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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

“A ignorância é nosso orgulho epocal”. (Casanova)

 




Sobre ser erudito

“A ignorância é nosso orgulho epocal”.

Casanova

 

 

Entre os meus pares, sou conhecido por ser demasiado analítico, até mesmo prolixo. Meus colegas e professores da PUC-Rio o sabiam e até me permitiam tal exuberância de estilo. Depois que terminei minha longa temporada de estudos na PUC para ingressar no curso de filosofia na UERJ, era chegada a vez de os colegas e professores de lá conhecerem minha obsessão com o estilo de linguagem e, sobretudo, o meu cuidado com o cultivo do pensamento reflexivo. Depois de mais de 20 anos de estudos aturados, desde que ingressei em minha primeira graduação em 2001, ao longo dos quais cumulei conhecimentos, fiz amizades enriquecedoras e construí relações acadêmicas sem as quais minhas produções intelectuais não seriam possíveis, tenho hoje uma única grande ambição - a erudição. Não ouso saber tudo sobre tudo (o que é impossível, seja porque nem tudo me interessa, nem tudo sou capaz de conhecer, seja porque, como disse Foucault, noutro contexto, em que lembrava a inconveniência do ardor apaixonado da militância, “a finitude é devastadora”). A erudição não é mensurável, nem é um estágio estacionário. A erudição está sempre em devir. Nunca se perfaz. Ela é um horizonte. Do grego “horidzo”, que significa ‘limite’, o horizonte é um limite nunca alcançável. Nisto reside seu enigma: quanto mais caminhamos na direção do horizonte, mais ele se afasta, abrindo-nos mais terreno, novas possibilidades. Nossa existência é, portanto, sempre uma caminhada, que nunca se completa. A morte não é a realização da completude da existência, mas a interrupção definitiva da caminhada. É também por isso que a morte é trágica, é um “corte profundo”, uma violação da tendência natural da vida a viver; é um estupro predestinado.

A erudição não é signo de nobreza. Ela não deve ser título de distinção social. A erudição não deve oprimir, nem intimidar ninguém. Penso que o conhecimento e o pensamento devem ser caminhos para a liberdade, devem tornar possível a realização de novos modos de viver e de ser. Só a burrice julga ofensivos o pensamento e o conhecimento. Só a burrice os odeia, vocifera contra eles. Só ela quer amordaçá-los. O conhecimento não deve destinar-se à intimidação; não deve humilhar. Quem muito sabe deve disseminar o encanto e o desejo do saber, deve saber encantar aqueles que têm sede e fome de saber. Na aurora do século XVII , em plena Revolução Científica, o cientista e ex-Lorde-Chanceler Francis Bacon, ao declarar “Knowledge is power”, ou seja, “saber é poder”, dava testemunho da virada utilitarista que marcaria a grande transformação do saber no ocidente, desde então visto como um meio para a resolução de problemas. O saber passava a ser concebido como um estoque, um capital acumulado cujo fim era aumentar a capacidade do homem de dominar a natureza, tornando-a um produto a serviço de seu bem-estar e da melhoria de seu destino. Essa é a maneira como o homem moderno se relaciona com o saber ainda hoje. Desde o século XVI, a concepção utilitarista da Educação tem dominado a organização dos sistemas escolares. Se hoje o senso comum de nossa civilização capitalista toma como valioso o saber tecnológico-científico, o saber “prático” ou aplicável na prática da vida, é porque o capitalismo engendrou duas formas de poder intimamente ligados na sociedade: o poder da riqueza econômica e o poder do saber tecnológico, ou seja, o poder de aplicar os conhecimentos científicos para a obtenção de resultados práticos. Nas sociedades pré-capitalistas, a riqueza não era signo de poder. Foi só na civilização capitalista que a técnica pôde operar transformações sociais, porque ela passou a depender de investimento econômico. O sistema capitalista passou a ditar normas éticas e influenciar mentalidades e costumes, trabalho antes pelo qual eram responsáveis as organizações religiosas. Mas o capitalismo de hoje não é exatamente o mesmo que vigorava no tempo de Bacon. A fase neoliberal do capitalismo, com sua nova razão econômica (iniciada nos anos de 1980), tornou o saber um produto perecível e submeteu as competências, antes valorizadas no período fordista, a uma “destruição criativa”.

Erudição é uma palavra fora de moda, ou melhor, trilhar o caminho da erudição é uma escolha aparentemente fadada ao “fracasso” segundo os valores vigentes de nossas sociedades de mercado. O neoliberalismo ou a nova racionalidade econômica desinstitucionalizou a relação entre diploma, qualificação e profissão. (Parem , portanto, de culpar os estudantes e os estudiosos por seu suposto “fracasso”, parem de julgá-los acomodados ou “vagabundos”! ) Eu disse certa vez: “Estude, em vez de reproduzir os preconceitos correntes no senso comum”. E não pretendia ofender! E também não me arrependo de tê-lo dito! Eu sou um educador, sou professor! O saber deve ser partilhado e deve ser o valor maior a ser cultivado! Não obstante, o neoliberalismo tornou frouxo o vínculo entre o diploma e o valor pessoal reconhecido socialmente. Isso se deve, em parte, ao enfraquecimento das posições dos assalariados, que encontram cada vez menos segurança nas instituições e carecem cada vez mais das referências estáveis que, outrora, davam a eles valor profissional, pessoal e identidade. O título escolar e o diploma universitário perderam sua força simbólica, no atual estágio do capitalismo financeiro, também porque o saber, amplamente propagando-se, deixou de corresponder aos novos imperativos de adaptabilidade permanente e de reatividade imediata fixados pela empresa (o neoliberalismo exige trabalhadores flexíveis, adaptáveis, capazes de se reinventar, de inovar para atender às necessidades econômicas da empresa). O assalariado hoje experimenta uma profunda e persistente insegurança, que afeta não apenas o emprego, mas também o conteúdo da sua profissão. Essa insegurança dos assalariados é consequência do enfraquecimento do valor simbólico dos diplomas, da implementação de práticas destinadas a avaliar as competências que melhor se ajustam aos encargos profissionais e a influência cada vez maior das empresas na determinação dos conteúdos da formação dos futuros assalariados. A escola passa a ser vista como um simples meio para a formação de trabalhadores flexíveis. A tudo isso se soma a precarização do trabalho nas sociedades capitalistas neoliberais. O trabalho passa a ser cada vez mais uma mercadoria como outra qualquer, perdendo suas formas jurídicas e sua dimensão coletiva. (E a galerinha que, em uníssono, grita “mais trabalho e menos direitos trabalhistas!” dá testemunho de que aprendeu bem a lição de casa neoliberal! Está aprovada! Mas saibam que vocês ficarão entregues à vulnerabilidade das condições do mercado de trabalho!) Mas que importa se gritam pelo direito de continuar a serem mais explorados, e ainda em condições precárias ?

