
A caminho da morte
Confrontos filosóficos
Neste texto, pretendo apresentar e discutir o problema da morte, tal como dele se ocuparam Max
Scheler (1874-1928) e Martin Heidegger (1889-1974), procurando assinalar pontos
de proximidade e distanciamento entre as reflexões desenvolvidas por estes dois
filósofos. Na primeira parte do texto, elucido a perspectiva de Scheler, à qual
se seguirá uma breve crítica. Na segunda parte, dou a saber o modo como
Heidegger desenvolve o tema da morte, tarefa à qual se seguirá também uma breve
crítica.
1. Quem foi Max Scheler
Max Scheler (1874-1928)
foi um filósofo alemão, nascido em Munique, que se notabilizou por ter adaptado
o método fenomenológico de Husserl ao tratamento de questões de ética, teoria
dos valores e da cultura, e antropologia filosófica. Na fase inicial de sua
obra, foi um pensador católico. Sua concepção de ética se desenvolveu em
oposição ao formalismo da ética kantiana, que deveria ser superada por uma
apreensão vivida dos valores éticos e também estéticos, calcada sobre a
fenomenologia.
Scheler integra-se ao
círculo de filósofos da vida cujo pensamento se desenvolveu em oposição a
algumas correntes do pensamento científico, as quais professavam um mecanicismo
e um finalismo levados ao extremo. Essas correntes concebem a morte como um
acontecimento mais ou menos catastrófico, externo ao indivíduo e semelhante a
um acidente mecânico e artificial.
1.2. A visão naturalista da morte
Scheler se distancia do
idealismo alemão, segundo o qual a morte não afeta o ser humano. Ao contrário,
sustentará Scheler que todo ser humano se caracteriza essencialmente por um
esgotamento interno dos agentes vitais dos quais depende o desenvolvimento da espécie.
Assim é que a morte, na visão de Scheler, é um fenômeno ligado à essência do ser vivo. Ela faz parte da forma e da estrutura de toda a vida.
A vida não pode, portanto, ser pensada sem a morte. Creio ser possível
depreender daí, com Scheler, que pensar sobre a morte é pensar a vida, em sua
totalidade. Quem se ocupa de refletir sobre a morte está ocupado com a reflexão
sobre a vida.
A tese basilar endossada
por Scheler é a de que a existência humana é orientada para a morte. Nesse
sentido, Scheler pavimenta o caminho que será trilhado pelo pensamento de
Heidegger, para quem também a morte não acontece como um acidente ou uma
catástrofe, contrariamente ao que pensavam Lévinas e Sartre. Tanto Scheler
quanto Heidegger estarão de acordo no tocante ao fato de que a existência
humana é orientada para a morte: “Tão
logo um homem chega à vida, ele está já bastante velho para morrer” –
lembrará Heidegger. Mas a aproximação entre os dois cessa por aqui. Scheler
pensa a morte no domínio ôntico; ao passo que Heidegger a pensará no domínio
ontológico. A diferença entre os métodos adotados levará esses dois filósofos a
resultados distintos.
Scheler rejeita o método
experimental do empirismo clássico em seu trabalho de investigação do fenômeno
da morte. Sua reflexão tanatológica dispensa uma discussão sobre as teses
cartesianas ou kantianas, bem como rejeita uma compreensão fisiológica e
psicológica da relação entre corpo e alma.
Ao se ocupar da atitude
do homem moderno – um tipo coletivo - em face da morte, Scheler nota que esse
homem nega, na realidade, a “essência e o ser da morte”, na medida em que se
esquiva da certeza intuitiva de sua morte, deixando de viver “na presença da
morte”. A morte é um a priori de toda
observação e experiência indutiva. Ela imiscui-se em cada fase do
desenvolvimento da vida. Scheler, assumindo que a existência do ser vivo tem
necessariamente um conteúdo limitado, manterá que é a experiência de
esgotamento do futuro e do aumento do passado que constitui a experiência
íntima de nossa orientação para a morte.
O homem moderno
identifica-se, para Scheler, ao homem do ocidente europeu, que se habitou a
afastar de sua consciência a morte, considerando-a apenas um fato que, um dia,
lhe acontecerá.
