quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

"O ser não é ou nada é" (Górgias)

 

         
                                   Trabalho produzido no curso de filosofia da UERJ em 2014


                                        O Relativismo Sofista

                  Um Estudo sobre a Relação entre Discurso[1] e Verdade

 

 

Bruno de Andrade Rodrigues

 

 

Intróito

 

 

O desenvolvimento deste estudo se esteia sobre a hipótese interpretativa do movimento sofista, segundo a qual ele abriu o caminho para uma tradição crítica pós-moderna da relação entre verdade e discurso. No curso dessa tradição, alinham-se, em termos de importância, pensadores como Nietzsche, Wittgenstein, Foucault e Davidson[2]. Essa tradição crítica se desenvolveu em oposição à tradição grega, a qual concebia a verdade como alétheia e da qual Sócrates, Platão e Aristóteles são reconhecidos expoentes. Essa tradição grega, seguindo os passos de Parmênides, supunha uma relação especular entre a linguagem e o ser, de modo que o logos (discurso), na medida em que torna possível o acesso ao ser, torna também manifesta a verdade. Assim, pelo logos se diz o ser, e dizendo-se o ser, se põe a descoberto a verdade. À luz dessa tradição, a verdade se identifica com o ser. O verdadeiro é o ser; o falso é o aparecer.

Cumpre, pois, dar a conhecer o itinerário de nossas reflexões. Esse estudo procurará cotejar os pensamentos dos dois maiores representantes da sofística, Protágoras de Abdera (485-410 a.C.) e Górgias de Leotini (487-380 a.C.), com vistas a demonstrar como eles sustentaram a tese do relativismo, a qual será enfocada no quadro de referência em que a relação entre verdade e discurso fundada numa transparência é abalada. Na primeira parte, daremos a conhecer, em linhas gerais, o percurso da crítica à relação entre verdade e discurso que, na pós-modernidade, atinge seu apogeu, a partir de Nietzsche, passando por Wittgenstein, Foucault e Davidson. Seguimos Lyotard (2008) que caracteriza a pós-modernidade como um período em que se destroem as grandes narrativas totalizantes, calcadas sobre a crença no progresso e nos ideais iluministas. Também identificamos Nietzsche como aquele que inaugura esse contexto sócio-histórico marcado por uma profunda crítica aos valores supremos (“ídolos”, na linguagem nietzschiana) da cultura ocidental.

Na segunda parte, intentamos mostrar que a sofística se desenvolveu em franca oposição à concepção de verdade como alétheia, a qual será recuperada numa exposição sumária do pensamento de Parmênides, cujas teses fundadoras Górgias se encarregará de subverter. Na terceira parte, ocupar-nos-emos do pensamento de Protágoras, momento em que nos debruçaremos sobre sua doutrina do homem-medida. Nossa preocupação repousará em demonstrar como essa doutrina encaminha um questionamento da relação entre verdade e discurso. Na quarta parte, traremos à baila o pensamento de Górgias e sua audaciosa tentativa de destruição dos alicerces do pensamento parmenidiano. Novamente, nosso interesse consistirá em mostrar de que modo Górgias desfere sobre a crença numa relação de transparência entre linguagem e discurso um duro golpe. Finalmente, na quinta parte, recuperaremos a questão da relação entre verdade e discurso, recoberta pela tese do relativismo na sofística, cotejando a contribuição de Protágoras com a de Górgias.

 

 

                                                              I

        A crítica pós-moderna da relação entre verdade e discurso

 

 

Parece-nos lícito dizer que a compreensão da crítica avassaladora que Nietzsche lançará ao ideal de verdade de que nós, (pós)modernos, somos herdeiros, pelo menos desde que Sócrates e seu ideal de racionalidade entraram em cena no mundo grego clássico, depende do conhecimento prévio de como os antigos pensavam a verdade. É na esteira dessa racionalidade clássica que Nietzsche desenvolverá sua filosofia com um martelo destrutivo. Não obstante, destinamos o esclarecimento da concepção grega de verdade para a próxima seção, visto que acreditamos ter-se erigido o movimento sofista como uma tentativa de contestá-la. Por isso, preferimos revisitar essa concepção quando introduziremos a sofística como movimento que se concentrou no nómos ( grosso modo, a ordem humana) em detrimento da phýsis (ordem natural).

Aqui não é o lugar para apresentar em pormenores a crítica nietzschiana da verdade. Por conseguinte, cingir-nos-emos a apresentar essa crítica de modo muito esquemático. A crítica da verdade levada a efeito por Nietzsche supõe a concepção de linguagem como metáfora. Assim, dirá Nietzsche, a linguagem é uma metáfora para as coisas e ela não espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento, acredita ser capaz de atingir a verdade através da linguagem. A verdade é fruto desse esquecimento.  Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque serve à sobrevivência.

Convém esclarecer a que esquecimento se refere Nietzsche. Trata-se do esquecimento segundo o qual são os homens que produzem as metáforas (palavras). Iludidos, os homens acreditam haver uma relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se uma mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de conduta dentro das comunidades. A verdade em si, portanto, é inacessível ao intelecto humano, justamente porque ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base de suas abstrações (conceitos).

Nietzsche reconhece nos homens um desejo de verdade; ele admite que os homens precisam buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a “vontade de verdade” mascara uma face moral (e Nietzsche gostava de pôr a nu justamente o que está encoberto) que se define pela oposição entre verdade e aparência. Essa oposição leva a que se afirme uma vida além-mundo e se negue a vida mesma vivida neste mundo. A verdade é tomada, assim, como um valor superior e a ciência se torna a expressão mais alta dessa busca pela verdade, tomada como absoluta e à espera para ser descoberta.

A ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona através de leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas, dirá Nietzsche, o mundo é um caos, a lógica não se acha no mundo, mas nos homens. São eles que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre os acontecimentos do mundo. A ciência está fundada na crença na vontade de verdade, de tal modo que a verdade ganha um valor superior, o que levou Nietzsche a reconhecer que a ciência não conseguiu liquidar Deus. A ciência tem seu Deus e ele se expressa na busca, a todo custo, pela verdade. A ciência professa uma fé no valor metafísico da verdade. A verdade é divina no domínio de referência científico. A ciência, ou melhor, os cientistas (note o processo metonímico aí: usar “ciência” para designar ‘aqueles que fazem ciência’) tendem, sem se darem conta disto, a endeusar a verdade, a tratá-la como algo transcendente (no sentido comum), embora acessível pelo método científico.

Em A vontade de Potência (2011), lemos o seguinte:

 

A vontade de verdade é uma crença – crença na superioridade da verdade – e é nela que a ciência se funda. Não há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor do que a aparência, a ilusão (pp. 78-79).

 

 

 

Nietzsche inverte os valores tradicionais, denunciando a verdade como mentira e reivindicando para a aparência o estatuto de única realidade. No entanto, sua crítica, como seja radical, visa à rejeição de todos os valores, ou seja, à superação da oposição metafísica dos valores. Só assim ele pôde levar a efeito seu intento, qual seja, “a transvaloração de todos os valores”.

O primeiro Wittgenstein tanto quanto Davidson contestaram o realismo metafísico, segundo o qual o mundo consiste na totalidade fixa de objetos independentes da mente. Esse realismo reza que existe uma descrição verdadeira e completa da maneira como o mundo é, e que a verdade supõe uma espécie de correspondência entre a linguagem e a realidade. Wittgenstein, definindo o mundo como “a totalidade dos fatos, não das coisas”, argumentou que as proposições retratam o mundo. Para se chegar ao mundo real, o único meio é a linguagem. A questão da verdade acaba por ser uma questão de linguagem. O mundo objetivo, embora não seja negado, nessa perspectiva, é um mundo organizado e estruturado pela linguagem. Com efeito, o homem só pode perceber e distinguir os objetos segundo as formas como eles são categorizados pela linguagem. A gramática é que torna possível o sentido e a unidade das sentenças.

