"Poder é toda chance, seja ela qual for, de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra a relutância dos outros."
(Max Weber)
A instituição
religiosa
Uma
leitura introdutória da sociologia de Max Weber
As ideias articuladas por Bryan Magee, em seu Confissões de um filósofo (2001), no
excerto abaixo, não me agradam por terem sido, até o momento em que as deparei,
desconhecidas de mim, mas, ao contrário,
me agradam justamente por já terem sido, antes mesmo de elas se me
depararem nesse livro, trazidas à luz por mim em alguns de meus textos. Não é
razoável concluir daí que eu esteja a reivindicar a originalidade de tais
ideias (coisa que não me ocorreria fazer, porque tenho consciência de que a
originalidade, quando se trata de produção de ideias ou discursos, não passa de
uma noção enganosa ou mítica). Se me agrado de tê-las encontrado na pena de
Magee, é porque me apercebi da afinidade entre nossos pensamentos. Afinal, quem
não se contentaria em topar ideias suas em obras de grandes autores,
especialmente se eles são filósofos? Quando esse é o caso, podemos estar
seguros de que nosso pensamento vem sendo desenvolvido por um caminho justo e
sem desníveis. Atendamos, então, ao que nos escreve o autor:
“(...) Lorde Acton disse que se deveria aprender tanto
com a escrita quanto com a leitura. É uma frase profunda. Escrever sobre um tema força a pessoa a estudá-lo de forma
organizada e com um objetivo em foco; a ler toda a literatura essencial a
respeito dele; a cobrir todo o terreno, sem deixar lacunas substanciais; e essa atividade oferece um forte motivo para
esclarecer os detalhes mais triviais, para não deixar passar erros”.
(ÊNFASE MINHA, p. 36)
A ideia básica segundo a
qual escrever nos incita a nos deter no estudo prévio de um tema se afina com a
ideia de que o próprio trabalho de escrita supõe uma reelaboração do conteúdo compreendido.
Durante a atividade de escrita, o conhecimento que adquirimos, depois de algum
tempo em que estivemos debruçados sobre um livro, é sistematizado,
reorganizado, reconstruído, reconhecido, de sorte a tornar-se ainda mais
transparente e aderente ao nosso espírito. Em suma, aprendemos tanto com a
leitura quanto com a escrita. Por conseguinte, a ideia de que o exercício da
escrita contribui para nos esclarecer ainda mais sobre temas ou questões que
nos ocupam conveio a mim, em certa feita, em que me questionava sobre os fins a
que servia minha laboriosa dedicação a esse exercício. A minha formação
acadêmica, em si mesma, parecia-me insuficiente para lograr a posição de
resposta, sem embargo de ela ter-me conduzido, há mais de dez anos, aos jardins
verbais onde, desde então, encontro refúgio e contentamento. Dois, são,
portanto, os objetivos basilares a que visa o meu trabalho de escrita: instruir-me e contentar-me. Sinto contentamento durante o próprio
exercício da escrita e ele se aviva na consciência da instrução que desse
exercício decorre.
Este texto destina-se à
discussão do tema religião, à luz da sociologia da dominação, proposta pelo
sociólogo alemão Max Weber. As questões sobre as quais repousarão minhas
reflexões serão duas: 1ª) Qual a visão de
Max Weber sobre a religião?; 2ª) De
que modo, segundo ele, a religião exerce seu poder sobre seus fiéis?.
Proporei uma abordagem do tema que se estruturará nas seguintes etapas: 1) considerarei,
em primeiro lugar, o que é pensar
dialeticamente, com vistas a chamar a atenção para o fato de que qualquer
trabalho intelectual deve ser orientado pela certeza de que a realidade não se
esgota na elaboração de nossas sínteses; 2) na segunda etapa, introduzirei o
leitor no pensamento de Max Weber, sem visar à exaustão; 3) na terceira etapa,
discuto o conceito de instituição; 4)
na quarta etapa, me ocupo da discussão do conceito de instituição religiosa; 5)
na quinta etapa, retorno a Max Weber, para apresentar sua perspectiva
sociológica sobre a religião.
1. Pensar dialeticamente
O conceito de dialética será
aqui contemplado tendo em conta as perspectivas de Hegel e Marx. Vou começar
por situá-lo no pensamento de Hegel.
Na filosofia de Hegel, a dialética designa um movimento da razão
através do qual é possível superar uma contradição. Não sendo um método, a
dialética envolve um movimento, em conjunto, do pensamento e do real.
Quando compreendida no domínio da História, a dialética, ensina-nos
Hegel, serve para pensar a história como uma sucessão de momentos, que compõem
uma totalidade. Cada momento se apresenta em oposição ao momento precedente. Um
determinado acontecimento nega as
limitações de um momento anterior, superando-o, na medida em que o leva a um
estágio superior.
A dialética, na visão de Hegel, possibilita o acesso ao saber absoluto,
visto que do movimento do pensamento pode-se deduzir o movimento do mundo.
Logo, o pensamento humano pode conhecer a totalidade do mundo.
A dialética marxista, contudo, torna-se um método. Segundo Marx, a
dialética leva-nos a considerar a realidade socioeconômica de uma dada época
como uma totalidade atravessada por contradições, entre as quais a da luta de
classes. Coube especialmente a Engels transformar a dialética no método do
materialismo e na forma como se realiza o movimento histórico, no domínio do
qual a Natureza constitui uma totalidade coerente, cujos fenômenos se
condicionam reciprocamente. Também devemos a Engles a concepção de dialética
como estado de mudança e movimento, como espaço onde o processo de mudanças
quantitativas produz, por cumulação e avanços abruptos, mudanças de ordem
qualitativa. A Natureza é, pois, considerada um lugar de contradições internas,
um lugar em que os fenômenos apresentam uma face positiva e outra negativa, um
passado e um futuro. As tensões ou oposições que daí se depreendem é que
provocam a luta de tendências contrárias. Dessa luta redunda o progresso.