1.2.1 O conhecimento intuitivo da mortalidade
Reza o senso comum que eu
chego à certeza de “minha morte” futura com base na experiência empírica,
fundada na observação, ela mesma calcada sobre processos indutivos pelos quais
da morte dos outros concluo que eu também deverei morrer. Scheler rejeita resolutamente
essa visão, lançando-se à empresa, como faria mais tarde Heidegger, que
consiste em buscar uma razão pela qual um homem solitário, que nunca tivesse
observado o acontecimento da morte de outros – entendida como a transformação de um ser humano em cadáver –
chegaria à certeza de sua condição mortal.
Tomando-se para exemplo o
eremita, como, pergunta Scheler, ele poderia alcançar aquela certeza? Num
primeiro momento, sem ainda atingi-la, o eremita teria um pressentimento de seu
fim se comparasse as diferentes fases de sua vida, assim como se levasse em
consideração experiências tais como o envelhecimento, o sono e a doença.
Naturalmente, isso não
bastaria para que o eremita concluísse pela certeza de sua mortalidade, mas
tão-somente pela possibilidade de seu fim. Ora, como esse sujeito solitário
pode ainda saber que a curva de suas experiências não se desenvolverá ilimitadamente?
Ou seja, nada lhe garante ainda o conhecimento seguro de que não seja esse o
caso. Afinal, a sua vida poderia se caracterizar por uma abertura para
possibilidades infinitas.
Se, tomadas em conjunto,
a observação da morte dos outros, as conclusões da indução, as lembranças do
eremita quando ele compara as fases de sua vida, só podem levar à
probabilidade, decerto elevada, mas não à certeza absoluta, da sua morte, resta
a Scheler recorrer ao sentimento como meio para explicar como é possível a esse
indivíduo solitário chegar à certeza de seu fim.
Mesmo que imaginássemos
um ser humano que jamais apresentasse sinais de fraqueza, que não conhecesse
cansaço e doença, ele poderia atingir a certeza de sua condição mortal pelo
sentimento que ele tem de sua vida, segundo crê Scheler. O sentimento lhe dá a
experiência vivenciada da estrutura de cada fase da vida. E é por essa experiência
que ele alcançaria o conhecimento seguro de sua mortalidade.
Convém esclarecer esse
ponto.
Segundo Scheler, a ideia
de morte está entre os elementos constitutivos da consciência. Scheler assume
aqui a tese de que a morte faz parte da essência da vida, da sua forma e
estrutura. Segue-se daí que a morte já está fundamentalmente presente em cada
fase da vida. Uma vez tenha limitado sua análise ao nível biológico, Scheler
observa que a vida se apresenta de duas maneiras:
1) a vida é um grupo de
fenômenos particulares de ordem morfológica e motora que se dá à percepção
comum e sensível dos seres vivos;
2) a vida é um processo
de uma consciência especial que se desenvolve com base no corpo.
Esse processo, num
momento de seu curso, que é indivisível, apresenta uma forma própria que é
idêntica em todos os seres vivos. O estudo dessa estrutura desindividualizada
do ser vivo é que permite a experiência da morte, que está presente em cada
fase da vida. É por esse estudo também que percebemos intuitivamente a essência
da morte e, desse modo, chegamos à certeza da condição mortal do ser humano.
A morte se apresenta,
portanto, para Scheler, como um a priori
para toda observação e experiência indutiva do conteúdo variável de cada
processo vital real. Mas essa percepção da morte não deve ser confundida com o
sentimento de proximidade da morte ou o pressentimento do fim da existência,
tampouco com o desejo de morrer ou o seu medo. Ela se situa num nível de ser
mais profundo. Temos experiência da diminuição do passado e essa experiência,
segundo advoga Scheler, é a experiência íntima de nossa orientação para a
morte. A experiência da estrutura de um instante de vida alicerça a certeza de
nossa condição mortal e revela a realidade da morte natural.