Parece-nos, todavia, que, nessa primeira fase do pensamento de Wittgenstein, ainda se preserva uma concepção da relação entre linguagem e mundo calcada sobre a crença de que a linguagem fornece uma espécie de fotografia do mundo. A linguagem, assim, permitiria o acesso à estrutura do mundo. As proposições são figurações da realidade. A determinação da verdade depende da concordância da figuração com a realidade da qual a proposição é uma figuração. O pensamento de Wittgenstein sofre, no entanto, uma mudança radical numa segunda fase, quando passa a encarar a linguagem de um ponto de vista pragmático. A questão da verdade acompanha, necessariamente, essa mudança, de sorte que a verdade passa a ser encarada como dependente de um acordo (linguístico) no interior de uma forma de vida (ou, em linguagem contemporânea, de uma comunidade de fala).

É a contribuição de Davidson que, no entanto, merecerá algumas considerações mais na busca por repensar a relação entre verdade e discurso. Para Davidson, a intersubjetividade é fundamento da objetividade, donde se segue que o conhecimento é produto de uma construção intersubjetiva. Verdade e conhecimento, portanto, são construções discursivas. Davidson reconhece que não se pode dizer que tudo o que acreditamos é verdadeiro, visto que podemos ter crenças falsas. Não obstante, para uma crença ser verdadeira, deve ela ser coerente com um corpo geral de crenças. Essa coerência é uma relação intersubjetiva de concordância sobre um dado do mundo. A verdade não independe de nós, mas o mundo sim. Segundo Davidson, verdades são produções discursivas elaboradas na relação intersubjetiva tendo como ponto de intersecção o mundo empírico e mentes organizadas de tal modo, que possam agir intersubjetivamente com base em princípios e regularidades que operam de modo similar.

Por seu turno, Foucault, grosso modo, mostrará que a determinação da verdade depende de um jogo de regras institucionais, da ordem do discurso que condiciona um domínio de saberes, e não da ordem das coisas ou das palavras. Também, para Foucault, a verdade está no discurso, ele mesmo dotado de uma materialidade histórica, e não no homem. O próprio homem emerge na historicidade do discurso.

Foucault também articulou a verdade com o poder. Para ele, o poder é produtor do saber, do conhecimento; e o saber produz poder, ou, o que ele chamou de efeitos do poder. Destarte, poder e saber estão necessariamente articulados na (pós-) modernidade. O poder produz o real; produz os domínios de objetos do saber e os rituais de verdade.

A verdade, o conhecimento e a ciência não transcendem, portanto, o poder, mas estão intimamente articulados com ele. A busca da verdade ou o discurso da verdade, segundo Foucault, longe de resultar de uma pesquisa livre e desinteressada, se realiza sempre através de um exercício de poder: a busca pela verdade é sempre interessada.

Ainda que uma investigação mais acurada se imponha como indispensável para a validação da hipótese com a qual encetamos esta exposição, o que não estamos sugerindo é, de fato, que os pensadores referidos aqui tenham reproduzido, de ponta a ponta, a crítica sofista da questão da relação entre a verdade e o discurso. O que, na verdade, sugerimos é a possibilidade de rastrear a influência sofista no desenvolvimento da crítica à verdade e à relação desta com o discurso levada a efeito por esses pensadores, no contexto da pós-modernidade. O núcleo da crítica sofista, expresso na concepção da verdade como algo ou impossível, ou relativo, parece ter dado ensejo a uma revisão crítica do conceito de verdade, que busca situá-la, quer em relação à história (Foucault), quer em relação ao discurso como fenômeno intersubjetivo (Wittgenstein e Davidson), quer ainda – se bem que de um modo mais radical – em relação à vida ou à afirmação de todos os seus instintos (Nietzsche).

 

 

                                                            II

                  A verdade como alétheia e a sofística

 

 

Esta seção é devotada à apresentação do conceito de verdade como alétheia e à recuperação sumária do pensamento de Parmênides. Demais, faremos uma introdução da sofística visando a fixar seu lugar na história do desenvolvimento do pensamento filosófico.

 

II. a) A verdade como alétheia

 

Comecemos, pois, por notar que, em grego, verdade se diz alétheia, palavra que se constitui da combinação do prefixo “-a”, que expressa negação (cf. amoral), com a forma léthe, que significa ‘esquecimento’.  Alétheia  significa, portanto, o ‘não-esquecido’. Platão falava da verdade como o que é lembrado ou o que não é esquecido. Por extensão semântica, alétheia passou a significar também o ‘não-escondido’, ‘não-dissimulado’.

A verdade é, assim, o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito. Os antigos gregos concebem-na como a manifestação do que é realmente. Portanto, a verdade se opõe à falsidade, a qual é o encoberto, o ocultado, o escondido. A verdade é aquilo que se mostra plenamente para a razão. A verdade é o que é evidente. A palavra evidência quer dizer justamente o desocultamento total de algo para a visão que, portanto, o apreende completamente.

A concepção grega de verdade supõe que a realidade se manifeste, se desvele (‘remova o véu que a encobria’) à visão intelectual dos seres humanos. A verdade, assim, é uma propriedade das próprias coisas, na medida em que elas manifestam o seu próprio ser. Para os antigos gregos, conhecer é ver e dizer a verdade que se acha na realidade e que, por isso, depende de que a realidade se manifeste. Por isso, entre os gregos, o ser é o verdadeiro (estar de posse da verdade é contemplar a manifestação do ser (o que é realmente)). O falso é o parecer, ou seja, algo que apresenta ser, mas que não é. A verdade é alcançada quando desvelamos a essência das coisas. Para os antigos gregos, o verdadeiro é o ser, e o falso é o aparecer. Poder-se-ia dizer que a verdade como alétheia é uma verdade manifestativa, pois que ela depende de que a realidade se manifeste em sua essência.

 

II. b) O pensamento do Ser

 

Recupere-se, doravante, o que nos ensina Parmênides, através da fala da deusa, no poema Sobre a natureza. Nesse poema, o filósofo apresenta-se como o Escolhido, como aquele que transmite a verdade e toda a Verdade pela Revelação que dela faz a sua Musa. Entretanto, no poema, a fala da Deusa não se expressa numa linguagem sagrada ou de mistérios. Ao contrário, é a razão quem fala. O poema apresenta uma estrutura argumentativa inteligível. O poema é filosofia.

Após um preâmbulo, o poema apresenta duas partes distinguíveis: a primeira parte recobre o que ficou conhecido como Via da Verdade (alétheia); a segunda parte recobre a Via da opinião. Muitos comentadores cuidam que o poema foi escrito tendo em seu horizonte a rejeição ao pitagorismo, que sustentava a dualidade par-ímpar como origem do mundo e a Heráclito, cuja doutrina rezava que tudo estava em fluxo permanente e que havia uma identidade entre o uno e o múltiplo.

A certa altura, no poema, diz-nos Parmênides: “É necessário pensar e dizer isto: que o ente é; pois é ser; que o nada não é, pois (é) não ser”. Eis a premissa única com base na qual se constrói a argumentação de Parmênides: “o ser é e o não-ser não é”.  Todo o ensinamento sobre o ser se ancora sobre essa premissa.

Parmênides também se tornaria famoso por afirmar a identidade entre o ser e o pensar, na proposição “é o mesmo pensar e ser”. Com ela, declara Parmênides: a) que o que pode ser dito e pensado deve ser (existir); b) que o ser é o que pode ser pensado e dito. Por outro lado, o nada, porque não é (não existe), não pode ser pensado nem dito e, inversamente, que o que não pode ser pensado nem dito não é (não existe).

Em síntese, as ideias de Parmênides podem ser reunidas segundo a sequência abaixo:

 

1) o ser é; o não-ser não é;

2) o ser pode ser pensado e dito;

3) o nada não pode ser pensado nem dito;

4) o pensar e o ser são o mesmo;

5) o nada, portanto, é não-ser e impensável;

6) dizer e ser são o mesmo;

7) portanto, o nada é não-ser e indizível.

 

Ora, a partir de Parmênides, de quem é devedora a tradição socrático-platônica, o pensamento só atinge a verdade quando, superando o domínio das aparências, da diversidade, penetra a realidade una, indivisível, contínua do ser. O ser é a única realidade verdadeira e fundamental, que subjaz a toda diversidade. O ser é indivisível, uno, idêntico a si mesmo e contíguo a si mesmo, imutável, fixo e eterno.

