quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“A miséria de grande parte da população não encontra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios”. (Celso Furtado)

 

          



     Política não se discute?

 

A política é uma atividade humana em cujo cerne está o diálogo, a deliberação; portanto, a discussão, no sentido de exposição conflitante, polêmica de pontos de vista, de julgamentos, interpretações, avaliações sobre a melhor forma de organizar uma sociedade em consonância com valores como igualdade e justiça. A política, ensina Hanna Arendt, diz respeito à coexistência e à associação de seres humanos diferentes. Como objeto de reflexão filosófica, a política descerra-se como um campo de questões que norteiam a convivência dos homens e dos grupos humanos entre si, e também as relações deles com o mundo. No entanto, o ditame que sentencia “política não se discute” quer dizer uma coisa que, sendo estranha ao fenômeno político, pretende levar à desmobilização dos atores sociais da participação política: não se deve tomar a política como assunto do falatório do senso comum, porque, nas esferas interacionais mediadas pelo senso comum, os interlocutores mobilizam, na conversação, uma série de crenças simplistas ou falsas, preconceitos, ideologias, lugares-comuns, representações coletivas de mundo que se vão acumulando na intercalação animados com as paixões tristes e ressentidas que levam a maus encontros e perturbam o contrato comunicativo tacitamente estabelecido. A política não é objeto de exame crítico, de reflexão sistemática, articulada e cuidadosa na definição e articulação dos conceitos largamente usados no debate calcado sobre o senso comum. O senso comum não consegue trabalhar os conceitos teóricos , não consegue pensá-los nem articulá-los para compor um discurso coerente e teoricamente bem fundamentado. O senso comum não se ocupa da problematicidade das questões que emergem de cada turno de fala dos interactantes. A conversação do senso comum leva os interlocutores a desconsiderarem os pressupostos de seus enunciados. Portanto, a discussão sobre política, no âmbito do senso comum , se converte, com muita facilidade, em bate-bocas que levam, quase sempre, a arrelias, a mútuas incompreensões, reforçando nos participantes o sentimento de que toda aquela disputa verbal foi em vão, porque nenhum deles modificou sua percepção da realidade construída e reconstruída no discurso de cuja produção eles se encarregavam. No senso comum, os interlocutores são muito mal instrumentalizados teoricamente para pretender refletir sobre “a questão política”, sobre os problemas complexos da realidade sócio-histórica em que vivem. Conceitos como “neoliberalismo”, “capitalismo de mercado”, “mercado”, “ideologia”, “Estado de direito”, “democracia”, “classe social” e outros tantos que definem o domínio discursivo da política como problema científico e filosófico a ser pensado com seriedade teórica são regularmente ignorados pelos interactantes que se movem nas esferas do senso comum. Na insistência no velho preconceito segundo o qual “o Brasil quebrou por causa da roubalheira do PT”, o senso comum assume como verdade incontestável uma visão simplista e equivocada acerca da realidade sociopolítica e econômica do Brasil, ao mesmo tempo que não vê que a realidade é muito mais complexa do que sugerem suas opiniões grosseiras. O senso comum ignora, por exemplo, que o governo Lula jamais rompeu com o sistema de acumulação neoliberal, com que os antipetistas, mesmo sem o saber, parecem simpatizar. O senso comum ignora a incompatibilidade entre o neoliberalismo, cujo significado também desconhece, e a democracia, cujo significado não compreende bem ou, o que dá no mesmo, compreende confusamente. O senso comum também faz vistas grossas ao conservadorismo do Estado brasileiro, que busca sempre assegurar os privilégios das elites econômicas, as relações de dominação, bem como busca reproduzir o modo de exploração que perpetua os padrões existentes de desigualdade de renda, riqueza e privilégio, independentemente do desempenho econômico do país. O senso comum não consegue levar em consideração as mudanças macroeconômicas na economia brasileira que, realizando a transição do Brasil de uma economia de Industrialização por separação de Importações para o neoliberalismo, tornaram a economia brasileira uma economia de baixo crescimento desde que, no fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, o Brasil ingressou de vez no neoliberalismo, com uma democracia frágil que convive com profundas desigualdades socioeconômicas. Por fim, a discussão política, no senso comum, não leva em conta as mudanças estruturais da economia brasileira, ocorridas na década de 1990. Com o novo Sistema de Acumulação então vigente, o setor secundário da economia brasileira, ou seja, o setor manufatureiro (industrial) declinou, e a capacidade produtiva caiu significativamente, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais sofisticados da indústria. Se, por um lado, a economia perdeu a capacidade de gerar “bons empregos”, o Estado foi-se demonstrando cada vez menos eficiente no enfrentamento dos problemas do crescimento, na reestruturação produtiva e na busca por coordenar políticas econômicas. As reformas neoliberais feitas no Brasil foram incorporadas à Constituição por meio de regras fiscais que se justificavam pela necessidade de estabilização da inflação e da “boa governança”. Consequentemente, entre nós, o neoliberalismo ganhou legitimidade e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do país, minando as aspirações democráticas previstas pela Constituição. Mas tudo isso é ignorado pelo senso comum, que limita toda a discussão política ao comportamento ético dos atores políticos, à polarização partidária, ao mesmo tempo que faz desfilar toda sorte de preconceitos como o de classe (o senso comum da classe média prefere culpabilizar os mais pobres pelo desastre econômico do país, já que estes, como os índios aos olhos dos colonizadores , não apreciam a labuta diária, preferindo mamar nas tetas do governo, que por sua vez pouco faz para realizar o suposto desmame). Assim, o senso comum da classe média reflete o modo de ser e de pensar das elites socioeconômicas brasileiras edificadas numa tradição escravocrata e autoritária ainda persistente no modo de ser brasileiro. É que o senso comum compreende o conjunto de esquemas interpretativos úteis para orientar e dar significado e ordem à vida cotidiana. Ele se forma em cada ser humano de modo inconsciente e natural no curso de sua socialização primária e secundária, formando o pressuposto básico das ações individuais. Por isso, a experiência pessoal circunscrita ao âmbito do senso comum é um referencial muito limitado e empobrecido para nos assegurar um profundo e elaborado conhecimento do mundo. Nossas experiências pessoais, formadas pelos encontros com o mundo das coisas, nas diversas situações de interação social, lidam com parcelas muito circunscritas da realidade humanamente experienciável; nossas experiências pessoais, se permanentemente divorciadas da experiência da leitura, não nos permitem uma compreensão sistemática do todo, da totalidade dos problemas com que a existência humana lida; nossa experiência pessoal ordinária parcializa o real, pois só podemos conhecer aquilo que é imediatamente acessível em seu campo, aquilo que se torna para nós familiar. Alargar nossas experiências pessoais com o mundo é o que nos possibilita a leitura, o convívio com os livros. A leitura é também uma experiência pessoal, que se vai enriquecendo, no entanto, à medida que o sujeito leitor participa da construção e reconstrução sociointerativa de um modelo de mundo, de uma versão da realidade que é produto de atividades sociocognitivo-interacionais e dialógicas do produtor do texto. Assim compreendida, a leitura é também uma atividade sociointeracional, na medida em que o leitor é um sujeito social que, no ato de ler, dialoga com um interlocutor-autor (ele mesmo também um sujeito social), mediante um texto que oferece (que propõe) uma imagem do mundo que é social, cognitiva, interacional e linguisticamente construída. A leitura nos patenteia que o real é muito mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Há muitos níveis de realidade que nos são inacessíveis em nossa experiência pessoal e imediata com o mundo na cotidianidade. Por isso, a experiência pessoal cotidiana de mundo não é um critério seguro para validar a consistência, a razoabilidade, a veracidade do que pensamos, julgamos ou acreditamos saber acerca das coisas. Nossos encontros imediatos com o mundo da vida são “enxertados” e mediados pelas representações coletivas, as crenças, as ideias, os preconceitos do senso comum.