1.2.2. A estrutura do
processo vital
Cabe esclarecer de que
modo, segundo Scheler, se atinge a certeza da morte pela experiência da
estrutura do processo vital. A estrutura do processo vital num instante
indivisível T se divide em três atos
– que são distintos qualitativamente - , todos correlatos a esse instante: o presente, o passado e o futuro.
Esses atos são imediatos de qualquer coisa. A cada ato se atribui uma extensão.
A percepção se vincula ao presente; a lembrança se prende ao passado; e a
expectativa se atrela ao futuro. Essas três extensões – percepção, lembrança e
expectativa – se diferem das extensões mediatas cujos meios são o raciocínio e
a reprodução. Scheler postula que a totalidade T vivida em cada instante se expande com o desenvolvimento do
indivíduo.
Argumenta ainda o
filósofo que a consciência do ser vivo percebe intuitivamente, num instante do
processo vital, não só as três dimensões imediatas, mas também e principalmente
a totalidade (T). Essa totalidade se
divide novamente à medida que o processo vital progride objetivamente numa
direção característica, a qual representa um fato específico da experiência
vivida. O crescimento da extensão do conteúdo do passado, acompanhado da
repercussão imediatamente experimentada desse mesmo passado, se dá
concomitantemente com a redução da extensão do conteúdo do futuro imediato;
também a ação que se antecipa para ele vai diminuindo.
Cumpre reter que o
domínio do presente fica mais comprimido entre o passado, dilatado, e o futuro,
encurtado. À proporção que a vida flui, tendo em conta todos os instantes
vividos, diminuem as possibilidades de experiência na expectativa vital
imediata. Na medida em que a totalidade é constante, sustenta Scheler que,
aumentando o passado, tanto o presente quanto o futuro diminuem necessariamente.
1.3. Crítica à tanatologia de Scheler
Dentre as dificuldades
suscitadas pelo modelo de análise tanatológico de Scheler, destaque-se como a
principal o ter ignorado a importância da experiência ôntica da morte do outro
como meio de possibilidade de atingir um conhecimento intuitivo da mortalidade.
Decerto, a morte é o
limite natural do ser vivo, inclusive do ser humano. Ela participa de sua
constituição biológica presente. Também está fora de questão o fato de que o
ser vivo é projetado numa direção irreversível, que é a de seu termo: a morte.
Todavia, continua
problemático ignorar que o ser humano só parece ter consciência de sua condição
mortal, da inscrição da morte na estrutura da vida, pela experiência com a
morte do outro.
Outro problema suscitado
pela análise de Scheler consiste em não ter ele demonstrado que a temporalidade
está delimitada por um passado e um futuro precisos. O homem não tem
consciência, a priori, de que o campo
de suas possibilidades diminui, de que a extensão de sua vida se encurta. Ora,
sem se apoiar na experiência empírica com um cadáver e sem por indução concluir
que essa condição é a sua, o sujeito humano está justificado na suposição de
que sua projeção para o futuro é ilimitada.
2. Heidegger: a morte como minha
possibilidade mais própria
Não há dúvida de que o ser-para-a-morte heideggeriano
determinou o curso da filosofia ocidental no exame da morte. Heidegger separou,
radicalmente, por princípio metodológico, a análise da morte da questão sobre
uma possível imortalidade, a qual foi circunscrita ao domínio ôntico – domínio
que colocou fora da alçada de sua perquirição. Ademais, Heidegger procurou ver
a morte no interior da série de fenômenos da vida. Sua originalidade consistiu
em desenvolver uma reflexão sobre a morte no nível ontológico, separado esmeradamente do nível ôntico no qual se
situou a visão de seus predecessores Simmel e Scheler.
Para Heidegger, o propriamente morrer representa o Dasein
na sua essência do “poder-ser”. A fim de que compreendamos esse momento do
desenvolvimento do pensamento do filósofo de Fribourg, necessário será trazer à
luz as categorias de fim, possibilidade e
devir. Igualmente importante é ter em
conta sua definição de morte como a
possibilidade da impossibilidade de ser.