No domínio da dialética marxista – que me interessa aqui -, o
conhecimento é entendido como um processo que tende a totalizações. A atividade
humana, por sua vez, é concebida como um processo de totalização, que, no
entanto, não se finaliza. A realidade é complexa; ela envolve, necessariamente,
relações diversas entre seus elementos componentes. A fim de compreender
adequadamente essa complexidade, que é inerente à realidade, o homem tem de
proceder de tal modo, que construa uma visão de conjunto, a partir da qual
possa examinar acuradamente cada elemento da totalidade.
É preciso notar, no entanto, que a complexidade da realidade sempre
excede o conhecimento que podemos ter dela. Há
sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses. Elaborar sínteses é
parte indispensável do trabalho de pensar dialeticamente a realidade. A síntese
é a visão de conjunto por meio da qual o
homem consegue apreender o significado da realidade sobre a qual se debruça,
numa dada conjuntura. A totalidade – é preciso dizer -, não é senão a
estrutura significativa percebida quando da construção da visão de conjunto. Em
outras palavras, a visão de conjunto nos dá a totalidade (estrutura) da
realidade.
Dizer que o conhecimento da realidade é um processo que aponta para
totalizações é reconhecer que há totalidades mais abrangentes e totalidades
menos abrangentes. Destarte, no trabalho de construção de um pensamento
orientado dialeticamente, há que determinar o nível de totalização pretendido.
Se estou interessado em examinar, por exemplo, os movimentos de protestos
recorrentes no Brasil neste ano, sou forçado a limitar o escopo de minha
análise ao conjunto da sociedade brasileira, discriminando, nesse domínio, os
aspectos referentes às esferas econômica, política, histórica, sem perder de
vista as contradições persistentes nessa sociedade. Se, por outro lado, eu
pretendo avaliar esses protestos tendo em conta seu impacto nas relações
político-econômicas do Brasil com as grandes potências mundiais, precisarei de
um nível de totalização mais amplo.
Ignorando-se o fato de que, na prática, nem sempre temos a necessidade
de determinar uma totalidade que recubra um nível máximo de totalização, por
exemplo, a filosofia da história, a dialética consiste numa atividade
intelectual através da qual o pensamento vai-se construindo por etapas, num
trabalho contínuo sobre totalidades de níveis variados de abrangência.
De uma perspectiva dialética, a realidade é estruturalmente constituída
de contradições. O todo é compreendido tendo em conta as contradições entre
suas partes, e as partes são consideradas em sua relação com o todo. Não se
admite, assim, abstrair as partes do todo, nem se admite pensar o todo
ignorando as partes.
A realidade é essencialmente
contraditória. Eis um princípio que sustenta a dialética. A
contradição encontra-se na base do movimento do próprio real. A contradição
supõe uma relação em que os elementos se definem em oposição uns aos outros. Os
elementos implicados numa relação de contradição se definem sempre
negativamente: um se define por aquilo
que o outro não é. Assim, o senhor se define na relação com o escravo; e o
escravo se define na relação com o senhor. O senhor é aquilo que o escravo não
é; e o escravo é aquilo que o senhor não é. Na dialética, a contradição não é
um mero erro de raciocínio. Embora não se oponha à lógica, a dialética a
ultrapassa.
Princípio básico da dialética
marxista: a
realidade é uma totalidade sempre aberta; é um processo que nunca se fecha e
que jamais se reduz ao conhecimento que se tem dela. A realidade é sempre mais
rica do que o conhecimento que podemos ter dela.
Tendo em conta as considerações feitas aqui sobre o conceito de
dialética, ou melhor, sobre o que é pensar
dialeticamente, passarei a concentrar minhas reflexões no tema a cujo
desenvolvimento e discussão me proponho neste texto. Esforçar-me-ei por tornar
tão menos custosa quanto possível a percepção pelo leitor da orientação
metódica de meu pensamento, cujo movimento não cessará de articular domínios
mais abrangentes com menos abrangentes. Meu ponto de partida será, portanto,
apresentar Max Weber ao leitor não familiarizado com ele. Nessa apresentação,
faço um resumo do pensamento sociológico desse autor.
2. Max Weber (1864-1920) e sua sociologia compreensiva
O caminho que se abre me conduzirá a construir uma visão de conjunto da
sociologia de Max Weber. Filósofo e sociólogo alemão, nascido em Efurt, Max
Weber é um dos principais responsáveis pela formação do pensamento social
contemporâneo, sobretudo do ponto de vista metodológico. Uma de suas
preocupações foi determinar, para as ciências sociais, um modelo explicativo
próprio, que diferisse do modelo das ciências naturais (Japiassú &
Marcondes, 2008, p. 281).
Entre suas contribuições, avulta a distinção entre a razão instrumental
e a razão valorativa. Ocupando-se da análise da sociedade contemporânea, Weber
procurou investigar os traços fundamentais do Estado moderno, da sociedade e da
burocracia que exerce naquele um papel central.
