Flutuações do humor
A depender de meu estado de espírito,
posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos
conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com
o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como
“referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em
vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em
vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer
que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o
sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito
incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade
do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis,
a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as
alegações das religiões instituídas e com seus fiéis que as reduzem comumente à
busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de
suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento
histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de
Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do
infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de
sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo
do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca
religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que
possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo
ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa
experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o
encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que
o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas
origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida
e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar
este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja
busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para
mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar.
Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho
nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não
me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer
fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam
tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a
humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa
busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de
respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.
FIM DA CORRUPÇÃO
Tem uma moçada aí
que pede o fim da corrupção como se pôr fim à corrupção no Brasil fosse como
encerrar as atividades de uma empresa por falência. Até apareceu por estas
bandas cabralistas um tal de Messias populista prometendo pôr fim à bandalheira
dos congressistas, inaugurando uma nova era em que no Brasil já não mais se
ouviria falar de corruptos de colarinho branco. Daí resolvi estudar para
entender de onde vem este nosso costume abjeto de favoritismo dos poderosos, de
corrupção dos administradores do Estado. E descobri que esse costume se
enraizou neste solo castigado pela escravidão de negros e indígenas desde o
período colonial. Desde muito cedo, no Brasil, o serviço judiciário existiu não
para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. Os Sermões de Padre Antônio
Vieira davam testemunho disso. A prevaricação de magistrados no período
colonial era corrente. Para comprová-lo, basta ler alguns ofícios de
presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século
XVIII. Em 22 de janeiro de 1725, Vasco Fernandes Cézar de Menezes escreveu da
Bahia ao Rei de Portugal contando à Sua Majestade sobre “as desordens e
excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos...a que
continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis”. No Brasil,
desde o período colonial, consagrou-se, assim, um velho costume que persiste
inquebrantável e vigoroso até hoje: a dualidade dos ordenamentos jurídicos. Há
um ordenamento jurídico oficial, que vige, no entanto, apenas formalmente, e há
outro ordenamento jurídico efetivo, nunca oficialmente promulgado, que em tudo
corresponde aos interesses próprios do grupo oligárquico. E por falar neste, a
oligarquia brasileira não é a oligarquia tradicional, em que o poder supremo se
concentra exclusivamente nas mãos de uma minoria de abastados, mas sim uma coligação
oligárquica, típica do capitalismo, que une entre si a classe rica e os
principais agentes do Estado, deixando o povo à margem de todas as decisões
políticas. A privatização do poder político se estabeleceu entre nós no período
colonial. Essa privatização é o objetivo perseguido pelo capitalismo. Ela deu
origem à longeva tradição do patrimonialismo de Estado, tão comum na América
Latina. Essa tradição arraigada em nossa cultura favorece as práticas de
corrupção sistêmica no trato com a coisa pública. Outra vez Padre Antônio
Vieira se queixava à Sua Majestade da corrupção generalizada dos funcionários
enviados às colônias portuguesas. Nas colônias, incluindo o Brasil, os
administradores, sempre aparentando obedecer às autoridades d’além-mar,
continuavam a servir aos seus interesses próprios sem que fossem importunados.
Também nesses tempos remotos mas atuais, era comum que os Governadores, na
qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar às
boas graças dos desembargadores, acrescentando-lhes aos ordenados gratificações
extraordinárias conhecidas como “propinas”. E, como era de esperar, a
fiscalização, que deveria ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o
conjunto dos altos funcionários em exercício por aqui, deixava muito a desejar,
porque até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre
Lisboa e o Brasil. A corrupção sempre grassou no serviço judiciário português ,
quer na metrópole, quer nas colônias. Desde Platão, aprendemos que os costumes
não se mudam por leis, ao que Rousseau acrescentou outra lição amarga para nós:
a verdadeira constituição do Estado são os costumes. A conclusão eu deixo a
cargo do leitor. Por fim, antes de pedir o fim da corrupção aos próprios
agentes corruptores, busquemos estudar a nossa história, a história da formação
de nossa sociedade e de nosso Estado. Talvez assim, se não conseguirmos debelar
tal costume tão familiar entre nós, ao menos não nos deixaremos seduzir por
populistas que se apresentam como ovelhas do pastoreio da Redenção com pele de
lobo que frequenta os salões onde se refastela junto de sua alcateia, há anos,
no banquete dos cofres públicos. No Brasil, moçada pedinte, desde muito cedo, o
poder de mando, de dominação política e econômica, se concentrou na aliança
formada entre os agentes estatais - governadores, magistrados, membros do
Ministério Público, altos funcionários - e os potentados privadas - o grande
empresariado, donos do capital. Aqueles, no exercício de suas funções oficiais
atuam a serviço dos interesses destes, enquanto estes, fingindo submissão aos
poderes oficiais, pressionam aqueles, quando não os corrompem simplesmente, em
todos os níveis - legislação, administração, prestação de justiça. E quanto ao
povo? O povo que se lasque! A notícia amarga e desoladora é que a coligação
oligárquica soberana não dá sinais de que um dia chegará ao fim no Brasil. Para
isso acontecer, o povo teria de deter realmente o poder soberano, o que
significa dizer que teríamos de instituir uma verdadeira democracia no Brasil.
Mas entendam isto, pelo amor de Deus! NÓS NÃO VIVEMOS NUMA PLENA DEMOCRACIA. O
que temos aqui é uma pseudodemocracia, um simulacro de democracia, um arremedo
de democracia. Como ensinou Aristóteles (sempre a filosofia - essa inutilidade
tão necessária ou mais necessária do que todas as inutilidades), a democracia é
o regime em que o povo soberano goza de relativa igualdade de condições de
vida; mas o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, o que
torna ainda mais favorável a perpetuação da coligação oligárquica, cujo poder
inviabiliza a realização de uma autêntica democracia no Brasil, é o fato de que
a mentalidade da população menos favorecida é mais facilmente inclinada a
obedecer do que a mandar ou a tomar iniciativas. A educação política do povo é
necessária, mas ela não pode ser de responsabilidade, pelo menos não
inicialmente, do Estado, pois o poder oligárquico a ela se oporá.