LIVRANDO-ME
Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo
mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão
não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado,
inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no
folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de
experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam
todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais.
Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de
consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais
dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos
desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano
em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos,
tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum.
Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição
(philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é
tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com
os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria
dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são
utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem
a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada,
uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é
uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária,
uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta,
que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me
perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os
livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como
miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático,
simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros
de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela
hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem
exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores
de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal
espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem
habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais
vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento:
o mundo dos corpos-leitores.
DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO
A visão mecanicista de mundo da
física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram
superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os
problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas
ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma
ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis
para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente,
mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções
sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas
atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem
a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à
metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência
como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os
animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a
ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não
são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por
estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo
organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no
planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica
cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista.
Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da
vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas.
Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem
cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são
inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição,
quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A
consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo
que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A
cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico
separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a
possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se
diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se
segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de
animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são
interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”.
Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser
ignorados:
1. O planeta Terra é um sistema vivo
e autorregulador;
2. O mundo material é uma rede de
interações, de padrões;
3. O cérebro, o sistema imunológico,
cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;
4. A evolução não é mais concebida
como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa,
na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças
propulsoras.