mundo real do qual o modelo é um simulacro, porque assim se mantém o esquema metafísico calcado na cisão do real em dois modos de ser: o real em si e o real tal como percebido. É justamente esse real em si que deve ser rejeitado. Damásio (2011), por seu turno, advoga que nosso cérebro se notabiliza pela habilidade de construir não “retratos”, como propõe Dawkins, mas “mapas”, isto é, modelos cartográficos da realidade com a qual interage. O mapeamento cerebral fornece mapas instáveis, flexíveis, mutáveis porque precisam representar um mundo que se dá como fluxo, como devir.

 

O cérebro humano mapeia qualquer objeto que esteja fora dele, qualquer ação que ocorra fora dele e todas as relações que os objetos e as ações assumem no tempo e no espaço relativamente uns aos outros e também em relação à nave-mãe que chamamos de organismo, o proprietário de nosso corpo, cérebro e mente. O cérebro humano é um cartógrafo nato, e a cartografia começou com o mapeamento do corpo que contém o cérebro. (Damásio, 2011, p. 88).

 

 

Mapas cerebrais são imagens mentais ou padrões neurais. O cérebro humano é dotado da capacidade de representar as ocorrências do mundo, os eventos, as ações realizadas pelo nosso corpo e seus componentes, como membros, etc.. Também é o nosso cérebro que se encarrega de ordenar, de estruturar o “mundo” de coisas com que nos relacionamos. Como Hawking & Mlodinow sustentam, o que julgamos ser a realidade é sempre dependente de uma teoria. O cérebro cria um quadro ou modelo mental da realidade percebida. Como notam os autores, “o realismo dependente do modelo corresponde ao modo como percebemos os objetos” (Hawking & Mlodinow, 2011, p. 34).  A título de exemplo, tome-se a “visão” como o meio tradicionalmente valorizado de acesso ao real. O que acontece quando eu vejo um objeto como uma cadeira? O meu cérebro recebe uma série de sinais do nervo ótico, quando estou diante de uma cadeira. Mas esses sinais recebidos não chegam ainda a formar uma imagem nítida do objeto dado à minha percepção visual: “há um ponto cego onde o nervo ótico se junta à retina” (ibid.). Assim, os dados brutos ou os sinais enviados ao meu cérebro através da junção entre o nervo ótico e a retina “são uma imagem em baixa resolução e com um buraco no meio”. (ibid., p. 35). Meu cérebro, no entanto, tem a capacidade de processar esses dados, combinando as informações em padrões significativos. Destarte, ele preenche as lacunas, os buracos que havia no início do processo de formação da imagem. É o cérebro, portanto, que opera uma “leitura” do arranjo bidimensional dos dados da retina e constrói a impressão de um espaço tridimensional. E é desse modo que o cérebro constrói um modelo mental da cadeira que eu vejo. Afinal, estando diante dela, o que eu “vejo”, ou àquilo a que tenho acesso, é a imagem ou modelo mental dessa cadeira, construído pelo cérebro a partir da luz refletida pela cadeira.

O realismo dependente de modelo é útil tanto para explicar como se dá nossa experiência de mundo cotidiana, quanto para explicar os fenômenos de que se ocupa a ciência em geral, nomeadamente a física, que lida com entidades que não são acessíveis à experiência sensível. Por exemplo, partículas subatômicas como quarks são entidades teóricas, ou seja, modelos que são úteis para explicar as propriedades dos prótons e dos neutros dentro do núcleo do átomo. Para ser mais exato, os quarks não são observáveis isoladamente, mas eles existem como “se estivessem unidos por elásticos” (ibid., p. 36).

 

 

O realismo dependente de modelo aplica-se tanto ao conhecimento científico quanto aos modelos conscientes e subconscientes que criamos para interpretar e compreender o mundo do dia a dia. Não há como remover o observador – nós – da nossa percepção do mundo, que é criada, pelo nosso processamento sensorial e pelo modo como pensamos e raciocinamos (...)”. (ibid. , p. 37).

 

 

Como tenho por hábito, quando escrevo e ensino, ser meticuloso, não farei avançar minhas reflexões, sem que antes alguns prováveis equívocos sejam dirimidos. O chamado “realismo dependente do modelo” não nega que existe uma realidade exterior e é em virtude disso que é uma forma de realismo. Em filosofia, o realismo recobre a doutrina segundo a qual existe uma realidade exterior, determinada e independente do conhecimento que podemos ter dela. De acordo com esta perspectiva, o conhecimento verdadeiro é a correspondência entre nossos juízos, nossos enunciados e a realidade a que eles se referem. Essa é a concepção que vigora no nosso modo familiar de nos relacionarmos com o mundo: assumimos, inquestionavelmente, indubitavelmente, que este mundo existe como uma totalidade de coisas, seres, eventos independentemente de nossa percepção. O realismo se opõe ao idealismo, o qual, por sua vez, afirma que os corpos e o mundo só existem como ideia, como representação de nosso espírito. O realismo dependente do modelo não é uma forma de idealismo, porque não nega que existe um mundo exterior à nossa consciência. Mas o realismo dependente do modelo não se identifica com o realismo em sua versão tradicional, porque a realidade exterior existe na dependência de um modelo mental produzido pelo cérebro de um observador. A realidade não existe de modo autônomo, segundo a perspectiva do realismo dependente do modelo. Seguem-se daí algumas consequências que precisam ser destacadas:

 

1ª) Não há realidade em si, mas realidade para um observador;

2ª) Não temos acesso direto ao real;

3ª) A realidade é apreendida por meio de modelos mentais, mapas construídos pelo nosso cérebro.

4ª) Esses modelos cerebrais do real são mobilizados, reconstruídos, estruturados nos textos que produzimos. A linguagem simbólica lhes dá um tratamento semiótico, de sorte que é sobre esses modelos semiotizados de mundo, modelos textualmente fundados que falamos, que discutimos, que refletimos.

 

5ª) A totalidade do real não se exaure no mundo que percebemos. Há outros muitos mundos existentes e organizados, estruturados, segundo o aparelho sensório-perceptual de outros animais complexos. É de esperar que o modelo de realidade dos golfinhos varie bastante do modelo de realidade dos homo sapiens, dos hamsters e das lulas gigantes, por exemplo.

 

Além de não perder de vista a importância das consequências supramencionadas, se deve também aceitar que o mundo físico de cujo conhecimento se encarrega as ciências naturais é apenas uma das possíveis imagens do mundo. Como adverte Kosik (1976, p. 31):

 

(...) Além do mundo físico existe ainda um outro mundo, igualmente legítimo – por exemplo, o mundo artístico, o mundo biológico, e assim por diante, o que significa que a realidade não se exaure na imagem física do mundo. O fisicalismo positivista é responsável pelo equívoco de ter considerado uma certa imagem da realidade como a realidade mesma, e um determinado modo de apropriação da realidade como único autêntico.

 

A hipótese do realismo dependente do modelo permite, por exemplo, à mecânica quântica conceber o mundo não como uma totalidade de coisas que se encontram neste ou naquele estado, mas como um campo de processos, de interação, de relações, de modo que são as relações que dão origem às coisas. Destarte, à luz desse modelo de compreensão do mundo, “nós, como as ondas e como todos os objetos, somos um fluxo de eventos, somos processos que por um breve tempo são monótonos”. (Rovelli, 2017, p. 133). O modelo de realidade proposto pela física quântica reduz a realidade à relação. A teoria suposta aí não pretende descrever como as coisas “são”, mas como as coisas acontecem. Lancemos olhares sobre o que nos ensina Rovelli nesse tocante:

 

No mundo descrito pela mecânica quântica, não existe realidade sem relação entre sistemas físicos. Não são as coisas que podem entrar em relação, mas são as relações que dão origem à noção de “coisa”. O mundo da mecânica quântica não é um mundo de objetos: é um mundo de eventos elementares, e as coisas se constroem sobre o acontecimento desses eventos elementares. (ibid., ênfase no original).

 

No modelo de realidade quântico, uma pedra não é uma coisa ou substância, mas um vibrar de quanta que conserva sua estrutura, sua solidez por um tempo, como uma onda do mar que mantém sua identidade antes de se dissolver novamente no mar.

Quem quer que esteja disposto a aceitar a razoabilidade da concepção do real como intrinsecamente cruel deverá reconhecer, por força da mesma razoabilidade, que se trata de um modelo, de uma teoria elaborada por um cérebro humano que produz uma interpretação estruturante do mundo. Como lembra Shermer (2012, p. 75-76), “nosso cérebro é uma máquina de crença, um aparelho avançado de reconhecimento de padrões que ligam os pontos e criam significados a partir de padrões que acreditamos ver na natureza”. A maquinaria cerebral de nossa espécie opera segundo o processo básico de padronicidade, isto é, segundo a tendência de encontrar padrões significativos em dados que podem ou não ter relações coerentes, significativas, ou que podem ou não ser significativos. Somos muito propensos, por isso, a desenvolver o pensamento mágico, e a superstição. Também por isso é algo muito difícil, senão impossível, pretender eliminá-los: “não podemos eliminar o aprendizado supersticioso, da mesma maneira que não podemos eliminar o aprendizado como um todo”. (ibid., p. 78).

A seleção natural favoreceu o desenvolvimento de estratégias que permitem a produção de associações causais incorretas de modo a estabelecer aquelas que são indispensáveis à sobrevivência e à reprodução. Destarte, as pessoas acreditam nas coisas mais bizarras e estranhas em virtude da necessidade evolucionária de acreditar em coisas que não são estranhas ou bizarras. Devemos reconhecer, portanto, que a superstição e o pensamento mágico não são erros de cognição, mas processos naturais de um cérebro pré-disposto para a aprendizagem. Se o reconhecimento de padrões verdadeiros nos ajudam a sobreviver, a produção de padrões falsos não nos leva, necessariamente, à morte; por conseguinte, padrões falsos e crenças falsas sobre o mundo não foram eliminados pelo processo discriminatório da seleção natural.

Passo, doravante, a concatenar, num modelo de realidade coerente, evidências do caráter cruel, inapelável da realidade que – espero – também se imponha ao espírito do leitor em toda a sua nudez e crueza.

 

 

2. Os rostos da crueldade do real

 

2.1. O nosso lugar na árvore filogenética

 

Aturdido pela experiência da Náusea, o narrador Roquentin vê sua “segurança ontológica” (Giddens) estilhaçar-se.

 

Não estava surpreso, bem sabia que aquilo era o Mundo, o Mundo inteiramente nu que se mostra de repente, e sufocava de raiva desse ser grande e absurdo. Sequer se podia perguntar de onde saía aquilo, tudo aquilo, nem como era possível que existisse um mundo ao invés de coisa alguma. Aquilo não tinha sentido, o mundo estava presente em toda parte, à frente, atrás. Antes dele não houvera nada. Nada. Não houvera um momento em que ele pudesse não existir. Era isso que me irritava: obviamente não havia nenhuma razão para que aquela larva corrediça existisse. Mas não era possível que não existisse. (...)” (Sartre, 2016, p. 180-181).