Mas, se me foi possível escrever aqui sobre tudo isso, é porque convivo assiduamente com os livros, que, se não me permitem ganhos econômicos, dão-me as possibilidades de compreender o mundo, a realidade histórica em que vivo, libertando-me da tirania do impessoal, do falatório das multidões que são burras, irracionais, que não cessam de reproduzir as opiniões estabelecidas, que se contentam em assumir como verdades inabaláveis as crenças comuns e falsas, que se acostumaram a viver na redoma do senso comum, abocanhando do mundo apenas os pedaços, os fragmentos que nela são processados para o consumo de seu modo de vida que, bem ajustado a uma ordem socioeconômica e mantido num estado de contínua alienação, a reproduz nas práticas comuns do dia a dia. O ideal de todo educador é estender o direito à participação na cultura letrada a todos; é cativar o interesse pela leitura como o único caminho para a formação da liberdade de autonomia  - em crianças, jovens e adultos.






O Mito brasileiro

 

 

O bolsonarismo é a expressão de mudanças profundas na política e na configuração de poder na sociedade brasileira. Um dos aspectos dessa profunda e nefasta mudança é o desenvolvimento e fortalecimento da antipolítica no Brasil como modo de governança. A antipolítica bolsonarista recusa a ideia de que o Estado e as políticas públicas devem ter um papel de destaque no cenário político, que então passou a ser dominado por discussões sobre corrupção e privilégios corporativos. No terreno da campanha anticorrupção, carro-chefe do movimento bolsonarista, o Brasil seguiu a trilha das experiências totalitárias. Tanto o nazismo quanto o stalinismo transformaram ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que legitimavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores. Nesse tocante, é preciso dizer que 1) a campanha anticorrupção que alavancou a eleição de Bolsonaro preencheu os requisitos de todo sistema totalitário: a separação entre os “puros” e os “impuros”; 2) essa separação foi associada à figura de um combatente da degradação moral e social (que até bem pouco tempo era o Juiz da 13ª vara da Justiça Federal Sérgio Moro).

O que vemos operar, nesse contexto de luta anticorrupção, é uma característica muito comum em nossa história política: a personalização da política pela crença generalizada de que todos os nossos maiores problemas podem ser resolvidos se soubermos escolher bem a pessoa do governante. Ainda persiste a crença, entre nós, de que só conseguiremos mudar o sistema político pela eleição de um Messias, de um Salvador da Pátria. Este ser imaculado deve se apresentar como um adversário declarado e vigoroso do sistema vigente. Animado por esse imaginário coletivo brasileiro centrado na figura mítica de um Líder que nos conduziria à terra prometida, o bolsonarismo acostumou seus apoiadores (acríticos) a julgar o sistema político apenas por sua dimensão moral, sem qualquer consideração pelos resultados que ele produziu politicamente. A opinião pública, muitos intelectuais e a grande mídia incorreram nesse mesmo erro. E fazendo-o, ignoraram (e ainda ignoram) que aceitam os elementos da antipolítica bolsonarista que, bem entendida, quer dizer, reação à ideia de que instituições e representantes políticos devem negociar e dar respostas a problemas concretos postos em debate no país. Essa antipolítica é também negação de atributos como negociação ou coalizão como partes do processo de governança. Pela via autoritária de um Messias que recusa o presidencialismo de coalizão, o próprio projeto anticorrupção se demonstrou não só inviável, mas uma mentira oportuna para se obter o poder. Uma sociedade sem corrupção continua sendo parte de um horizonte desejável e utópico no Brasil. E os escândalos envolvendo a família Bolsonaro provam isso.






“A LEITURA NOS TIRA DO SEDENTARISMO INTELECTUAL” (Moacyr Scliar)

                            

Ler não é simplesmente decodificar sinais. A leitura como decodificação de sinais escritos é a etapa de que se encarregam os professores da alfabetização. Esta é a primeira e fundamental etapa do desenvolvimento da competência da leitura; mas a competência de leitura fica amputada se não se desenvolver para além dessa etapa. A leitura como letramento, como prática de produção de sentidos para o texto e para o mundo é a atividade que, socialmente, se considera ser a mais importante ao longo da educação escolar. Saber ler, nesse sentido, envolve a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos e estratégias cognitivas, metacognitivas e interacionais (pragmáticas, discursivas) indispensáveis ao desenvolvimento de formas mais profundas de compreensão do texto e do mundo. Ler supõe a capacidade de estabelecer relações intertextuais, de imergir cognitivamente nos níveis implícitos de sentido, de atingir as camadas subjacentes de sentidos previstos para um texto. Ler mais, nesse sentido, amplia e aprofunda nossa compreensão, porque nos dota da capacidade de perceber os sentidos que se produzem nos silenciamentos que atravessam as palavras. A leitura é um processo complexo de ordem linguístico-sóciocognitivo-interacional, emocional, fisiológica que envolve aprendizagem e maturação. Então, quem lê muito e compreende pouco o que leu, na verdade, não chegou a ler, não atingiu ainda uma competência mais ampla e elaborada de leitura. O ponto importante é que não há receitas para aprender a ler, no sentido que dou ao processo de leitura. Mas é possível ensinar a ler, é possível desenvolver no indivíduo as habilidades necessárias para que ele venha a se tornar um leitor competente, um leitor capaz de ler para além do dito, para além do explícito e codificado na superfície textual. É possível educar a sensibilidade do leitor para que compreenda que a linguagem não é transparente, mas opaca, que os sentidos possíveis são muitos e não estão alocados nas palavras ou nas frases, ou no texto, mas os atravessam, tomam direções diversas, nem sempre previstas pelo produtor do texto, direções que levam a outros textos, a outras falas, a outros discursos... Ler é compreender como um objeto simbólico produz sentido, como esse objeto nos permite fazer a experiência do sentido, como esse objeto significa na interação com o sujeito interpretante, levando em conta os contextos sócio-históricos, ideológicos em que eles se encontram. Sim, a leitura estimula a criatividade e a imaginação, desenvolve a sensibilidade, complexifica o pensamento, mantém a saúde do cérebro, protegendo-nos contra doenças neurológicas. A leitura favorece melhor o desenvolvimento da inteligência. A leitura é experiência de formação de sujeitos autônomos, capazes de construir por si mesmos conhecimentos sem a mediação do professor . A leitura promove, enfim, a experiência de vida. Complexificando o pensamento, apurando nosso olhar sobre o mundo, a leitura nos dota da capacidade de reconhecer a complexidade do real e de lidar com essa complexidade. O mundo que se nos descerra na prática da leitura é um mundo muito mais complexo, multidimensional, plurívoco, significativamente mais profundo, do que o mundo que se nos dá a conhecer nas esferas restritas e limitadas da vida ordinária, onde se realizam as conversações face a face ou mediadas pelos aparelhos tecnológicos hoje à disposição de certo número de usuários socialmente privilegiados. Viver sem ler é tocar de leve a superfície das coisas, é acostumar-se a viver uma vida chapada à superfície do mundo, onde se instalam as vivências ordinárias sobre as quais se projetam as sombras do senso comum, que impedem que o mundo seja iluminado em toda a sua complexidade, em todos os seus níveis possíveis de significação. A leitura ilumina o mundo, retira-o da caverna do viver comum , para torná-lo morada do pensamento complexo, em suma.

