
A carta de Tiago
e
a fé como relação de barganha
Intróito
Israel não foi o único povo a
conceber um Deus único, tampouco pode reivindicar ter sido o primeiro povo
monoteísta. O monoteísmo tornou-se a religião egípcia oficial no tempo do jovem
monarca Amenhotep IV. Esse soberano elidiu as antigas divindades em 1375 a .C., pôs fim à
oposição sacerdotal e impôs uma religião baseada na crença num único Deus,
Aton, nome este que parece ter assumido a forma hebraica adonai (senhor). Semelhantemente ao Deus judaico, Aton não admitia
quaisquer imagens, exceto o disco solar, que era seu símbolo. O culto de Aton,
no entanto, não durou muito, pois Amenhotep - àquela altura, chamado Aquenaton
(por ter sido quem estabeleceu o novo culto) -, morrera em 1383 a .C. Pouco tempo depois
da morte do soberano Aquenaton, o culto a Aton foi abandonado.
É verdade também que os judeus, tendo enfrentado muitas crises,
retomaram frequentemente, cultos antigos e abolidos. Um exemplo dessa volta a
cultos antigos é o culto a Tammuz, deus adorado pelos Sumérios, que o chamavam
Dumuzi. Não faltam exemplos históricos que validam a afirmação de que todos os
povos vizinhos, seja amigos, seja inimigos, estabelecem intercâmbios de
conhecimentos e ideias, através dos quais se acham vinculados para o bem ou
para o mal. Os escritos de Ezequiel (século VI a.C.) patenteiam-nos adesões de
inúmeros judeus às várias crenças de seus opressores. Os judeus exilados não
conseguiram permanecer imunes às influências de seus dominadores.
Os exemplos de Aton e Tammuz, somados a inúmeros outros, encaminham a
conclusão, a que qualquer um chega sem dificuldades, de que deuses são
entidades históricas, que nascem em condições sócio-históricas determinadas,
podendo tornarem-se signos de um poder hegemônico durante longo tempo, mas
sempre passíveis de sucumbirem às transformações sócio-políticas, culturais,
econômicas. Deuses são entidades culturais (simbólicas), produtos da
engenhosidade humana, ainda que os próprios homens os concebam como entes
a-históricos, atemporais, eternos, sustentadores dos Céus e da Terra, Criadores
do Universo, ou com qualquer outra forma
de categorizá-los que escamoteia o fato de que eles são, na realidade, criações
humanas.
A história cristã é como uma virgem que já fora, várias vezes, despida,
mas insiste em encobrir-se. Neste texto, pretendo despi-la novamente. A tese
que norteia toda a discussão que desenvolvo aqui consiste em afirmar que a fé é
sempre interessada. A fé é sinal que instaura uma relação de barganha entre
homem e Deus. Deus diz: Creia em mim!
Ao que responde imperativamente o homem: Dá-me
algo em troca! Deus oferece a Salvação em troca da confiança humana total
nele. Com a instituição das elites religiosas, essa confiança expressa-se sob a
forma de subserviência do homem à Vontade Soberana de Deus, a qual se encarna
historicamente no poder de uma classe dominante – a classe sacerdotal. Creia em mim!, quer dizer, submeta-se a
mim (ao sacerdote), torne-se dócil, domesticável e obediente
incondicionalmente. Se para demonstrar de que modo o signo Deus funciona como um dispositivo ideológico a serviço da
manutenção da dominação espiritual, política e econômica de um certo grupo
sobre outro(s), exige-se um trabalho de desterritorização teológica, a mesma
exigência é indispensável para dar conta da razão por que Deus, sendo inegavelmente
concebido como autossuficiente e perfeito, necessitaria do amor, da devoção, em
suma, da confiança de criaturas imperfeitas tão naturalmente incapazes de uma
fidelidade constante. Crendo não estar clara a questão que me coloco, formulo-a
do seguinte modo: por que Deus, que de
nada carece, precisa, no entanto, de seguidores, de adoradores, de servos,
fiéis, crentes? Qualquer tentativa de resposta a esta questão, que não
assuma como premissa a ideia de que são
os homens que inventam Deus, e não o contrário, será expressão de uma
compreensão ideológica do problema. Deuses não são senão produtos da práxis
histórica, entidades culturalmente construídas, fabricadas pela imaginação
humana em práticas sócio-históricas concretas. Qualquer resposta à questão
ventilada acima que apele para uma explicação teológica não faz senão
reproduzir uma compreensão ideológica que põe de ponta cabeça a relação entre
homem e deuses.