 

 

Este excerto de Sartre interessa-me, na presente discussão, não tanto pela descrição da experiência ontológica da abertura da absurdidade e do caráter contingente do mundo para um indivíduo que demonstra todo seu espanto, perplexidade e tormento quando tomado por tal experiência, mas por aquilo que se diz tacitamente, que se enuncia no nível dos implícitos, a saber, que a consciência prática de cada um de nós está, na maioria das vezes, ancorada cognitiva e emocionalmente num sentimento de segurança ontológica (Giddens,2002), a qual caracteriza a atitude natural que assumimos na nossa lida com o mundo no cotidiano. Nós, vivendo em sociedade conjuntamente com os outros semelhantes, confiamos em que o mundo é exatamente como ele nos parece ser. Nossa vida cotidiana é organizada em rotinas e, como lembra Giddens (2009, p. XXVI), “a rotinização é vital para que os mecanismos psicológicos por meio dos quais um senso de confiança ou de segurança ontológica é sustentado nas atividades da vida social”. Nós nos orientamos, em nossas práticas sociointeracionais, mobilizando modelos mentais que compreendem saberes, expectativas e crenças de que o mundo conservará sua ordem e seu modo de funcionamento tanto hoje, quando saímos de casa para o trabalho, como amanhã, quando esperamos encontrar alguns amigos para beber. Em tais condições de “normalidade”, são raros os homo sapiens que venham a experimentar uma espécie de crise ontológica ou venham a ser tomados de espanto em face do fato de que o Universo que habitam é infinito e aberto, que ele se expandirá para sempre. Cada um de nós habita apenas uma pequena porção deste Universo, conhecida como Via Láctea. Composta basicamente de oito planetas conhecidos, de outros planetas menores, de centenas de satélites (como a Lua), de bilhões de estrelas (como o Sol), de bilhões de asteroides e cometas, de gases e poeira, a Via Láctea é uma – pasmem! –, apenas uma das centenas de bilhões de galáxias que compõem o Universo (estima-se que existam aproximadamente 200 bilhões de galáxias no Universo observável). Nossa galáxia tem cerca de 10 bilhões de anos. Estudos cosmológicos recentes nos informam que o Universo surgiu há 13,7 bilhões de anos. Quando nossa galáxia surgiu, o Universo já era um ancião com mais de 3 bilhões de anos.

Nosso planeta Terra, “um pálido ponto azul” na imensidão de um Universo escuro e indiferente, tem cerca de 4, 5 bilhões de anos. Durante 9, 2 bilhões de anos, portanto, o Universo subsistiu sem a Terra, o que prova que a existência de nosso planeta insignificante cosmologicamente é contingente, que o Universo poderia muito bem continuar existindo sem a Terra e sem estes macacos pelados que se creem a coroa da Criação de um Deus metafísico e Providente. A vida em nosso planeta surgiu, pelo menos, há 3,5 bilhões de anos, e, como nos ensina Gould (2001, p. 232):

 

 (...) provavelmente não muito antes disso, porque a crosta terrestre ainda atravessava um período de fusão que terminou há 3,8 bilhões de anos (a idade das rochas mais antigas). A vida presumivelmente começou nos oceanos primevos, como resultado de uma sequência de reações químicas baseada nos elementos constituintes originais das atmosferas e oceanos, e regulada por princípios da física aplicáveis a sistemas auto-organizadores (“sopa primordial” é há muito tempo uma expressão favorita para designar oceanos fervilhando de compostos orgânicos adequados antes da vida ter se originado). De qualquer modo, podemos especificar como uma “parede esquerda” a complexidade mínima da vida sob tais condições de origem espontânea (como paleontologista, gosto de pensar nessa parede como o limite inferior de uma “complexidade concebível, que pode ser conservada” nos registros fósseis). Por razões ligadas à física e à química, a vida tinha que se iniciar próximo à parede esquerda de mínima complexidade – como um glóbulo microscópico. Não se pode começar precipitando um leão numa sopa primordial.

 

 

 

 

A “sopa primordial” descreve, por hipótese, o estado de aglomeração de moléculas ou substâncias orgânicas que constituíram os mares de 3 a 4 bilhões de anos atrás. Biólogos e químicos acreditam que, sob a influência de energia, como a energia solar, tais moléculas primordiais se combinaram em unidades moleculares maiores. Em algum momento, por puro acidente, uma molécula importante teria surgido: o Replicador. Essa molécula (gene) teria a capacidade de criar cópias de si mesma (ver. Dawkins, 2007).

Espero esteja claro que o que venho fazendo até aqui é uma tentativa de descerrar um horizonte epistêmico à luz do qual a crueldade do real se nos impõe com uma crueza e gravidade tal, que consiga nos arrancar de nossa zona de conforto, que consiga arrastar, você, leitor, para a beira do abismo cosmológico da qual você e a maioria dos homo sapiens costumam manter-se distante. Se, por algum momento de coragem, permitirmo-nos ver a realidade em toda a sua crueza, despida dos disfarces metafísicos e religiosos com os quais a vivenciamos, deveremos aceitar, forçosamente, que a origem do Homo Sapiens Sapiens é uma circunstância irrepetível e não uma consequência necessária do trabalho deliberado de um Projetista Sobrenatural. O progresso, de modo algum, define a história da vida. A Evolução das Espécies nos patenteia que os seres humanos não ocupam um status preferencial, privilegiado, como pináculo ou culminação do processo de ramificação da vida. Ele só o ocupa em sua imaginação, em seus delírios, em sua demência. Uma das verdades duras da vida é que a vida é dominada, desde os primórdios, pelas bactérias.  Como ensina Gould (ibid., 240), “os seres humanos estão aqui por um lance de sorte, não por causa da inevitabilidade da direção da vida ou do mecanismo evolutivo”. Os registros fósseis testemunham que as formas de vida dominantes no planeta Terra são procariotos, ou mais popularmente, bactérias. A vida começa com as bactérias há cerca de 3,5 ou 3,6 bilhões de anos. Logo, se me permitir lhe dar um conselho filosófico, leitor, viva desesperadamente, assuma fielmente o desespero, que Rosset define como “uma disposição absolutamente refratária a tudo o que se assemelha à esperança ou à expectativa” (ibid., p. 7). Isto bem entendido quer dizer: viva sem a esperança, as expectativas ou os preconceitos metafísicos, as superstições que, no imaginário social, deram forma à crença de que o homo sapiens tem algum lugar metafísico privilegiado na árvore filogenética da vida. Despeça-se da ilusão acerca de suas origens ontogênicas. Você não é um ser vivo dotado de uma alma imortal e nem foi criado por um Deus metafísico. Quando nós morrermos, a matéria de que somos compostos voltará a integrar o cosmo e passará a constituir novos corpos, outros seres, entre os quais humanos. Somos feitos de “poeiras das estrelas”: decerto, cada átomo que integra nosso corpo estava no âmago de uma estrela. Definitivamente, se há uma Criação (a despeito da força das evidências em contrário), ela não foi destinada à forma de vida humana, mas à forma de vida bacteriana. O modo inicial bacteriano foi estável por todo o transcorrer do tempo. É preciso, então, fazer falar Gould, novamente:

 

(...) Se somos bastante parciais em relação às criaturas multicelulares, nós colocamos a principal divisão da vida entre plantas e animais (como o faz o Livro do Gênesis na criação de ambos os mitos, nos capítulos 1 e 2). Se formos mais ecumênicos, geralmente colocamos a divisão entre formas unicelulares e multicelulares. Contudo, a maioria dos biólogos profissionais alegaria que a divisão de maior profundidade ocorre nos seres unicelulares, separando os procariotos (ou organelas-sem núcleo, sem cromossomo, sem mitocôndrias, sem cloroplastos) dos eucariotos (organismos como as amebas e os paramécios, com todas as partes complexas encontradas nas células dos organismos multicelulares). Entre os procariotos incluem-se os grupos de grande diversidade conhecidos coletivamente como “bactérias”, e também as chamadas “algas azuis-verdes”, que pouco mais são do que bactérias que fazem a fotossíntese, e que hoje em dia são em geral conhecidas por cianobactérias. ( ibid., p. 233).

 

 

Acrescenta Gould que “mais da metade da história da vida é apenas uma história de bactérias” (ibid., p. 233-234). A vida, portanto, começa com as bactérias, numericamente dominantes no planeta: “assim era no início, é agora, e sempre será – pelo menos até que o Sol venha a explodir e destrua o planeta”. (ibid.). A crueldade da realidade, como nos informa o título que dei a esta seção deste trabalho, tem muitos rostos: alguns dolorosamente terríveis; outros tragicômicos; outros ainda zombeteiros. Um dos rostos da crueldade que zombam de nossa arrogância como espécie cochicha em nosso ouvido outra dura verdade: as bactérias são inegavelmente as formas de vida dominantes na Terra, e sempre o foram, mas seu tempo de vida é bastante curto. Talvez, não vivam mais do que o tempo que levamos para almoçar. Não só as bactérias são assustadoramente numerosas, mas também existem numa variedade de formas impressionante. Elas também não podem ser eliminadas pela bomba nuclear ou mesmo afetadas significativamente por qualquer de nossas armas de destruição.

 

Nossas loucuras, nucleares ou de outros tipos, podem facilmente levar à nossa própria destruição num futuro previsível. Poderíamos levar a maior parte dos grandes vertebrados terrestres conosco – uns poucos milhares de espécies, no máximo. Certamente, não conseguiríamos extirpar 500.000 espécies de escaravelhos, embora pudéssemos causar um prejuízo significativo. Duvido que pudéssemos prejudicar substancialmente a diversidade bacteriana. Os organismos modais não podem ser eclipsados pela bomba nuclear, ou mesmo afetados de modo sensível por qualquer de nossas muitas concebíveis maldades. (ibid., p. 244).

 

As primeiras formas de vida microscópica evoluíram e testemunharam as futuras formas complexas de vida. Elas também testemunharam o surgimento de seres multicelulares: “animais marinhos surgiram e tornaram-se suscetíveis à invasão bacteriana em um mundo inundado por microrganismos”. (Ujvari, 2020a, p. 104). A evolução, no entanto, dotou os mais adaptados à sobrevivência com genes produtores de novos antibióticos naturais. Nosso corpo está repleto de bactérias que, juntas, formam campos de batalha onde lutam pelos nutrientes liberados por nosso organismo. Segundo Ujvari (ibid., p. 105), “bactérias inofensivas revestem nossa pele e se infiltram nos orifícios: forram a boca, o estômago e o intestino”. Somos inteiramente envolvidos por elas. Nosso corpo é povoado ainda por fungos. Temos dez vezes mais bactérias do que células e cada grama de fezes comporta um trilhão de bactérias. As bactérias nos invadem logo após o nascimento. Elas se espalham pela pele do recém-nascido ainda na maternidade: “carregamos esse inquilinos para o resto da vida” (ibid., p. 105). Cientistas evolucionistas creem que as bactérias que se hospedam em nossa pele tenham evoluído com os hominídeos e contribuído para a evolução do homem. Um quilo de nosso peso corresponde a esses microrganismos. Os microrganismos, como bactérias, continuam e continuarão acompanhando o homem ao longo de sua trajetória histórica.