O Caminho da Verdade se assenta no pressuposto de que apenas o ser é real e cognoscível. Esse caminho conduz à verdade na medida em que por ele o pensamento pode conhecer a realidade do ser. O caminho da verdade conduz ao ser, ao uno, ao indivisível, à unidade subjacente à diversidade. Por outro lado, o Caminho da Opinião não conduz à verdade, porquanto não leva o pensamento a penetrar a realidade una do ser. Por esse caminho, o pensamento se enreda nas formas diversas com que as coisas se nos apresentam na experiência sensível. O Caminho da Opinião conduz o pensamento à diversidade, ao mundo das aparências, à mutabilidade das formas com que as coisas se dão na experiência sensível. As opiniões não atingem o ser, não conduzem à verdade, mas apoiam-se nas aparências das coisas.

O logos de Parmênides permite o acesso à unidade do ser e, portanto, à verdade. Só há pensamento do ser. Não é possível pensar o não-ser, já que o não-ser não é. A condição para que haja atividade de pensamento é o próprio ser. No pensamento, o ser se torna presença e verdade.

O Caminho da Verdade – reforcemos – é o do pensamento, da razão; por outro lado, o Caminho da Opinião é constituído pelos hábitos, percepções, impressões sensoriais, que são ilusórias, imprecisas e mutáveis. O ser é o real em sentido abstrato e básico. O pensamento do ser opõe-se à experiência concreta, sensível e imediata que temos comumente das coisas. Parmênides, portanto, opera uma cisão entre o ser, que é a verdadeira realidade, e o não-ser, que não é. A mutabilidade e a diversidade estão excluídas do domínio do ser.

Cumpre, antes de por termo a esta subseção, patentear de que modo opera o pensamento puro na construção da argumentação parmenidiana, cuja tese repousa na identidade do ser consigo mesmo, ou da unidade da realidade do ser. Ser e real é o mesmo. Apenas o ser é real.

Demonstrará Parmênides que o ser é imóvel, ou seja, imutável. Se ele se movesse – argumenta -, se tornaria aquilo que não é. Ora, o que não é não pode ser, e o não-ser não existe, não pode ser pensado nem dito. Prossegue afirmando que o ser é eterno e indestrutível; logo não tem origem, não nasce, não perece, nem está no futuro. Se tivesse começado, o que havia antes dele? O não-ser, mas o não-ser não existe. Se o ser tivesse um término, também seria o não-ser que estaria depois dele, mas, novamente, o não-ser não existe, nem pode ser pensado e dito. O ser, nos diz ainda Parmênides, é indivisível ou contínuo; se ele fosse passível de ser dividido, o que seriam as partes? Não poderiam ser outros seres, já que o ser é uno; tampouco poderiam ser não-seres (nada), visto que o não-ser não existe; portanto, não pode ser pensado e dito. Finalmente, o ser é pleno, isto é, não encerra intervalos, fendas em seu interior. Se não fosse pleno, o que seriam seus intervalos? O vazio? Mas o vazio é o não-ser; o não-ser não existe, não pode ser pensado e dito.

Vale notar que a eternidade do ser e sua plenitude o tornam, respectivamente, presença em excesso, totalidade presente no agora e fechado em si mesmo, bastante a si mesmo, ou completo em si mesmo. Não há, pois, carências no ser; não há insuficiências no ser.

O pensamento de Parmênides exibe e articula dois domínios, que constituem, segundo os especialistas, uma verdadeira inovação. Ater-nos-emos ao domínio lógico, uma vez que de seu esclarecimento depende a compreensão da crítica levada a efeito por Górgias. Para alguns estudiosos, Parmênides teria sido o primeiro pensador a formular dois princípios lógicos fundamentais: o princípio da identidade – o ser é o ser – e o princípio da não-contradição, segundo o qual, se o ser é e o não-ser não é, então o ser é idêntico a si mesmo e é impossível que ele seja o seu contrário, ou seja, é impossível que o ser seja o não-ser. Assim também, sendo o nada o não-ser resulta daí que ele nunca pode ser pensado e dito. Assim, a afirmação do ser implica e requer a negação do não-ser.

 

 

II. c) Em cena, os sofistas

 

Debruçando-se sobre a phýsis, os antigos descobriram o contraste entre ela e nómos. Nómos pode ser entendido, grosso modo, como a ordem humana, onde, portanto, devemos situar o que é por convenção, por acordo, por decisão dos seres humanos. Nesse sentido, nómos se opõe a phýsis, que abriga o que é por natureza, que é independentemente da decisão ou vontade humanas. Os sofistas dirão que tudo é pelo nómos, isto é, por convenção.

No século V a.C., com a profunda dessacralização da sociedade grega, alguns filósofos começaram a refletir sobre a natureza do nómos. O contato com culturas diferentes já havia revelado a diversidade dos valores, das leis, dos costumes, das regras de conduta que regem as sociedades humanas. Os sofistas, na medida em que foram os fundadores da pedagogia democrática, defendiam a democracia contra a aristocracia, advogando que o costume e a lei não-escrita não provinham da natureza, mas do nómos, a saber, eram estabelecidas por convenção e, por conseguinte, eram relativos a cada sociedade.

Os sofistas estavam preocupados com o processo de humanização do homem. Eram versados no conhecimento da história e em medicina. Em face de um elenco de questões que punham em confronto phýsis e nómos, os sofistas elaboravam respostas que sublinhavam o domínio do nómos sobre a phýsis. Assim, por exemplo, à questão que consiste em determinar se os costumes e as crenças sobre o bem, o justo e o verdadeiro são phýsis ou nómos, eles respondiam que são nómos. A moral é convenção, asseguravam. Também os deuses existem pelo nómos, e não pela phýsis, já que, lembrando Xenófanes, insistiam que a religião é convenção.

É preciso, pois, sublinhar que os sofistas foram os primeiros filósofos a se ocuparem da ordem humana, a se preocuparem em refletir sobre o homem e sobre seu lugar no mundo. Eles perceberam que o nómos não era “natural”, mas sim produto da convenção humana. Os sofistas destituíram do nómos seu fundamento absoluto e divino. Destarte, passaram a fundá-lo no próprio arbítrio dos homens.

Os sofistas estavam interessados em educar os homens, de modo a prepará-los para assumir plenamente a sua condição de cidadãos. Ser um bom cidadão consistia não só em bem conduzir-se, mas também em ser capaz de bem administrar a cidade. O ensinamento sofístico destinava-se ao desenvolvimento da técnica de bem compor os discursos, de bem usar as palavras, de bem falar sobre todos os assuntos. Para tanto, eles, considerados mestres na retórica, desenvolveram uma tékne rhetoriké, ou arte de persuadir que apresentava os lógoi, isto é, as razões ou os argumentos, bem como as definições de uma coisa, sem qualquer preocupação com o que a coisa é em si mesma ou por natureza, mas tão-só com o modo como ela nos parece e nos aparece e tal como ela nos é útil. A retórica se apóia, pois, em nossas opiniões sobre as coisas e nos ensina a persuadir um auditório de que nossa opinião é a melhor. Por isso, não é a verdade que se tem em vista, mas a adesão dos espíritos ao melhor argumento. No regime democrático da Atenas do século V a.C., aquele que dominasse a palavra teria domínio sobre a assembleia e, dessa forma, teria o poder político.

Não estamos interessados em discorrer, com pormenores, sobre a imagem depreciativa dos sofistas que chegou até nós, especialmente pela pena de Platão. Sobre a relação entre Platão e os sofistas, vamo-nos limitar a apresentar os seguintes apontamentos, que, não pretendem, por isso, esgotar a problemática. Posteriormente, antes de encerrar esta seção, vamos trazer à cena a visão dos sofistas sobre a linguagem. É no desenvolvimento das seções em que nos debruçaremos sobre o pensamento de Protágoras e de Górgias que discutiremos os meandros do relativismo sofista, tendo em vista o problema da relação entre verdade e discurso.