O primeiro tema de que me ocuparei, tendo em vista a tese que sustenta
minhas reflexões neste texto, é o da fé.
Como definir a fé? No texto do Catecismo
da Igreja Católica (2000), topa-se, a partir da página 48, o artigo I, que
é destinado ao tema da fé. Na página
49, a
palavra fé define-se como “uma adesão
pessoal do homem a Deus”. De acordo com essa definição, fé recobre o
significado de assentimento livre à verdade revelada por Deus.
Se prosseguirmos na leitura do texto, encontraremos a seção em que se
especificam as características da fé. A primeira delas é que a fé é uma graça, isto é, um dom de Deus. A
fé é uma virtude sobrenatural infundida por Deus no homem. Se é infundida no
homem por Deus, o homem não é, então, naturalmente predisposto à fé.; ele
necessita, para possuí-la e manifestá-la, da “graça prévia e adjuvante de Deus
e [d]os auxílios internos do Espírito Santo” (p. 51). Depois da Queda, o homem
não pode mais contemplar a Deus; se quiser relacionar-se com ele, precisará da
fé, que, no entanto, não lhe é uma disposição natural; mas um hábito constante
e firme que Deus lhe incute.
A segunda característica da fé consiste em ser ela um ato humano.
Segundo o texto do Catecismo, a fé
não contraria a liberdade nem a inteligência do homem que, através da fé,
confia em Deus e adere às “verdades” por ele reveladas.
Silenciarei sobre as demais características da fé, apontadas pelo Catecismo, pois que elas são
dispensáveis ao âmbito desta discussão. Em síntese, o texto do Catecismo dá-nos a saber o seguinte
acerca da fé: 1) a fé é uma adesão pessoal do homem, enquanto totalidade, a
Deus; 2) a fé é um dom sobrenatural de Deus; 3) a fé é necessária à Salvação.
Cumpre ainda notar que a fé é também segregadora, conforme lemos em
Marcos (16,16): “Aquele que crer e for batizado será salvo; aquele que não crer
será condenado”. Possuir fé é condição para a Salvação. A fé separa os que
serão salvos, porque a possuem, dos que não serão salvos, isto é, serão
condenados, porque são resistentes a ela. [1] É
oportuno lembrar, de passagem, que a fé, segundo São Tomás, é “um antegozo do
conhecimento que nos tornará bem-aventurados na vida futura”. Estando claro que
a fé é condição para ser beneficiário da Salvação concedida por Deus, resta
determinar em que consiste essa Salvação. A questão que se nos impõe à
consideração é: Do que, afinal, seremos
salvos?
No Tratado de Teologia
(2011), Blazer observa que Deus nos salva “de muitas realidades negativas” (p.
308). Ele salva seu povo que se encontra em perigo, livra-o dos perseguidores,
dos inimigos (Nm 10-9), das danações (Jz 15-18; Sl 18-3). Deus salva ainda de
situações perigosas, das aflições em geral, entre as quais está a tristeza, a
angústia, a enfermidade, o temor da morte, etc. Finalmente, Deus livra a
humanidade do estado de pecado e de suas consequências. Em Lucas (19: 10), lê-se
sobre o livramento da perdição: “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o
que se havia perdido”. Se o texto do compêndio teológico mostra-nos que a
Salvação divina é a solução para a condição pecadora a que o homem, desde a
Queda, se vê destinado, também nesse texto diz-se que a Salvação é parte do
plano de Deus, “antes da fundação deste mundo” (1Cor 2:7; Ef 1:3, 14). Reza o
texto que o sofrimento e a morte de Jesus foram um acontecimento fundamental no
plano de Deus. Jesus é “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap
13:8). O sofrimento e a morte de Jesus não decorreram de circunstâncias
históricas, mas estavam previstos no plano de Deus. A explicação teológica
pretende substituir a contingência histórica; nela, mascaram-se as razões
verdadeiras pelas quais Jesus foi condenado e morto pela apresentação de uma
razão fictícia, segundo a qual seu martírio foi determinado, desde as origens
dos tempos, por Deus. Essas breves considerações sobre o que significa Salvação
na teologia judaico-cristã deverão nos ser suficientes para compreendermos mais
claramente a questão que ocupará o autor de Tiago, carta que se acha no Novo
Testamento.
2.
Tiago: um caso de falsificação
No Novo Testamento, se acha um livro cujo autor parece interpretar
equivocadamente os ensinamentos de Paulo. Trata-se de uma carta cuja autoria é
atribuída a Tiago, chamado o Justo, irmão de Jesus. Era assim que esse Tiago se
tornou conhecido nos primórdios da Igreja. Sua notabilidade deve-se também a
seu comprometimento com suas raízes judaicas, mesmo vindo a tornar-se um
seguidor de Jesus.