Sua obra mais influente é A ética
protestante e o Espírito do capitalismo (1904-05), na qual empreendeu um
estudo em que visa a demonstrar que, para explicar o aparecimento do capitalismo,
é necessário levar em conta os aspectos éticos, religiosos e culturais que o
tornaram possível. Assim, na visão de Weber, não se pode examinar o surgimento
do capitalismo por uma visão reducionista, qual seja, por uma visão que se
limite ao domínio econômico.
2.1. A sociologia de Weber
São vários os interesses de Weber, entre os quais convém mencionar: a
preocupação em definir a singularidade do Ocidente moderno; a formulação de uma
explicação causal para a gênese da sociedade ocidental; seu empenho em mostrar
como a ação se orienta por valores; e sua insistência no modo pelo qual as
pessoas, vivendo em diferentes contextos sociais, conferem sentido às suas
vidas. Acrescente-se que a religião também figurou na agenda de interesses
desse autor.
Metodologia de Weber. Opondo-se
aos modelos sociológicos desenvolvidos por pensadores consagrados como Augusto
Comte e Èmile Durkheim, Weber propôs uma abordagem crítica de teorias
holísticas, à luz das quais as sociedades se concebem como unidades quase orgânicas,
cujas partes de inter-relacionam perfeitamente compondo um “sistema” de
estruturas objetivas. As escolas afinadas com essa perspectiva holística da
sociedade pensam o indivíduo como um sujeito cuja ação é determinada pela
estrutura social e a interação social como meras formas particulares de
expressão da totalidade social. Weber se opõe à ideia de que as sociedades são
totalidades fechadas, cujas partes compõem uma unidade consistente. Ele via, ao
contrário, nas sociedades, as possibilidades de tensão, a fragmentação, os
conflitos manifestos, a manipulação de poder.
Weber combateu com vigor a perspectiva das escolas positivistas, para
as quais as ciências sociais deveriam ocupar-se na construção de sistemas
fechados de conceitos apropriados para dar conta da classificação da realidade
de um modo definitivo. Para Weber, as causas de eventos individuais só podem
ser elucidadas por meio da compreensão de outras estruturações individuais.
Tese de Weber. As
pessoas exibem a capacidade de interpretar suas realidades sociais, de atribuir
um sentido subjetivo a determinados aspectos delas e de empreender ações
independentes. Para Weber, os indivíduos gozam de liberdade para escolher.
Constitui uma proposição fulcral de toda a sociologia weberiana buscar
“compreender interpretativamente” as maneiras pelas quais os indivíduos
percebem sua própria ação social. Segundo o autor, a ação social é dotada de sentido subjetivo e sobre ela deve recair a
atenção dos sociólogos.
Weber, conquanto reconheça que as pessoas são agentes sociais, não as
considera apenas na dimensão social. Para ele, elas têm a capacidade de
interpretar ativamente as situações, as interações e as relações em que se
envolvem, com base em valores, crenças, interesses, emoções, poder, autoridade,
leis, costumes, hábitos, ideias, etc. O autor insta em que é possível aos
sociólogos compreender o significado da ação dos indivíduos. Essa “compreensão
racional” implica uma apreensão intelectual do sentido atribuído pelos atores
sociais às suas ações. Também, segundo Weber, é possível aos sociólogos buscar
compreender intuitiva e empaticamente o significado da ação dos indivíduos,
sempre que se concentrarem na apreensão do “contexto emocional em que se dá a
ação” (Kalberg, 2010, p. 34).
O interesse principal de Weber abriga, portanto, o compreender a
motivação para uma ação observável; o compreender de que maneira se dá a
variação do sentido subjetivo de um ato, tendo em vista suas diversas
motivações; o compreender como essas motivações influenciam o curso da ação.
Já vimos que Weber está preocupado em compreender como agem os
indivíduos em determinadas situações e quais sentidos eles atribuem às suas
ações. Essa preocupação o leva também a buscar explicar de modo causal como se
constituem esses indivíduos históricos. É a realidade da vida em que eles estão
imersos, é a singularidade característica dela que estão sob o foco da atenção
do autor.
Na busca por compreender o significado das ações sociais, excedem em
importância os quatro tipos de ação propostos por Weber. Os quatro tipos de
ação social são dotados de sentido subjetivo. O primeiro tipo é a ação racional referente a fins. Nesse
tipo de ação, levam-se em conta os fins, os meios e as consequências, que são
ponderados racionalmente. As pessoas consideram as diferentes relações entre
meios e fins e entre fins e suas consequências, bem como a validade de outros
fins possíveis (Kalberg, 2010, p. 35). O segundo tipo é a ação racional referente a valores. Nesse caso, a ação se
determina por uma crença no valor que tem em si mesma uma conduta ética,
estética, religiosa, etc. As perspectivas de sucesso da ação não são tão
importantes. Esse tipo de ação envolve sempre ‘ordens’ ou ‘demandas’ (ib.id.).
O terceiro tipo é a ação afetiva.
Esse tipo de ação é determinado por afetos e estados sentimentais que
experimenta o agente no momento mesmo em que atua. A ação afetiva envolve um
apego emocional relativamente aos dois tipos de ação anteriores. O quarto tipo
é a ação tradicional. Ela é
determinada por hábitos arraigados e por costumes seculares. Quase sempre
funciona como uma resposta rotineira a estímulos comuns.
A classificação das ações sociais, tal como proposta por Weber, o
auxilia na tentativa de compreender orientações difusas de ação (Kalberg, p.
36).
Em suma, o modelo teórico de sua sociologia compreensiva visa a
orientar os sociólogos na compreensão da ação social tendo em vista as
intenções do próprio agente.