 






O Brasil de uma nota só

 

Não me parece demandar tanta controvérsia dizer que o Brasil com Bolsonaro e sua trupe emburreceu mais. O Brasil ficou mais burro (e mais perverso) com Bolsonaro na Presidência, tanto na esfera do Estado quanto na esfera da sociedade civil. E aqueles que se cuidam mais “politizados” por incriminar o PT e seu fantasioso comunismo por todos os males seculares do país não fazem mais do que confirmar essa tese. Para os bolsonaristas, a política se resume a uma nota só: a corrupção, ou melhor, o combate à corrupção. Parece que, se conseguirmos resolver este mal que nos assola desde o período colonial, o Brasil se tornará o melhor lugar no mundo para viver. Desnecessário dizer que os bolsonaristas não fazem a mínima ideia de como pôr fim definitivo a este mal hábito dos políticos aqui e em outras partes do mundo. Eles não sabem porque, seguindo o hábito do seu Messias presidente (que confessou não ler um livro sequer há três anos), são inimigos dos livros, são refratários à cultura letrada. Se estivessem habituados a conviver com os livros, se, ao menos, se interessassem em compreender a realidade sociopolítica do país que dizem tanto amar, saberiam que a corrupção entre nós deita raízes num solo cultural que desde muito cedo foi assentado pela prevalência do favoritismo sobre a justiça, pela simbiose entre os grandes proprietários da riqueza privada e os agentes administrativos ou de governo, pela perpetuação de uma oligarquia que une entre si os agentes do Estado (e sua burocracia estatal), os potentados econômicos, as Forças Armadas e um serviço judiciário que, desde muito cedo, existiu para extorquir dinheiro. Mas os bolsonaristas, tão desabituados aos livros, necessários a uma participação política consciente, a tudo tratam de modo simplificado e superficial. A tendência à simplificação do pensamento é, aliás, uma de suas características mais flagrantes. Não por acaso são equiparados a bovinos (embora essa espécie de animais seja inteligente). Quem ousar levantar uma questão política num sofrível diálogo (quando é possível) com um bolsonarista, ouvirá dele duas coisas: PT e corrupção do PT (e de Lula, é claro). A política para Bolsonaro e seus apoiadores é uma forma de guerra e ódio, de combate incessante contra esses três grandes males de nosso país, a saber, PT, Lula e corrupção. Toda política bolsonarista se resume a esta “missão” militante-militar: destruir o PT - e com ele, é claro, o comunismo que nos ronda- , e pôr fim à corrupção. E ponto final. A política econômica do Governo, o capitalismo financeiro a que o Brasil é subserviente, as desigualdades socioeconômicas profundas de nosso país, o investimento em Educação e em Pesquisa, em Ciências e Tecnologia, as políticas públicas, a superação da “velha política” ( o que Bolsonaro não fez senão perpetuar) e tudo o mais que se queira levar em consideração como problemas para uma agenda política não têm qualquer relevância ou importância. Falta aos bolsonaristas o letramento político adequado e amplo para se ocuparem dessas questões mais complexas e importantes. A burrice é sempre simplificadora e cega para a complexidade do real. A burrice do Brasil de hoje é o reflexo de um passado longo e perverso que ainda não superamos e com o qual nada aprendemos.


 


quinta-feira, 19 de agosto de 2021

"E desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro". (Marcos Nobre).

 

             



                    O BOLSONARISMO COMO SISTEMA DELIRANTE


Walter Benjamin, preocupado em dar conta das questões “ o que é a história?” “Quem enuncia a história?”, deu-nos a seguinte resposta: a verdade narrativa da história é apenas uma, qual seja, a do compromisso com os sacrificados pela história, a do compromisso com os violentados pela história. Tudo o mais é mentira. A única verdade é que a história produz violência. Mas os partidários da nova direita e do bolsonarismo não querem saber da história. Reprodutores de um sistema delirante, com base no qual eles veem na esquerda, nomeadamente nos governos do PT, um projeto deliberado de revolução comunista no Brasil, que precisa ser combatido com uma guerra de salvação nacional capitaneada pelo militarismo, dizem: “ não nos interessa a história, só nos convém a história que me interessa”. Enclausurada numa máquina simbólica mentirosa, a militância bolsonarista, em nome do propalado combate à corrupção, a qual é vista como um legado nefasto exclusivo do petismo (ignorando nossa tradição histórica de corrupção política sistêmica, da qual participam também os próprios partidos da direita, nomeadamente o MDB de Michel Temer, e as grandes empreiteiras), insiste em ignorar o fato histórico de que o governo de esquerda democrático de Lula foi um governo de mercado e de capitalismo nacional, que integrou grandes porções das camadas populares à economia de mercado. Foi um governo no qual o Brasil teve um crescimento econômico acima do PIB mundial. Em 2010, último ano do governo Lula, o crescimento econômico do país chegou à marca impressionante de 7,5%. Que o PT tenha cometido erros de governança nas áreas de infraestrutura e economia é um problema que não encontra lugar na paranoia da extrema direita, em virtude de seus partidários serem obtusos, néscios e estarem exclusivamente interessados em reproduzir suas crenças delirantes. Essa gente tem uma pretensão de saber aquilo que ignora. Não só ignora, rejeita: as verdades históricas. O governo lulista, que tanto desagrado causa às elites brasileiras que embarcaram na paranoia bolsonarista, foi um governo que aperfeiçoou o modelo de capitalismo financeiro, graças ao qual essas mesmas elites lucraram (e ainda lucram muito). Muita gente ganhou com os oito anos de governo Lula: os grandes proprietários do capital e as massas, então integradas à cultura de mercado, por meio da ampliação do mercado de consumo interno no país. Essa mesma cultura de mercado, que tem seu próprio fascismo ligado à produção de subjetivação - individualista, maníaco excitado e fetichista - coexiste hoje com o fascismo alucinatório político, violento e delirante da extrema direita no Brasil. Não conseguimos (e talvez não consigamos em curto e médio prazo) eliminar esse “fascismo comum brasileiro”, porque ele tem uma historicidade profunda que deita raízes em nosso passado escravocrata. E antes que me venha um bolsonarista acusar-me de construir uma narrativa mítica e gloriosa do lulismo, deixo aqui minha anuência às seguintes palavras de Tales Ab’Sáber, ao ponderar que o modelo de governança lulista “também produziu uma cultura anticrítica, que corroeu a vida a seu modo, rebaixando o espírito geral das exigências políticas”. E o preço alto que pagamos por esse rebaixamento das exigências políticas foi o retorno do recalcado, um não conhecido muito conhecido que retorna, um impensado que se faz presente, uma força corrosiva, daninha que agia subterraneamente e que hoje ameaça a já frágil democracia brasileira, que se arrasta capengando em meio à falência do sistema político brasileiro atual. Esse recalcado que retorna tem nome: Jair Messias Bolsonaro.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