Em primeiro lugar, sophistés deriva do verbo sophizesthai, no qual se topam as características da métis. Métis, por seu turno, designa uma capacidade, considerada como um dom natural ou inato, própria daquele que conhece seu ofício por natureza, e não por força da aprendizagem. Originalmente, sophós, o sábio, designava o perito no ofício, independentemente de que tipo fosse esse ofício. Gradativamente, sucedeu que sophistés foi se separando de sophós. Esta última palavra passou a designar o sábio contemplativo, o sábio que se dedica à theoria. Por seu turno, sophistés passou a designar o técnico, o sofista habilidoso e astuto. Esse breve mapeamento etimológico do termo sophistés visa a chamar a atenção para o fato de que a palavra sofista não recobria, originalmente, o sentido pejorativo que lhe emprestou Platão. Um sophistés era um professor e, por isso, essa palavra aplicava-se aos grandes poetas antigos, que foram os primeiros educadores da Grécia (Homero, Hesíodo, Teógnis, Píndaro). No século V a.C., essa palavra passou a ser usada também para fazer referência aos que escreviam em prosa e que começavam a ocupar a posição dos antigos poetas. Acontece que o substantivo sophistés se acompanhava sempre do adjetivo deinós, que significa formidável, maravilhoso, espantoso, terrível, amedrontador. Ligado a sophistés, esse adjetivo caracterizava alguém que causa espanto ou admiração, ou mesmo temor, devido a sua habilidade para elaborar estratagemas ou para argumentar. Portanto, aquele que detinha a habilidade espantosa de discorrer ou de argumentar era um deinós sophistés. O sofista, a esta altura, era o professor de uma arte ou uma técnica que exercia de modo admirável. Ele era um erudito, porque possuía todos os conhecimentos úteis sobre o objeto de seu ensinamento. Era também alguém que possuía a habilidade de escolher e apresentar seus temas de modo que causassem interesse nos outros. A palavra sofista ainda não tinha adquirido o sentido pejorativo com o qual ficou conhecida a partir da tradição socrático-platônica, mas já encerrava uma ambiguidade, na medida em que combinava, em sua intensão, as propriedades ‘causar admiração’ com  ‘causar temor’ ou ‘causar desconfiança’. Foi devido a essa ambiguidade, já que o sofista causa admiração e desconfiança ao mesmo tempo, que os que não simpatizavam com quem fosse assim chamado, passariam a chamar os sofistas de charlatães e mentirosos.

É certo que os sofistas foram reputados como grandes mestres, e a eles acorria uma grande quantidade de jovens bem-nascidos, dispostos a pagar muito dinheiro para aprender o que eles apregoavam ensinar. No regime democrático de Atenas, o exercício da função política dependia do bom uso da palavra. E os sofistas eram mestres da arte de bem falar (retórica).

Platão acreditava, no entanto, que o ensino sofístico era um perigo para a cidade. O que incomodava Platão era, especialmente, o fato de a retórica sofística ser uma técnica puramente formal de persuasão. O bom orador é aquele que sabe persuadir qualquer um de qualquer coisa.

O sofista vai negar, pois, que exista a verdade, ou a possibilidade de acesso a ela. Para um sofista, só existem opiniões: boas e más, melhores e piores, úteis ou prejudiciais, mas jamais falsas e verdadeiras. Uma das dificuldades que pôs a nu a retórica sofística foi a impossibilidade de adquirir conhecimento. Para persuadir qualquer um de qualquer coisa, necessário é ser capaz de falar bem sobre qualquer coisa. Num certo sentido, é preciso saber tudo. No entanto, saber tudo é impossível, argumenta Platão. Logo, o saber sofístico é uma aparência, a retórica é necessariamente uma arte de engodo, e o sofista é um grande charlatão.

Como rejeitassem a verdade, os sofistas estavam preocupados com a erística, ou disputa verbal. Ao contrário de Sócrates, que, com sua dialética, pretendia purificar o interlocutor de suas opiniões falsas, os sofistas se especializaram na técnica da disputa verbal ou erística. Eles não se interessavam em alcançar conhecimento algum. A intenção deles era ridicularizar o adversário, confundindo-o, refutando-o a qualquer preço, ganhando, assim, a disputa. Para tanto, eles se valiam de argumentos viciados, conhecidos, hoje, como sofismas.

Cumpre, agora, avançarmos, para o que retomo algumas ideias já expostas. Os sofistas estavam preocupados, sobretudo, com a formação do homem político. Não pretendiam ensinar nenhuma verdade, apenas ensinar a vencer em todas as discussões, a ter sempre razão em todas as questões. Tratava-se de ensinar a arte de persuadir e, assim, a arte de falar.

Uma vez que a linguagem visa à persuasão, seu uso não se destinava a atingir a verdade. O que se buscava era o assentimento dos ouvintes às teses apresentadas. Importava, segundo pensava Platão, a adesão, e não o ensinamento do justo e do injusto.

Para Aristóteles, a sofística era uma sabedoria aparente, sem realidade, e o sofista era um homem que se ambicionava ganho pecuniário de uma sabedoria aparente e não real.

Veremos que Protágoras propunha uma subjetividade arbitrária. O mais fraco dos dois argumentos poderia ser tornado mais forte, porquanto o fenômeno é enganador; é somente aparência. É porque o mundo fenomenológico afeta a percepção humana que ele existe. A denominação das coisas, segundo esse sofista, é subjetiva (arbitrária), razão pela qual não há verdade nem falsidade. A linguagem é um todo fechado em si. A posição de Protágoras será elucidada na próxima seção.

 

 

 

                                                               III

                            Protágoras: o homem-medida

 

Protágoras nasceu em Abedera, por volta de 481 a.C. Tal como sucedeu com Anaxágoras, foi acusado de ateísmo, já que afirmava que os deuses e a religião existiam por convenção. Antes de fazer incursão em sua doutrina, será necessário dilucidar os três domínios semânticos em que a palavra lógos é utilizada na tradição (Kerferd, 2003). O primeiro domínio é o da linguagem e, nesse caso, lógos designa “fala”, “discurso”, “declaração”, “afirmação”, “descrição”, “prova” (quando expressa por palavras), etc. O segundo domínio recobre o do pensamento e, nesse caso, lógos designa reflexão, raciocínio, justificação, explicação. Ortho logos pode significar “raciocínio correto”, “reflexão correta”, etc. Finalmente, o terceiro domínio recobre o mundo e, nesse caso, lógos designa aquilo sobre o qual somos capazes de falar e pensar, desde que seja parte da estrutura do mundo. Por exemplo, situam-se no escopo do lógos princípios estruturais, fórmulas, leis naturais, etc (Kerferd, 2003: 144).

No respeitante a Protágoras, Diógenes Laércio atribui a ele o emprego da palavra lógos na acepção de argumento. Protágoras teria assumido a doutrina segundo a qual dados dois logoi (dois argumentos), um oposto ao outro, pode-se tomar qualquer um dos dois e desenvolvê-lo com igual sucesso. Segundo Kerferd (p. 145), o que admira na posição assumida por Protágoras não é a ocorrência de argumentos opostos, fato comum nos discursos dos homens; o que admira é o ter ele, Protágoras, sustentado que os dois argumentos opostos podem ser adotados por um único orador, de tal modo que fossem apresentados como partes integrantes de um único argumento complexo.

Como quase tudo que sabemos sobre os sofistas vieram da pena de outros autores, alguns dos quais opositores, é difícil saber se determinada doutrina era ou não de autoria do sofista a que ela foi tradicionalmente associada. A técnica de argumentos opostos, segundo Kerferd, no entanto, foi certamente associada a Protágoras. A seu nome  também se ligava o método da antilógica. Uma obra intitulada Antilogias lhe foi atribuída e delas se retirou a maioria das citações feitas sobre suas ideias. Mas não se pode ter certeza se “antilogia” era o título original da obra ou o nome que lhe foi atribuído depois que Platão declarou que Protágoras lançava mão de antilogias, a saber, argumentos ou lógoi contrários favorável ou desfavoravelmente a uma mesma coisa. Novamente, é preciso salientar que quase tudo que sabemos sobre Protágoras proveio da pena de seu principal adversário, Platão, de modo que não se pode ter certeza de quais foram realmente suas ideias.