O senso comum abriga juízos morais e afetivos sobre as causas, as condições dos eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum compreende um conjunto de proposições cognitivas e valorativas, fortemente restritivo e seletivo, porquanto seleciona e articula um dado número de “fatos” dentre a massa ilimitada de eventos, de ocorrências que constituem o mundo da vida. Assim, tudo no senso comum tem caráter de obviedade, de objetividade, de irrevogabilidade e coercitividade irrecusável. Para o senso comum, o mundo é um mar tranquilo de fatos autoevidentes. Nesse sentido, discutir política, no âmbito do senso comum, que ousa entender mais do que entende, é arriscar-se a envolver-se numa disputa na qual ninguém se entende, todos arengam e da qual todos saem como entraram: munidos com o mesmo background de crenças, suposições equivocadas, juízos afetivos e morais cristalizados, preconceitos, valores inquestionáveis e pretensas verdades não devidamente examinadas.



                                              A FARSA DA MERITOCRACIA

 

O projeto político do capitalismo financeiro neoliberal, há mais de 30 anos, é condenar ao silêncio o sofrimento da maioria, ao mesmo tempo que dá visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais talentosos e aptos na esfera pública como se representassem todo o sofrimento social existente.

A mentira da meritocracia consiste em afirmar que, embora o mundo seja um lugar inóspito e cruel, aquele que se esforça e trabalha duro conseguirá ganhar 500 vezes mais que outros. Os que ganham 500 vezes menos é porque são burros ou preguiçosos. Mas a meritocracia mascara o fato de que são as classes sociais os principais meios que permitem reproduzir os privilégios visíveis e invisíveis. A reprodução desses privilégios ocorre, em primeiro lugar e fundamentalmente, pela SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR. Como só existe a família de classe, cada qual tem uma história e uma forma de reprodução dos privilégios visíveis e invisíveis. O privilégio mais visível é o econômico. Este é notável na classe da elite de proprietários, os quais detêm todas as riquezas. Entre estes estão os donos de grandes fazendas, dos meios de comunicação, das cadeias de comércio, os grandes especuladores e rentistas. Abaixo desse 0,1% da população, situam-se as classes que lutam pelo capital cultural, que não é visível como o dinheiro e a propriedade. O capital cultural é formado pela incorporação do conhecimento útil e legítimo socialmente. Será a classe média - que se define pela reprodução do privilégio da educação - que criará e disseminará, de modo invisível e eficiente, a farsa da meritocracia mediante a incorporação privilegiada do capital cultural. Numa sociedade como a brasileira, disposições como disciplina, autocontrole, visão de futuro, capacidade de concentração e de elaboração do pensamento abstrato não são dons naturais, mas competências que são verdadeiros privilégios de classe. O hábito da leitura, por exemplo, é criado pelos pais. A criança passa a exercer a prática de leitura seguindo o exemplo dos pais. A disciplina do equilíbrio entre brincar e aprender, que acostumará a criança a renunciar, quando crescer, ao presente em benefício de um futuro, é aprendida na socialização familiar. Tudo isso é, portanto, privilégio de classe, nomeadamente da classe média brasileira, que produz a base social invisível que todo mérito pessoal oculta. Nas classes dos oprimidos e socialmente excluídos no Brasil, os valores reproduzidos são quase todos “negativos”. Toda a socialização familiar se realiza por meio de exemplos práticos (e não por discursos). São estes exemplos práticos que os filhos vão imitar e, mais tarde, reproduzir como um legado de sua classe social. Uma mãe que diz a um filho que ele deve ir à escola precária dos negros e pobres porque só assim ele terá chances de sair da pobreza, dificilmente o convencerá porque, afinal, a própria mãe frequentou uma escola semelhante que não a tornou mais do que uma analfabeta funcional, como sucede com tantos outros membros dessa classe social a que ela e seu filho pertencem. Enquanto os humilhados e desprivilegiados, quase todos negros, se colocam como “fracassados” já no ponto de partida, os membros da classe média entram na escola como bem-sucedidos já desde tenra idade, porque foram nutridos, desde o berço, com os pré-requisitos emocionais, morais e cognitivos para tanto. Essas condições de que se beneficiam desde muito cedo na vida os farão indivíduos predispostos ao sucesso escolar e ao acesso a postos de trabalho com remuneração muito maior anos mais tarde.