Começarei por apresentar
a distinção por ele estabelecida entre os domínios ôntico e ontológico;
passarei, em seguida, a considerar a sua afirmação, em consonância com Epicuro,
segundo a qual é impossível experimentar a minha morte, entendida como “estado
de morte”. Posteriormente, darei a saber como o filósofo de Fribourg procurou
demonstrar não ser possível alcançar a noção exata de seu propriamente morrer
pela análise da morte do outro. Em seguida, discuto a sua proposta para a
aquisição da certeza da mortalidade, a qual se estriba no conceito de ser-para-a-morte.
Como o conceito de ser-para-a-morte repousa sobre a noção
de temporalidade, entendida ontologicamente, outros conceitos recobertos por
ela deverão ser contemplados, tais como o de poder-ser, possibilidade, ser-antes-de-si e ser-para-o-fim.
Por fim, esboço uma
crítica ao projeto heideggeriano de fundar a certeza da morte unicamente em uma
ontologia da temporalidade apartada completamente de uma perspectiva ôntica.
2.1. O retorno ao ser: a distinção entre o ôntico e o
ontológico
Cuido lícito dizer que é
extremamente difícil compreender o desenvolvimento da investigação teorética de
Ser e Tempo, sem que compreendamos o
princípio metodológico que a norteia. Tal princípio consiste na distinção entre
os domínios ôntico e ontológico que se ilumina pela busca heideggeriana de
fundamentar sua analítica existencial no domínio ontológico, para cuja tarefa
ele apela a que seja retomada a questão central de toda a ontologia clássica, a
saber, o significado do ser. Trata-se, segundo Heidegger, de um problema ainda
não resolvido e que perpassou toda a filosofia grega. O primeiro passo dado por
Heidegger foi revisitar a questão do ser na esteira da tradição
platônico-aristotélica. Para os gregos, dirá Heidegger, o ser é presença. O ser é presença constante. Todavia, o que
mais interessou a Heidegger foi o fato de os gregos terem assumido um horizonte
temporal específico, a saber, o presente
para, então, determinar o ser. O ser é determinado tendo como referência
necessária o tempo.
Vou-me cingir a sublinhar
este fato: ao propor um retorno ao ser, Heidegger revisita o pensamento
original dos gregos. Destarte, busca pensar o ser sem o ente, e esse ser, que é
impessoal, revela-se e se esconde em um acontecimento atemporal, ao qual o
homem tem de submeter-se. O ser de Heidegger pode ser comparado ao apeíron de Anaximandro, indiferente às
perguntas e às interrogações do homem.
Com vistas a esclarecer a
distinção entre os níveis ôntico e ontológico, cumpre notar que Heidegger parte
da diferenciação entre as ciências ônticas, como a biologia e a medicina, a
antropologia e a história, cujo objeto é o ente particular regionalmente
delimitado, um ente já dado antes mesmo que a ciência tenha lhe fixado o
estatuto de objeto, e a ciência ontológica, a filosofia, ciência por
excelência, que se caracteriza pela universalidade e radicalidade. Ela
transcende a regionalidade das ciências ôniticas.
O objeto dessa ciência
ontológica – a filosofia – é o ser
enquanto fundamento dos entes e condição a priori de possibilidade de
aparecimento dos entes. O ser não se apresenta como tal no mundo, mas
determina o que aí aparece.
Heidegger instaura,
assim, uma barreira intransponível entre os níveis ôntico e ontológico, ao
mesmo tempo em que pretende que a ciência ontológica fundamente as ciências
ônticas. Estas se ligam àquela, embora lhe sejam completamente distintas.
2.2. A impossibilidade de experimentar minha própria morte
No nível ontológico de
sua análise, Heidegger identifica o propriamente
morrer, parte integrante do poder-ser
do Dasein. Esse propriamente morrer
impregna o Dasein desde seu nascimento. No nível ôntico, que Heidegger não
considerará, ele distingue entre dois tipos de fim, dos quais se ocupam as
ciências ônticas: 1) o perecer, que
é próprio do animal, dado que ele é incapaz de se interessar pela morte como
tal, e 2) o falecimento,
acontecimento pontual que Heidegger descreve como sendo intermediário entre o
propriamente morrer e o perecer. O falecimento expressa a fase derradeira do Dasein;
é o próprio Dasein enquanto o único ente capaz de ter acesso à morte como
morte.