" Construir a democracia, inclusive no Sistema de Justiça, é superar o imaginário autoritário". (Rubens Casara)

 

                      



                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                 PARTE 1

 

1. Bolsonaro: o sintoma de um passado perverso

 

Em seu livro O Brasil dobrou à direita (2020), Jairo Nicolau apresenta-nos um recorte da conjuntura sociopolítica que poderia explicar a escolha de Jair Bolsonaro, um parlamentar medíocre, para ocupar o cargo de Chefe de Estado, nas Eleições de 2018. Deve-se ressaltar que esta é a conjuntura sociopolítica construída pelo discurso hegemônico, de ampla projeção na mídia. Na verdade, a perplexidade e as várias explicações para a eleição de Bolsonaro ocupam ainda hoje as análises dos estudiosos da política, que, quiçá, estejam de acordo quanto a um fato: “uma das mudanças mais profundas de 2018 é a vitória de um candidato de direita sobre o PT entre os eleitores de baixa e média escolaridade. Isso não acontecia desde a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1998.” (Nicolau, 2020, p. 52).

 

A conexão entre os resultados da Lava Jato e a vitória de Bolsonaro é apresentada no discurso corrente de maneira relativamente simples: 1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição aos partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro. Nesse caso, pouco importava o fato de ele ter sido deputado federal por 28 anos, ter trocado muitas vezes de legenda e ter sido um parlamentar medíocre.

 

Sem considerar as motivações que levaram grande parte do eleitorado brasileiro a eleger Bolsonaro, Nobre (2020) não se esquiva de dar a sua explicação para o acontecimento. Segundo o filósofo, a eleição de Bolsonaro foi um efeito de uma coalizão por conveniência, que não deixou de ter impacto sobre o resultado das urnas. Para ele, essa coalizão se formou pelo acordo entre grupos muito diferentes entre si: evangélicos, lavajatistas e militares.

 

Mas mostram bem como a coalização que elegeu Bolsonaro foi uma coalizão de conveniência sem ter sido de maneira alguma casual. O sentimento de exclusão da arena política – em graus certamente muito distintos e por razões muito distintas também – que os uniu veio justamente com a possibilidade que viram de se estabelecerem (ou se restabelecerem, no caso dos militares) como atores políticos incontornáveis. (Nobre, 2020, p. 37).

 

 

Entre as razões correntes dos eleitores e a coalização orquestrada na cena política, não se pode olvidar o papel sobremaneira importante desempenhado pela grande mídia e pelas redes sociais no recrudescimento do antipetismo e no fortalecimento no senso comum[1] da necessidade de eleger um ator político que endurecesse as medidas de combate à corrupção e que – é claro – não estivesse ele mesmo envolvido em algum esquema de corrupção. E assim Bolsonaro foi eleito Chefe do Executivo, sem que grande parte do eleitorado conhecesse minimamente seu projeto político.

Não pretendendo, de modo algum, dar por encerrado o tema dos fatores que foram decisivos para a eleição de Bolsonaro, gostaria de me deter um pouco no perfil do eleitorado brasileiro que o elegeu, a fim de lançar por terra, de antemão, a crença de que a baixa escolaridade de grande parte desse eleitorado foi determinante para a escolha de um parlamentar que passou 28 anos de sua vida como deputado federal, tendo apenas dois projetos aprovados, o que, para um parlamentar que ficou tanto tempo ganhando dinheiro à custa dos pagadores de impostos que sobrevivem nestas terras com muito suor e lágrimas pelos seus que nelas vêm morrendo aos milhares cotidianamente, o faria ser rejeitado nos processos de seleção de meritocratas. Ora, o fato de ter ficado tanto tempo gozando das benesses de um cargo político sem fazer quase nada o credencia para ocupar um lugar na lista extensa do parasitismo político que contribui para inchar ainda mais a nossa já dispendiosa máquina pública.

O eleitorado brasileiro é formado por uma grande faixa de pessoas de baixa escolaridade. Nessa faixa, se topam indivíduos analfabetos, indivíduos que sabem ler e escrever ou que passaram poucos anos na escola, sem conseguir completar o ensino fundamental. Entre os que não conseguiram completar o ensino fundamental, se encontram, em grande proporção, indivíduos com mais de sessenta anos, que cresceram em um período da história do Brasil em que o acesso à escola era mais limitado. Por outro lado, é inegável que o eleitorado brasileiro vem-se tornando cada vez mais escolarizado. Em parte, isso se deve ao aumento do acesso à escola promovido pelas políticas de FHC e, especialmente, do PT, mormente nos dois mandatos do presidente Luís Inácio Lula da Silva; mas também se deve ao alistamento eleitoral de jovens com um nível de escolaridade mais alto (em geral, com o fundamental completo ou cursando o ensino médio). Estes jovens se beneficiaram do maior acesso das crianças à escola a partir da década de 1990. Houve também um declínio do número de eleitores analfabetos ou que cursavam apenas as primeiras séries do ensino fundamental. Uma vez que os eleitores menos escolarizados estão concentrados entre os cidadãos mais velhos, há uma tendência de redução gradativa desse grupo no cadastro eleitoral, quer por morte, quer por simplesmente não comparecimento às urnas (já que o voto é facultativo a partir dos sessenta anos).[2]