Lição básica de história econômica do Brasil

 

O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso, visto que aumentou as desigualdades econômicas e sociais





Um recorte do Brasil


Nestes pouco mais de 500 anos de história, persistem no Brasil alguns traços que o definiram como sociedade histórica desde o período colonial. Um desses traços é justamente a difícil e tortuosa construção da cidadania. Último país, no Ocidente, a abolir a escravidão, o Brasil convive ainda hoje com inúmeros processos de exclusão social. Somos campeões em desigualdade social. Nosso bovarismo, isto é, nosso inextirpável desencanto com nossas condições sócio-históricas reais, é tão característico do nosso modo de ser brasileiro quanto o familismo, ou o costume arraigado em nossa cultura de transformar questões públicas em questões privadas. A lógica e a linguagem da violência tanto quanto a corrupção estão encravadas profundamente na mais remota história da formação de nossa sociedade. No Brasil, os pobres e os negros ainda são culpabilizados pela Justiça. São os que mais morrem cedo, os que têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. E estas circunstâncias que nos ajudam a nos compreender como nação, como sociedade histórica, são mantidas e reproduzidas por uma estrutura de poder oligárquico caracterizada pela aliança entre os agentes estatais (funcionários administrativos e do governo) e os potentados privados (os detentores da riqueza privada). Estes dois grupos de poder buscam, antes de tudo, realizar seus interesses próprios em detrimento do bem comum do povo.




ALIANÇAS POLÍTICAS

 

Não deveríamos nos surpreender com essa aproximação de Lula à agenda neoliberal, representada na figura de Alckmin. Quando estava na presidência, a despeito de seus 80% de aprovação, Lula foi um neopopulista de mercado. Em 1 de dezembro de 2010, Lula declarou, na Carta Capital, “ foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista”. O governo lulopetista caracterizou-se pelo desenvolvimento e expansão do mercado de consumo interno e pelo pacto desenvolvimentista com o grande Capital nacional. Só mesmo na narrativa fantástica da extrema direita e dos apoiadores de Bolsonaro, seria possível associar Lula e o PT a algum projeto de revolução comunista no Brasil. O governo petista historicamente foi pró-mercado. Assim, vivenciamos três movimentos psicopolíticos no Brasil de hoje, que configuram juntos uma única produção de força delirante: 1) recusa dos elementos históricos complexos; 2) regressão imaginária radical a um modo antigo de organizar a história; 3) ódio e pressão urgente por ação de violência, sacrifício e restauração da civilização. Esses três movimentos formam o sistema delirante da extrema direita. Esse sistema delirante, paranoico e fetichista alimenta o nosso arraigado e antigo desprezo antipopular e ódio pelos pobres. Esse sistema delirante, alimentando nossa tradição anticrítica e anti-intelectual, enraizado em nossa formação moderna como sociedade escravocrata, explica por que é possível que pessoas comuns insistam em ignorar o fato de que o PT e o governo Lula ousaram dirigir o processo histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza COM UM GRAU MÍNIMO DE PARTILHA COM OS MUITOS POBRES.




 

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

"Se é verdade que sempre há mais de uma forma de interpretar um texto, não é verdade que todas as interpretações são iguais." (Paul Ricoeur)

 





NÃO HÁ FATOS, APENAS INTERPRETAÇÕES : Castoriadis e Ricouer - uma polêmica

 

 

Num diálogo ocorrido em 9 de março de 1985, Paul Ricouer e Cornelius Castoriadis contrapunham as perspectivas que adotavam acerca do imaginário social e da possibilidade de emergência da novidade na História. Ricouer preferia falar em produção histórica, entendendo por “produção” o fazer surgirem novas sínteses, novas configurações, novas significações a partir de um pré-construído, de um horizonte pré-regrado. Para Ricouer, não é possível a criação ex nihil na história. Segundo Ricouer, “só podemos produzir segundo regras; nós não produzimos tudo naquilo que produzimos, mais que não seja porque já temos um discurso antes de falar. Outros já falaram e estabeleceram as regras do jogo”. Castoriadis, por seu turno, preferindo falar em instituição imaginária da sociedade, e não de produção, defende a possibilidade da criação histórica, do fazer vir à luz o novo. Castoriadis consente com Ricouer, contudo, na tese de que o “novo” criado não é o novo absoluto. Para Castoriadis, há um domínio pré-existente organizado por regras previamente estabelecidas, mas nós podemos estabelecer novas regras, podemos sempre transformar as estruturas pré-construídas. Nesse sentido, podemos fazer nascer algo novo nunca experimentado ou previsto.

Desnecessário dizer que os dois pensadores concordam em vários pontos de suas reflexões, mas se distanciam neste aspecto fundamental: para Ricouer, não cabe falar em criação histórica, mas apenas em produção, ao passo que, para Castoriadis, devemos admitir a criação histórica e não a simples produção histórica.

