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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

"Brasil, condenado à esperança". (Millôr Fernandes)

 

                                                        



                                                   Flutuações do humor

 

A depender de meu estado de espírito, posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como “referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis, a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as alegações das religiões instituídas e  com seus fiéis que as reduzem comumente à busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar. Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.






                                        FIM DA CORRUPÇÃO 


Tem uma moçada aí que pede o fim da corrupção como se pôr fim à corrupção no Brasil fosse como encerrar as atividades de uma empresa por falência. Até apareceu por estas bandas cabralistas um tal de Messias populista prometendo pôr fim à bandalheira dos congressistas, inaugurando uma nova era em que no Brasil já não mais se ouviria falar de corruptos de colarinho branco. Daí resolvi estudar para entender de onde vem este nosso costume abjeto de favoritismo dos poderosos, de corrupção dos administradores do Estado. E descobri que esse costume se enraizou neste solo castigado pela escravidão de negros e indígenas desde o período colonial. Desde muito cedo, no Brasil, o serviço judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. Os Sermões de Padre Antônio Vieira davam testemunho disso. A prevaricação de magistrados no período colonial era corrente. Para comprová-lo, basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII. Em 22 de janeiro de 1725, Vasco Fernandes Cézar de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de Portugal contando à Sua Majestade sobre “as desordens e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos...a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis”. No Brasil, desde o período colonial, consagrou-se, assim, um velho costume que persiste inquebrantável e vigoroso até hoje: a dualidade dos ordenamentos jurídicos. Há um ordenamento jurídico oficial, que vige, no entanto, apenas formalmente, e há outro ordenamento jurídico efetivo, nunca oficialmente promulgado, que em tudo corresponde aos interesses próprios do grupo oligárquico. E por falar neste, a oligarquia brasileira não é a oligarquia tradicional, em que o poder supremo se concentra exclusivamente nas mãos de uma minoria de abastados, mas sim uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, que une entre si a classe rica e os principais agentes do Estado, deixando o povo à margem de todas as decisões políticas. A privatização do poder político se estabeleceu entre nós no período colonial. Essa privatização é o objetivo perseguido pelo capitalismo. Ela deu origem à longeva tradição do patrimonialismo de Estado, tão comum na América Latina. Essa tradição arraigada em nossa cultura favorece as práticas de corrupção sistêmica no trato com a coisa pública. Outra vez Padre Antônio Vieira se queixava à Sua Majestade da corrupção generalizada dos funcionários enviados às colônias portuguesas. Nas colônias, incluindo o Brasil, os administradores, sempre aparentando obedecer às autoridades d’além-mar, continuavam a servir aos seus interesses próprios sem que fossem importunados. Também nesses tempos remotos mas atuais, era comum que os Governadores, na qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar às boas graças dos desembargadores, acrescentando-lhes aos ordenados gratificações extraordinárias conhecidas como “propinas”. E, como era de esperar, a fiscalização, que deveria ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionários em exercício por aqui, deixava muito a desejar, porque até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre Lisboa e o Brasil. A corrupção sempre grassou no serviço judiciário português , quer na metrópole, quer nas colônias. Desde Platão, aprendemos que os costumes não se mudam por leis, ao que Rousseau acrescentou outra lição amarga para nós: a verdadeira constituição do Estado são os costumes. A conclusão eu deixo a cargo do leitor. Por fim, antes de pedir o fim da corrupção aos próprios agentes corruptores, busquemos estudar a nossa história, a história da formação de nossa sociedade e de nosso Estado. Talvez assim, se não conseguirmos debelar tal costume tão familiar entre nós, ao menos não nos deixaremos seduzir por populistas que se apresentam como ovelhas do pastoreio da Redenção com pele de lobo que frequenta os salões onde se refastela junto de sua alcateia, há anos, no banquete dos cofres públicos. No Brasil, moçada pedinte, desde muito cedo, o poder de mando, de dominação política e econômica, se concentrou na aliança formada entre os agentes estatais - governadores, magistrados, membros do Ministério Público, altos funcionários - e os potentados privadas - o grande empresariado, donos do capital. Aqueles, no exercício de suas funções oficiais atuam a serviço dos interesses destes, enquanto estes, fingindo submissão aos poderes oficiais, pressionam aqueles, quando não os corrompem simplesmente, em todos os níveis - legislação, administração, prestação de justiça. E quanto ao povo? O povo que se lasque! A notícia amarga e desoladora é que a coligação oligárquica soberana não dá sinais de que um dia chegará ao fim no Brasil. Para isso acontecer, o povo teria de deter realmente o poder soberano, o que significa dizer que teríamos de instituir uma verdadeira democracia no Brasil. Mas entendam isto, pelo amor de Deus! NÓS NÃO VIVEMOS NUMA PLENA DEMOCRACIA. O que temos aqui é uma pseudodemocracia, um simulacro de democracia, um arremedo de democracia. Como ensinou Aristóteles (sempre a filosofia - essa inutilidade tão necessária ou mais necessária do que todas as inutilidades), a democracia é o regime em que o povo soberano goza de relativa igualdade de condições de vida; mas o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, o que torna ainda mais favorável a perpetuação da coligação oligárquica, cujo poder inviabiliza a realização de uma autêntica democracia no Brasil, é o fato de que a mentalidade da população menos favorecida é mais facilmente inclinada a obedecer do que a mandar ou a tomar iniciativas. A educação política do povo é necessária, mas ela não pode ser de responsabilidade, pelo menos não inicialmente, do Estado, pois o poder oligárquico a ela se oporá.