 

 

III. a) A doutrina do homem-medida

 

Considere-se, doravante, o adágio “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, quanto a como são, e das que não são, quanto a como não são”. Na tentativa de construir um sentido para essa máxima, algumas questões se impõem de imediato. A primeira questão consiste em como determinar o significado de “coisas”. A palavra “coisas” tem uma extensão ampla, recobrindo, portanto, tanto os artefatos feitos pela linguagem e pelas mãos de técnicos quanto os objetos naturais; tanto as qualidades opostas (quente, frio, seco, úmido, luminoso, escuro, etc.) quanto as opiniões ou lógoi; tanto as coisas acessíveis diretamente à percepção sensorial quanto as que são inacessíveis a ela, e tão-só acessíveis ao pensamento. A segunda questão diz respeito ao significado da palavra “medida”. Dizer que o homem é a medida é dizer que ele é o princípio de referência para determinar o modo como as coisas são e o modo como elas não são. Melhor seria dizer, o homem é o critério da realidade. “Medida” significa, aí, critério: o homem é o critério para a determinação do modo como as coisas são e do modo como elas não são. A terceira questão toca à significação da palavra “homem”, que, na tradução para o português, antecedida do artigo definido, levaria à compreensão de que Protágoras está se referindo ao gênero ou espécie humana, compreensão esta que deve ser rechaçada. O homem que é a medida de todas as coisas é cada indivíduo humano. Cada um de nós é a medida de todas as coisas. Cada conjunto de coisas é do modo como aparece para cada um dos indivíduos humanos. Estabelece-se, assim, o primado da aparência sobre a essência. Se o mel parece doce para alguns indivíduos, então  ele é doce para estes indivíduos; se, para outros indivíduos, ele parece amargo, então ele é amargo para estes outros indivíduos.

O ser e o não-ser dependem, portanto, totalmente, de nossas sensações, percepções, opiniões, ideias e ações. Com Protágoras, não há mais phýsis, não há mais um ser idêntico a si mesmo e subjacente às aparências sensíveis, acessível ao pensamento. O homem ocupa o lugar que antes era fixado para a phýsis. As coisas são ou não são em conformidade com a ação dos homens, em conformidade com o nómos. A doutrina de Protágoras encaminhará um resultado que, em Teeteto, se expressa na fórmula “ciência é sensação”. Protágoras assume que a percepção é o mesmo que conhecimento, conclusão a que Platão se obstará veementemente. Indo mais além, Protágoras sustentará que as percepções são infalíveis, o que significa dizer que cada percepção individual, em cada circunstância, é incorrigível. Não caberia corrigir uma percepção individual por comparação com uma percepção de outra pessoa, tampouco por comparação entre percepções de um mesmo indivíduo, em circunstâncias diferentes. A conclusão que se segue daí e que Protágoras permite endossar é a de que todas as percepções são verdadeiras. No entanto, se todas as percepções são verdadeiras, segue-se que não há percepções falsas. Não há por que corrigi-las ou refutá-las.

Como, neste trabalho, procuramos delimitar, no domínio do tema do relativismo sofista, a região que nos interessa investigar, a saber, a que recobre a relação entre verdade e discurso, será, por isso, forçoso abandonar este estágio do percurso de nossas reflexões para nos lançarmos à discussão da asserção de Protágoras, segundo a qual não é possível dizer o que é falso. Aqui, nos situamos no domínio da linguagem. Essa asserção paradoxal permite-nos entrever o encaminhamento do problema da verdade. Cremos indispensável dizer, desde já, que, para Protágoras, não existe a verdade (alétheia), mas tão-somente opiniões verdadeiras em movimento.

 

III. b) Da impossibilidade da contradição

 

Encetemos esta subseção com o seguinte passo:

 

Quem diz a verdade está falando qual é o caso daquilo que é o caso. A pessoa que fala de maneira inverídica está falando o que não é o caso daquilo que não é o caso. Mas aquilo que não é o caso simplesmente não existe. De modo que uma pessoa que diz o que não é caso não está falando de coisa alguma. Está usando palavras mas elas não se referem a nada porque aquilo ao que elas parecem estar se referindo simplesmente não existe (Kerferd, 2003, p. 152).

 

 

Antes de apresentar a leitura que Kerferd fez da sua compreensão da asserção  de Protágoras da impossibilidade de dizer o falso, daremos a saber a nossa leitura do trecho de Kerferd, mesmo receando sermos redundantes. O que nos chama atenção é a assunção implícita de uma realidade objetiva com a qual nosso dizer deve concordar, a fim de que possamos daí concluir a verdade. A verdade depende de algum tipo de concordância entre o conteúdo do nosso dizer com o aquilo que, de fato, é o caso no mundo a que ele se refere. Apesar de problemática a questão de saber o que significa dizer que a verdade depende de uma “concordância” entre o dito e a realidade, o que nos interessa destacar é a manutenção da crença numa realidade objetiva a que nosso discurso se refere. Protágoras não está negando que haja uma realidade objetiva a que nossos enunciados se referem. O que ele nega, se atentarmos para o que se seguirá, no trecho referido, é que possamos dizer o falso, pois quem acredita dizer o falso, na verdade, não está falando coisa alguma. A realidade objetiva é a norma: ou é o caso ou não é o caso. Se não é o caso, segue-se que o caso não existe, e quem pensa estar afirmando uma falsidade, na verdade, não está afirmando coisa alguma, está usando palavras vazias.

Tentemos desenvolver mais nossa compreensão com base na interpretação levada a efeito por Kerferd. Tomando-se duas pessoas e uma afirmação, segue-se que ou elas dizem a mesma coisa, não havendo lugar para contradição, nesse caso; ou uma delas diz o que é o caso, isto é, o que é verdadeiro (dizer o que é o caso é dizer o verdadeiro), e a outra pessoa diz algo diferente do que disse a primeira. E se é o caso que o diz, é porque ela está falando de alguma coisa diferente da coisa de que falava a primeira pessoa. Não há contradição, porque ambas as pessoas estão falando de coisas diferentes. Há ainda uma terceira possibilidade. Uma das pessoas está dizendo o que é o caso, e, portanto, está dizendo o que é verdadeiro, já que a coisa de que ela fala é como ela o diz ser. E a outra pessoa está dizendo algo diferente, circunstância em que, normalmente, julgamos que está dizendo algo inverídico. Mas, nesse caso, é inverídico porque ela não está dizendo nada. Essa pessoa estaria apenas usando palavras vazias, de modo que não há entre a primeira fala e a segunda qualquer contradição.

Não se pode perder de vista o fato de Protágoras sustenta tanto a impossibilidade de dizer o falso quanto a impossibilidade de haver contradição. Tomemos um exemplo da prática linguística real, a fim de ilustrar a posição de Protágoras. Imaginemos dois locutores A e B e um contexto em que ambos afirmam um estado-de-coisas do mundo acessível à experiência sensorial e imediata deles. Está chovendo e ambos os interlocutores reconhecem que esse é o caso. A diz (8), mas B diz (9):

 

(8) A – está chovendo.

(9) B – não, está chuviscando.

 

O caso ilustra o fato de que usar a língua é sempre negociar significados. Os dois enunciados dão ensejo a uma disputa para saber quem fez a escolha lexical mais acertada para categorizar um evento verificável no mundo. A língua disponibiliza duas formas para descrever o acontecimento ‘cair água das nuvens’ – “chover” e “chuviscar”. Essas duas palavras se diferem quanto à gradação semântica, pois chover é o termo não-marcado da relação, isto é, não comporta o traço [tenuidade]. Chuviscar, por seu turno, é o termo marcado, pois comporta em seu significado o traço [+ tenuidade]. Chuviscar é “chover ligeiramente ou tenuamente”. Ora, A pode argumentar que quem diz “chuviscando” está assumindo que é verdade que “chove”, pois o conceito de “chover” está implicado no de “chuviscar”, sendo a diferença apenas marcada por gradação semântica. O fato de o português codificar a diferença semântica, ainda que sutil, entre “chover” e “chuviscar” significa que, para os falantes de português, essa distinção que se reconhece, primariamente, na experiência sensível, é um dado relevante na forma como eles se relacionam com o mundo. A codificação, feita na/ pela língua, da distinção reconhecida na experiência desses falantes pode dar ensejo à polêmica, sempre que, para algum deles, o outro não faz a escolha lexical adequada para descrever o que acontece no mundo, num dado contexto sociocomunicativo.