Essa contraposição de interpretações encenada no diálogo entre Paul Ricouer e Cornelius Castoriadis é extremamente relevante para minha abordagem do niilismo. Apesar de acompanhar Castoriadis em muitos pontos de suas análises, não deixo de ver afinidade entre minha proposta de análise e a interpretação de Ricouer. Assim como não há um discurso que rompe o silêncio originário da enunciação, assim como não há um sujeito adâmico que, num momento mítico, teria tomado pela primeira vez a palavra, assim também o novo, na história, não emerge a partir do nada. Aqui me vejo mais próximo de Ricouer do que de Castoriadis. Mas ambos concordam num ponto que, para mim, é fundamental em minha tese sobre o niilismo: a afirmação do caráter fundamentalmente simbólico-imaginário da realidade social e das relações sociais. Para Castoriadis, toda realidade social é mediatizada simbolicamente, no que Ricouer concorda. Ambos afirmam que o agir histórico se realiza numa dimensão simbólica e imaginária que lhe é constitutiva. Fora do domínio simbólico-imaginário, não há sociedade, nem instituições, nem história. O homem, para ambos os pensadores, é HOMO LOQUAX, é homem de linguagem; é homem que não só usa a palavra, mas também inventa e imagina signos, sentido, símbolos, textos e narrativas, com os quais interage com seus semelhantes, construindo “ o mundo” nas práticas sociogntivo-interacionais possibilitadas pela linguagem. É no discurso e nas práticas de interação social pela linguagem que o mundo e os sujeitos se constituem. 

 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"A ideologia funciona muito mais por meio do bloqueio da percepção de outras possibilidades, de outras realidades..." (Silvio Gallo).





       O LOUCO e a MORTE

 

A morte é um escândalo! Acordem! A vida é nua e ostenta sua nudez pavorosa e abissal!

E não me venham com este papinho disfarce: “vivamos intensamente o dia de hoje porque amanhã tudo poderá acabar”!

Mas tudo já está acabado. O decreto foi emitido há 14 bilhões de anos. Vivemos como os desavisados (ou fingidos?) que não conseguem ver que “o rei está nu”. Nossa morte herdamos quando nascemos. Contraímos uma dívida e vivemos como endividados que protelam o tempo de saldá-la. O credor, no entanto, não dá aviso prévio e não admite calote.

Ao romper o ventre materno fomos condenados a ela. Não há meios para apelação!

Tudo é pó, tudo é pó! Cinzas, poeira estelar! O silêncio da imensidão que ignoramos e que nos ignora há de calar nosso burburinho. Deixamos em cada passo que damos o rastro de nossa sepultura, em cada passo alimentamos a avidez dos vermes que nos consumirão. A morte nos engravidou de si quando nascemos. Somos todos defuntos adiados, como bem escreveu o poeta.

A perspectiva de nossa morte como um destino implacável e inevitável dá a tudo que fazemos um aspecto de porosidade, de precariedade, de fragilidade, de uma vacuidade ritualística fúnebre. Em face do Inevitável e Insondável, todos os nossos esforços se tornam radicalmente desimportantes e nossos atos cotidianos se perfazem como pretextos para não encarar o horror de nossa condição existencialmente trágica. Realizamos meros atos cênicos de uma performática teatral cosmologicamente insignificante. Atuamos, quase sempre, ou por costume ou por fraqueza, ou por covardia.

Cumulamos coisas que durarão mais do que nós mesmos. E nos apegamos a coisas das quais necessariamente nos separaremos. Mortos, é como se nunca estivéssemos existido. A morte não concede memória, não faz inventário. Ela simplesmente revoga tudo, dá a tudo o caráter de inanidade. A perspectiva de nossa morte torna a vida semelhante a um sonho. Mas o despertar deste sonho não é outra vida (fantasia dos crédulos). É o nada que não podemos conceber, o nada que sequer podemos imaginar. O nada é o sussurro do túmulo a nos lembrar de que, num nível fundamental, não somos mais do que “fluxo de eventos, processos que por um breve tempo são monótonos”. Somos um vibrar de ‘quanta’ que, por um tempo, conserva uma identidade antes de se dissolver no seio da natureza.

A couraça da loucura normal impede-nos de nos apreender como os atores que encenam uma tragédia, cujo desfecho é reencenado há milhões de anos...

jogamos um jogo do qual somos necessariamente os perdedores... quem ousa dizer que venceu na vida não compreendeu absolutamente nada...

A crença de que os mortos habitam outro lugar, de que vivem em outro mundo é um sintoma de nossa incapacidade de lidar com o nada, com a injunção do nunca mais. Cremos na vida pós-túmulo, porque nos recusamos a aceitar a nossa finitude, porque não queremos aceitar que a morte é o fim definitivo, o maior de nossos tormentos. Todo viver cotidiano é uma fuga persistente à morte que nos persegue como nossa sombra. Pomo-nos em fuga no esquecimento de que somos passageiros com destino para o cemitério. Viver como quem está continuamente a se despedir para nunca mais retornar é esta a única maneira de não nos levarmos muito a sério, de aceitarmos que precisamos de uma dose de loucura para não sucumbir ao desespero total e paralisante.

 

 

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte.”

Sigmund Freud

 

 

“A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal.”

Raul Seixa 






Gozem! Gozem! Gozem!