Embora ainda seja predominante o número de brasileiros com baixa escolaridade, o fator escolaridade não foi decisivo para a eleição de Bolsonaro, porque ele venceu a corrida eleitoral entre os eleitores de todos os três níveis: os de ensino fundamental, os de ensino médio e os de ensino superior. A confusão e a perturbação que pesam sobre os analistas políticos, envoltas numa atmosfera de perplexidade em face das razões por que contribuímos, enquanto sociedade, para eleger um candidato, então Presidente da República, tão politicamente medíocre e abertamente autoritário, talvez demorem muito tempo para esvair-se, mas isso não desencorajou os estudiosos de produzir inúmeros livros e artigos que pudessem lançar luzes sobre o imponderável do devir político. Talvez, hoje, esteja se formando um consenso na intelligentsia de que o autoritarismo de Bolsonaro encontrou eco numa parcela considerável da população que não conseguiu romper abertamente com o passado de violência, de arbítrio, de racismo e hierarquização que nos constituiu como sociedade histórica. Uma grande parcela da população brasileira permanece ainda servil a uma tradição autoritária que consagrou a crença no uso da força, que a acostumou ao medo da liberdade, que a deseducou com o ódio ao conhecimento, à vida intelectual, que a adestrou para o convencionalismo (para a adesão rígida aos valores da classe média, mesmo que contrários às conquistas civilizatórias), que a habituou à simplificação da realidade (a contentar-se com explicações simplistas e com ausência de reflexão), que a docilizou para a submissão autoritária, tornando-a acrítica em face de autoridades idealizadas, que lhe incutiu preconceitos contra personalidades intraceptivas (com pendor para a criação imaginativa, para as artes, para os produtos abstratos da afetividade), que a fez preocupar-se obsessivamente com a sexualidade alheia, que a tornou propensa à projetividade (disposição para crer em ameaças cuja origem se encontra em impulsos inconscientes). Num país que não conseguiu romper com o imaginário[3] perverso que se formou por experiências repulsivas como a escravidão e a ditadura militar, não surpreende ou não deveria surpreender que se escolhesse e ainda se apoie um presidente manifestamente autoritário e antidemocrático.

 

Doravante, concentrar-me-ei no que entendo ser o aspecto mais flagrante do bolsonarismo, enquanto movimento populista e ideológico, a saber, seu autoritarismo de viés fascista. Ao me ocupar desse aspecto, darei ênfase a um de seus modos de expressão: a promoção da demissão do pensamento. Além desta primeira parte, em que me devoto a discorrer sobre o fenômeno do bolsonarismo, cingindo minha análise a seu aspecto mais refratário ao conhecimento, ao pensamento crítico, este artigo inclui ainda outras duas partes. Na segunda parte, volvo olhares sobre o fenômeno político, buscando contribuir para a ampliação e aprofundamento do conhecimento raso que o senso comum de nossa sociedade tem dele. Tendo me apercebido, há algum tempo, de que o problema da política fica reduzido, no discurso do senso comum, à rejeição da corrupção e à defesa de políticos que alimentam a propaganda do antipetismo, meu propósito é descerrar a problematicidade do fenômeno político, fornecendo ferramentais conceituais que nos permitam pensá-la para além destes enquadramentos reducionistas. Nesta segunda parte, faço um retorno às origens da filosofia política, recuperando as contribuições de Platão e Aristóteles para a compreensão do que é a política. A terceira e última parte não é senão outro momento deste mesmo propósito. Nessa parte, esclareço conceitos fundamentais para uma sólida e fecunda discussão política e ilumino o contraste entre a compreensão dos antigos e a dos modernos sobre as instituições políticas. Ao cabo desse percurso, espero atingir o objetivo fulcral a que se destina este texto, qual seja: contribuir para esclarecer o debate político comumente toldado pelo analfabetismo político do senso comum.

 

 

2. O autoritarismo bolsonarista e a demissão do pensamento

 

Disposta a compreender a ascensão do neoconservadorismo no Brasil a partir de 2015, Lacerda (2019) advoga que é possível estabelecer uma relação de influência entre o neoconservadorismo nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e o novo conservadorismo no Brasil que culminou com a eleição de Bolsonaro. Primeiramente, é preciso ter em conta o fato de que, segundo a autora, o governo de Jair Bolsonaro, iniciado em janeiro de 2019, é o resultado eleitoral do crescimento, no Brasil, de um neoconservadorismo ou de uma nova direita que se formou em torno da coalizão contrária às políticas de bem-estar social e ao avanço dos movimentos feministas e LGBTQIA+, e que arrebanhou uma parcela majoritária do evangelismo, integrantes da direita secular do Partido Republicano e intelectuais que apoiaram a eleição de Ronald Reagan em 1980. O neoconservadorismo esteia-se na tríade militarismo, absolutismo do livre mercado e família tradicional (leia-se família patriarcal). Além dessas características de base, o neoconservadorismo, de que o bolsonarismo é a versão brasileira atual e majoritária, se caracteriza também pelo idealismo punitivo e sionismo, o qual expressa a tendência do grupo da direita cristã a enfatizar os textos do Antigo Testamento e a apoiar o Estado de Israel em suas investidas contra a Palestina. Ademais, o bolsonarismo está econômica e ideologicamente alinhado com a racionalidade neoliberal. Aqui convém precisar o que devemos entender por neoliberalismo, no domínio da presente discussão. Consoante Dardot & Laval (2016, p. 34), o neoliberalismo “não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição”. Para os autores, o neoliberalismo não é uma ideologia ou um sistema de crenças, “é um sistema de normas que hoje está profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais”. (ibid., p. 30). O neoliberalismo excede, portanto, a esfera mercantil e financeira, para estender a lógica do mercado além das fronteiras do próprio mercado. O neoliberalismo produz subjetividades que se convertem em dados contábeis, na medida em que submete os indivíduos à concorrência sistemática. Como assinalam os autores, “o neoliberalismo emprega técnicas de poder[4] inéditas sobre as condutas e as subjetividades”. (ibid., p. 21). Portanto, sem que possamos reduzi-lo à expansão espontânea da esfera do mercado e do campo de acumulação do capital, devemos compreendê-lo como uma forma de governamentalidade. Assim entendida, “a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. (ibid., ênfase no original). Em suma, o neoliberalismo não é uma doutrina, mas uma racionalidade governamental que se expressa como o desenvolvimento da lógica do mercado normatizadora e generalizada, que se estende da esfera do Estado até o âmago da subjetividade.