Retornando à posição de Protágoras, no exemplo referido, A e B estariam dizendo a mesma coisa ou coisas diferentes? Estamos excluindo daí a terceira possibilidade, já que A e B dizem alguma coisa. De fato, A e B não se contradizem. Do ponto de vista estritamente semântico-sintático, eles não dizem a mesma coisa, no sentido de que fazem uso de arranjos linguísticos diferentes, cujos efeitos de sentido são diferentes, quando consideramos o discurso. No turno de B, há um “não” cujo escopo é todo o enunciado de “A”, que é negado, que é considerado por B como inválido; há também uma retificação da descrição de “A”, expressa na construção “está chuviscando”, ela mesma um modo diferente de categorizar o evento observado. No entanto, do ponto de vista da referência ou, se quisermos usar um termo de Frege, do “sentido”, A e B afirmam a mesma coisa, pois seus enunciados descrevem um mesmo acontecimento do mundo percebido como ‘o fato de cair água das nuvens’, pouco importando a intensidade da queda de água.

A questão que, não podendo ser aqui explorada, devemos ter em conta é que não usamos a língua apenas para falar do mundo, mas a usamos para agir sobre o mundo e sobre os outros; em suma, usamos a língua para argumentar (o que supõe que estamos interessados em provocar a adesão de nosso interlocutor às conclusões para as quais encaminhamos nossos argumentos). Mesmo quando pensamos estar apenas descrevendo o mundo tal como é, estamos, na verdade, reconstruindo na língua nossas experiências do mundo. Nossos enunciados não são como fotografias do mundo, mas formas pelas quais construímos uma versão do mundo. Quando A se esforça, por exemplo, por sustentar que quem diz “chuviscando” está se comprometendo com a validade da afirmação de que “chove”, ou que o conteúdo semântico de “chuviscando” pressupõe o de “chover”, A está procurando validar sua versão de mundo, construída discursivamente. Ele também está influenciando seu interlocutor, agindo sobre ele, de modo a causar-lhe adesão à conclusão encaminhada por seu argumento. Ora, a questão da verdade, nesse caso, sofre um deslocamento que o senso comum tende a ignorar: não se trata simplesmente de determiná-la com base no critério de uma precisão da descrição feita sobre um estado-de-coisas do mundo; dito de outro modo, não se trata de ver a verdade como o que deriva de uma correspondência entre o que codificamos linguisticamente sobre o mundo e o que acontece no mundo, entre o conteúdo proposicional e o estado-de-coisas do mundo. A verdade passa a ser um valor e, embora ainda suponha referência a uma realidade do tipo objetiva (objetividade fundada numa intersubjetividade), depende, fundamentalmente, de um acordo intersubjetivo, ele mesmo estabelecido e mantido por condições sócio-discursivas ou pragmáticas ligadas ao uso (social) da língua.

Com Protágoras, teríamos de dizer – com razão, nos parece – que A e B dizem a verdade, se é o caso que cai água das nuvens. E o dizem porque falam de uma mesma coisa, embora por meio de formas linguísticas ligeiramente diferentes.

Será mesmo que não há espaço para contradição, tal como parece sustentar Protágoras? Cabe aqui frisar que a doutrina do homem-medida rejeita a existência de dois logoi opostos sobre a mesma coisa. Eles se aplicam sempre a coisas diferentes. No entanto, há contradição se distinguirmos dois níveis na discussão: o do verbal e o das coisas sobre as quais falamos. No nível verbal, duas pessoas podem se contradizer. Mas no nível das coisas, a contradição não se dá. As contradições que se dão no nível das palavras são aparentes e se as afirmações entre as quais se verifica uma contradição preservam seu sentido, então é porque essas afirmações incidem sobre coisas diferentes, e não sobre a mesma coisa.

Se acompanharmos Protágoras, devemos concluir que quem diz “O vento é quente e não-quente (frio)” está se comprometendo com duas afirmações contraditórias – “o vento é quente” e “o vento não é quente”. Haveria contradição, já que se emitem duas afirmações sobre a mesma coisa. No entanto, se consideramos que o vento encerra as propriedades “é quente” e “é frio”, ao mesmo tempo, segue-se daí, segundo Protágoras, que é verdade que as afirmações “o vento é quente” e “o vento é frio” se referem a coisas diferentes. Disso se infere que, para Protágoras, o que é não é um, mas uma pluralidade. Há um vento frio e um vento quente, e não o mesmo vento com dois modos de existência.

 

 

                                                           IV

                  Górgias e sua refutação de Parmênides

 

Górgias nasceu em Leontini, Magna Grécia, por volta de 484-483 a.C. Tornou-se discípulo de Empédocles, tendo tomado conhecimento das ideias dos jovens pitagóricos e das de Melissos de Samos. Depois, tornou-se cético no tocante à possibilidade da filosofia.

Não se poderia tratar do pensamento de Górgias sem considerá-lo em sua oposição às doutrinas eleáticas e, por extensão, às doutrinas de alguns filósofos físicos entre os pré-socráticos. Não menos importante será precisar o sentido com que o verbo “ser” é atualizado na construção do argumento de Górgias orientado para refutar a afirmação de Parmênides de que apenas o Ser existe. Observa Kerferd (p. 161) que Górgias chegará, ao cabo de sua argumentação, a manter um niilismo filosófico. Se Parmênides lançou por terra o mundo da multiplicidade das aparências, mantendo o mundo unitário do Ser verdadeiro, Górgias, a seu turno, suprimiu ambos, ficando com Nada.

Vamos iniciar nossa incursão no desenvolvimento da argumentação de Górgias pela compreensão dos dois sentidos que o verbo “ser” encerrava em grego. O verbo “ser” pode ser empregado sem um predicado, caso em que dizemos “X é”; ou pode ser empregado com um predicado, caso em que dizemos “X é Y” (o predicado é “Y”). Na primeira construção – X é -, o verbo “ser” tem o sentido de ‘existir’ (na sincronia atual do português, esse sentido do verbo “ser” só se conserva em fórmulas muito estereotipadas como “Deus é”, “penso, logo sou”). Na segunda construção – X é Y -, o verbo “ser” serve de mero elemento de ligação entre o sujeito e um predicado.

Também, no latim, o verbo “ser” tem o sentido de ‘existir’. Para os primeiros filósofos, mormente para os eleatas, “ser”, “pensar” e “dizer” eram idênticos. Essas três formas eram subsumidas numa única palavra – lógos (que é o real, o inteligível, o comunicável em si mesmo). Por outro lado, “parecer” e “opinar” situavam-se no mesmo campo semântico, muito embora a opinião fosse aquilo que é dito sobre algo tal como parece ser a alguém. Além do sentido de ‘existir’, o verbo “ser” era usado numa construção em que servia de elemento de ligação entre um predicado e um sujeito. Na gramática tradicional, o verbo “ser” foi assim definido como “verbo de ligação”, justamente porque, não sendo ele sozinho capaz de predicar, servia para ligar o predicado (em geral, adjetivo) ao seu sujeito (cf. O céu é azul).

Parmênides parece ter-se fixado na construção predicativa do verbo “ser”. Quando distinguiu entre as duas vias, a do que é e a do que não é, foi a este sentido do verbo ser que ele se referia. A via positiva se exprime na construção “X é Y”; a negativa, na construção “X não é Y”.  Kerferd assumirá que “é principalmente no uso predicativo do verbo “ser” que Górgias está interessado, e com as contradições que isso parece gerar” (p. 164). Seguindo de perto Kerferd, vamos corroborar a ideia de que Górgias pretendeu argumentar no sentido da impossibilidade de articular o verbo “ser” a um sujeito sem que disso surjam contradições. Tais contradições não figurariam apenas nas declarações negativas, como acreditavam os eleáticos, mas também, como mantinha Górgias, nas declarações positivas.