 

A “irracionalidade” do sucesso ou do fracasso do capitalismo de mercado oferece-nos um único benefício: permitir que percebamos nosso fracasso (ou nosso sucesso) como “imerecido”, contingente. A própria injustiça do capitalismo é uma marca essencial que o faz ser tolerável para a maioria das pessoas, dado que nós podemos aceitar nosso fracasso mais facilmente, desde que saibamos que ele não se deve às nossas qualidades inferiores, às nossas incompetências e fraquezas, mas ao acaso. Lacan comunga com Nietzsche e com Freud na tese de que a justiça, tal como a igualdade, está assentada na inveja: na inveja que sentimos do outro que tem o que não possuímos e que se deleita com isso. A demanda da justiça é, em última instância, a demanda de restrição ao gozo excessivo do outro, de sorte que, restringindo-se o gozo do outro, todos tenhamos igualmente acesso ao gozo. Mas essa demanda produz um resultado necessário: o ascetismo. Na impossibilidade de impor um gozo igual, resta impor uma proibição, igualmente partilhada, ao acesso ao gozo. No entanto, contraditoriamente, nossas sociedades do espetáculo atuais pedem a todos uma única coisa: Gozem! Essa é a injunção generalizada que está no cerne da espetacularização de toda vida nas sociedades contemporâneas de mercado. Gozem, Gozem, Gozem! Com a condição de que tudo que se ofereça ao gozo seja desprovido da substância que o torne perigoso.





A ordem simbólica: o sujeito suposto crer

 

 

“A verdade tem a estrutura de uma ficção” (Lacan)

 

As emoções que enceno através da máscara que visto (a falsa persona) contém mais verdade do que posso admitir em meu foro íntimo. A polidez ilustra muito bem isso. Se, ao encontrar um conhecido, lhe estendo uma das mãos, dizendo “É um prazer revê-lo! Como vai?”, fica claro para nós dois que eu não estou genuinamente falando sério (se o meu conhecido desconfiar de que estou genuinamente interessado, pode até se sentir incomodado com meu atrevimento em querer tomar par de sua intimidade). Não é que eu seja necessariamente hipócrita, já que realmente sinto prazer em revê-lo. Apenas celebramos a renovação de um pacto entre nós dois. Sinto prazer em revê-lo e finjo estar interessado em saber sobre sua vida, mas nem ele espera que eu insista em querer saber demais (e verdadeiramente) sobre a vida dele nem eu espero que ele desfie para mim tudo o que lhe aconteceu durante o longo tempo em que estávamos distante. No ciberespaço, é o próprio fato de eu estar ciente de que me movo num espaço de ficção que posso expressar meu “verdadeiro eu”. Nos “reality shows”, os participantes do programa representam a si mesmos tais como se representam na “vida real”. A lógica aparentemente absurda do modo como funciona a ordem simbólica é esta: a máscara social que um indivíduo usa importa mais do que a realidade mesma deste indivíduo. Freud chamou essa estrutura de “renegação fetichista”: “sei muito bem que as coisas são como as vejo, que a pessoa diante de mim é um covarde corrupto, mas mesmo assim eu o trato respeitosamente, porque ele usa a insígnia de um juiz, de modo que, quando ele fala, é a lei que fala através dele”. Acredito, de certo modo, nas palavras dele e não em meus olhos. Quando um juiz fala, há, de certo modo, mais verdade em suas palavras (palavras estas da instituição da lei) que na realidade de sua pessoa. O cínico falha justamente aí quando se detém a considerar os fatos incontestes. A cultura, portanto, nada mais é do que o nome que damos a coisas que praticamos sem, de fato, acreditar nelas, sem levá-las inteiramente a sério.






A BUSCA ILUSÓRIA DO “ser si mesmo”

 

 

Toda cultura produzida segundo a lógica do capital é cultura capitalista. Félix Guattari, aliás, considera descabido opor uma cultura erudita a uma cultura popular. Para ele, só há uma cultura: a cultura capitalista - etnocêntrico e logocêntrica. Toda sociedade territorializa os indivíduos, isto é, insere-os num território dentro do qual eles podem viver, estabelecer relações e produzir tanto como sujeitos da produção material quanto como sujeitos a serviço da canalização, da codificação e da recodificação dos fluxos desejantes. A essência do capitalismo reside na abstração: tudo é desorganizado para ser novamente reordenado segundo a lógica do capital. A única coisa que não se transforma continuamente é o capital. A moeda continua soberana impondo seu regime a todos os fluxos de desejo, transformando-os em mercadorias, em dinheiro abstrato. Os indivíduos experienciam ilusoriamente sua subjetividade como se ela correspondesse ao seu “si mesmo”, ignorando o fato de que a subjetividade é de natureza maquínica, porque produzida pelas máquinas de territorialização. O que Guattari chama de “produção de subjetividade” é o modo como os indivíduos são fabricados socialmente, são normalizados, inseridos em relações uns com os outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão - estes não são visíveis e explícitos, mas sutis e dissimulados. A produção de subjetividade se dá em vários níveis da produção e do consumo, inclusive no nível inconsciente. Segundo Deleuze & Guattari, a máquina capitalista produz até aquilo que acontece quando sonhamos, quando fantasiamos, quando desejamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. No capitalismo, a produção da subjetividade é mediatizada pelo capital. O homem se torna mais abstrato do que nunca; sua subjetividade é produzida por representações, por aparências vazias que alimentam o mundo das máquinas da megaprodução. É assim, portanto, que a sociedade “penetra” no indivíduo; é a assim que a ideologia fábrica o indivíduo de que a sociedade necessita para produzir e reproduzir a sua estrutura. Para Guattari, desde a infância, o indivíduo é fabricado por uma máquina de produção de subjetividade capitalista por meio de processos de inserção gradativa dele em seus modelos tanto técnicos quanto imaginários. A sociedade, portanto, fixa as referências, cria as coordenadas por meio das quais os indivíduos se orientam, se reconhecem facilmente e se produzem, reproduzindo, ao mesmo tempo, a maquinaria de produção que os fabricou como sujeitos. Portanto, a percepção que o indivíduo tem de si mesmo é socialmente fabricada. Situando a questão no âmbito da psicanálise, Zizek diria que o “si mesmo” não é nada mais do que a textura simbólica da identidade do sujeito, que é, em todo caso, um constructo. O sujeito puro, em psicanálise, é nada ou uma forma de nada. Em seu ponto zero, o sujeito é como uma casa vazia na qual “não há ninguém”. O sujeito só emerge quando o indivíduo se vê privado de seu conteúdo substancial (que é imaginário). Como uma ameba descomunal, a sociedade estende seus pseudópodes sobre cada indivíduo, fagocitando-o, digerindo-o e transformando-o numa de suas múltiplas partes.