3.1. A sociedade como
realidade objetiva
Em A construção social da
realidade (2007), Berger & Luckmann introduzem o tema das origens da
institucionalização, dando-nos a conhecer a diferença existente entre os modos
de o homem e de os animais não-humanos se relacionarem com o ambiente em que
vivem. Os animais não-humanos mantêm relações biologicamente fixas com o
ambiente. Eles vivem, quer como indivíduos, quer como espécies, em mundos
fechados, de tal modo que a organização de seus mundos é predeterminada pelo
equipamento biológico inato presente nas diferentes espécies. O organismo deles
é uma extensão do ambiente natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a relação
do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão entre dois
fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no
homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si
mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o
seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no
mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,
“(...) a experiência
que o homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e
ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)
Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a compreensão
do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão de atividades
de produção de significados subjetivos, quando se considera essa especificidade
da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre essas
consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem é sempre uma atividade que se faz com outros, é
sempre, portanto, uma atividade social; 2) os seres humanos produzem um
ambiente humano em conjunto, em interação com outros seres humanos; 3) essa
produção do ambiente humano não se dá sem uma totalidade de formações
socioculturais e psicológicas de que os homens tomam parte; 4) quando se lançam
olhares sobre os fenômenos humanos, claro fica que se está diante de um reino
social; 5) humanidade e sociabilidade estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma direção e
uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa estabilidade da ordem
humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão chamando a
atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento individual do
organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para exteriorizar-se
nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a ordem social é
que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a transforma. A
ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo, biologicamente
determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É assim que a ordem
social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a conduta humana
(Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada biologicamente, nem
redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não faz parte da
natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do ambiente natural
do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a forma da ordem
social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem social é produto
unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os autores:
“Tanto em sua gênese
(ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência
em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a
atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)
Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados
biológicos, não se pode negar que a
necessidade dessa ordem social provém do equipamento biológico humano (p.
77).
Como se dá a
institucionalização? À página 77, escrevem os autores: “toda atividade humana está sujeita ao
hábito”. O hábito é um aspecto fundamental do processo de fabricação da
realidade institucional. Toda ação que se reitera muitas vezes molda-se num
padrão, que passa, então, a ser reproduzido com economia de esforço e que é
compreendido como padrão por quem a executa. O hábito torna possível que a ação
seja reproduzida também no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de
esforço que o foi no passado. Isso é verdade tanto para a atividade social
quanto para a atividade não-social. Mesmo um indivíduo solitário realiza ações
habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de significado para
o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no conjunto de
conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são avaliados
como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras. Acerca do
valor do hábito, esclarecem-nos os autores:
“O hábito fornece a
direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do
homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não
dirigidos”.
(p. 78)
Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para decisões que
se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade de que cada
nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma grande
quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam
predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser
antecipada.
Os processos de formação de
hábitos estão na origem de toda institucionalização. Isso
vale também para o caso hipotético de um indivíduo isolado. Não se pode ignorar
que esse indivíduo solitário, supondo-se a formação de um “eu”, também terá de
converter em hábito sua atividade, em consonância com a experiência biográfica
construída num mundo de instituições sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de
institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as
ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas tipificações constitui
uma instituição. Para efeitos de compreensão da institucionalização, não só
a reciprocidade das tipificações importa, mas também a tipicidade das ações e
dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas instituições –
ou melhor, que são as instituições –
são partilhadas entre os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e
a própria instituição tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é
ilustrada de modo bem simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:
“A instituição
pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do tipo x. Por
exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão decapitadas de
maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos determinados de
indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros de uma casta
impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram designados por
um oráculo)”.
(p. 79)
Como se vê, é a própria instituição que regula as ações desempenhadas
pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na estrutura
institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann, “implicam (...) a
historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as tipificações das
ações se constituem no curso de uma história de que tomam parte os agentes
sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto dessa história.
Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma instituição sem
lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por força mesmo de sua existência, controlam a conduta
humana, fixando-lhe previamente padrões na base dos quais ela se
desenvolverá. A direção da conduta humana coloca-se sob o governo desses
padrões. Isso evita que a conduta dos indivíduos tome outras direções
potenciais mas não desejáveis para uma instituição. O caráter controlador é
inerente, portanto, à instituição e é anterior a quaisquer dispositivos de
sanções mobilizados para produzir apoio à instituição. O controle está
entranhado na realidade de qualquer instituição, conforme notam Berger &
Luckmann abaixo:
“Dizer que um segmento
da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento da
atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)
Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta a
Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos
exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade.
Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa
objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu,
embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar, claro
é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo
homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social.
No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de
si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu
independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro
agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma
relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um
age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem
como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma realidade objetiva; c)
o homem é produto social (Berger
& Luckmann, p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma
análise pode negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:
1) sua realidade objetiva. O
mundo institucional é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como
uma realidade marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do
indivíduo e cujas origens ele ignora;
2) sua perpetualidade. Toda
instituição se perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do
indivíduo, mas também porque continuará existindo depois de sua morte;
3) a sua historicidade. A
própria história desse mundo institucional é dotada de objetividade. A
biografia de um indivíduo se reduz a um episódio situado na história objetiva
de sua sociedade.
4) sua facticidade inegável.
As instituições com que se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles
as percebem como tais.
Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão aí,
exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou não”
(p. 86). As instituições resistem às
tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder
coercitivo sobre os indivíduos, quer devido ao seu caráter de facticidade (elas
estão aí como “já dadas”), quer por força dos mecanismos de controle que lhes
dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se impõe, mesmo
que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de funcionamento.
Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender muitos aspectos da
ordem social e pode considerar opressivas as formas como eles se lhe
apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.
“Existindo as
instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por
introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de
apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)
A linguagem desempenha um
papel fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me
deter a avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso
compreender a função da legitimação,
como um fenômeno, necessariamente dotado de materialidade linguística, que
atenderá às necessidades de permanência da instituição e seu reconhecimento
pela geração futura.
Legitimação. O
mundo social existe somente na medida em que é transmitido a uma nova geração.
Esse processo de transmissão se realiza na forma de interiorização pelos
indivíduos, na socialização, das estruturas institucionais (suas normas,
ideias, valores, ideologias...). Portanto, o mundo social existe apenas quando
do surgimento de uma nova geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do aparecimento de
uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois, os modos pelos quais o mundo
social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação na
conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração recebe a
realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos indivíduos. Vou ilustrar essa
inacessabilidade da realidade da instituição à consciência dos indivíduos,
pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento de pensamento. Imaginemos
que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e Maria, não sendo criadores
originais do mundo social (como também não o são os seus pais, é claro) não
podem ter acesso direto ao significado das instituições. O conhecimento que se
lhes tornam acessível o é por um “ouvi dizer”. O significado original das
instituições deve ser interpretado para eles por meio de várias fórmulas
legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação do mundo social, servindo
para explicá-lo ou justificá-lo para as novas gerações, visam também a provocar
nelas um consenso acerca da validade dos modos de funcionamento da própria
instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser
suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a
história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam
Berger & Luckmann,
“Segue-se que a ordem
institucional em expansão cria um correspondente manto de legitimações, que
estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e
normativas”.
(pp. 88-89)
A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são
interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos
indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à
compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de
normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas
instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular a conduta dos indivíduos na ordem social.
“A nova geração
engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem institucional
exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem pretender, e de fato
pretendem ter autoridade sobre o indivíduo, independentemente das significações
subjetivas que este passa a atribuir a qualquer situação particular”.
(p. 89)
As definições institucionais previamente existentes devem ser
protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de
produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez
que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do
Método Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de instituição
que capta dois aspectos básicos dela: sua
padronização de hábitos e sua
objetividade irredutível à consciência individual.
“[instituições] são as
maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de
existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)
Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um “fato
social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas, cabe
destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos sociais
congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao
indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem
à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do
processo de educação. Segundo ele,
“Quando reparamos nos fatos
tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste
num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir
às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros tempos de
sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas.
Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em
conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc.,
etc.”
(p. 35)
Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina Durkheim, é
que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem. Mas é a
própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências individuais,
acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.
A objetivação pela linguagem. Tenho
repisado a ideia de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas
experiências de mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas
orientando-a no sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela
linguagem no processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de
nossas experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de
conhecimento) que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em
nossos discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a
linguagem objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a
todos os indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um
estoque de conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias pelas quais
se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são incorporadas
ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger & Luckmann lançam
uma luz sobre a importância da linguagem no processo de objetivação de nossas
experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante pelo qual as
sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em
questão” (p. 96). E prosseguem:
“Por exemplo, só alguns
membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas,
sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta
assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e
habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos
indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência,
ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar um profundo
laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência designada e
transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez fortemente
significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)
Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida na/pela
linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir um
caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de
conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação
da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de
transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento
acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem
permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que
são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral,
mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações coletivas
assumem a forma de ideologias.
“(...) Tendo a origem
real das sedimentações perdido importância, a tradição pode inventar uma origem
completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi objetivado. Em outras
palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras, de vez em quando
outorgados novos significados às experiências sedimentais da coletividade em
questão”.
(pp. 97-99)
Comum às formas de ideologia é o apagamento das causas reais de
existência de uma dada realidade. O apagamento dessas causas permite que outras
causas passem a preencher o seu lugar. A realidade, contudo, se mantém