O Dasein só pode falecer
na medida em que, ontologicamente, está morrendo. Com efeito, somente o Dasein
– um ser-para-a-morte – está pronto
para propriamente morrer. Somente ele
pode falecer, portanto.
É necessário esclarecer
que, consoante Heidegger, o Dasein não pode ser sua morte – quando por morte
entendemos o estado de morte, o qual
escapa a uma experiência possível por quem morre. Heidegger nega ser possível a
quem morre a experiência de sua própria morte. O Dasein não sente esse deixar
de ser. A morte, como estado de morte, não pode ser integrada à estrutura
própria do Dasein. Somente o pode o propriamente morrer. O Dasein só
experimenta a morte ontológica, que é o propriamente
morrer. A esta altura, é urgente ter em conta a distinção entre o estado de morte e o propriamente morrer. O primeiro é inacessível ao Dasein e se situa
no domínio ôntico; o segundo integra a estrutura do Dasein e se situa no
domínio ontológico. Essa distinção se tornará mais clara ao longo desta
exposição.
Em certa medida,
Heidegger retoma a posição de Epicuro, para quem enquanto existimos, a morte
não está; e quando ela estiver, nós já não estaremos mais. Em outras palavras,
enquanto o Dasein existe, o estado de morte não se atualizou; quando ele se
atualizar, o Dasein já não existirá. O estado em que se “encontra” o defunto é
o de não-mais-ser, ou seja, o de
destruição total e irreversível do indivíduo humano.
Tanto Epicuro quanto
Heidegger situam a morte, entendida como estado
de morte, exteriormente ao sujeito. O estado de morte é, deveras, cotejável
com um encontro ao qual o Dasein não comparece. A presença de um significa
necessariamente a ausência do outro. Se admitirmos, com Epicuro, que o estado
de morte não faz parte da experiência do morto, segue-se daí que a morte
significa o desaparecimento total e irreversível da pessoa, a volta ao vazio do
Dasein. Ela é a impossibilidade possível
da existência, a impossibilidade eterna dos meus projetos, da realização de
minhas possibilidades.
A existência do Dasein é
um acidente entre dois vazios representados pela concepção e pela morte. Ela
parte do nada e se representa como objeto afetivo da angústia. O Dasein é
atravessado por uma finitude original e radical. Ele é o ser-para-a-morte que tem seu fim inserido ontologicamente em sua
própria estrutura.
Retomarei o conceito de ser-para-a-morte na próxima seção, já
que ele ocupa um lugar de destaque na analítica existencial de Heidegger. Prosseguirei,
por ora, apresentando o modo como Heidegger demonstra a impossibilidade de se
experienciar o estado de morte a partir da experiência com a morte do outro.
Uma vez assegurada a
certeza da impossibilidade de o defunto experienciar sua própria morte, Heidegger
se debruçará sobre a questão de saber se essa experiência do estado de morte é
possível por meio da experiência com a morte do outro.
Os que continuam a viver
constatam, a respeito do estado de morte, em primeiro lugar, o acontecimento ôntico
de morrer, o falecimento; em segundo lugar, a condição externa do cadáver que
conserva sua aparência humana por algum tempo. O cadáver se faz presente sob a
forma de representação corporal da pessoa que há pouco tempo estava viva. Por
fim, constatam as consequências dessa morte sobre si mesmos e sobre a
comunidade humana.
Heidegger observa que o
cadáver, longe de constituir uma coisa material, ainda se encontra num estado
que denomina de o ser-somente-ainda-ai.
O defunto não é abandonado, mas, ao contrário, inspira preocupações dos vivos
que o acompanham prestando-lhe homenagem nos cultos fúnebres.
Não obstante essas
diversas experiências com a morte do outro, os que permanecem vivos não chegam
a experienciar, deveras, o estado de morte em que se acha o defunto, tampouco
experienciam a essência da transformação que ele sofreu tendo morrido. O
sobrevivente-espectador não dispõe de meios de vivê-la internamente, não assume
o ponto de vista do morto, já que permanece sempre exterior ao morto ou à morte
do outro.