 


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

"O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta." (Charles Darwin)

 


Manual contra a megalomania humana em uma lição

 

E pensar que, estando eu diante de outro ser humano enfatuado e crente de sua ancestralidade divina, exibindo seu ego hipertrofiado, vejo diante de mim apenas uma forma orgânica complexa que evoluiu, ao longo de milhões de anos, a partir de uma célula bacteriana.

 

 




A LUCIDEZ NIILISTA

 

No meu esforço por pensar o niilismo como campo hermenêutico, como um fenômeno histórico-antropológico que diz respeito à constituição social do homem como ser alienado de sua condição natural e animal, tenho como escopo o modo como as significações instituídas, geradas na instituição do imaginário-simbólico, produzem o homem, cunham seu modo de ser imaginário, um modo de ser que se representa na ilusão de sua superioridade em relação aos demais seres vivos. É necessário, para tanto, compreender como as significações, como a linguagem simbólica, sem a qual aquelas não seriam possíveis, constituem o homem como um ser à parte, como um ser que se acredita divorciado do resto da vida natural e animal, da totalidade cósmica. Como lembra Castoriadis, a significação apenas parece estar ligada a algo - ser natural, objeto material fabricado, entidade lógica. Esse “algo” só tem “ser” para uma sociedade que o investe de significado. Fora da significação, esse “algo” simplesmente não existe para a sociedade em questão. As signifcações imaginárias centrais ou primárias - ensina-nos Castoriadis - é que criam os objetos que se dão à cognição humana. Essas significações primárias organizam o mundo - mundo “exterior” à sociedade e o mundo social propriamente dito, estabelecendo entre eles uma relação recíproca. Um exemplo de um objeto criado pelas significações instituídas no social-histórico é Deus. Lembra Castoriadis que Deus carece de referente. Deus tem apenas um significado como Deus; e esse significado aparece cada vez que é reproduzido, reativado, “posto” pela sociedade - e eu diria - em suas práticas discursivas. O que me interessa, especialmente, enquanto questão fundamental da abordagem do niilismo como processo de desmitificação do homem, está bem resumido no seguinte passo de Castoriadis:



“ O “referente” que seriam as representações individuais de Deus (ou dos deuses) é criado mediante a criação e a instituição desta significação imaginária central que é Deus. A significação Deus é ao mesmo tempo criadora de um “objeto” de representações individuais e elemento central da organização do mundo de uma sociedade monoteísta, posto que Deus é colocado como ao mesmo tempo fonte do ser e ente por excelência, norma e origem da Lei, fundamento último de todo valor e pólo de orientação do fazer social (...)”. (p. 407).

 

 

Entendo que “ser colocado como fonte do ser e origem da Lei” quer dizer é criação do imaginário-simbólico instituído pela sociedade. É nesse sentido que falo de Deus como ficção tanto quanto é ficção a ordem jurídico-legislativa. Tanto um quanto a outra são efeitos, produtos do magma de significações imaginárias sociais que forma, por assim dizer, as “entranhas” do próprio fazer social.

Importa, tendo em vista o exemplo da instituição de Deus como objeto de um imaginário social, pensar o niilismo como um fenômeno inerente ao trabalho genealógico (de inspiração nietzscheana) que se interroga sobre as origens da significação e sobre seu funcionamento como dimensão essencial do mundo experienciado pelo homem. Bem entendida essa ligação inerente entre niilismo e projeto genealógico que interroga o modo de se dar a significação, é fácil estabelecer uma continuidade de sentido (coerência) entre a minha proposta de interpretação do niilismo e o que Giacoia diz acerca do modo como Nietzsche o entendeu, a saber, como “experiência histórica da ausência de fundamento”. Se o niilismo expressa a ausência histórica de fundamento, é porque o niilismo desvelou o caráter de constructo, de ficção, de significação fabricada do próprio fundamento cujo valor a tradição metafísica postulou como transcendente ao homem e ao mundo. O que chamo de Lucidez niilista nada mais é, portanto, do que a exposição, o desvelamento dos mecanismos imaginário-simbólicos que estão na origem de tudo aquilo que o homem concebe e trata como algo que se originou de uma instância estranha a ele, quer seja esta instância a objetividade de uma ordem social que se impõe a ele como já pronta, definida e rígida desde sempre, quer seja esta instância um ‘lugar’ metafisicamente imaginado.