Agora, tomemos as três declarações de Górgias, momento em que será necessário lembrar, em contraste, as afirmações de Parmênides. Górgias declara: 1) o ser não é ou o Nada é; 2) o ser não pode ser pensado; 3) o ser não pode ser dito. Essas três declarações constituem o alicerce de sua demonstração que visará inverter os argumentos de Parmênides.

Recuperemos o que diz Parmênides e busquemos deslindar a argumentação de Górgias.

1) “O ser é, o não-ser não é”. Esse é um enunciado que encontramos em Parmênides. Ele afirma que apenas o ser existe e que o não-ser não existe. No entanto, Górgias está atento à flutuação entre os empregos do verbo “ser” na acepção de “existir”, caso em que dispensa um predicado, e na construção predicativa, caso em que é um verbo de cópula (ligação), exigindo um predicado para o sujeito. É essa construção predicativa que Górgias tem em mente ao argumentar contra Parmênides que, se o não-ser não é, então ele é alguma coisa. O que ele seria? O inexistente. O não-ser é o inexistente. Logo, o não-ser é. Isso significa dizer que o Nada existe. Notemos que em “o não-ser é”, o verbo ser tem o sentido de “existir”. Górgias parece estar jogando, a cada momento de sua argumentação, com os dois empregos do verbo “ser”. Ora, se o não-ser é, então o seu contrário não é, ou seja, “o ser não é”.

Novamente, é à construção predicativa do “ser” que Górgias se atém para argumentar, contra Parmênides, que, se o ser é, ele precisa ser ou eterno ou gerado. Se o ser é eterno, deve ser infinito no espaço e no tempo. Mas, sendo infinito estará em toda parte, o problema é que o que está em toda parte não está em nenhuma parte, donde a conclusão de que não pode ser eterno. Se, por outro lado, o ser é gerado, ele proveio ou do não-ser, o que é impossível, já que do nada não pode nascer coisa alguma, ou nasceu do ser, o que também é impossível, porquanto o ser já teria existido antes de nascer. Isso é absurdo. Conclui Górgias que o ser não é. Górgias havia sustentado que o não-ser é (ou seja, é aquilo que não existe, o inexistente). Se o não-ser é, o nada existe.

 

2) Parmênides afirmou que somente o ser é e porque é somente o ser pode ser pensado. Ele estabelecerá a identidade entre o ser e o pensar. Com isso, ele manterá: a) que o que pode ser dito e pensado deve ser (existir); b) que o ser é o que pode ser pensado e dito. É necessário, no entanto, tornar patente a radicalidade dessa compreensão parmenidiana. A identidade entre ser e pensar (e dizer) deve ser compreendida da seguinte forma: Parmênides não diz apenas que só podemos pensar e dizer o que existe, mas sim que o que é pensável e dizível existe necessariamente. Por outro lado, ele não diz apenas que o nada (o não-ser) não é pensável e dizível; ele afirma, na verdade, que o que não é pensável nem dizível não existe.

Górgias, por sua vez, dirá que, se o ser existir, não pode ser pensado. Para ele, o que é pensado não necessariamente existe, se existisse, deveria de fato existir toda sorte de coisas absurdas que os homens pensam. Kerferd (p. 166) dá-nos um exemplo de um homem voando ou de carros apostando corrida no mar. Do fato de pensarmos num homem voando ou em carros apostando corrida no mar, se seguiria, se acompanharmos Parmênides, que há, na realidade, um homem voando ou carros apostando corrida no mar. Acrescenta Górgias que os homens também pensam o que não existe e há coisas inexistentes que os homens pensam (monstros, lobisomem, etc.). Assim, se o que é pensado não existe, então o que existe não pode ser pensado. Se o ser existir, conclui Górgias, será impensável.

Górgias não pretende nem abolir o pensamento nem as coisas. Ambos são conservados. Ao contrário do que sugere Protágoras, Górgias parece admitir que há pensamentos que podem ser verdadeiros e há pensamentos que podem ser falsos. Discordamos, contudo, da interpretação de Kerferd, segundo a qual o argumento de Górgias estaria sugerindo que “para que qualquer coisa seja conhecida ou pensada a mente deve ter (isto é, repetir ou reproduzir e, portanto, ela mesma possuir) as características próprias do objeto conhecido” (ib.id.). Não está claro de que modo o argumento autoriza essa interpretação. O autor ajunta ainda que “objetos brancos, se pensados, requerem pensamentos brancos e objetos que são requerem, se pensados, pensamentos que são” (ib.id.). Por outro lado, concordamos que o argumento aponta para “um fosso entre atos mentais cognitivos (pensamentos, percepções etc.) e os objetos que eles conhecem ou pretendem conhecer” (ib.id.). Talvez, fosse suficiente dizer que aquilo para o qual Górgias chama a atenção é o fato de a realidade não se identificar com o conhecimento que podemos ter dela, que quem conhece é um indivíduo dotado de pensamentos, percepções e que, ao pretender conhecer a realidade, não faz mais que representá-la (interpretá-la) em sua mente. No ato de conhecer, não se revela uma essência da realidade, mas se dá forma às impressões que temos do mundo, das coisas e de nós mesmos

Prossigamos com Górgias, no entanto.

3) Contra Parmênides, dirá Górgias que, se o ser for pensável, segue-se daí que não pode ser comunicado. No cerne desta declaração está o reconhecimento de que há um fosso entre o lógos e as coisas. Não podemos comunicar por sons vocais, que são, por definição, não-visíveis, coisas como cores, que são visíveis, por exemplo. Este é um momento importante da argumentação de Górgias, que nos interessa sobremaneira, porquanto toca à relação entre as palavras e as coisas.

Vamo-nos deter no desenvolvimento desse estágio da argumentação de Górgias, não sem antes antecipar o ponto fulcral dessa argumentação. Górgias mostrará que as coisas que existem fora de nós, se existem, são objetos de nossos sentidos – visão, audição, olfato, tato, paladar. O meio de que dispomos para comunicar é a palavra, e a palavra não nos dá a coisa externa. Pela palavra, comunicamos outras palavras, e não coisas. Por isso, ainda que admitamos que o ser é e que pode ser pensado, não poderá ser dito. O que comunicamos são opiniões sobre as coisas que nos afetam os sentidos, e não as coisas em si.

Para Górgias, nós podemos pensar e dizer o inexistente. A linguagem pode servir-nos para que comuniquemos irrealidades. Outrossim, não é necessário que a realidade seja pensada (conhecida) e comunicada. Górgias, contrariamente ao que pretendiam Heráclito, Parmênides, Demócrito e os poetas antigos, elide a diferença entre dóxa (opinião) e alétheia (verdade). O que Górgias argumentará é que a dóxa pode pensar e dizer o existente tanto quanto o inexistente; a alétheia, por seu turno, já não mais desvela/ manifesta o existente. Górgias afirma a separação entre realidade, pensamento e linguagem; e, ao fazê-lo, ele destrói o antigo conceito de alétheia, obrigando a filosofia a repensar a verdade, a rever as relações entre ser, pensar e dizer. É a própria ideia de conhecimento que precisa, pois, ser revista.

Importa sublinhar que, para Górgias, a palavra é um poder, embora limitado, que serve à persuasão. A palavra ou a linguagem é persuasiva ou sedutora. Ela exerce um poder sobre a alma.

Conquanto a separação entre realidade, pensamento e linguagem seja insustentável na contemporaneidade (talvez, se possa dizer que já não o era no início da modernidade; por exemplo, em Leibniz, encontramos a ideia de que o pensamento é essencialmente simbólico, ou a ideia de que sem linguagem não há raciocínio), a separação postulada por Górgias atendia ao seu interesse de lançar por terra a crença de que o lógos (o discurso, a linguagem) permitiria um acesso direto ao real e à verdade.