Os que ainda vivem só
podem assistir o estado de morte. Esse estado se lhes afigura como uma perda
justamente porque eles a experimentam como uma perda. Mas eles não
experimentam, a rigor, o estado de morte que tornou uma pessoa antes viva um cadáver.
Em suma, os espectadores
só têm acesso à morte do outro enquanto representação de uma perda que eles
“sofreram”. Também o falecido não sofreu sua própria morte, no sentido de que
quem morre, já que, por definição, não mais existe, não pode experienciar a
própria morte. Heidegger não se preocupou em pensar sobre a perda existencial
sofrida por aquele que sobrevive ao falecimento de um ente amado, tampouco
levou em conta a importância do trabalho de luto. Claro parece que a morte de
um ente querido pode provocar-nos – e com frequência nos provoca – um
questionamento sobre nossa visão de mundo, um abalo existencial, tal como o
sofrido pelo jovem Agostinho.
Quando consideramos um
ato de amor e amizade que une duas pessoas, não nos é custoso compreender que para
aquele que permanece vivo a morte é essencialmente uma perda do ser e da vida
terrestre. O sobrevivente é levado, pela experiência diante do defunto, que se
despediu definitivamente do mundo, a deduzir, por analogia, que chegará também
o dia em que ele terá de se despedir da vida.
Heidegger mantém que o
morrer ôntico (o falecimento) e o morrer ontológico (o propriamente morrer) são
essencialmente meus, isto é, ninguém pode morrer a minha morte. Cumpre, em
suma, sublinhar duas ideias caras à argumentação de Heidegger. A primeira
consiste em insistir na impossibilidade de os que sobrevivem experienciar a
morte dos outros. A segunda ideia é a de que a morte é a minha possibilidade
mais própria e intransferível.
Ontologicamente, eu morro
sempre só, mesmo que, onticamente, enquanto cadáver, eu esteja acompanhado de
pessoas que choram por meu falecimento, que velam o meu corpo. É somente ao
morrer que posso dizer absolutamente que “eu sou” (nesse sentido, Heidegger
estabelece seu próprio cogito), visto
que a morte é constitutiva da essência do Dasein. O caráter exclusivo da morte
e sua intransferibilidade constituem a característica essencial da
subjetividade.
2.3. O ser-para-a-morte
Vimos que Heidegger
rejeita ser possível ter acesso à morte do outro, como também nega ser possível
ao defunto a experiência de seu estado de morte. Não obstante, Heidegger
persegue o problema que consiste em compreender a morte como tal. Importa-lhe,
nesse sentido, compreender a totalidade do Dasein, articulando-a a sua imutável
incompletude.
Para tanto, duas
observações se impõem no caminho da reflexão heideggeriana. Primeiramente, não
tendo mais nada em face de si, o Dasein é fundamentalmente aberto e incompleto,
ou seja, aberto a possibilidades e definitivamente incapaz de experimentar a sua
totalidade, a sua completude, o seu acabamento.
Heidegger se confronta
com o problema da coexistência entre incompletude e totalidade; no entanto, não
deixa de atacá-lo, para o que ele lança mão dos conceitos de ainda-não-ser e fim, sempre de um ponto de vista ontológico.
Convém lembrar alguns
pontos dessa discussão. Heidegger está a empreender uma análise ontológica do
Dasein e da temporalidade (que supõe uma experiência interna do tempo). A morte
ontológica é denominada por ele de o
propriamente morrer. A questão que o ocupará, doravante, é a de determinar
se uma análise ontológica do Dasein e da temporalidade pode conduzir a uma
fenomenologia da morte. Em outros termos, posso compreender a morte tal como é
a partir do exame ontológico da estrutura do Dasein e da temporalidade?
O propriamente morrer é entendido tendo como referência a estrutura
ontológica “projetiva” do Dasein. Isso significa dizer que o Dasein não é pura
e simplesmente ser dado, ser no presente, mas é um existente (ele ek-siste) na medida em que se lança para
a sua possibilidade, mantendo-se fora do domínio do “ente-aí-defronte”.