Ainda insistindo em sublinhar a insignificância cosmológica da condição existencial do animal humano, passo, agora, a considerar nossos antepassados mais próximos. Está claro até aqui que nós, seres humanos, pertencemos a uma entre os milhões de espécies que evoluíram a partir de um microrganismo originário semelhante a uma bactéria. Os microrganismos evoluíram junto com o homem e, ao longo desse processo de adaptação, a seleção natural possibilitou o desenvolvimento de microrganismos menos agressivos e de homens mais resistentes. Nós, Homo Sapiens Sapiens, só entramos em cena no palco da história evolutiva há aproximadamente 200 mil anos. Nosso surgimento ocorreu na África Oriental. O exame de uma vasta gama de amostras de DNA mitocondrial (matéria exterior ao núcleo da célula que é transmitida da mãe para a prole) revelou que todos os seres humanos têm um ancestral comum que viveu na África cerca de 200 mil anos atrás. Esta matriarca desconhecida pode ser chamada de “Eva Mitocondrial”, e todos nós compartilhamos pelo menos algumas informações genéticas com ela. O especismo é, portanto, tão moralmente abominável quanto evolucionariamente injustificável.

 

2.1.2. Nosso antepassado símio e o surgimento do gênero Homo

 

Em princípio, convém lançar alguma luz sobre o que é a evolução e a seleção natural e sobre suas consequências para uma exata compreensão da insignificância radical da condição humana. A evolução é, na esteira de Darwin, um processo gradual de mudanças químicas e físicas que começaram antes mesmo do surgimento da vida propriamente dita, e continua até hoje. Ela deixou sua marca em tudo o que está ou que já esteve vivo. A evolução não é algo predestinado. Todos os seres vivos, inclusive os humanos modernos e seus parentes mais próximos, os primatas, são produtos da mutação aleatória da seleção natural, e de uma variedade de outras influências biológicas e geográficas. Nem a evolução nem a seleção natural são fenômenos que se deram num passado remoto e terminaram. Não! Evolução e seleção natural são processos que se prolongam até hoje e que continuarão até que o planeta seja completamente destruído, com a morte do Sol. A seleção natural é o mecanismo evolutivo pelo qual são selecionadas as características que tornam mais aptos os organismos à sobrevivência. Na atual pandemia da Covid-19, podemos presenciar a seleção natural operando, na medida em que ela favorece as mudanças, as mutações que tornam o coronavírus mais adaptado ao seu hospedeiro humano. Há um embate entre nosso corpo juntamente com a pressão imunológica que ele ativa e o vírus que é forçado a sofrer mutação para resistir a ela. Há uma competividade na qual vence o melhor: sendo mais forte o vírus, a tendência é a perpetuação daquela linhagem viral que vence a batalha contra o sistema imunológico do hospedeiro. A seleção natural também é a responsável pelo surgimento de bactérias e vírus mais resistentes a antibióticos usados indiscriminadamente. A seleção natural produz, sem dúvida, adaptações notáveis, embora nem mesmo a mais impressionante delas possa garantir o sucesso permanente de um organismo na luta pela sobrevivência. Ao longo prazo, até mesmo as espécies mais prósperas podem entrar em declínio, até se tornarem completamente extintas. Muitas desaparecem por ficarem enfraquecidas devido a suas próprias limitações, ou por não conseguirem se adaptar. Não raro, grandes quantidades de espécies ou organismos são extintos, vítimas de mudanças ambientais catastróficas. É, portanto, um fato inconteste que a extinção é uma característica natural intrínseca à vida. Os restos fossilizados de animais dão-nos um testemunho disso. O ventre da Mãe Natureza abriga um cemitério de organismos que se extinguiram há milhões de anos. Os fósseis evidenciam que, longe de permanecerem iguais, os seres vivos sempre sofreram mudanças, e que um número imenso deles simplesmente desapareceu.

A luta pela vida e a seleção natural são considerados os mecanismos essenciais da evolução dos seres vivos. Os organismos formam populações denominadas de espécies e apresentam "variações”, graças às quais um número determinado de indivíduos são mais bem adaptados a seu meio ambiente e engendram uma descendência mais numerosa. A seleção natural, portanto, recobre o conjunto dos mecanismos que triam ou escolhem os indivíduos mais bem adaptados na luta pela sobrevivência. Segundo Darwin, em virtude da “luta pela vida”, as populações de seres evoluem lentamente, se transformam e se diversificam gerando formas cada vez mais complexas.

Nosso antepassado símio surgiu há 6-4,5 milhões de anos. Seu aparecimento foi na África. É conhecido como nosso ancestral comum ou elo perdido. Não pretendo considerar todos os personagens que apareceram na cena evolutiva que deu origem aos humanos modernos. Mencionarei alguns deles apenas para acenar para o fato de que os Homo Sapiens Sapiens, únicos sobreviventes do gênero Homo hoje, não foram os únicos integrantes desse gênero. Nós, Homo Sapiens Sapiens, não existimos desde que a Terra se formou. Nosso aparecimento na história evolucionária, é até bem recente. Portanto, você, leitor, que até aqui me acompanha pacientemente, não se cuide como um ser cosmologicamente especial. É claro que cada um de nós somos importantes para nossos pais, somos especiais para eles, principalmente, para a mulher ou o homem que amamos; mas, para o Universo que habitamos, nossa existência é irrelevante, insignificante. Se um asteroide entrar em rota de colisão com nosso planeta, ele não terá qualquer consideração nem por mim nem por você, leitor.

Antes do aparecimento do gênero Homo, há um personagem importante, que pertence a um gênero anterior de primatas a partir do qual os humanos surgiram: o Australopithecus[2]. Australopithecus significa “macaco do Sul”, porque “austral”, do latim australis, quer dizer “do sul”; e a forma grega “pithekos” significa “macaco”. Os Australopithecus exibiam uma postura ereta e tinham um cérebro ligeiramente maior do que os membros pertencentes ao gênero Ardipithecus, que lhes precederam. Ardipithecus significa “macacos do solo”, nome que indica o local onde foram encontrados os seus restos. Na língua amárica ou Etíope, “ardi” significa “solo”.

O primeiro integrante do gênero Homo surgiu há 4,5 e 1,8 milhões de anos, embora uma estimativa mais precisa nos permita dizer que seu surgimento se deu cerca de 2,4 milhões de anos atrás. Seu nome científico é Homo habilis. É provável que tenha coexistido com o Homo rudolfensis e com o Homo ergaster. Mas, como a distinção entre eles é extremamente difícil de estabelecer, são chamados conjuntamente de Homo habilis. Seu aparecimento marca o começo da linhagem que se estenderia até nós, os Homo Sapiens Sapiens. Estimativas atuais sugerem que os hominídeos, família de grandes primatas que compreendem os Chimpanzés, os Gorilas, os Orangotangos e os Humanos, surgiram quando nossos ancestrais se separam dos macacos há cerca de 6 ou 8 milhões de anos.

O Homo habilis se notabilizava pela manufatura e uso de ferramentas ou artefatos líticos, habilidade esta favorecida pela anatomia de suas mãos. Usando tais artefatos, eles esquartejavam animais, muito embora haja dúvida se ele abatia uma presa, ou rapinava carcaças da caça feita por leões e leopardos. Além do uso de ferramentas, o Homo habilis incluiu a carne em sua dieta, ao contrário de seus primos Australopicíneos robustos, que eram vegetarianos.

Num mundo sem Providência divina e regulado pela “luta pela vida”, não surpreende que nossos antepassados fossem abatidos por predadores. Temos evidências de crânios perfurados pelos dentes de leopardos. Membros do Homo habilis, medindo apenas 1,5 m., eram vulneráveis aos ataques de hienas. Um mundo sem Providência divina é um mundo em cuja origem e funcionamento vige o acaso. Acaso significa ausência de finalidade ou de propósito, ausência de toda razão de ser. Acaso, Sorte, Fortuna – eis as armadilhas da vida, cujas primeiras formas surgiram há 3,5 bilhões de anos com as bactérias. Digam o que quiserem para nós os sacerdotes, os astrólogos, as cartomantes acerca sentido um sentido metafísico da vida, nada na biologia moderna confirma a nossa costumeira expectativa de encontrar sentido algum no mundo e, sobretudo, nos fenômenos naturais e na evolução biológica. Tudo nela, pelo contrário, desalenta nosso anseio por encontrar um sentido metafísico na vida. A própria vida, diz Monod, é uma contingência; portanto, algo que poderia muito bem não ter acontecido; e o próprio homem é, como todos os demais organismos, um resultado improvável da evolução biológica. O ser humano não é uma necessidade inerente à dinâmica da evolução. Não somos nem física nem biologicamente necessários. Tanto as formas de vida mais simples quanto os animais humanos emergiram num Universo que não aguardava a sua chegada. A verdade que, de tão assustadora e indigesta, é recusada comumente em todas as atividade humanas diárias, na insistência com que os Sapiens lotam as igrejas, é que estamos aqui há um milimicrossegundo da história da vida. Todas as evidências disponíveis deveriam ser suficientes para levar seres dotados de uma racionalidade bastante complexa (embora, certamente, propensa ao erro, ao engano) a concluírem que nós não fomos destinados a habitar este mundo porque assim o quis um Deus Criador. Todas as evidências disponíveis sugerem que, se todas as condições e processos que levaram ao desenvolvimento da vida retrocedessem até o começo, nossa espécie não se desenvolveria de novo. Isso significa dizer que tem razão quem diz, em face de alguém que desperdiça a vida empregando seu tempo e interesse em coisas fúteis, ou de alguém que se dedica obcecadamente ao trabalho, descuidando do tempo com a família e amigos, que a vida é única, irrepetível. Eu gostaria, no entanto, de acrescentar que, sendo a vida irrepetível, sendo a vida de cada um de nós, a minha e a sua, caro leitor, um evento breve, contingente, que não ocorrerá outra vez, que não admite ensaio nem apelos (já que não há a quem dirigi-los, a quem os julgue, porque não há Providência nem Justiça divinas), os sofrimentos mais excruciantes que nos acometem, a agonia dos famintos, dos doentes, cada vida individual carcomida por um câncer, pela Aids, cada sofrimento e morte que atingem uma criança, ou um filhote indefeso de um animal, ou a morte dos que amamos, os genocídios de populações pela insanidade de um Sapien ditador, tirânico - tudo isso são, assombrosamente, acontecimentos insignificantes, irrelevantes de um mundo em cuja composição bioquímica, formada de átomos, gases como hélio e hidrogênio, devemos reconhecer também a irremediável, inextirpável tragicidade que nos faz ser, desde o nascimento, condenados à morte. Uma vida que, surgindo por acaso e inapelavelmente uma única vez, torna tudo o que nela nos acontece “uma sombra que passa, um pobre bobo que se pavoneia e se exalta uma hora sobre o palco e depois não se ouve mais, uma história contada por um idiota, cheia de barulho e fúria, e que não significa nada” (Macbeth). Não surpreende, portanto, que, na vida diária, os animais humanos evitem se ocupar de tão cruel e absurdo destino. E é provável que essa despreocupação tenha sido uma característica de nossa história evolutiva. Minha hipótese é que a imersão na futilidade da vida é condição indispensável à sobrevivência da espécie humana. Em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade, Harari descreve o que encontraríamos na África Oriental de 2 milhões de anos atrás:

 

 

Em um passeio pela África Oriental de 2 milhões de anos atrás, você poderia muito bem observar certas características humanas familiares: mães ansiosas acariciando seus bebês e bandos de crianças despreocupadas brincando na lama; jovens temperamentais rebelando-se contra as regras da sociedade e idosos cansados que só queriam ficar em paz; machos orgulhosos tentando impressionar as beldades locais e velhas matriarcais sábias que já tinham visto de tudo. Esses humanos arcaicos amavam, brincavam, formavam laços fortes de amizade e competiam por status e poder mas os chimpanzés, os babuínos e os elefantes também. Não havia nada de especial nos humanos. Ninguém, muito menos eles próprios, tinha qualquer suspeita de que seus descendentes um dia viajariam à Lua, dividiriam o átomo, mapeariam o código genético e escreveriam livros de história. A coisa mais importante a saber acerca dos humanos pré-históricos é que eles eram animais insignificantes, cujo impacto sobre o ambiente não era maior que o de gorilas, vaga-lumes ou águas-vivas. (Harari, 2018, p. 16).