Há, de fato, um problema que a consideração de Górgias sobre a relação entre palavras e coisas suscita e do qual ele estava, pelo menos em parte, consciente,  e que toca à questão de como é possível que uma palavra se refira a uma determinada coisa e não a outra. Há algum vínculo natural entre a palavra e a coisa a que ela se refere (seu referente)? Novamente, é a relação entre palavras, pensamentos e coisas que está em questão. Será necessário elaborar uma teoria da significação para tentar dar conta do problema. A partir da postulação de uma teoria do significado, o problema passa a recair não mais sobre uma suposta relação direta entre a estrutura fônica da palavra e o objeto a que ela se refere (seu referente), mas sobre um terceiro termo – o significado, responsável pela mediação entre o som e o referente. O problema, em suma, repousa na tentativa de explicação dessa relação triádica som-significado-referente.

Resta ainda o problema que consiste em compreender o lógos relativamente às palavras, aos pensamentos e às coisas. A condição para que haja verdade e conhecimento está em supor que existe algum tipo de correspondência entre aqueles elementos. Vale dizer que o lógos recobre três áreas: 1) pode ser o princípio ou a natureza da própria coisa; 2) o nosso entendimento do que a coisa é; 3) a descrição verbal ou relato correto da coisa. A questão do ser se impõe aqui inevitavelmente, pois o lógos pode ser o que a coisa é; o que nós a entendemos que ela é; ou é o que dizemos que ela é. Somente no primeiro caso não se verifica a relação com o nómos. Quer definamos o lógos como “o que nós entendemos que a coisa é”, quer o definamos como “o que dizemos que a coisa é”, estamos fazendo intervir o arbítrio humano.

 

 

                                                               V

                           Protágoras e Górgias

                    Aproximações e distanciamentos

 

 

É chegado o momento em que demarcaremos os pensamentos de Protágoras e Górgias, com vistas a iluminar os seus pontos de aproximação e distanciamento.

No tocante à concepção da verdade como alétheia, ambos estão de acordo em rejeitá-la. Ambos destituem a verdade de qualquer valor metafísico. Como a linguagem é persuasão, ela não permite nenhum acesso à verdade. Mas, no tocante à retórica, Górgias não acompanha Protágoras. Este considerava que a ordem social e política poderia ser mantida se a técnica política fosse ensinada aos cidadãos. Górgias, por seu turno, nega que a linguagem possa comunicar o ser, que possa dizer a realidade. Disso se segue que ela é incapaz de instaurar uma ordem social e política racional. Górgias não deixou de insistir em que há desordem, conflito de interesses e de opiniões, e costumes que acarretam divergência entre as leis da cidade e entre as cidades. Protágoras acreditava na capacidade racionalizadora e moderadora da retórica, a qual era posta a serviço da arte política e da cidadania. Górgias, por seu turno, não acreditava nisso. Para ele, a retórica age sobre as emoções dos indivíduos, persuadindo-os. Assim, só haveria ordem social e política pela persuasão emocional ou passional.  Górgias negava que a retórica possa ser ensinada a todos; ela é possuída por uma minoria que, através dela, garante sua própria supremacia numa sociedade democrática, já que nesta o conflito é tão essencial quanto o debate público de opiniões.

Se, para Protágoras, a verdade era uma convenção a que se chega pelo acordo entre opiniões conflitantes – era consenso, portanto-; para Górgias, a seu turno, não há verdade possível, nem mesmo por convenção (Chauí, 2008, p. 177). Caberia avaliar com mais vagar a rejeição radical de Górgias, que merece ser matizada. Não obstante, parece inegável que, na sofística, o valor do discurso é absoluto, e a verdade é o que o discurso diz; nesse sentido, a verdade é relativa. A verdade está subordinada ao discurso. O pensamento se reduz à linguagem. O discurso sofístico não é um discurso do ser e não é, segundo pensam seus adversários, por isso mesmo, um discurso filosófico. Naturalmente, não podemos aceitar essa visão depreciativa da sofística, que se consagrou entre nós, mormente pela pena de Platão. A sofística não deixa de ser filosófica justamente por ousar questionar a própria possibilidade da atividade filosófica com tudo o mais que lhe confere um estatuto como forma de conhecimento do mundo. Ela não deixa de ser filosófica por negar a possibilidade de acesso à verdade; ao contrário, reivindica seu lugar na história do pensamento filosófico justamente por ousar questioná-la. A filosofia, na medida em que se pretende um conhecimento radical da realidade e na medida em que é um domínio dessa totalidade que investiga, não pode recear, no exercício de sua crítica radical, ao longo da história de seu desenvolvimento, as tentativas de questionar as próprias pretensões de seu (da filosofia) discurso. A filosofia é, portanto, ainda filosofia enquanto se questiona como filosofia.

Protágoras matinha que todas as percepções são verdadeiras e, como tais, são percepções das coisas que são. Górgias, por seu turno, advogava que não devemos dizer de coisa alguma que ela é. Terão Protágoras e Górgias renunciado à tentativa de fazer qualquer distinção entre proposições conflitantes que visassem alguma coisa? Segundo Kerferd (p. 171), Górgias distinguiu sim entre pensamentos verdadeiros e falsos, conquanto não tenha esclarecido o critério para tal distinção. Não poderíamos deixar de notar que essa distinção supõe que o verdadeiro é um valor ou um qualificativo que se associa ao pensamento, mas não algo que, estando na realidade, se põe a descoberto pelo pensamento. Para Protágoras, por sua vez, a distinção entre percepções diversas e conflitantes, em termos de verdade, não se sustenta. Mas alguma forma de distinção foi por ele admitida. Todas as percepções e julgamentos podem ser aceitos igualmente como verdadeiros, mas isso não significa dizer que, entre duas opiniões conflitantes, não exista uma que o sábio considera ser a melhor. Assim, se, para o doente, a comida é amarga; e se, para o homem saudável, ela parece o oposto, e se ambas as condições são verdadeiras, não se segue daí que sejamos impedidos de reconhecer que a segunda condição é melhor do que a primeira. É função do médico converter a primeira condição na segunda: fazer com que a comida, antes amarga para o enfermo, pareça doce para o homem curado.

 

 

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Referências Bibliográficas

 

BAZARIAN, J. O Problema da verdade. São Paulo: Edições Símbolos, 1983.

 

CHAUÍ, M. Dos Pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

DAVIDSON, D. Ensaios sobre a verdade.  Paulo Ghiradelli Jr. et. al. (orgs.). São Paulo: Unimarco Editora, 2002.

 

ENGEL, P.; Rorty, R. Para que serve a verdade? São Paulo: UNESP, 2008.

 

 

GRAYLING, A.C. Wittgenstein. São Paulo: Editora Loyola, 2002.

 

KERFERD,G.B. O Movimento Sofista. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

 

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

 

NEVES, M.H.M. A Vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre linguagem. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

 

NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e Mentira. Fernando de Moraes Barros (org.). São Paulo: Hedra, 2007.

____________ A Vontade de Potência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

UNTERSTEINER, M. A Obra dos Sofistas: Uma Interpretação Filosófica. Trad. Renato Ambrósio. São Paulo: Paulus, 2012.

 



[1] O conceito de discurso tem merecido, na Linguística moderna, desde Saussure, diversas reformulações. Sua definição varia segundo os teóricos e a corrente de pensamento a que se afiliam. Aqui, o termo discurso é por nós entendido como a utilização pelos seres humanos de signos linguísticos articulados em textos com vistas à comunicação.

[2] Não queremos sugerir que essa tradição crítica do valor intrínseco da verdade se limite à importância desses pensadores. Na verdade, como observa Rorty (2008: 55-56), “quando se considera não só a história da filosofia analítica, mas a da filosofia em geral, nos vemos diante de uma batalha que opõem os que crêem que vale a pena discutir o debate “realismo versus anti-realismo” aos que fazem tudo o que está ao seu alcance para acabar com estas questões”. Há outros nomes de peso que devem ser lembrados tais como  Heidegger, Sartre, Derrida, etc.