A categoria da possibilidade é ontologicamente
constitutiva do Dasein. É ele “prioritariamente ser-possível”, sempre aberto
para uma gama infinita de possibilidades de existir. Enquanto estiver
existindo, o Dasein sempre terá diante de si a possibilidade de ser. Enquanto
existir, ele agirá em conformidade com seu fim que é poder-ser – que expressa seu caráter antecipativo. O Dasein está
sempre a caminho de suas possibilidades, está sempre encaminhando-se para o querer-ser propriamente, o poder-ser de
si mesmo.
Ora, vê-se que essa
característica projetiva do Dasein expressa seu ser como “possibilidade no porvir” . Ele deixa de ser no momento em que o
por vir não vem de maneira radical. O futuro tem primazia sobre o presente e o
passado, ou seja, a temporalidade se
realiza originalmente a partir do futuro, “lugar” de possível atualização das
possibilidades do Dasein.
Heidegger rejeita a
concepção vulgar do tempo como retenção-protensão, que remonta a Husserl e
também rechaça a posição de Agostinho, segundo a qual o presente é o domínio
principal. Para Heidegger, é o futuro que é o sentido donde todos os existentes
extraem sua origem. Assim, o Dasein é sempre antecipado em relação a si mesmo
em seu ser. Ele é já sempre “além de si”. Ele se volta sempre para um poder-ser
que é ele próprio. O poder-ser é a
essência do Dasein.
Dado que é
originariamente projeção para seu próprio poder-ser, sempre voltado para o
porvir, o Dasein é fundamentalmente um ser-na-frente-de-si.
Retome-se aqui a ideia de incompletude que atravessa a estrutura do Dasein. O
Dasein é irremediavelmente incompleto, ou seja, ele se caracteriza por um
estado de incompletude perpétua, porquanto seu poder-ser de ser si mesmo ainda
não se “realizou”. O que é esse poder-ser de ser si mesmo não realizado?
Heidegger argumenta que há um limite final, uma possibilidade última própria do
Dasein, uma possibilidade de ser que ainda está por vir.
Com vistas a elucidar essa
possibilidade última do poder-ser do Dasein, faz-se mister dar a conhecer as
duas acepções em que Heidegger faz uso do vocábulo fim. Há duas maneiras de compreender o fim, segundo
Heidegger. Quando referido ao Dasein, fim significa o fato de chegar realmente
ao termo, ou seja, é ser-no-fim. Nesse sentido, o fim é o termo de processo de
atualização de possibilidades. Segue-se daí que a morte, de um ponto de vista
ôntico, é a conclusão do Dasein, é seu termo. É claro que a experiência
cotidiana patenteia, com muita frequência, que a morte surpreende o ser humano
privando-o de suas possibilidades futuras, de seus projetos promissores. Está
fora de dúvida que a morte nem sempre ocorre como o estágio final de uma série
de possibilidades realizadas. Dizemos de alguém que morreu na flor da idade que
foi privado de realizar seus projetos. O fim do Dasein não coincide, portanto,
necessariamente, com a sua conclusão.
Por outro lado, não há
dúvida de que o fim é uma relação com o termo: o ser-para-o-fim. O não-ainda do
fim não é a antecipação de uma completude futura, nem é alguma coisa a ser
realizada no porvir. O não-ainda-ser não
é exterior ao ser, mas pertence formalmente ao presente porque é um elemento
constitutivo do Dasein, que é sempre-já-seu-não-ainda.
Seu poder-ser constitui a essência do
Dasein; na medida em que existe, o Dasein deve “não-ser-sempre-ainda uma
coisa”. É porque ele é que ele é seu não-ainda, que é sua morte, no sentido de
que ele é um ser-para-o-fim.
A morte se enxerta nessa
tensão própria do Dasein para seu fim. O fim próprio do Dasein não é exterior a
ele e não se dá num futuro distante, mas é inerente a seu ser. O Dasein “já é
seu fim”, ou seja, sua morte.