Tiago não foi um seguidor de Jesus em vida (Jo 7,5), mas foi um dos primeiros a
ver Jesus ressuscitado. Parece que, depois desse grandioso evento, passou a
acreditar em Jesus. O apóstolo Paulo conhecia Tiago pessoalmente. Segundo
Paulo, Tiago seguia a lei judaica e defendia a opinião de que os seguidores de
Jesus também deveriam segui-la (Gl 2, 12). Tiago morreu por volta de 62 d.C., a
acreditarmos nos melhores registros históricos, não sem ter comandado a igreja
de Jerusalém durante trinta anos.
A questão principal que ocupou o autor de Tiago estava no centro de
disputas com os cristãos. A controvérsia que ela suscita opunha cristãos para
quem é suficiente ter fé para ser justo perante Deus ao próprio Tiago, ou
melhor, a quem alegava sê-lo. O autor de Tiago sustentava que a fé sem obras
não conduz à Salvação. Para Tiago, quem crê e não pratica boas ações não tem
fé. A fé deve sempre se acompanhar da prática de boas ações para que aquele que
tem fé se torne justo perante Deus. Acreditou-se, durante muito tempo, que a
carta de Tiago encenava uma controvérsia com Paulo, segundo nos ensina Ehrman (2013,
p. 194):
“Durante séculos, os
estudiosos do Novo Testamento sustentaram que o livro de Tiago responde ao
ensinamento de Gálatas. Paulo ensinou que era a fé em Cristo que colocava as
pessoas na relação certa com Deus, independentemente de elas fazerem ou não as
obras da lei”.
Para muitos estudiosos do Novo Testamento, parecia claro que Tiago
contrapunha-se a Paulo, na medida em que rejeitava a possibilidade de a fé
sozinha produzir justificação. Tanto o autor de Tiago quanto Paulo usam termos
como “justificar”, “fé”, “obras”. Ambos apelam para a figura de Abraão e
referem o Gênesis 15,6 ( “E creu ele no Senhor, e imputou-lhe isto por
justiça”). Desde Lutero, no começo da Reforma, os intérpretes concordam em
afirmar que Tiago está opondo-se a Paulo.
Sucede, contudo, que, recentemente, essa interpretação tem sido
questionada por vários estudiosos. Eles argumentam que, embora, na carta de
Tiago, figurem os mesmos termos usados por Paulo, Tiago não os empregou para
dizer a mesma coisa. Ao usar o termo “fé”, Paulo queria sublinhar o seu aspecto
relacional. Trata-se da fé em Cristo como confiança em que a morte e a
ressurreição de Cristo tornam justa uma pessoa perante Deus. Paulo crê que isso
se dá sem que seja necessário seguir a Lei judaica. A confiança (fé) em Cristo
independe da obediência a essa lei. Na prática, Paulo acreditava que uma pessoa
podia crer em Cristo sem precisar celebrar o sabá, sem precisar seguir as leis de comida kosher, sem precisar, se for um homem, ser circuncidada, etc.
Ao contrário, Tiago refere-se a “obras” não como ações exigidas pela
Lei, mas como boas ações que atendem à satisfação dos necessitados: alimentar
os famintos, vestir quem está nu, etc. Novamente, lemos em Ehrman,
“Para Tiago, uma
concordância intelectual com o cristianismo que não se manifesta em como a
pessoa vive não tem utilidade. Isso não salva a alma” (2013, p. 195).
O Tiago que escrevia para contradizer Paulo não era, contudo, o
conhecido irmão de Jesus; era, na verdade, um falsificador. A carta de Tiago,
que figura no Novo Testamento, foi escrita por alguém que alegava ser Tiago,
irmão de Jesus. Ela surge como um desdobramento posterior do raciocínio de
Paulo em uma comunidade paulina posterior. O ensinamento a que ela se opõe
surgiu após os escritos de Paulo. O que Tiago ensina é semelhante ao que se
topa em Efésios, escrito depois da morte de Paulo por um autor que alegava ser
Paulo. Efésios está entre os seis textos falsificados em nome de Paulo. Das 13
cartas atribuídas a Paulo, seis são falsificações: Efésios, Colossenses, Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 3 Coríntios.
Também são falsificadas as Cartas a Sêneca, escritas, no século IV d.C., em
nome de Paulo. Antes de resumir o conteúdo de Efésios, acrescentem-se algumas
considerações mais sobre a carta de Tiago.