 

 

Num Universo infinito, surgido, por acaso, de uma grande explosão, e que tornou possível a vida e com ela uma espécie de macacos pelados que, desde que nascem, estão condenados à morte e sabem disso, também suas grandes realizações como espécie são irrelevantes, insignificantes cosmologicamente. Certamente, o mapeamento do código genético nos permite hoje prevenir doenças que podemos vir a desenvolver por pré-disposições de nossa estrutura genética, e James Watson, que foi premiado com o Nobel pela descoberta da estrutura da molécula do DNA e que viria, na década de 1990, assumir a direção do Projeto Genoma, quiçá se orgulhe (merecidamente) de seu feito. Mas Watson morrerá e seu corpo se decomporá em elementos que retornarão ao Universo. Sua pessoa não tornará mais a viver, pois Watson, como cada um de nós, mortais, é um evento único e irrepetível. Este “eu” que tanto amamos não sobreviverá à destruição de nosso corpo e cérebro. Certamente, o legado de Watson aproveitará às gerações futuras, será levado adiante. Outras descobertas incríveis e úteis à sobrevivência de nossa espécie serão, possivelmente, feitas. Mas Watson um dia deixará de existir, assim como cada um de nós, não importa o que fizermos. Talvez, Watson quisesse tornar a viver para continuar suas pesquisas; afinal, o inacabamento é constitutivo da condição humana: quem poderá dizer que Watson esgotou todas as possibilidades de ser, de criar, de conhecer numa única existência, mesmo que ela já se tenha estendido por 93 anos? Ocorre-me, com frequência, que a vida de leitor é insuficiente (mas toda vida o é), porque quem ama a leitura compra uma quantidade de livros superior ao tempo de que disporá para lê-los. A vida é breve demais para quem tem sede de saber e de leitura. E nisso também vejo as pinceladas fúnebres do trágico.

Volvendo olhares para o excerto de Harari, num certo estrato da cotidianidade, o autor sugere que a vida humana de 2 milhões de anos atrás não variou muito quando a comparamos com a vida cotidiana dos homens modernos. Se podemos inferir que, em certo estrato, a vida do cotidiano de nossos antepassados hominídeos tenha características familiares a nós, é que, talvez, a evolução nos tenha capacitado mais para nos manter ocupados com as necessidades básicas de nossa existência e com as condições do ambiente biofísico em nossa volta do que com o trabalho de cálculos matemáticos para determinar a órbita de cometas, ou com discussões infindas e entediantes sobre a Analítica Transcendental em Kant. Em outras palavras, o que a descrição do cotidiano dos humanos que viveram há 2 milhões de anos permite-nos concluir é que, talvez, num mundo que, quando submetido ao escrutínio da razão, se mostra inelutavelmente trágico e cruel, a vida tenha sido feita da cepa da futilidade e que a evolução nos “programou” para a imersão nessa futilidade, que compreende a “crosta” da vida onde nos movemos e nos instalamos, e não para o dispêndio de energias em meditações sobre o porquê de nos encontramos aqui neste planeta. Harari presume que a insignificância de nossa condição humana consiste apenas no fato de nossa espécie não ter nenhuma característica que a torne especial ou superior no reino animal. E isso é verdade, mas nossa insignificância como espécie e como indivíduos de uma entre milhões de espécies vai muito além disso, conforme mostrarei.

Mesmo sob pena de incorrer em redundância, é necessário reiterar e enfatizar uma verdade que gostamos de esconder de nós mesmos:

 

(...) somos membros de uma família grande e particularmente ruidosa chamada grandes primatas. Nossos parentes vivos mais próximos incluem chimpanzés, gorilas e orangotangos. Os chimpanzés são os mais próximos. Há apenas 6 milhões de anos, uma mesma fêmea primata teve duas filhas. Uma delas se tornou a ancestral de todos os chimpanzés; a outra é nossa avó.  (ibid., p. 17-18).

 

 

Resta ainda outro personagem para entrar na cena de nossa história evolutiva: os homens de Neandertal. Cerca de 350 mil anos atrás, o Homo neanderthalensis apareceu na África. Seria a última espécie importante antes do aparecimento do homem moderno. Os Homens de Neandertal espalharam-se a partir da África por volta de 200 mil anos, para o Uzbequistão, o Irã, a península Ibérica, de onde partiram para o norte da Europa. Sua designação se deve ao sítio na Alemanha onde um dos primeiros espécimes foi descoberto, em 1856. Os Homens de Neandertal tinham compleição baixa, testa pesada e angulosa, mas o seu corpo era mais semelhante ao corpo dos Homo Sapiens modernos do que ao das espécies precedentes. O DNA dos restos mortais dos Neandertais revela que eles foram nossos ancestrais diretos. Eles coexistiram com os Sapiens, que migraram em direção ao norte, saindo da África para a Europa, por volta de 45 mil anos atrás. É provável que a competição com esses grupos de Sapiens tenha custado a extinção dos Neandertais por volta de 25 mil anos atrás.

Toda esta seção deste texto dá testemunho de meu esforço por contribuir com o longo, secular e incansável processo de esclarecimento dos homo sapiens acerca de sua ancestralidade animal. O chimpanzé e o homem compartilham cerca de 99, 5% de sua história evolutiva, isto é, de seus genes. Não obstante, na confluência das duas matrizes que formaram a cultura ocidental, um meme se disseminou “infectando” a maioria dos sapiens desde então. Esse meme se chama cristianismo e ele trouxe em seu bojo a crença na origem divina do homem. É inacreditável como esses hominídeos possam ter se enganado por tanto tempo assim, estando a verdade bem abaixo de seus narizes, ou melhor, em lugares recônditos do solo do próprio planeta que habitam. A história evolutiva não é apenas uma história trágica; é, na verdade, uma bela história, uma história admirável, espantosa, fascinante. Entre os gregos pré-socráticos, Empédocles a entreviu como hipótese filosófica há 2.500 anos AEC, é verdade, mas foi Charles Darwin, no século XIX EC, que começou a nos contá-la cientificamente. Mas estes parvos macacos pelados insistem em ignorá-la! O chimpanzé, a lagartixa pegajosa em nossa parede e o fungo que estraga nossos queijos e nós mesmos, seres humanos, evoluímos durante cerca de 3 bilhões de anos por um processo conhecido como seleção natural. Todas as espécies incluem indivíduos que deixaram atrás de si um número maior de descendentes sobreviventes do que outros, de sorte que os genes daqueles que alcançaram maior sucesso reprodutivo se tornam mais numerosos na geração seguinte. A seleção natural é isto, segundo o biólogo Richard Dawkins: a reprodução diferencial, não aleatória, dos genes. Foi a seleção natural que nos “criou”.  Aceitar a crueldade do real, isto é, aceitar o real sem duplicá-lo, sem adorná-lo com as ilusões religiosas e metafísicas é estar disposto a entender como a seleção natural tornou possível a nossa existência.

A ciência, atualmente, pode provar, através da comparação genética do material viral, as origens dos parasitas que nos infectam. A história evolutiva da família do vírus do herpes coincide com a história evolutiva de humanos e chimpanzés. Se, hoje, nós nos sentimos importunados com aquelas pequenas bolhas (vesículas) nos lábios que o vírus do herpes causa, é porque os primeiros hominídeos que se separaram dos chimpanzés carregavam em seus corpos um tipo de vírus ancestral do herpes. A evolução desse vírus ancestral deu origem a dois tipos distintos de vírus do herpes humanos: um que atinge os nossos lábios; e outro que é específico dos órgãos genitais.

O vírus do herpes labial, muito provavelmente, evoluiu com os Australopithecus, o Homo habilis, o Homo erectus e outros hominídeos já extintos, até chegar aos Sapiens modernos. E isso só foi possível, porque sua estratégia de sobrevivência foi bem sucedida. Como parece já estar acontecendo com o Coronavírus, causador da pandemia atual, os vírus que causam doenças muito graves, que levam suas vítimas à morte, se encontram em desvantagem evolutiva, sobretudo, num período histórico em que não havia muitos hominídeos. Se o vírus do herpes causasse alta taxa de letalidade, poderia extinguir sua única fonte de vida. Demais, se o hospedeiro conseguisse eliminá-lo de seu organismo, esse vírus teria dificuldade de encontrar outro hominídeo. Portanto, a melhor estratégia evolutiva a ser desenvolvida, em condições ambientais em que era reduzida a população de primatas, seria o vírus infectar sua vítima sem acarretar-lhe alto risco de morrer, provocando nela uma infecção que permanecesse dormente. O vírus da catapora humana seguiu a mesma estratégia. Esse vírus também guarda parentesco com vírus de macacos. Ele também é capaz de permanecer dormente nos nervos. Assim, nascemos na África já sendo portadores do vírus da catapora.

É importante, pois, não perder de vista o fato de que, num mundo cruel como o nosso, os microrganismos acompanham e ajudam a explicar a trajetória seguida pelo homem desde que surgiu no continente africano. Eles nos auxiliam na busca por saber quais hominídeos os Sapiens podem ter encontrado em sua expansão pelo planeta. Revelam também nossa provável rota que nos permitiu chegar à América, quando começamos a usar roupas, etc.. Sítios arqueológicos nos ajudam a contar a história não só da migração de animais, mas também de como esses parasitas a acompanharam e a influenciaram. A presença de DNA ou RNA em sítios arqueológicos é a chave para compreender como eles nos infectam. Por meio pesquisa do RNA e DNA desses microrganismos, podemos saber quando e como as epidemias atuais iniciaram-se lenta e silenciosamente durante décadas, milênios, condicionando a existência humana, dizimando populações, estimulando conflitos, promovendo êxodos, contribuindo, enfim, para a miscigenação e enfraquecendo povos ou os tornando mais fortes.