Como se pode depreender do que até aqui se expôs, uma discussão sobre política que se pretende consistente, esclarecida e profunda não pode prescindir de reconhecer a sua complexidade fenomênica, que não é senão reflexo da complexidade do real. Demais, quem quer que queira compreender como opera o projeto antipolítico de Bolsonaro, deve tanto renunciar ao hábito de repisar os lugares-comuns, os slogans, os preconceitos, os despautérios da burrice generalizada, quanto abster-se de considerá-lo burro ou louco. A advertência que nos faz Nobre vem aqui a propósito:

 

 

É fácil chamar Bolsonaro de burro ou louco, ou das duas coisas. Só que isso não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo. Pior, é uma maneira de dizer que não há nada para entender, é uma maneira de se desobrigar de pensar. E desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro. Não bastasse isso, o xingamento despolitiza: como todo político autoritário, Bolsonaro se apresenta como não político. O xingamento diz que o atual presidente de fato funciona segundo outra lógica que não a da racionalidade política. (Nobre, ibid., p. 9).

 

 

 

 

Enumerem-se, pois, as três ideias importantes expressas nesse passo de Nobre: 1) o projeto autoritário de Bolsonaro tem como um de seus objetivos desobrigar de pensar; 2) o xingamento despolitiza, impede-nos de entender Bolsonaro como um autoritário, como um não político; 3) o xingamento, ademais, libera Bolsonaro da responsabilidade por seus atos e palavras, visto que burros e loucos não podem ser responsabilizados pelas burrices e pelas loucuras que proferem ou fazem. Segundo Nobre, também não devemos ignorar o fato de que Bolsonaro usa-se de uma tática política que lhe é bastante conveniente: a culpa que recai sobre si ele transfere para o outro. Se queremos compreender, portanto, adequadamente, o modo como Bolsonaro faz política, devemos procurar entendê-lo nos termos da política da guerra e da morte que a orienta. O que se espera de um cidadão crítico ou de qualquer pessoa a quem não falte o bom senso é que se esforce por compreender como a própria política virou guerra com a ascensão de Bolsonaro ao cargo de Chefe de Estado.

Se podemos dizer, com Nobre, que há nas falas e atitudes de Bolsonaro signos que desencorajam o exercício do pensamento, é que há nos silenciamentos que atravessam a sua fala a crença de que o real[5] é simples e não problemático. Acontece que não conhecemos a realidade diretamente e de modo transparente; nossa experiência do real já vem tramada pelos signos, pelas significações, pelas imagens que a constituem, ou seja, é tramada pela junção do imaginário com o simbólico. O mundo conhecido é um mundo significado, já ordenado pela função de simbolização da linguagem; e essa ordem simbólico-imaginária da realidade é complexa, se articula em muitos níveis de significação. Morin (2015) nos adverte sobre a necessidade do exercício do pensamento complexo, caso queiramos compreender a complexidade do real. Lembra o autor que complexus se diz do que é tecido junto. A complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos intrinsecamente ligados. Destarte, nas palavras do autor:

 

(...) a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo do fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza. (ibid., p. 13).

 

 

Esse tecido de acontecimentos de que fala Morin, esse emaranhado é da ordem do imaginário e do simbólico. Esse tecido é intertecido com significações, é feito da urdidura do imaginário-simbólico. Ora, se o real é complexo, se é problemático (porque jamais transparente, autoevidente, unívoco, seguro, posto como objeto de certeza), então necessitamos do pensamento complexo, caso queiramos, deveras, compreendê-lo nos níveis mais profundos e intricados de sua complexidade. Fazendo face ao modo de ser simplificador da política, Morin propõe um conhecimento complexo, não sem fazer a seguinte advertência:

 

A incapacidade de conceber a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia suprema. Dizem-nos que a política “deve” ser simplificadora e maniqueísta. Sim, claro, em sua concepção manipuladora que utiliza as pulsões cegas. Mas a estratégia política requer o conhecimento complexo, porque ela se constrói na ação com e contra o incerto, o acaso, o jogo mútiplo das interações e retroações. (ibid., p. 13).

 

Decerto, ser capaz de pensamento complexo é um atributo que Bolsonaro não tem e que se recusa a tê-lo, preferindo confrontar-se com a complexidade da realidade antropossocial recorrendo à munição dos destemperos de seu autoritarismo, o mesmo autoritarismo com que insiste em simplificar justamente aquilo que não se presta a simplificações: o real, a vida, o mundo.

Antes de descer a pormenores sobre a questão do autoritarismo e, mormente, do autoritarismo do bolsonarismo, se faz mister fazer um recuo a fim de refletir com mais acuro sobre o contexto sociopolítico-econômico em que se inscreve o autoritarismo de nosso século. Consoante ensina Casara (2020a), “a racionalidade neoliberal, que transforma tudo e todos em objetos negociáveis, e só se preocupa com o lucro e a acumulação do capital, além de elevar o egoísmo à condição de virtude, produz um fenômeno: a dessimbolização, o desaparecimento dos valores e dos limites que condicionavam a civilização”. (grifo meu, p. 57). A dessimbolização a que se refere Casara designa, de um ponto de vista da psicanálise lacaniana, a perda do Nome-do-pai, que simboliza a Lei, o interdito. Assim, o mundo, na medida em que vai-se cada vez mais se dessimbolizando, torna-se um lugar onde valores democráticos como “verdade” e liberdade” se tornam moedas de troca e limites éticos e jurídicos lapidares do modo civilizado de vida são violados. Num mundo dessimbolizado, naturalizam-se tendências anarcocapitalistas que estimulam a absoluta livre concorrência, e a liberdade se reduz à liberdade de possuir, e todos os direitos se reduzem ao direito de propriedade. A dessimbolização liquidifica ou mesmo dissolve os laços de solidariedade social. Num mundo dessimbolizado, cresce o fanatismo religioso oportuno aos seus simpatizantes e propagandistas. Consoante Casara, “ a dessimbolização gera “assujeitos”, zumbis demitidos da faculdade de julgar e propícias posturas perversas, quando não psicóticas”. (ibid., p. 65). E ajunta: “a dessimbolização, em resumo: gera o bolsonarismo”. (ibid.). A violação dos limites civilizatórios torna-se objeto de gozo. Não raro, eles são ignorados em nome da satisfação pessoal. O absurdo é naturalizado. A lei simbólica (o limite externo) é substituída pela imagem construída individualmente da lei (lei imaginária). A dessimbolização leva à identificação com a figura de um líder carismático que passa a ocupar o lugar do Pai (sempre poderoso), a quem a obediência vem acompanhada da promessa de liberar o gozo irrestrito. Assim, as pessoas que o seguem anseiam por estar livres para expor seus preconceitos ou para recusar os direitos fundamentais do outro, o qual aparece imaginariamente como um concorrente ou inimigo a ser destruído. Segundo Casara, é a dessimbolização que leva pessoas a quem interessam as políticas sociais destinadas à redução da pobreza a votarem num candidato cuja agenda política se alinha com o fim dessas mesmas políticas. É também a dessimbolização que explica como mulheres que se afirmam feministas podem escolher votar em homens em vez de noutras mulheres feministas. Como pontua Casara, “na eleição de Jair Bolsonaro, a verdade perdeu importância diante de certezas, ainda que delirantes, de seus eleitores”. (ibid., p. 59). Outra consequência da dessimbolização, segundo Casara, é psicose social:

 

A dessimbolização leva, portanto, a uma espécie de psicose social. No caso brasileiro (como, antes, já tinha ocorrido nos Estados Unidos de Donald Trump), uma psicose gerada por uma propaganda sem compromisso com a verdade, com argumentos racionais ou com questões políticas concretas ou tangíveis, mas baseada em cálculos emocionais, na manipulação de ressentimentos, ódios e pulsões. Essa manifestação psicopolítica, capaz de produzir dominação sem que os dominados/zumbis percebam, utiliza-se da reiteração e escassez de ideias, frases feitas sem maiores complexidades, slogans e etiquetações que criam e demonizam inimigos imaginários (construções que se distanciam da realidade dos rivais políticos), ao mesmo tempo em que transforma o absurdo e o ridículo em capital político. (ibid., p. 66).

 

 

A hipnose social ou o que Casara também chama “zumbificação” é consequência da liquidificação das relações entre pessoas, resultante do modus operandi da racionalidade neoliberal. É o laço social que se dissolve à proporção que avança e domina todas as esferas da vida em comum o imperativo do gozo ilimitado e o processo de reificação de todo o entorno social que se reduz a mercadorias a serem consumidas. A esfera dialógica entre sujeitos é suprimida, e eles se tornam meros objetos de uma lógica que opera segundo interesses mercantis.

Para Casara, o bolsonarismo é um sistema de pensamento paranoico, porquanto limitado a produzir certezas delirantes, tais como o terraplanismo, o marxismo cultural e a conspiração comunista que, no senso comum, se amalgamam com preconceitos e xingamentos que reforçam a ignorância coletiva e a burrice desavergonhada. Estas e outras criações do imaginário psicótico e paranoico do bolsonarismo influenciam de modo significativo as decisões individuais e manipulam os arranjos do campo político e das forças eleitorais. Resta evidente, ao menos para mim, que os apoiadores de Bolsonaro são, em sua grande maioria, analfabetos políticos. Muitos deles podem ser considerados “burros”, porque defendem o indefensável e são incapazes de compreender as consequências danosas dessa defesa, seja para a sociedade a que pertencem, seja para si mesmos.

 

 

2.1. A personalidade autoritária e fascista

 

Ao contrário da personalidade democrática, que aceita bem os limites impostos aos seus desejos e ao exercício do poder, a personalidade autoritária recusa qualquer limite aos seus desejos e ao seu projeto de dominação.[6] O autoritarismo culmina com o culto à violência, carreia o ódio aos direitos humanos e ao conhecimento, dissemina e nutre o medo da liberdade, produz inimigos imaginários e reproduz um pensamento estereotipado e empobrecido, que se estrutura num discurso simplificador e repleto de clichês, slogans e frases feitas. O autoritarismo ou a personalidade autoritária naturaliza os preconceitos racial, social, de gênero, aceita de modo acrítico as fake news, mormente aquelas que confirmam seus piores preconceitos e suas crenças mais absurdas. Sobretudo, a personalidade autoritária não tolera qualquer limite legal, constitucional imposto ao poder e aos seus desejos de poder. O autoritarismo odeia o pensamento crítico. Odeia a razão, os direitos, os valores, as regras e práticas civilizatórias que balizam a esfera de atuação do poder. O autoritarismo também odeia os limites que lhes são fixados em seus desejos de dominação. Conforme escreve Casara, “(...) não raro, o autoritário passa a “defender o indefensável”, desde a  “prática de crimes para combater a criminalidade” à solução final administrada pelos nazistas no século passado” (ibid., p. 85).

Em seu estudo sobre o fascismo, Stanley observa o seguinte acerca do anti-intelectualismo da política fascista:

 

A política fascista procura minar o discurso público atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade. Quando a educação, a especialização e as distinções linguísticas são solapadas, restam somente poder e identidade tribal. (Stanley, 2020, p. 48).

 

 

 

A propaganda fascista ataca as universidades e os sistemas educacionais que poderiam contestar sua ideologia. As técnicas empregadas pelo fascismo recriam a compreensão geral que a população tem da realidade, assim, construindo uma irrealidade com base na qual as teorias da conspiração e as notícias falsas ocupam o lugar do debate esclarecido e bem fundamentado. Em Como conversar com um fascista (2018), Tiburi, escrevendo antes do pleito que levaria Bolsonaro a ocupar a cadeira de Presidente da República, já denunciava o processo de destruição do outro e da política, notável em 2015, época em que fora publicada a primeira edição  do livro. Também aí Tiburi demonstra preocupação com o risco de o ódio tornar-se um fenômeno estrutural, a saber, um padrão normativo do que, nas práticas e relações sociais, se considera aceitável:

 

 

Podemos nos colocar a questão quanto ao risco de que o ódio se torne estrutural, que venha a dar base a todas as nossas relações. Nesse contexto, a política é destruída sistematicamente em duas linhas: pelos políticos que a transformam em burocracia; pelo povo que a negligencia e se desinteressa dela. Talvez a destruição da política seja a verdade oculta na razão de Estado atual. Todos sabem, mesmo que não tenham palavras para expressar, que a política foi transformada em burocracia e que os governantes garantem seu emprego eterno estimulando o ódio nacional ao poder público. Não há maneira melhor de destruir a política do que fazendo uso eficiente do ódio. (Tiburi, 2018, p. 29).

 

 

 

Urge que o leitor que me acompanha até aqui atente para a transformação da política em burocracia e para a perpetuação no poder dos governantes que incitam o ódio, um modus operandis típico da política brasileira. Essa representação da política como atividade burocrática e oportunista corresponde bem à experiência vivida cotidianamente pela população brasileira, em cujo imaginário, convive bem a repulsa às práticas de seus governantes, ao “jogo sujo da política”, e a certeza de que a política um emprego tão extremamente rentável quanto desejável.