preservada, já que a ideologia a legitima e a reproduz. Para dar um exemplo do
modo como a ideologia, apagando as verdadeiras causas que estão na origem de
uma coisa, serve para, não obstante, conservá-la e reproduzi-la, considere-se a
escrita dos quatro evangelhos que constam do cânone do Novo Testamento. Ao
longo de séculos, inúmeros relatos sobre quem foram os autores dos evangelhos
contribuíram para sedimentar a crença de que esses autores foram os apóstolos
de Cristo. Cada um dos nomes que se estampa nas páginas dos evangelhos parece
provar ser verdadeira essa crença. Mas uma leitura cuidadosa dos textos,
orientada por um método denominado de crítico-histórico ajuda a desencavar a
verdade que tem por hábito esconder-se quase sempre. Em primeiro lugar,
deveríamos nos perguntar por que surgiu aquela crença, ou seja, por que se
veiculou a ideia de que os evangelhos foram escritos pelas pessoas que foram
apóstolos de Cristo? Porque se pretendia garantir aos leitores que esses textos
foram escritos por testemunhas oculares. Deve-se ver aqui o pressuposto de que
testemunhas oculares são dignas de confiança; portanto, estão comprometidas em
contar o que de fato aconteceu. É claro que, na realidade, não se pode confiar
que mesmo testemunhas oculares ofereçam relatos históricos precisos. Mas,
deixando de lado, essa questão, o primeiro aspecto da verdade (agrada-me pensar
a verdade como um caleidoscópio, que nos encanta à medida que se nos revelam
suas múltiplas cores e formas) diz respeito ao fato de que os Evangelhos foram
escritos anonimamente. O segundo aspecto é que seus autores não alegam ter sido
testemunhas oculares. O terceiro aspecto é que os nomes que figuram nas páginas
desses livros foram acrescidos posteriormente por escribas e editores, que
intentavam informar os leitores sobre quem acreditavam ser os autores dos
textos. Note-se que quem quer que tenha realmente escrito o Evangelho de Mateus
não escreveria “Evangelho segundo Mateus”. O quarto aspecto é que esse
Evangelho foi escrito na terceira pessoa, ou seja, quem o produziu não participa
dos acontecimentos relatados; essa pessoa instaura um “eles” na narrativa
(“eles” é “Jesus e os discípulos”). Em João (21:24), lê-se: “Este é o discípulo
que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que o seu
testemunho é verdadeiro”. Veja-se que se instauram um “ele” (“este é o
discípulo”) e um “nós” (“sabemos que...”), de modo que o autor não é o
discípulo; aquele alega ter tão-só recebido as informações do discípulo. A verdade
não se esgota nesses quatro aspectos, evidentemente. Há as contradições
flagrantes quando se dispõem, lado a lado, os quatro evangelhos. A esse fato
acrescente-se ainda que o analfabetismo atingia 90% da população do Império
Romano e que a minoria rudimentarmente alfabetizada pertencia às classes
abastadas. Os apóstolos de Jesus eram, como se sabe, pessoas provenientes das
classes populares, falantes de aramaico da Galileia. É bem estabelecido há
muito o consenso entre os eruditos sobre o fato de que os Evangelhos foram
originalmente escritos em grego, língua que, certamente, não dominavam os
apóstolos de Jesus, que eram camponeses das classes menos abastadas e
analfabetos. Quem, então, foram os autores? Os próprios Evangelhos auxiliam na
construção de hipóteses. Embora não tenham sido os livros mais sofisticados que
circulavam no império romano, certamente sua narrativa é bem escrita e
estruturada, o que sugere que seus autores eram pessoas com grau de instrução
bastante elevado, falantes de grego, que viviam fora das regiões da Palestina.
A crença de que eles não eram habitantes da Palestina confirma-se pela
observação de sua ignorância sobre a geografia da região e sobre os costumes
judaicos, ignorância que se pode deduzir do cotejo do que relatam com o que se
sabe sobre a região palestina e os costumes judaicos. Consoante nota Ehrman, em
seu livro Quem foi Jesus? Quem não foi
Jesus? (2010),
“Quem quer fossem esses
autores, eram cristãos de uma geração posterior, com dotes incomuns. Os
estudiosos discutem onde viveram e trabalharam, mas sua ignorância da geografia
da região palestina e dos costumes judaicos sugere que criaram suas obras em
outro lugar do império – possivelmente em uma grande área urbana onde poderiam
ter recebido uma educação decente e onde haveria uma comunidade cristã
relativamente grande”.
(p.123)
Os quatro evangelhos que entraram a fazer parte do cânone não são os
únicos remanescentes; outros muitos foram escritos e associados a outras
pessoas que, supostamente, teriam convivido com Jesus. Por razões políticas,
ideológicas e teológicas, eles foram rejeitados pelas autoridades
proto-ortodoxas. Muitos desses escritos se perderam para sempre, mas outros
foram encontrados, como os evangelhos de Pedro, de Judas e de Maria Madalena.
Outro aspecto da verdade sobre a produção ou reprodução dos quatro evangelhos
canônicos é que os originais se perderam para sempre; os que foram incluídos na
Bíblia são cópias de cópias, produzidas por escribas, que alteraram os textos
voluntariamente, ou por inaptidão, ou pelo esgotamento provocado pelo próprio
trabalho árduo de copiar manualmente palavra por palavra.
Uma sucessão de “apagamentos” fomentou a crença, acalentada por bilhões
de pessoas no mundo atual, de que os quatro evangelhos que constam da Bíblia
são os textos originais produzidos pelos verdadeiros apóstolos de Jesus.
Evidentemente, esses “apagamentos”, produzidos por narrativas ideológicas, se
deram e se perpetuaram a partir de condições
sócio-históricas profundamente marcadas por disputas, conflitos, interesses
antagônicos que animavam aqueles que tomavam parte das esferas de poder
(político, ideológico e teológico).
Na medida em que oculta da consciência dos indivíduos as verdadeiras
causas de uma dada instituição, a ideologia contribui para reforçar atitudes de
consenso, de aceitação, de assentimento, desencorajando movimentos sociais
insurgentes contra a ordem social estabelecida.
O que é, então, uma
instituição?
Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre si e
que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade. As
instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão
entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram.
As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por
organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos, que se
desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem
planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas
formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo
do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem
exemplos de instituições a propriedade
privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a
escola, a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas
ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam
por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas
normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis
sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas Simbólicas (2011),
a respeito da influência que as estruturas sociais exercem na formação da
consciência dos indivíduos:
“Se levarmos a sério
(...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de pensamento, de
percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em classes, somos,
necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre
as estruturas sociais (em termos mais precisos, as estruturas de poder) e as estruturas
mentais, correspondência que se estabelece por intermédio da estrutura dos
sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)
Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor dissimuladamente
princípios que regulam a estruturação da percepção e do pensamento do mundo,
particularmente, do mundo social, por meio da imposição de um sistema de
práticas e de representações cuja estrutura se calca objetivamente sobre uma
base de divisão política que espelharia a estruturação dos domínios natural e
sobrenatural do cosmos.