 

 

2.2. Em meio à vida, estamos na morte

 

Nesta etapa de minha discussão, vou estender-me sobre o exame da crueldade do real, desvelando seus rostos violentos, destrutivos e sanguinários. Dois tipos de males me interessarão aqui: o mal produzido pela ação do homem e o mal provocado pela própria natureza impiedosa. Esta distinção me parece útil, a título de clareza sobre as formas como a crueldade e o caráter trágico da vida se expressam, mas a distinção não precisa ser rigorosa para os meus propósitos. O que importa é reconhecer que, em parte, os males do mundo são efeitos da ordem natural das coisas; mas outra parte de males e sofrimentos é de responsabilidade da perversidade do animal humano. A crueldade é um dos aspectos da destinação da vida na natureza, mas o homem, talvez juntamente com seus parentes mais próximos, os chimpanzés, se sobressai em sua capacidade de produzir um mal gratuito, um mal demoníaco. Os chimpanzés parecem também exibir tal capacidade de perversidade, conforme mostrarei. Mas somente o homem é capaz de infligir os sofrimentos mais atrozes, inimaginavelmente terríveis, com as armas e os instrumentos mais eficazes e poderosos que nenhuma outra espécie animal é capaz de criar e dominar.

O homem comum se habituou à visão romântica da natureza, a qual exalta sua exuberância, beleza fascinante e perfeição. De fato, a biodiversidade da natureza exibe uma beleza que nos encanta; a exuberância de suas flores, de sua densa vegetação verdejante, de seus mares e rios cristalinos em paisagens pitorescas, contrasta, no entanto, com o grotesco das anomalias dos corpos, das malformações congênitas de seus seres e da bizarrice de suas aparências. Ademais, a visão romantizada da natureza ignora, muito facilmente, o fato de que os passarinhos que são vitimados pelo ataque assassino do corvo também são assassinos de espécies que não despertam nossa comoção, tais como insetos, caramujos, minhocas e lagartas. Um melro rebenta a concha de um caramujo numa pedra para desabrigá-lo e comê-lo ainda vivo. É bem verdade que, na cadeia de carnificinas da ordem natural, a multiplicidade das espécies conserva-se em algum equilíbrio. Assim, os corvos que devoram filhotinhos deixam, no entanto, alguns deles sobreviverem para produzir descendentes. Se a ferocidade destrutiva das espécies predadoras fosse ilimitada, seu próprio meio de subsistência estaria arruinado. Como lembra Holloway (2013, p. 65), “a natureza com seus dentes e garras vermelhas pode não ser uma bela visão, mas existe equilíbrio nisso, mesmo que tenhamos de defini-lo com um tipo de justiça biológica”. Salta evidente que esse equilíbrio ecológico é seriamente ameaçado pelo impacto destrutivo das ações nefastas do homem, motivadas pelo egoísmo ilimitado deste animal excêntrico e pestilento. Holloway, nesse tocante, não nos deixa esquecer isso:

 

Conforme nos lembra a nossa propensão de inventar sistemas imaginativos de tortura, temos sido muito inventivos na nossa crueldade para com os membros de nossa espécie. Naturalmente, também nunca relutamos em torturar os outros animais com quem compartilhamos o planeta – como bem demonstra a história de nossa crueldade em relação a eles (...). (ibid. p. 65).

 

 

No tangente ao extermínio de animais para o consumo, o autor enfatiza que “(...) as coisas mais perturbadoras no tocante à espécie humana é a nossa capacidade de nos acostumar com comportamentos monstruosos. Nós nos acomodamos aos campos de extermínio e ao genocídio industrializado”. O animal humano é, com bastante frequência, o algoz dos membros de sua própria espécie e de outros animais sencientes. Sua crueldade para com eles é flagrante em toda parte. Vemo-la expressar-se nas torturas de prisioneiros de guerra, no assassinato, no estupro, na exploração dos vulneráveis e mais fracos pelo forte, nos gritos de dor dos supliciados, nos flagelos nefastos da escravidão, no tráfico de animais e nos  maus tratos a que são submetidos. A crueldade humana é tão intensa, tentacular e inesgotável nas suas formas de manifestação, que um pensador como Hobbes não relutou em concluir que homo homini lupus (o homem é o lobo para o homem). É também, inegavelmente, um lobo para os demais animais com quem ele compartilha este planeta cosmologicamente insignificante localizado numa porção da imensidão de um Universo que lhe é indiferente a sua sorte. Como nos dá a saber Bem (2009, p. 131), “tudo dura só um momento e corre para a morte. A planta e o inseto morrem no fim do verão e o animal e o homem, depois de alguns anos: a morte ceifa incansavelmente. O homem com a procriação nasce do nada, com a morte se torna nada”. É ainda o mesmo autor que nos lega esta lição da sabedoria da história universal “a vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória. Ninguém poderia sobreviver à compreensão instantânea da dor universal (...)”. (p. 113). Acontece que a maioria de nós que chegou a compreender a dor universal continua a viver, a arrastar sua carcaça decadente, inclinada à decrepitude e à aniquilação, no torvelinho de nossas ocupações cotidianas.

Morin (2009) observa que o Homo faber, o homem que fabrica, fabrica um mundo onde discernimos não só ferramentas e monumentos, mas também onde encontramos mitos delirantes. O Homo faber “dá vida a deuses ferozes e cruéis, que cometem atos bárbaros (...)”. (p. 13). O fato de serem eles produtos de sua imaginação não os impede de terem uma vida própria e de exercerem o poder de dominar o espírito de seus criadores. Loucura humana? Talvez! – mas uma loucura institucionalizada, normalizada. A barbárie humana cria deuses cruéis, os quais, por seu turno, incitam os humanos a deflagrar a barbárie. Por isso, assegura Morin, “nós modelamos deuses que nos modelam”. (ibid.). Por outro lado, não deixo de reconhecer que as ideias religiosas que se apoderam dos homens podem também levá-los a agir com misericórdia e generosidade.

O Homo ludens ocupa, não raro, seu tempo com jogos cruéis, como o jogo do circo na Antiga Roma, ou a tauromaquia. Por fim, o Homo economicus, cuja vida se guia fundamentalmente pelo interesse econômico, tende a assumir comportamentos egoístas que sinalizam sua indiferença para com o outro. Em casos não raros, esse Homo economicus, movido pela paixão do lucro, pode até mesmo cometer assassinatos. Assim, a barbárie não apenas é um fenômeno que acompanha a civilização; ela é uma das partes constitutivas da civilização. O processo civilizatório é marcado por massacres, destruições sistemáticas, pilhagem, estupros, escravidão de populações, etc. Há, portanto, uma barbárie que se forma e se deflagra com a civilização.

Vivemos num mundo em que a prática de suplícios foi bastante comum como forma de punição para um crime cometido. Em Vigiar e Punir (2012), Foucault narra, no capítulo primeiro O corpo dos condenados, o suplício aplicado a Robert-François Damiens, em 1757. Damiens fora condenado a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, aonde foi levado e acompanhado numa carroça, vestindo apenas uma camisola e carregando uma tocha de cera acesa. Não transcreverei o trecho na íntegra não só por ser muito extenso, mas também porque quero resguardar o leitor de padecer longamente a imaginação do suplício. Conta-nos Foucault:

 

 

[Em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado (...). Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... (ibid., p 9).

 

A invenção da guilhotina viria a suprimir o espetáculo do suplício. Seu uso se regulava pelos seguintes princípios: uma só morte por condenado, de uma só vez, e sem recorrer a suplícios. Com a guilhotina, utilizada a partir de março de 1972, a morte passou a ser um acontecimento visível, mas instantâneo. Diz-nos Foucault: “entre a lei, ou aqueles que a executam e corpo do criminoso, o contato é reduzido à duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso (...) Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade”. (ibid., p. 18).

A crueldade do real pode ser também ilustrada na morte de 70 e 320 mil mulheres nos conhecidos processos de bruxaria, ocorridos entre o final do século XIV e o final do século XVII, durante o período sangrento da Inquisição Católica. À suposta bruxa, aplicava-se, primeiro, a tortura psicológica – “era levada à sala de interrogatório, onde eram expostos todos os instrumentos de suplícios”. (Fio, 2007, p. 153).  Em seguida, a vítima era despida perante o magistrado e coberta com um lençol. Se lhes aplicavam chibatadas – a forma de tortura considerada mais branda. Depois, amarravam-se-lhe os braços atrás com uma corda presa à polé; a vítima era içada, provocando o deslocamento do ombro. Ainda mais cruel que a polé, era o cavalo de estiramento, um pedaço de madeira triangular com a ponta virada para cima. O corpo da supliciada era deitado e amarrado à ponta, a qual lhe penetrava a carne, do pescoço  aos glúteos. Em suas mãos e suas pernas, eram amarrados pesos cada vez mais pesados, ou cordas ligadas a uma roda que girava com a ajuda de uma manivela. Uma vez puxadas as cordas, o corpo inteiro se esticava, e os membros, depois de algumas horas, se soltavam do corpo. Outra prática comum era acender uma fogueira sob os pés da vítima. Como notam os autores, “teoricamente, a tortura deveria durar um tempo limitado, e um médico supervisionava as operações para garantir que o imputado não corresse o risco de vida ou sofresse danos graves à saúde”. (ibid., p. 154). O suplicio, contudo, prosseguia ao sabor do sadismo do inquisidor. Não eram raros os casos em que as mulheres morriam ou eram estropiadas de forma irremediável em função das sevícias que sofriam. Novamente aqui é oportuno reiterar esta lição filosófica: “a vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória”.

Como se pode ver, ao me debruçar sobre o tema da crueldade do real, não poderia inocentar o homem, mantendo silêncio sobre sua capacidade monstruosa de fazer o mal, de infligir sofrimentos excruciantes tanto em outros humanos quanto em animais não humanos. A crueldade do real protagonizada pelo homem nos faz também tremer de horror em face da tentativa nazista de aniquilar a população judaica da Europa, no genocídio que ficou conhecido como Holocausto. No Holocausto, morreram cerca de 6 milhões de judeus em 1945. Mas, já em 1942, os nazistas se apressavam por buscar apoio para o que consideravam ser “a solução final”. Os judeus seriam levados para campos (conhecidos como “campos de concentração”) na Europa Oriental, onde trabalhariam até a morte ou sucumbiriam asfixiados nas câmaras de gás. Seus corpos seriam queimados em grandes crematórios operados pelos próprios judeus. Trens lotados de judeus chegavam da Europa ocupada pelo exércitos do Eixo e seguiam viagem em direção aos campos de concentração de Auschwitz, Belzec, Chelmno, entre outros. Milhares de judeus morreram em “Marchas da Morte”, durante as quais seguiam agrupados, famintos, esquálidos, enregelados, e isso se deu apesar do Exército Soviético ter avançado para o oeste em 1944-1945.

A fome que assolou a Ucrânia, então parte da União Soviética, em 1921, atesta também a tendência do homem à tirania. A fome nessa terra não decorreu apenas da seca. Embora fossem adversas as condições climáticas, elas não chegavam a ter um potencial catastrófico. O que foi, de fato, determinante para que se contabilizassem 5 milhões de mortos pela fome foram as medidas adotadas pelo governo soviético. O governo soviético confiscou a lavoura. Ao lavrador era deixado muito menos do que o necessário para a sua subsistência. O governo apossou-se da comida dos lavradores para vendê-la. Vladimir Lenin e seu sucessor Josef Stalin não apenas estavam cientes disso, como também encorajaram tal saque, sendo ambos indiferentes às consequências do seu abuso de poder.