Tiburi acrescenta que “para destruir o outro é preciso destruir a política. Para destruir a política é preciso destruir o outro”. (ibid.). A destruição do outro (da alteridade) é o meio eficaz de eliminar o sujeito de direitos e o direito dos sujeitos. A tática de humilhação e de aviltamento de pessoas ou populações inteiras inviabiliza a realização de uma sociabilidade e sociedade democráticas, alicerçadas no princípio constitucional de inclusão de todos os cidadãos. Tiburi lembra também que a personalidade fascista – e por extensão, a personalidade autoritária – tem compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à dominação. O fascista é submisso aos poderes e instituições, mas quer dominar os outros e eliminar os que pensam e agem de modo diferente. O fascista não está aberto ao diálogo e ao saber. Ele desconfia do conhecimento e nutre ódio por quem quer que demonstre saber algo que o afronte ou que invalide suas crenças. Sua conduta social se orienta pela ignorância e confusão. O fascista não hesita em recorrer a crenças irracionais ou antirracionais, e em criar inimigos imaginários, a fim de reforçar suas práticas de dominação.

Correlata à simplificação da realidade é a simplificação da linguagem característica do discurso autoritário. Em um de seus artigos reunidos no livro Minha especialidade é matar: como o Bolsonarismo tomou conta do Brasil (2020), o filósofo e escritor Henry Bugalho observa que Bolsonaro e o então Ministro da Educação Weintraub à época consideram que os cursos de Filosofia não servem senão para formar “comunistas malévolos”. A ignorância e opinião refratária à filosofia de Bolsonaro e Weintraub podem ser explicadas no passo abaixo de Bugalho:

 

Deveria ser impossível, mas é fácil na verdade entender o desprezo que o governo Bolsonaro nutre pela Filosofia. Temos um presidente que devolve respostas simples para os mais complexos problemas do Brasil e do mundo, repostas que satisfazem as inquietações de seus eleitores, hoje educados por meio de fake News no Whatsapp, sectários youtubers e pela tal mídia alternativa, um eufemismo para um jornalismo tosco que prescinde de um dos princípios mais elementares da ética jornalística: fundamentar-se no que seja factual, ou seja, restringir-se aos fatos. (ibid., p. 37).

 

 

Ainda segundo Bugalho, “neste universo de linguagem simplificada e rasa, qualquer resposta sofisticada e problematizadora é descartada como uma excentricidade de acadêmicos ideologicamente enviesados”. (ibid.). O autor lembra também o que eu deixei claro em outro texto meu, publicado neste blog: Bolsonaro sustenta uma retórica de governo “sem viés ideológico”, mas ignora que seus atos e falas são ideologicamente orientados. Como enfatiza Casara, numa época em que o empobrecimento da linguagem é uma das facetas do capitalismo digital, “tudo deve se apresentar como simples e direto para evitar os conflitos, as dúvidas e a percepção de que é possível ou necessário mudar” (ibid., p. 12).

O discurso de Bolsonaro e de seus apoiadores se produz com um arranjo de explicações demasiado simplistas dos acontecimentos humanos e do mundo. Essas explicações superficiais e simplistas interditam as investigações, os questionamentos, as reflexões detidas e profundas indispensáveis a uma compreensão refinada e abrangente da complexidade dos fenômenos humanos e do mundo. No processo de simplificação neoliberal da realidade, o bolsonarismo encontra um terreno sólido e fecundo para reproduzir a “lógica do gado”, em consonância com a qual a comunicação deve-se realizar por iguais e entre iguais num circuito cacofônico no qual o igual responde ao igual. Assim, quem ousa falar ou pensar diferente dos modos de produção do pensamento e da linguagem simplificadores, tem de ser calado, amordaçado simbolicamente, porque, no imaginário empobrecido do autoritarismo bolsonarista, o divergente, aquele que contradiz, que ousa verdadeiramente pensar, é representado como um inimigo, um resíduo inoportuno que precisa ser eliminado. Depreende-se daí ser forçosa a conclusão de que, como afirma Casara, “o fenômeno Bolsonaro não seria possível sem o empobrecimento subjetivo da população brasileira”. (ibid., p. 15).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BUGALHO, Henry. Minha especialidade é matar: como Bolsonaro tomou conta do Brasil. Curitiba: Kotter Editorial, 2020.

 

CASARA, Rubens R.R. Bolsonaro: o Mito e o sintoma. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020(a).

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

LACERDA, Mariana Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.

 

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2015.

 

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

 

NOBRE, Marcos. Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.

 

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. Trad. Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2020.

 

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2018.

 

 

 

 

 



[1] Por senso comum entendo um complexo de crenças, supostas certezas, concepções, preconceitos, ideologias, valores, símbolos; em suma, representações coletivas formadoras dos modos de pensar, agir e sentir que são gerais e permanentes numa sociedade ou num grupo social particular. O senso comum abriga saberes subjetivos que exprimem sentimentos e opiniões individuais ou de grupos, que variam de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições socioculturais em que vivem os indivíduos.

[2] Nicolau, op.cit.

[3] O imaginário é a matriz produtora de significações sociais, de representações, de símbolos, sem os quais seria impossível a instituição da ordem social. O imaginário abriga representações inconscientes que se formam a partir de imagens e outros fenômenos percebidos no meio social, cultural em que um indivíduo está inserido. O imaginário é o que torna possível o sentido. Ele prende-se à capacidade humana de representar coisas através do pensamento, permitindo a construção da ordem imagética do mundo. O imaginário constitui aquilo que uma pessoa percebe como objeto da realidade. O imaginário articula representações que se formam com base nos materiais simbólicos que estão disponíveis como parte do acervo de conhecimento partilhado numa sociedade ou comunidade. O imaginário é uma construção social e, como tal, fala-se em imaginário social, sempre que as significações, as imagens e os símbolos produzidos permitem a um grupo a construção de uma identidade e uma imagem de si, levando-o a respeitar os códigos de comportamento coletivamente sancionados, a identificar motivações e a estabelecer crenças comuns, como a crença no uso da força como meio de solução dos problemas – crença esta vigente na estrutura das sociedades autoritárias.

[4] O conceito de poder será discutido na PARTE 3 deste trabalho.

[5] Na psicanálise lacaniana, o real se distingue da realidade. O real é o que não pode ser simbolizado, é “o impossível de ser simbolizado”. A realidade, por seu turno, é a trama simbólico-imaginária.

[6] Nas relações de dominação, grupos particulares de atores sociais possuem poder de uma maneira permanente, em grau amplo, e o exercem de modo a excluir das esferas de poder outros grupos de agentes.