Tiago pressupõe uma situação posterior nas igrejas de Paulo. Sabe-se
que o verdadeiro Tiago morreu por volta de 62 d.C., duas décadas mais ou menos
antes de Efésios ser escrito. A razão determinante pela qual a carta de Tiago é
considerada uma falsificação repousa no fato de que o autor a escreveu num
grego retoricamente fluente. Ele exibia conhecimento íntimo do Antigo
Testamento. O Tiago histórico, irmão de Jesus, no entanto, era um camponês da
Galileia que falava aramaico e que muito provavelmente não sabia ler,
“(...) Ou, se aprendeu,
foi a ler hebraico. Se um dia aprendeu grego, foi como segunda língua, para
falá-la, sem dúvida, de forma deficiente. Ele nunca teria ido à escola. Nunca
teria se tornado fluente em grego. Nunca teria aprendido a escrever, mesmo em
sua língua materna, muito menos em uma segunda língua (...)” (Ehrman, 2013, p.
197).
Quem escreveu a carta alegou ser Tiago com o propósito de dar credibilidade a sua posição, qual seja, a de que os seguidores de Jesus precisavam manifestar fé realizando boas ações, visto que sem obras não há fé.
No respeitante a Efésios, seu autor alega ser Paulo e ensina
contrariamente ao Paulo histórico que as boas obras não conduzem à salvação.
Para o autor pseudônimo de Efésios, fazer boas ações não é determinante para
tornar uma pessoa justa perante Deus. O autor não se opõe, na verdade, ao que
Paulo efetivamente ensinou, mas ao que cristãos posteriores equivocadamente
entenderam do que Paulo ensinara. Foram, pois, esses cristãos posteriores que
interpretaram o ensinamento paulino, segundo o qual era a fé que tornava uma
pessoa justa como se o que importasse era apenas acreditar, independentemente
do modo como essa pessoa vivesse. Sucedeu que o ensinamento de Paulo, segundo o
qual, para se tornar cristão, não é necessário realizar as “obras da Lei”, foi
tomado como uma recusa da realização de “boas ações”. Para esses cristãos
posteriores, importava a crença de uma pessoa e não a vida dela. O autor de
Tiago, portanto, mesmo não citando Paulo, tinha em mira objetar ao ensinamento
de Paulo, ou melhor, à forma deturpada como ele fora interpretado na época em
que esse autor viveu. Os cristãos desse tempo acreditavam que estavam diante de
um ensinamento de Paulo, por isso também recorreram à figura de Abraão e ao
Gênesis 15, 6, onde se lê que Abraão tinha sido justificado por sua fé, e não
por suas obras.
Finalmente, ainda no tocante a Efésios, a carta destina-se a cristãos
gentios com vistas a recordá-los de que, embora tivessem um dia sido afastados
de Deus e de seu povo, os judeus tinham sido reconciliados e se tornado justos
perante Deus. Já não existia mais a barreira que separava judeus de gentios, a
saber, a lei judaica. A morte de Cristo lançou-a por terra. Doravante, judeus e
gentios podiam viver em harmonia entre si, em Cristo e em Deus.
O autor de Efésios apresenta esse conjunto de ideias teológicas nos
três primeiros capítulos (especialmente no segundo); em seguida, passa a
ocupar-se com questões éticas com o intento de esclarecer a forma como os
cristãos devem viver, para que sejam uma unidade em Cristo. Efésios foi escrito
por um cristão posterior em uma das igrejas paulinas. Ele estava preocupado em
resolver a grande questão de sua própria época, qual seja, a da relação entre
judeus e gentios na igreja. Ele o fez alegando ser Paulo e sabendo que não era,
isto é, produzindo uma falsificação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAZER, Ivan T. Salvação. In: Tratado de Teologia – Adventista
do Sétimo Dia. Tauí: SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011.
EHRMAN, Bart. D. Quem escreveu a Bíblia – Por que os autores
da Bíblia não são quem pensamos que são? Rio de Janeiro: Agir, 2013.
SCLIGMANN, Kurt. Magia, sobrenatural e religião. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 1948.
Catecismo da Igreja Católica
(2000).
[1]
Antes que me censurem a compreensão reducionista da fé, concedo na
possibilidade de encontrarmos uma defesa da fé como experiência inclusiva,
comunitária, mas essa inclusividade e comunidade da fé supõem sempre
exclusividade, separação entre os eleitos e os rejeitados, entre os que
pertencem ao grupo e os que estão dele excluídos. Nesse sentido, sendo parte do
aparato da doutrinação levada a efeito pelas elites religiosas, a fé é um
sintoma da cooptação dos mais vulneráveis socialmente.