Na seção seguinte, vou estender minhas considerações à realidade
institucional religiosa.
Espero tenha ficado claro até aqui que a instituição, na medida em que
se constitui num espaço de relações sociais, transcende os indivíduos. Também
não deve restar dúvida sobre a independência da instituição em relação aos
indivíduos. As instituições – vale insistir – são exteriores aos indivíduos e
diferem da realidade interior deles, ou seja, do conjunto de seus sentimentos,
pensamentos e fantasias.
Vimos também que as instituições são sempre objetivas, porquanto valem
para todos os indivíduos. Elas funcionam independentemente da vontade deles. O
indivíduo é impotente em face da instituição. Sozinho ele não pode mudá-la. As
mudanças, quando ocorrem, resultam das próprias formas de funcionamento da
instituição.
Considerando-se o que foi dito, proponho a seguinte definição de instituição – toda forma de conduta social que, assumindo um padrão, torna-se
independente dos indivíduos. As instituições, conforme vimos, são produtos
do hábito, da ação ou atividades que se repetem e ganham existência autônoma.
Em suma, a instituição não foi criada pelo indivíduo, nem ele pode destruí-la.
Ela se estrutura por regras e por mecanismos de coerção.
Comecemos, pois, por admitir um fato inegável: a religião é uma instituição
social. Como tal, ela se estrutura por meio de um conjunto de regras
que determinam seu funcionamento interno; é relativamente autônoma em relação
aos indivíduos que dela participam. Por isso, devemos concordar com Luís Mauro
Sá Martino, em Mídia e poder simbólico (2003),
ao afirmar que “as igrejas são um
tipo específico de “programação de conduta individual imposta por um grupo
social” (pp. 21-22). Do mesmo modo, a pertinência da observação de Marx, em Manuscritos Econômicos Filosóficos
(2006), sobre a permanente dependência do homem real à religião endossa a
ideia de perenidade suscitada pela noção de “programação da conduta
individual”:
“A consumação do Estado
é o Estado que se reconhece simplesmente como Estado e separa-se da religião
dos seus membros. A emancipação do
Estado a respeito da religião não é a emancipação do homem real quanto à
religião”.
(grifo meu, p. 29)
Note-se a atualidade do pensamento de Marx. Ele ainda nos ajuda a não
nos deixarmos chafurdar nos enganos de uma consciência embotada da realidade: a laicidade do Estado não significa a
emancipação do homem concreto em relação à religião.
Acima, escrevi ser a religião uma instituição social. Sua natureza
institucional é representada na capacidade que tem as igrejas de tipificarem,
nas relações que as constituem, os papeis sociais que devem ser assumidos pelos
atores que a compõem.
No tocante à especificidade da instituição religiosa, deve-se
reconhecer que a definição dada ao sagrado
desempenha um papel decisivo, isto é, é a definição que se dá ao sagrado que
constitui a especificidade da instituição religiosa. Assim, compete à
instituição religiosa determinar as fronteiras entre pessoas, objetos, rituais,
modos de proceder, lugares que se situam entre as coisas deste mundo e as
pessoas que travam lutas por apropriar-se legitimamente dos bens imateriais. O
sagrado pertence ao domínio atemporal, imaterial, sobrenatural, transcendente;
as coisas sagradas exigem profunda deferência, adoção de determinados hábitos e
atitudes, veneração; o sagrado define a “região” do divino em oposição ao mundo
dos homens. O sagrado se define na relação de contradição com o profano
(dialética). Profano é tudo que é estranho à religião ou que viola a santidade
das coisas sagradas.
Não pretendendo descer a pormenores sobre a questão da definição do
sagrado, gostaria apenas de acenar à necessidade de compreendermos a natureza
da instituição religiosa, antes de fazermos incursão na abordagem proposta por
Weber do fenômeno religioso. Weber escrevia sobre o tema num momento histórico
já afetado pelo paradigma da secularização. A secularização é um processo sócio-histórico que privou as religiões
da autoridade sobre as prerrogativas que passaram então a ser partes da
competência de autoridades laicas. Com efeito, a secularização levou a religião
a perder seu lugar privilegiado no mundo, a perder também o monopólio sobre a
produção de sentido da vida e dos fenômenos sociais. A secularização tornou a
religião, nota Martino, “um acessório, plenamente dispensável para a
compreensão do mundo” (pp. 25-26).
A secularização exibe duas marcas que devem ser aqui apontadas:
1ª) ela destituiu a religião ou a
Igreja do poder de controlar institucional e juridicamente o funcionamento da
ordem social;
2ª) culturalmente, ela privou
a Igreja da prerrogativa de construção e reprodução (por coerção) de dominante
uma representação do mundo social, da legitimação de suas regras e, mais atualmente,
da imposição de uma opinião tomada como verdade indiscutível.
Se nos volvermos às palavras de Marx, anteriormente aduzidas, e as
considerarmos à luz do que nos ensina Martino no excerto abaixo, não será
custoso entender por que a separação entre Estado e Religião não acarreta o
esgotamento do valor desta última, ou melhor, não acarreta o desinteresse do
homem comum por ela. O interesse é mantido não só porque a religião dispõe de
mecanismos coercitivos sutis para garantir a adesão à sua ideologia e ao seu
sistema de práticas e rituais, mas também porque ela ainda responde pelas
grandes questões da existência, quais sejam, a do sentido da vida e a do sentido da morte. Não está,
evidentemente, entre as atribuições do Estado moderno, o pretender dar conta
dessas questões.