Para Heidegger, o Dasein
jamais atinge sua completude; no entanto, se dirige para a realização dela até
que a morte lhe venha interromper o movimento projetivo de totalização. O
poder-ser íntimo do Dasein, sua morte, é intangível. O Dasein existe enquanto
ser que se projeta para seu fim. O propriamente morrer é expressão de uma
relação do Dasein com seu fim necessário que o impregna a partir do momento em
que aparece na mundanidade. Daí a fórmula referida por Heidegger, já
apresentada no limiar desta exposição – “Tão logo um homem chega à vida ele já
está velho bastante para morrer”. A morte pertence ao Dasein por excelência –
repitamos: é sua possibilidade mais
própria.
Heidegger fundamenta o
solipsismo existencial, o princípio de individuação do Dasein, no “estou
morrendo”, ou no “estou destinado a morrer”, o qual dá sentido ao “eu sou”. O
propriamente morrer é objeto de uma certeza absoluta e serve de fundamento para
as outras certezas. O Dasein é sua morte, visto que é propriamente morrer que
torna possível o “eu sou” (cogito heideggeriano: ‘morro, logo sou’).
A possibilidade da
impossibilidade de ser constitui a estrutura do Dasein, o fundamento de seu
ser. O propriamente morrer precede o sou e lhe confere sentido. O ser do Dasein
é o ser-possível orientado para o extremamente possível que é a morte.
A certeza absoluta do propriamente morrer, que Heidegger
demonstra ser independente das experiências ônticas, está fundamentada numa
ontologia da temporalidade, a qual recobre as categorias de possibilidade, porvir e de fim. Essa certeza se acompanha, todavia,
da incerteza sobre o momento do falecimento, que escapa a toda determinação.
Destarte, a morte é o que há de mais certo e, ao mesmo tempo, indeterminado.
A noção de possibilidade – cumpre esclarecer –
define o propriamente morrer, uma
dentre as possibilidades de ser do Dasein. O propriamente morrer é a
possibilidade pura e simples impossibilidade. Mas essa possibilidade, que deve
ser entendida no nível estritamente ontológico, jamais pode ser atualizada, não
se realiza. Ela exprime o fato ontológico de o Dasein tender para a realização
de sua completude, sem que jamais chegue a atingi-la porque destinado a morrer.
Não obstante, essa possibilidade se expressa como movimento de relação com a
possibilidade extrema da morte. O ser para a morte caracteriza o Dasein
enquanto ser que se projeta para seu fim. O fim inerente ao ser-antes-de-si se
depreende de sua própria finitude. Esse fim é sua morte, a qual nega todos os
possíveis.
O Dasein é, em sua
essência, um ser-para-a-morte, o que faz da morte uma possibilidade certa e uma
impossibilidade possível devido à indeterminação que caracteriza o momento do
falecimento, cuja vinda é factual.
É forçoso protelar para
outra ocasião o tratamento da questão que Heidegger define como atitude de
antecipação da morte, que nada tem que ver com a realização concreta da morte.
Circunscrevo-me a notar que essa atitude de antecipação da morte torna possível
vivenciar a angústia em si como angústia em face do vazio.
2.4. Crítica à tanatologia de Heidegger
Sem visar à exaustão – na
verdade, sendo bastante esquemático -, é preciso fazer ver que constitui um
problema no estudo sobre a morte levado a efeito por Heidegger o ter rejeitado
que a experiência com a morte do outro, mormente se ele é um ente querido,
torna claro o fim do ser-antes-de-si, o meu propriamente morrer.
Da tensão do Dasein para
o porvir não se segue, logicamente, a conclusão de que sua existência supõe um
fim. O fim não está contido ontologicamente no ainda-não-ser, nem no
ser-antes-de-si. Parece razoável que não se pode conceber a condição do
ser-para-a-morte com base exclusivamente na condição de ser um possível
orientado para o futuro.
Novamente, o ter
negligenciado a experiência com a morte do outro como meio pelo qual chego à
compreensão de mim enquanto ser-para-morte é uma lacuna não contornável pela
alegação da abertura fundamental do ser-antes-de-si. Seu futuro não está
limitado de modo essencial.