 

Como ocorre em todas as situações de fome prolongada, as doenças foram a segunda causa de morte. Pessoas em inanição ficam propensas a doenças que se alastram rapidamente,  e foi isto o que acorreu na Ucrânia. Tifo e cólera foram responsáveis por centenas de milhares de mortes. Não havia remédios disponíveis, e, mesmo se houvesse, curar alguém que estava morrendo de fome não significava grande alívio. (Spignesi, 2005, p. 58).

 

Em situações de fome prolongada, mesmo um animal ufano de sua “civilidade”, torna comum a prática de canibalismo. Nesses momentos de extrema aflição, o instinto de sobrevivência escancara a fragilidade da superficialidade dos formalismos. Filhos eram devorados pelos pais; cadáveres eram retalhados e seus pedaços consumidos por lavradores famintos. A fome na Ucrânia findou no outono de 1923 e, mesmo que as condições tenham melhorado significativamente, outra fome teria início em poucos meses no ano de 1932.

Devemos cuidar-nos de ver no homem tendências exclusivamente assassinas e demoníacas, da mesma maneira que devemos resistir à tentação de ver a natureza como o Paraíso Bíblico antes do pecado de Eva. Como nos alerta Holloway, “a natureza é impiedosa (...). Pode ser esplêndida em sua ferocidade implacável, mas também é assombrosa em sua indiferença” (ibid., p. 63). Convém atentar para o que nos escreve o autor, no passo abaixo:

 

A natureza é impiedosa (...). Pode ser esplêndida em sua ferocidade implacável, mas também é assombrosa em sua indiferença. Metade dos filhotes de urso-polar morre no primeiro ano de vida. O Kalahari mata os elefantes jovens que tentam atravessá-lo à procura de água. E por todo o reino animal os predadores emboscam as vítimas antes de se lançarem ao ataque paralisante. Em meio à vida, estamos na morte. É a crueldade da ordem natural que fortalece o ateu contra qualquer ideia da existência de um criador benevolente. Isso foi algo que Darwin observou, embora ele mesmo tenha sido benevolente demais ao presumir o papel que descreveu: “Que livro um capelão dos infernos escreveria sobre as obras desajeitadas, equivocadas, baixas e terrivelmente cruéis da natureza”. O fato é que a natureza é uma vasta cadeia alimentar, e matar é tão intrínseco a sua finalidade quanto o sexo. A luta é tão fundamental quanto a trepada. A vida que engatinhava há bilhões de anos no mar de substâncias químicas luta não só para se reproduzir, mas para se manter, principalmente caçando outras criaturas. (ibid., p. 63).

 

 

Não resta dúvida de que a natureza é cruel, que é indiferente à sorte dos indivíduos, cujas vidas podem ser sacrificadas desde que seja garantida a sobrevivência da espécie. A natureza abriga um arsenal de patógenos perigosos e até mortais na densidade de suas matas, nas entranhas dos corpos dos animais. Mas a natureza também dotou os organismos de um arsenal de capacidades defensivas contra a morte: velocidade, odor, disfarce, etc. Assim, a natureza, ao menos, dá uma chance a todos os animais de sobreviver na luta pela vida. Mas somente nós, seres humanos, podemos ser perversos, a ponto de lhes negar qualquer chance de sobrevivência, sempre que os capturamos, os escravizamos, os martirizamos e os matamos aos milhares. Assim, pondera Holloway “o domínio que assumimos sobre o reino animal tem sido catastrófico para nós mesmos, bem como para eles”. E a pandemia atual da Covid-19, que já matou, no momento em que escrevo, mais de 2 milhões de pessoas no mundo, e mais de 360 mil só no Brasil, ilustra tragicamente a consequência de nossas inveteradas e perniciosas ações sobre a ordem natural. Na verdade, muitas doenças que nos acometem resultam de nossas interações, quer vantajosas para a nossa espécie (a domesticação de animais, por exemplo), quer predatórias com vistas ao lucro. Por exemplo, a Mycobacterium bovis infecta o gado e os humanos. Ela é semelhante a Mycobacterium tuberculosis, causadora da tuberculose. A M. bovis passou a infestar o animal humano quando os europeus passaram a ingerir leite contaminado. Como ensina Ujvari,

 

(...) Acreditávamos que a bactéria do gado originara a tuberculose humana na época da domesticação do animal. Sua bactéria eliminada nas secreções e líquidos teria atingido os criadores e, através de mutações, se transformado na bactéria responsável pela tuberculose humana. Porém, gerações passada presenciaram sua agressão, principalmente os europeus, entre os séculos XVIII e XIX. O gado eliminava a bactéria em suas secreções, líquidos e no leite. O transporte de gado levava a doença para outros rebanhos distantes e em outros continentes. Os europeus ingeriam leite contaminado pela M. bovis. A bactéria entrava no organismo humano, proliferava-se e ocasionava a tuberculose (...). (Ujvari, 2020a, p. 31).

 

Em que pese o fato de que as interferências do animal humano no equilíbrio do ecossistema acarretam, com frequência, moléstias que podem, além de lhe causar sofrimento, matá-lo, o homem evoluiu com suas pragas, e é impossível imaginar um mundo onde os homens não interajam com outros animais. Os microrganismos patogênicos são parte, como nós, da ordem natural; eles se acham nos organismos de muitas espécies. O que não podemos aceitar é que o homem interfira negativamente no equilíbrio da ordem natural. E essa interferência negativa não precisa ser através de práticas predatórias e assassinas. O homem, por exemplo, pode ocupar regiões habitadas por certos animais, como morcegos, fixando feira livre. Dada a proximidade com esses animais, a possibilidade de eles defecarem nos alimentos comercializados, contaminando-os, não pode ser subestimada.

Sabemos hoje que os chimpanzés, e um quinto dos animais dentre mais de trinta espécies de primatas, são hospedeiros do vírus SIV (Vírus da Imunodeficiência Símia). O HIV, ou Vírus da Imunodeficiência Humana, pertencente à mesma linhagem do SIV, passou a infectar o ser humano já na década de 1930 por causa da caça a esses animais, tão comum nos períodos de guerra e nas épocas de fome. A caça aos chimpanzés possibilitou que o HIV saltasse desses primatas para os humanos. A caça aos chimpanzés propiciava ocasiões para escoriações e ferimentos nos caçadores. Foi através desses ferimentos que o HIV passou a infectar o ser humano.

 

(...) caçadores adentravam a mata em busca de sua carne [dos chimpanzés]. Mortos, seus corpos eram destrinchados pelos facões, e seus pedaços, ensacados pelos homens armados. A jornada desses caçadores terminava nos mercados dos vilarejos próximos. Retornavam ensanguentados pela caça. Manipulavam a carne ensanguentada dos chimpanzés nos mercados. Os consumidores levavam a carne para as suas residências e também entravam em contato com seu sangue. Os africanos não sabiam da existência de um vírus presente nesses chimpanzés de Camarões e Gabão. (op.cit., p. 10).

 

É oportuno, a esta altura, já que me referi aos chimpanzés, fazer ver que eles também podem ter muita propensão para a violência. E me refiro a uma violência, aparentemente, gratuita e com excesso de crueldade de um ritual macabro muito semelhante aos rituais humanos de crueldade macabra. Em seu livro Os anjos e demônios da nossa natureza (2013), Steven Pinker, embora empenhado em sustentar a tese de que “a violência vem diminuindo desde um passado distante” (p. 19), não se esquiva de nos oferecer um relato da fúria assassina de um grupo de chimpanzés.

 

Jane Goodall, a primatóloga que, pela primeira vez observou chimpanzés na natureza por longos períodos, acabou fazendo uma descoberta estarrecedora. Quando um grupo de chimpanzés machos encontra um grupo menor ou um indivíduo solitário, os animais não gritam nem se eriçam: aproveitam a vantagem de ser mais numerosos. Se o estranho for uma fêmea adolescente sexualmente receptiva, eles podem catar seus pelos e tentar se acasalar. Se ela carregar um filhote, o mais das vezes eles a atacam e comem o bebê. E se encontram um macho solitário, ou isolado de um grupo pequeno, perseguem-no com selvageria assassina. Dois atacantes imobilizam a vítima e os demais o espancam, arrancam seus dedos e genitália a mordidas, dilaceram-lhe a carne, torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traqueia. Em uma comunidade, os chimpanzés escolheram para matar cada macho de uma comunidade vizinha, um evento que, se ocorresse entre os seres humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos dos ataques não são desencadeados por encontros fortuitos; resultam de patrulhamento de fronteira nos quais um grupo de macho sorrateiramente procura e ataca qualquer macho solitário que avistar. Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um rival e uma fêmea, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de uma fêmea mais fraca” (ibid., p. 75-76).

 

Creio que qualquer Sapien reconhece na fúria assassina dos chimpanzés as mesmas tendências para a crueldade que se encontram nos psicopatas e serial-killers, embora também os reconheçamos como animais bastante inteligentes. Isso parece sugerir um fato que o senso comum sistemtaticamente ignora: o aumento da inteligência, nas espécies, não é proporcional à redução da capacidade para a crueldade. Em outras palavras, embora as pessoas tendam a acreditar que a violência selvagem, a capacidade para matança sejam incompatíveis com a racionalidade, com modos de vida pautados pela razão, a despeito do número grande de evidências que refutam essa crença, o desenvolvimento da racionalidade, por si mesmo, não se faz acompanhar de uma redução significativa de nossa propensão a ser menos cruel e de provocar menos violência, embora o processo civilizatório tenha contribuído para reprimir as pulsões que nos fazem ser naturalmente muito agressivos e violentos. Mas nunca é demais lembrar que, historicamente, a razão foi empregada para a realização de genocídios, para a construção da bomba atômica lançada sobre a cidade de Hiroshima, matando aproximadamente 80 mil pessoas, com um poder tão grande de destruição que 75% dos edifícios da cidade ficaram em ruínas. A razão pode ser empregada para planejar assassinatos. Três dias depois do lançamento da primeira bomba atômica sobre Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, outra bomba, chamada “Little Boy”, atingiu o centro industrial de Nagasaki e causou a morte de 40.000 pessoas, e quase metade da cidade foi destruída.