 









SEDUÇÃO VERBAL

 

Do latim seductio -onis, sedução significa ‘separação’ ‘tomar à parte’. Dutcio formado a partir de ducere, forma arcaica de dūcō, que significa ‘conduzir’, ‘levar’, ‘puxar’, ‘atrair’, tem também o sentido poético de ‘escrever’, ‘compor’. O verbo ou a linguagem verbal seduz, portanto, quando nos aparta, nos separa do mundo comum do trabalho, da cotidianidade mediana. Ela nos seduz porque nos conduz para outros lugares simbólico-imaginários, porque nos leva para longe deste mundo das ocupações que compartilhamos com os demais seres humanos ( mundo das contas que nos fazem ser sempre endividados até o túmulo, da azáfama do dia a dia, que nos põe na condição de operários a cumprir prazos de um tempo fugidio). A sedução verbal é o deleite com a concatenação dos signos, com a articulação de significantes pelos quais vazam significados imprevistos, escorregadios, não totalmente controlados . Na sedução verbal, experiencia-se o êxtase da incompletude que constitui a linguagem, o êxtase da impossibilidade de esgotar o sentido, mesmo com a pretensão de gozá-lo. A linguagem nos constitui como animais excêntricos, extravagantes, não fixados, como animais que se habituaram a crer que o mundo da linguagem é coextensivo à realidade como um todo, que este mundo do discurso totaliza tudo que há. Paul Veyne, referindo-se à noção de discurso em Foucault, comparava os discursos a aquários: o homo loquens é como peixes no aquário. Somos prisioneiros desse aquário (discurso) cujas paredes sequer percebemos. Não temos acesso à verdade “verdadeira”, a um mundo já ordenado atrás e para além do discurso.

Mas há os que, cientes disso, jogam o jogo da sedução verbal como a criança que forja mundos imaginários pelo puro prazer de brincar; e há aqueles que, compondo a maioria dos animais simbólicos, creem que a sedução verbal os levará a acocorar-se junto à verdade. Estes se deixam seduzir pelos trajes metafísicos que insinuam a nudez da linguagem. Mas, tão logo se detenham a examiná-la, descobrem que a linguagem nada tem a desvelar, que um signo tem como interpretante outro signo num processo semiótico ad infinitum, no qual “a coisa” mesma que se esconde sob máscaras, sob disfarces, não é ela mesma, mas outro signo; estamos sempre em busca de um objeto perdido que, na verdade, nunca existiu; buscamos algo por trás da semiose que insiste a furtar-se a nós, porque não há este algo que surpreenderíamos por trás da trama simbólica. A sedução verbal é uma promessa de completude, de deleite pleno lá onde o que nos aguarda é a incompletude e o fracasso de quem busca o impossível.

 

 





NIETZSCHE COMO ANTIMETAFÍSICO

 

UM DIÁLOGO

 

De acordo: pode-se ser ateu e, não obstante, pensar Deus como problema filosófico. Mas, nesse caso, Deus é pensado como ideia ou conceito. Nietzsche negou todas as objetividades da metafísica, Nietzsche negou a metafísica e sua pretensão de absolutizar os valores, de tomar como coisas existentes em si e por si mesmas o que é da ordem das ficções humanas. Para Nietzsche, o homem inventou a metafísica porque não suporta a sua finitude, porque não suporta o efêmero, porque teme a própria morte. Divino, Deus, Sagrado são ideias, ou ficções humanas, ficções (no sentido etimológico de “criação, fabricação”) de cuja origem o homem não se reconhece como agente. O sagrado é um valor que o imaginário-simbólico constitutivo da ordem social objetivou, de modo que os seres humanos não mais o reconhecem como valor instituído pela própria atividade deles. Nietzsche, nesse sentido, foi o grande desmitificador do homem, aquele que pretendeu levar o homem a se aperceber de que aqueles supremos valores em que até então acreditaram como existentes independentemente de si e em nome dos quais a existência humana se orientava, se normatizava eram criações suas; e não só: - eram criações que enfraqueciam a vida, que a negavam. O Deus cristão bem como a moral cristã para Nietzsche, eram a antítese da vida. Nietzsche foi um antimetafísico contumaz: em sua crítica corrosiva da metafísica platônico-cristã, ele nos fez ver duas coisas: 1) que tudo aquilo que a metafísica tomava como dotado de caráter de substância, de essência, ou seja, como coisas que existem por si e em si mesmas, são ficções simbólico-imaginárias, são produtos da atividade humana; 2) que aquelas ficções da metafísica se instituíram contra a vida, que aquelas ficções levaram ao adoecimento do animal humano e ao enfraquecimento da vontade de potência ou da própria vida. Em nome daquelas ficções em cuja origem o animal humano não se reconhece como criador, o homem se pensou como um ser superior na natureza, o homem se acreditou como ser dotado de algum privilégio metafísico, o homem negou em si a animalidade e a vida mesma. Portanto, a metafísica edificou catedrais como signos da elevação metafísica do homem, como signos da crença humana em sua superioridade em relação ao todo natural existente. As catedrais são signos da megalomania metafísica humana. Em suma, eu diria a você, que também em nome do sagrado o homem se sacralizou, se distanciou de suas origens animais, se compreendeu como o ser superior em relação aos demais seres, negou a vida instintiva. E isso Nietzsche não perdoou. Se Nietzsche disse só acreditaria num deus que soubesse dançar, é porque um deus dançarino é a antítese do Deus metafísico, o deus da dança é deus da potência, da alegria, é deus do movimento, do devir, é deus da leveza que quebra a tirania do ressentimento, que supera o dualismo entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente. O Divino, em Nietzsche, só poderia ser pensado nesse registro da superação da forma-homem cunhada pela tradição metafísica. Toda tentativa, meu caro amigo, de conciliar, de algum modo, Nietzsche com a metafísica e suas criações é não só não compreender profundamente Nietzsche, como também distorcer sua obra. Até hoje, não ousamos realizar a grande transfiguração pretendida por Nietzsche no modo de ser do homem, até hoje não ousamos dar à luz este novo homem que Nietzsche imaginou, que Nietzsche desejou: um homem verdadeiramente livre e conciliado com a vida e com sua existência mundana.