“A série de
representações, certezas, dogmas oferecidos pela instituição religiosa, embora
tendencialmente desprovida de uma base racional, é uma contínua atribuição de
significado, que se reflete no fiel como a certeza plena de estar de posse de
um conhecimento senão socialmente reconhecido, individualmente capaz de
responder as questões existenciais, de maneira a fornecer resposta e sentido à
existência”.
(p. 27)
4.1. A visão de Weber sobre o
fenômeno religioso
Weber entendia ser a religião uma forma de ação particular numa
comunidade. Para ele, à religião compete regulamentar as relações do
sobrenatural com os homens. Weber rejeitava a oposição, comumente aceita, entre
modernidade e religião, sustentando, ao contrário, que a religião desempenhou
um papel importante na emergência da modernidade.
A religião, pela forma específica de agir em comunidade e de dominar
alguns grupos, exibe duas características principais: favorece o estabelecimento de vínculo social e exerce um poder que lhe garante a própria existência. Mas Weber não
reduzia a função da religião ao estabelecimento de vínculo social. Em sua
famosa obra A ética protestante e o
espírito do capitalismo, Weber mostrou que havia uma influência mútua entre
as visões de mundo do protestantismo e do capitalismo. Assim, a ação social,
que no interior do sistema religioso é orientada magicamente, não leva os fiéis
a afastar-se do mundo. Ao produzir uma ética própria que serve à racionalização
do mundo, segundo a premissa da salvação, a religião confere poder de ação no
mundo ao fiel.
No importante estudo Economia e
sociedade, o sociólogo alemão mostra como surgiu a casta sacerdotal, como a
magia se transforma em religião e como daí resultou a Igreja. Além disso,
definiu e distinguiu as noções de “igreja” e “seita”.
Como Weber entendesse a religião como um modo particular de ação em
comunidade, ele sustentou ser necessário estudar as condições e consequências
do comportamento religioso. Ele não hesitou em se posicionar contra a visão predominante
de que a religião, insistindo na promessa de uma felicidade no além-mundo,
levaria os fiéis a se desinteressar pela única realidade verdadeiramente
existente. Para ele, mesmo que a religião tome como referencial de seu discurso
o além-mundo, não deixa de reportar-se para a vida na terra.
Weber também considerava racionais os atos religiosos, crença que o
levou a demonstrar que há diferentes tipos de racionalidade e que a
racionalização da religião contribuiu decisivamente para o surgimento da modernidade.
Não me será possível estender-me sobre essas alegações de Weber.
Interessam-me, não obstante, temas que se inscrevem numa sociologia da
dominação em que se estriba a sociologia das religiões desenvolvida pelo autor.
O primeiro desses temas se desenvolve a partir do conceito de agrupamento hierocrático”, que recobre a
ideia de um grupo no qual se exerce uma dominação particular (espiritual) sobre
indivíduos. Weber não deixa escapar duas características marcantes da religião:
além do vínculo social que ela engendra, ele destacou o tipo de poder que ela
exerce. Também se preocupou em distinguir duas formas de objetivação do que
chamou “comunalização religiosa”. A primeira dessas formas é a igreja, que se define como uma
instituição burocrática de salvação extensiva e receptiva a todos os homens, no
interior da qual a autoridade é representada pelo padre. A segunda forma é a seita, que consiste num tipo de
associação voluntária pelos crentes que se demonstram dispostos a romper, de
modo mais ou menos marcado, com o entorno social. Nesse tipo de associação, a
autoridade é exercida por um líder carismático.
É preciso ressaltar, contudo, que, no modelo sociológico de Weber,
Igreja e seita são tipos ideias que não encontram repercussão empírica, muito
embora sejam úteis como ferramentas para a investigação da realidade empírica.
Finalmente, cabe ainda considerar os tipos de autoridade religiosa
identificados por Weber com base na observação sobre as diferentes formas pelas
quais o poder é legitimado na vida social. Para o autor, há três modos de
legitimação do poder: o primeiro é o modo racional-legal;
o segundo é o modo tradicional; o
terceiro, o modo carismático.
A legitimação pelo modo racional-legal diz respeito à autoridade
administrativa. Essa autoridade impessoal se funda na crença comum no valor dos
hábitos, na naturalidade da transmissão de cada função (por exemplo, de um modo
hereditário). A autoridade carismática, por seu turno, é um tipo de poder
pessoal, cuja legitimidade se calca sobre uma aura reconhecida num dado
indivíduo.
No campo religioso, aqueles três modos de legitimação do poder
correspondem a três tipos ideias de agentes: o padre, o feiticeiro e o profeta. O padre encarna a autoridade
religiosa exercida na esfera burocrática da salvação. O feiticeiro exerce uma
autoridade que lhe garante o lugar de portador de uma tradição junto a uma
comunidade que o reconhece como tal. O profeta é a autoridade religiosa pessoal
que se impõe como fonte legítima de uma revelação que ele mesmo anuncia.
Se a autoridade institucional do tipo “padre” é atribuída ao religioso
a quem compete dirigir a comunidade no cotidiano, garantindo sua continuidade
por longo tempo, a autoridade carismática do tipo “profeta” se desinteressa
pela gestão da vida cotidiana.
Não tive a intenção de me alongar sobre as questões desenvolvidas por
Weber em sua abordagem sociológica da religião. Contento-me com a possibilidade de ter
conseguido estimular no leitor o interesse por aprofundar seus estudos sobre
Weber e sua sociologia.
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