A crueldade do real expressa-se também na prática inveterada dos homens de deflagrar guerras. A guerra desempenhou um papel fundamental no progresso da humanidade, influenciando mudanças políticas, econômicas e sociais. É um fato irrecusável que a história da humanidade e a história da guerra encontram-se inextricavelmente ligados. Temos registros documentais e arqueológicos que nos permitem dizer que o confronto organizado entre guerreiros remontam ao sexto ou sétimo milênio antes de Cristo. A guerra é, portanto, inerente à condição humana, mas, nos dias atuais, em que dispomos de uma tecnologia militar que engendra os meios de levar toda a nossa espécie à aniquilação, é razoável que nosso ímpeto para a guerra seja controlado. Em todos os períodos de sua história evolutiva, o homem se demonstrou ser um animal propenso à guerra. Mas a guerra pré-histórica era limitada em natureza e regulada por rituais. Quando disputas não podiam ser resolvidas sem o recurso à violência, realizavam-se pequenos combates e lutas, que se limitavam a uma série de confrontos individuais ligeiros, sem maiores impactos. As armas eram as mesmas usadas na caça: faca, machados de pedra e lanças. As mortes eram poucas e circunscritas aos jovens do sexo masculino – biológica e economicamente eram eles os membros mais dispensáveis da tribo. As razões que levaram os homens pré-históricos a guerrearem são objeto de controvérsia, embora a pilhagem e a promoção do prestígio bélico estejam entre os motivos prováveis. O estilo de vida da Idade da Pedra sugere que a guerra foi se tornando mais organizada à medida que aumentava a concorrência por recursos escassos como a água ou as pastagens. Assim, com as sociedades se tornando mais numerosas e mais distribuídas pelo globo terrestre, não surpreende que aumente a possibilidade de conflitos competitivos.

Homens e chimpanzés são bastante aparentados não só porque compartilham mais de 99% de seus genes, como também porque são igualmente capazes de exibir comportamentos extremamente violentos e assassinos. Mas a crueldade assassina desses mamíferos superiores é um caso máximo do egoísmo, oportunismo e hostilidade que constituem o modus operandi da vida em estado natural (embora eu não ignore que haja relações de cooperação entre os organismos). Segundo Dawkins, cada organismo vivo é uma máquina de sobrevivência cujo interesse fundamental é garantir o futuro de seus genes. Se uma máquina de sobrevivência se apresenta como obstáculo para outra, as chances de se agredirem mutuamente são grandes. Isso acontece porque as duas estão interessadas em assegurar a perpetuação de seus genes e não medirão esforços para garanti-la. Segundo Dawkins (2007, p. 138-139), “a seleção natural favorece os genes que programam suas máquinas de sobrevivência para que elas façam o melhor uso possível do seu meio ambiente – o que inclui fazer o melhor uso possível de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como de espécies diferentes”.

 

2.2.1. O gene letal

 

Já aludi ao fato de que, num mundo cuja ordem é de inteira responsabilidade do acaso, é possível que alguns organismos, ou melhor, milhares deles abriguem um “gene letal”. O gene é um replicador quase imortal, já que subsiste mesmo depois da morte de seu possuidor. Genes são replicadores que existem sob a forma de muitas cópias de si mesmo. É consabido que os seres vivos têm na morte seu destino inexorável. Todavia, para que a morte tenha um impacto seletivo sobre o mundo, necessário é que cada ser exista num grande número de cópias e que algumas formas de vida sejam potencialmente capazes de sobreviver como cópias, ao longo de um período significativo de tempo evolutivo. Um dos aspectos trágicos da vida é que podemos ser geneticamente pré-dispostos a desenvolver uma doença fatal. Além de podermos possuir, em nossa estrutura genética, um gene letal, podemos também nascer com um gene semiletal, que “provoca um efeito debilitante que aumenta a probabilidade de o seu possuidor morrer por outras causas”. (Dawkins, op. cit., p. 97). Genes letais tendem a ser removidos do pool de genes, ou seja, do conjunto de alelos (genes rivais) que podem ser encontrados no material genético de indivíduos de uma determinada espécie ou população. Cabe aqui observar, in passant, que, para Dawkins, a seleção natural opera no nível dos genes, de modo que a evolução se define, para ele, como processo pelo qual alguns genes se tornam mais numerosos; e outros, menos numerosos no pool de genes.  Um gene letal cujos efeitos sejam tardios pode lograr êxito no pool gênico, desde que tais efeitos não se manifestem antes que o corpo tenha a oportunidade de deixar descendentes. Do que foi exposto até aqui, segue-se que admitir a crueldade da realidade, ou seja, encarar a realidade em toda a sua crueza, sem distorcê-la, sem mascará-la com ilusões metafísicas, é recusar-se a ver no aparecimento de um câncer no corpo da vovó um sinal da insondável vontade de Deus. Aquiescer à crueldade do real supõe a aceitação do fato de que um gene que provoca o desenvolvimento de um câncer num corpo com idade avançada poderia ser transmitido a inúmeros descendentes, porquanto os indivíduos que o possuíssem se reproduziriam antes de vir a desenvolver a doença. Por outro lado, aquiescer à crueldade do real significa aceitar o fato de que um gene que levasse ao desenvolvimento de um câncer num corpo jovem não seria transmitido a muitos descendentes (o que não é o mesmo que dizer que não seria transmitido!), e se o câncer acometesse o corpo de uma criança, esse gene potencialmente letal não seria herdado por nenhum descendente.  Segundo Dawkins, o aspecto que deve ser considerado nessa teoria é que “(...) a seleção irá favorecer os genes que tiverem o efeito de adiar a ação de outros genes que sejam letais e também aqueles que tiverem o efeito de precipitar a ação dos genes bons”. (op.cit., p. 98).

 

2.2.2 O terremoto em Antioquia

 

A crueldade do real exige-nos também a admissão de que o planeta que nos abriga pode ser muito hostil e terrível para com seus habitantes. As falhas entre as placas tectônicas podem levá-las a se chocarem, causando, muitas vezes, bastante destruição. O terremoto que destruiu Antioquia em 526 AEC matou 250.000 pessoas, o que corresponde exatamente à metade da população da cidade. Antioquia era uma próspera metrópole cultural e religiosa do mundo antigo, compondo com Alexandria, no Egito, e com Roma, na Itália, o triunvirato do início da Era Cristã.

O Apóstolo Paulo chegou à Síria por volta de 38 EC, e o cristianismo triunfou em Antioquia. Entretanto, nem o triunfo do cristianismo, instituído pela crença na figura salvífica de Cristo, conseguiu desencorajar o terremoto, que atingiu 7 graus de magnitude por volta das seis horas da manhã. Quase todas as construções em Antioquia desmoronaram com o tremor, esmagando aproximadamente 250 mil pessoas. Incêndios começaram quase imediatamente, queimando ainda vivos aqueles que se encontravam presos aos escombros. Somente a Grande Igreja não ruiu, o que animou ainda mais nos habitantes a credulidade tão comum naquela época quanto em nossa. Muitos sobreviventes viram nisso um sinal de que Deus havia triunfado sobre o poder devastador do terremoto. Mas o caráter cruel e inapelável do real costuma ser também tragicômico e ironicamente mordaz. O consolo e o acalento duraram apenas dois dias, após os quais a Grande Igreja viria a arder em chamas e desmoronar completamente. A crueldade do real ainda guardava mais um de seus eflúvios. As grandes catástrofes carreiam também as ameaças de aproveitadores. Antioquia foi invadida por um bando de ladrões e saqueadores que vasculhavam as ruínas, reviravam entulho, ávidos de encontrar qualquer coisa de valor, sem qualquer respeito pelos moribundos e feridos.

Os sobreviventes decidiram reconstruir a cidade, determinados a não permitir que as consequências catastróficas do terremoto os fizessem desanimar do árduo trabalho; afinal, era preciso não esquecer a cidadã tão adorada em que viviam. Por dois anos, eles trabalharam incansavelmente, reconstruindo casas, removendo o entulho e planejando novas igrejas. Mas...

 

O destino (bem como uma falha geológica sob a superfície da Síria) (...) tinha outros planos para a população de Antioquia. Dois anos após o tremor devastador de 526, outro terremoto a atingiu; não foi tão severo quanto o anterior, mas, mesmo assim, devastou todas as construções e custou a vida de cinco mil pessoas. (Spignesi, 2005, p. 101).

 

Antioquia deixava a história para se tornar apenas mais um capítulo da história. A forma como essa cidade se despediu da história é apenas um dos milhares de milhões de exemplos de quão insignificante e frágil é a obra do animal humano em face do poder implacável da crueldade do real. É também um exemplo apenas dentre centenas que poderíamos colher para demonstrar a inapelável indiferença do Universo para com esses macacos nus com mania de grandeza, que foram educados para se tornarem ufanos de seus feitos tanto quanto ludibriados pelas ficções de seu imaginário coletivamente constituído.

Ao meditar sobre a crueldade do real, somos confrontados com uma série de questões que reclamam um exame, que exigem de nós reflexão. É o que tentarei fazer na segunda parte deste texto. São estas as questões que me parece pertinente enfrentar: Por que o animal humano se contenta em arrastar uma vida trivial? Por que vive costumeiramente no autoengano? Por que recusam costumeiramente o caráter cruel do real? Esforçar-me-ei por examinar, com algum vagar, estas questões doravante.

 

 

                                                             PARTE 2

 

3. A crueldade suportável

 

Em seu artigo A Suportável Realidade (2001), Edgar Morin já, de início, aquiesce à visão de que a crueldade do real é evidente. Sua abordagem do problema, no entanto, é circunscrito ao modo como esse caráter cruel condiciona a existência humana. A crueldade do real torna a condição humana bastante precária, faz dela um problema insolúvel e pesado para este frágil animal desassossegado e fadado à angústia.

 

 

A realidade é cruel para o ser humano. Lançado sobre a terra, ignorante de seu destino, submetido à morte, não podendo escapar aos lutos, penas, servidões, maldades propriamente humanas, ela é tanto mais cruel quanto o ser humano seja plenamente consciente e plenamente sensível. Sua extrema emotividade, excitabilidade, irritabilidade o tornam vulnerável a todos os golpes do destino. Sua aptidão ao sofrimento é comparável à sua aptidão ao prazer, sua aptidão à tristeza é inseparável de sua aptidão à alegria, e toda perda de felicidade determina sua infelicidade. Ele vive cercado de ameaças naturais e humanas. Os deuses, demônios, monstros que personificam seus medos lhe inspiram um terror permanente. Ele é o joguete das guerras, das opressões, e é, quase continuamente e quase por todas as partes, escravizado desde os tempos históricos. Ele é o que de maneira nenhuma os animais são – malvado, destruidor e sua crueldade faz parte da crueldade do mundo. Um número incrível de sofrimentos nasce da incompreensão e do mal-entendido na relação com o outro e sobretudo próximo” (p. 23-24).

 

 

No trecho supracitado, à descrição que Morin nos oferece da condição humana se deve acrescentar, como ele mesmo o faz, a consciência que tem o homem da morte. A consciência da morte dá ao homem saber seu destino fatal desde a infância e ela expressa-se como “consciência da destruição absoluta de seu único e precioso tesouro, seu Eu, e não menos terrível é a morte dos seres queridos que fazem parte de seu ser”. (ibid.). Tudo torna a experiência do real extremamente dolorosa e assustadora para o homem. Viver para ele é, assim, estar entregue à crueldade do mundo, é estar condenado a lidar com os aspectos cruéis e horríveis do real. “Lembremos T.S. Eliot – escreve Morin – a humanidade não pode suportar muito a realidade”. (p. 24). De fato, todos nós não suportamos nos defrontar, por longo tempo, com a crueldade do real. Temos necessidade de assumir certos compromissos, certos pactos. Estes compromissos são estabelecidos pela criação do mito, que nos permite encontrar algum conforto e consolação sobrenatural; ou ainda pela mobilização do imaginário metafísico-religioso, para nos proteger e nutrir a alma de esperança. E mesmo os céticos não fogem ao estabelecimento de compromissos, quando dispõem da estética e da poesia, por exemplo, para viver plenamente a realidade, conseguindo imaginariamente uma vitória sobre o seu horror.