 

 

 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

"Brasil, condenado à esperança". (Millôr Fernandes)

 

                                                        



                                                   Flutuações do humor

 

A depender de meu estado de espírito, posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como “referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis, a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as alegações das religiões instituídas e  com seus fiéis que as reduzem comumente à busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar. Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.






                                        FIM DA CORRUPÇÃO 


Tem uma moçada aí que pede o fim da corrupção como se pôr fim à corrupção no Brasil fosse como encerrar as atividades de uma empresa por falência. Até apareceu por estas bandas cabralistas um tal de Messias populista prometendo pôr fim à bandalheira dos congressistas, inaugurando uma nova era em que no Brasil já não mais se ouviria falar de corruptos de colarinho branco. Daí resolvi estudar para entender de onde vem este nosso costume abjeto de favoritismo dos poderosos, de corrupção dos administradores do Estado. E descobri que esse costume se enraizou neste solo castigado pela escravidão de negros e indígenas desde o período colonial. Desde muito cedo, no Brasil, o serviço judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. Os Sermões de Padre Antônio Vieira davam testemunho disso. A prevaricação de magistrados no período colonial era corrente. Para comprová-lo, basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII. Em 22 de janeiro de 1725, Vasco Fernandes Cézar de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de Portugal contando à Sua Majestade sobre “as desordens e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos...a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis”. No Brasil, desde o período colonial, consagrou-se, assim, um velho costume que persiste inquebrantável e vigoroso até hoje: a dualidade dos ordenamentos jurídicos. Há um ordenamento jurídico oficial, que vige, no entanto, apenas formalmente, e há outro ordenamento jurídico efetivo, nunca oficialmente promulgado, que em tudo corresponde aos interesses próprios do grupo oligárquico. E por falar neste, a oligarquia brasileira não é a oligarquia tradicional, em que o poder supremo se concentra exclusivamente nas mãos de uma minoria de abastados, mas sim uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, que une entre si a classe rica e os principais agentes do Estado, deixando o povo à margem de todas as decisões políticas. A privatização do poder político se estabeleceu entre nós no período colonial. Essa privatização é o objetivo perseguido pelo capitalismo. Ela deu origem à longeva tradição do patrimonialismo de Estado, tão comum na América Latina. Essa tradição arraigada em nossa cultura favorece as práticas de corrupção sistêmica no trato com a coisa pública. Outra vez Padre Antônio Vieira se queixava à Sua Majestade da corrupção generalizada dos funcionários enviados às colônias portuguesas. Nas colônias, incluindo o Brasil, os administradores, sempre aparentando obedecer às autoridades d’além-mar, continuavam a servir aos seus interesses próprios sem que fossem importunados. Também nesses tempos remotos mas atuais, era comum que os Governadores, na qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar às boas graças dos desembargadores, acrescentando-lhes aos ordenados gratificações extraordinárias conhecidas como “propinas”. E, como era de esperar, a fiscalização, que deveria ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionários em exercício por aqui, deixava muito a desejar, porque até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre Lisboa e o Brasil. A corrupção sempre grassou no serviço judiciário português , quer na metrópole, quer nas colônias. Desde Platão, aprendemos que os costumes não se mudam por leis, ao que Rousseau acrescentou outra lição amarga para nós: a verdadeira constituição do Estado são os costumes. A conclusão eu deixo a cargo do leitor. Por fim, antes de pedir o fim da corrupção aos próprios agentes corruptores, busquemos estudar a nossa história, a história da formação de nossa sociedade e de nosso Estado. Talvez assim, se não conseguirmos debelar tal costume tão familiar entre nós, ao menos não nos deixaremos seduzir por populistas que se apresentam como ovelhas do pastoreio da Redenção com pele de lobo que frequenta os salões onde se refastela junto de sua alcateia, há anos, no banquete dos cofres públicos. No Brasil, moçada pedinte, desde muito cedo, o poder de mando, de dominação política e econômica, se concentrou na aliança formada entre os agentes estatais - governadores, magistrados, membros do Ministério Público, altos funcionários - e os potentados privadas - o grande empresariado, donos do capital. Aqueles, no exercício de suas funções oficiais atuam a serviço dos interesses destes, enquanto estes, fingindo submissão aos poderes oficiais, pressionam aqueles, quando não os corrompem simplesmente, em todos os níveis - legislação, administração, prestação de justiça. E quanto ao povo? O povo que se lasque! A notícia amarga e desoladora é que a coligação oligárquica soberana não dá sinais de que um dia chegará ao fim no Brasil. Para isso acontecer, o povo teria de deter realmente o poder soberano, o que significa dizer que teríamos de instituir uma verdadeira democracia no Brasil. Mas entendam isto, pelo amor de Deus! NÓS NÃO VIVEMOS NUMA PLENA DEMOCRACIA. O que temos aqui é uma pseudodemocracia, um simulacro de democracia, um arremedo de democracia. Como ensinou Aristóteles (sempre a filosofia - essa inutilidade tão necessária ou mais necessária do que todas as inutilidades), a democracia é o regime em que o povo soberano goza de relativa igualdade de condições de vida; mas o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, o que torna ainda mais favorável a perpetuação da coligação oligárquica, cujo poder inviabiliza a realização de uma autêntica democracia no Brasil, é o fato de que a mentalidade da população menos favorecida é mais facilmente inclinada a obedecer do que a mandar ou a tomar iniciativas. A educação política do povo é necessária, mas ela não pode ser de responsabilidade, pelo menos não inicialmente, do Estado, pois o poder oligárquico a ela se oporá.