Morin elenca alguns compromissos ou pactos com os quais os seres humanos buscam tornar suportável a crueldade do real. Detenho-me aqui a considerá-los. Em primeiro lugar, temos um compromisso neurótico “no sentido de que uma neurose é um compromisso, entre o espírito e o real, que suscita condutas e ritos atenuantes e exorcizantes da crueldade do real”. (ibid.). Assim é que o ser humano busca meios de compensação da crueldade e das decepções do real, entregando-se ao amor, às fantasias e aos mitos. O amor é, sem dúvida, “uma incrível força da vida que transfigura a vida”. (p. 26). Só o amor pode nos fazer amar a vida e aceitar o destino. Como escreve Morin, “o amor realiza plenamente nosso ser biológico e nosso ser psíquico. O amor suscita uma quase divinização exaltada do ser de carne, sangue e alma” (ibid.).  As fantasias, por seu turno, nos aliviam do peso e da coação do real, enquanto o mito nos fortalece mascarando a incompreensibilidade do nosso destino e “preenchendo o vazio da morte”. Como diz Morin, “Os mitos religiosos da salvação abrandam nosso destino real, nossa natureza mortal, nossa solidão, nossa perdição”. (ibid.).

É verdade que, em certo sentido, as Religiões, a Mitologia e a Magia estorvaram enormemente a história humana e influenciaram negativamente no seu destino. A elas devemos uma parte dos incontáveis excessos causados pelo homo demens. Elas sufocaram, com frequência, as possibilidade de realização do pensamento autônomo. Mas também se apresentaram como fonte de grande segurança e consolação, aliviando um pouco a angústia existencial do ser humano e matizando suas tragédias. Como diz Morin, “se o neurótico é patológico, então esse patológico é normal”. (p. 25).

Outro pacto feito pelo homem para suportar a crueldade do real é o do tipo surrealista. O pacto surrealista se expressa no jogo e na poesia. Acerca do papel do jogo na tentativa de o homem tornar suportável a realidade, Morin nos diz o seguinte:

 

O jogo é um engajamento psíquico, uma inserção física, uma atividade prática que nos coloca frente a frente com o mundo real para o desafiar e o dominar mas de maneira não perigosa nem maligna. O jogo nos lança no conflito e na batalha, mas fora das consequências cruéis do verdadeiro conflito e da verdadeira batalha. O jogador permanece na consciência do jogo, no seio do qual, sem o jogo, seria ofensa, crueldade e tragédia. (ibid. , p. 25).

 

 

Mas é a poesia, segundo Morin, que nos faz viver conciliados profundamente com o real. Ela é que realiza um pacto sublime com o real. Porque é ela que torna possível a transfiguração do real, sem, no entanto, negá-lo. Segundo o autor, “ a poesia vivida se situa no surreal (...), ela se exalta em êxtase, ato absoluto de comunhão, de perda e de realização definitiva do real, de perda e de aperfeiçoamento de si”. (p. 26). Essa experiência é verdadeira e me é familiar. Ainda segundo Morin, o pacto que a poesia permite estabelecer com o real “adquire um caráter mágico notadamente no amor” (ibid.).

Outra forma comum pela qual todos nós buscamos suportar a crueldade do real é a imersão na futilidade da vida. Aí encontramos aquelas atividades cotidianas que nos distraem, que nos aliviam da pressão das incumbências e nos oferecem prazeres que formam a costura entre nossa psique e a vida. Imersos na banalidade do cotidiano, buscamos compensar o caráter cruel do real entregando-nos a “mil pequenos prazeres da vida, reuniões de amigos e festas, sorrisos e risos de convivência, mil pequenos prazeres gastronômicos e noológicos” (ibid.). É quando nos abandonamos a essa imersão que ousamos dizer que “a vida vale a pena ser vivida”. E é dessa imersão, da qual tanto necessitamos e da qual muitos de nós estamos forçosamente privados por força da pandemia, que se nutre a nossa vida comum para que ela possa se robustecer. O animal humano precisa dessa imersão na banalidade da vida para não enlouquecer, para não se enfraquecer, adoecer de angústia e tristeza, e morrer de tristeza e solidão.

A estética, por sua vez, permite-nos, segundo Morin, encarar aquilo que nos aterroriza e nos horroriza: “permite contemplar a fatalidade, a morte atroz, a morte injusta, a morte odiosa, a morte-catástrofe, a morte de si mesmo, a morte-perda dos seres queridos” (ibid.). A estética nos possibilita suportar o insuportável: “ela nos purifica provisoriamente, permitindo-nos exorcizar o mal, o sofrimento e a morte (...)”. Morin nos chama atenção para o laço entre estética e compaixão. Ele crê que a experiência estética nos torna melhores, mais sensíveis e compreensíveis. Através dela, o nosso sentimento de compaixão é desperto e cultivado. Assim, “a estética opera uma colaboração simultânea com o pensamento mitológico e com o pensamento racional, ultrapassando um e outro no seu surrealismo”. (p. 27). Segundo o autor, a emoção estética não oblitera a consciência racional, que continua desperta, mesmo enquanto o espírito está mergulhado na emoção, na participação no imaginário e no jogo. Na estética, confluem um para o outro o pensamento mítico e o racional, o real e o imaginário. A estética cria a beleza, isto é, a alegria. O que é estético ou foi estetizado é fonte para nós de prazer, bem-estar, felicidade, mas, ao mesmo tempo, de tristeza, de pesar, de comiseração. A estética desperta nossa consciência, anima-a. Como diz Morin, “não apenas ela nos oferece a possibilidade de ver as belezas da existência, não apenas cria beleza, isto é alegria (uma coisa bela é uma alegria para sempre), ela nos ajuda a suportar o peso insuportável da realidade e afronta a crueldade do mundo”. (p. 27).

Morin também observa que os homens se dedicam à manutenção de sua existência pela cooperação realista, ou seja, “pela cooperação entre a mentalidade racional-lógico-empírica-técnica, sob o domínio das necessidades objetivas, e a mentalidade analógico-simbólico-mitológico-mágica, sob o domínio das necessidades subjetivas” (ibid.). Em todas as sociedades, encontramos a cooperação entre orações, cerimônias, ritos, crenças sobrenaturais e superstições e as práticas da técnica e da economia. Destarte, “duas mentalidades se entreacompanham e se entreconfrontam nas sociedades arcaicas”. (ibid.). Consoante Morin, ritos e mitos, nas sociedades arcaicas, embora figurem em todos os momentos da vida, nunca impediram as operações técnicas, práticas e econômicas.

 

No interior das esferas religiosas, constituem-se ciências como a astronomia, esta não estando separada da astrologia. A disjunção se fará apenas no século XVII na civilização ocidental. No interior das grandes teologias, existiu sempre um misto de pensamento mitológico e pensamento racional. Assim, o tomismo medieval incorporou em seu seio o racionalismo aristotélico. (ibid.).

 

 

Decerto, é forçoso reconhecer que razão e mito cooperam. Há entre eles uma relação paradoxal de simbiose. Morin sustenta que, embora a razão continue a efetuar elucidações, ela propaga o mito quando se pretende onisciente. O mito, por seu turno, se submete ao domínio da razão. Morin acredita haver uma cooperação invisível e profunda entre mito e racionalidade para permitir ao homem viver com coragem e confiança.

Faz-se mister não nos esquivarmos do reconhecimento de que, em nossas sociedades cada vez mais científicas, mais técnicas, mais materialistas, onde triunfou o homo sapiens faber, economicus, ainda persiste, com exuberância e força, a religiosidade, as práticas comunitárias de fé, e o livro mestre continua sendo a Bíblia. E, a despeito do avanço da secularização, creio que, sobretudo aqui no Brasil, a religião, particularmente o cristianismo evangélico, continuará, por um longo tempo, sendo um fator decisivo de coesão social, de uniformização ideológica e de influência política. Fora ou dentro do Brasil, parece lícito dizer que “na vida cotidiana de cada um, coexistem, sucedem-se, misturam-se crenças, superstições, racionalidade, tecnicidade, ilusões, magias”.(p. 28). Morin observa que a laicização acarretou o desenvolvimento de uma religião da nação e de uma religião do amor, “que acompanha o desenvolvimento da individualidade moderna”. (ibid.).

Os seres humanos também se servem de aspirações políticas, investem seu vigor e paixões na promoção de doutrinas filosófico-políticas e ideológicas e se dedicam a realizar na práxis aquilo que elas prometem. Assim, o comunismo do século XX foi, para Morin, no que estou de acordo, “uma religião da salvação moderna”. (p. 29). E acrescenta: “tudo isso trouxe e traz confiança, esperança e, às vezes, segurança, alegrias e felicidades que conseguem mascarar e, às vezes, afastar parcialmente a crueldade da realidade”. (ibid.).

Depreendamos de tudo o que se expôs nesta parte final deste texto, que ora chega a termo, as conclusões sobre as quais convém ao leitor meditar:

 

1ª) Em face da crueldade do real, o homem pode suportar sua angústia sublimando-a na paixão do jogo, nas inúmeras participações no amor, nos mitos, nos ritos, nas religiões; pode ainda transfigurá-la na poesia, nos romances, filmes, mas jamais poderá se curar dela verdadeiramente;


2ª) É forçoso reconhecer, com Morin, que “não podemos escapar à dialógica sapiens/demens a partir da qual se tece a condição humana”. (p. 30). Logo, o destino humano se sustenta e se nutre no jogo dialógico – e poderíamos dizer “agonístico” – entre racionalidade/afetividade, prosa/poesia;

 

3ª) Magia e Ciência sempre cooperam para influenciar e tornar suportável a condição humana, porque, afinal, elas se expressam na forma de duas vontades de controle sobre a realidade. O homem sempre se move pela vontade contínua de controlar a realidade para torná-la suportável. Isso é assim hoje, foi assim no passado e será assim no futuro. Não é escusável lembrar que a Ciência se desenvolveu na modernidade europeia como um meio para nos tornar “senhores e possuidores da natureza”. Nos séculos XIX e XX, ela se aliou à técnica e adquiriu poderes espantosos!

 

Espero que o leitor seja complacente com os percursos analíticos que escolhi traçar. Naturalmente, “a crueldade do real” é um fenômeno inesgotável e multifacetado. Os “rostos da crueldade” não se exaurem naqueles que descrevi, evidentemente. Creio, porém, que o objetivo basilar e tácito desta exposição foi contemplado e atingido: fazer a vida do leitor coabitar com a vida da Lucidez.

 

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[1] Refiro-me aos pactos de que nos fala Morin, em seu artigo A Suportável Realidade (2001), que será objeto de análise neste texto.

[2] O termo Australopitecíneo, proveniente de uma classificação antiga, refere-se a qualquer espécie pertencente ao gênero Australopithecus e Parathropus. Estes últimos compreendem um gênero da família dos hominídeos, da qual fazem parte os humanos.