As duas negações
do imoralista
Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral,
tampouco preconizou que devemos viver sem moral. Nietzsche edificou uma crítica
corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma
passagem emblemática de Ecce Homo
dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da
crítica destrutiva nietzschiana:
No fundo são duas
negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo
de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os
benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e
supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[1]
(ênfases nossas).
Nietzsche foi, portanto,
um crítico mordaz da moral cristã, que viria a entronizar em Deus todos os
valores assumidos como superiores, e de um tipo de homem por ela produzido, o
tipo decadente. A forma fatigada do
niilismo já estava prefigurada nessa tradição moral. O tipo cristão é um tipo
de homem cansado da vida. Seu ideal de salvação pressupõe que este mundo não
deve ser aprovado, que sua existência só pode valer, ter algum sentido enquanto
se pode crer no ‘em si’ que lhe fornece o fundamento.
Devemos também atentar
para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos
valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes
da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de
viver segundo algum conjunto de valores morais. Lembremos que Nietzsche
reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar,
a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo essencialmente vontade de
poder, é interpretação. No aforismo 114 de A
Gaia Ciência, escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam
morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto
de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela
um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para
derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da
vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de poder, enquanto jogo de relações
de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa espécie de moral,
Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário
de um niilista –esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele
poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche
encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo
intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe
fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou
seu amor fati – seu “engajamento
moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o
mal do niilismo. Seu além-do-homem está na origem de uma moral ascendente, que
surge como consequência do imperativo “sim à vida”. O além-do-homem é o tipo de
homem, que sendo criador de valores afirmadores, pode expandir suas forças e
intensificar o poder de sua vontade de viver. A nova moral desse homem
dionisíaco, liberto da tirania do “Tu-deves”, grande possuidor do mundo,
revigorado pelo fortificante “eu quero” não pretende ser mais uma moral
universal ou metafisicamente fundada. Essa nova moral acena com o
reconhecimento da individualidade fisiológica desse novo homem. Ela se afina
com as especificidades fisiológicas de cada indivíduo. Corporificação da
vontade de poder, essa nova moral valoriza o prazer como antípoda do dever.
Nietzsche contra o kantismo: o “eu quero” substitui o imperativo categórico.
Uma moral que se desenvolve em favor da singularidade não se esquiva a abominar
toda tentativa de igualação, de nivelamento dos homens e dos valores.
Em suma, Nietzsche não se
furtou a oferecer uma moral que viesse a cumprir o papel que a moral
tradicional não conseguiu cumprir. Sua moral é própria dos homens livres,
criadores; ela preconiza o prazer, a alegria, o riso, o excesso de vida, de
força, de poder.
1. Décadence: uma
degeneração da vontade
O conceito de decadência é apresentado na forma de um
projeto teórico por Nietzsche em Vontade
de Potência (2011). A seção Para uma
teoria da decadência é principiada com a colocação do problema da
decadência. Nietzsche observa aí que o
fenômeno da decadência é necessário “como o desabrochamento e o progresso da
vida”[2].
Nietzsche nega haver meios de suprimi-la. Em seguida, censura os teóricos do
socialismo por cuidarem haver condições sociais “nas quais o vício, a doença, o
crime, a prostituição, a miséria não mais se desenvolvam... Isso seria condenar
a vida”.[3]
Devemo-nos acautelar de concluir que Nietzsche seja partidário do conformismo:
ele não está comprometido com alguma tendência sociopolítica que visa a manter
os homens resignados. Parece-nos que seu alvitre encaminha-se na direção de nos
chamar a atenção para o fato de que a degenerescência é um fenômeno inevitável
e inerente à dinâmica vital. Mais adiante, Nietzsche notará: “a própria
decadência não é algo que se deva combater: é absolutamente necessária e
peculiar a cada época, a cada povo”[4].
Agora, a decadência, sendo parte inerente do processo vital, é necessária à
constituição da vida social. Por que o é? Porque a ela devemos a possibilidade
do “desabrochamento e do progresso da vida”.
O que se costumou
entender como causas da decadência – o vício, o crime, a doença, o pessimismo,
o anarquismo, etc. – é, para Nietzsche, a sua consequência. Entendamos bem:
Nietzsche não vê o vício e o crime, por exemplo, como causas da decadência de
uma sociedade, mas como sintomas de
sua decadência. Se a decadência é inerente ao processo vital, se é necessária à
dinâmica social, que devemos, pois, combater? Segundo Nietzsche, “o que devemos
combater com todas as forças é a importação do contágio para as partes sãs do
organismo”.[5]
A corrupção dos costumes
encontra sua origem na decadência. Como podemos, então, definir a decadência?
Podemos defini-la como esgotamento do instinto, como desagregação da vontade.
Ao referir os tipos gerais de decadência, Nietzsche nos lembra que o
cristianismo prima entre os tipos que levam ao adoecimento do espírito. Os
tipos decadentes são tipos esgotados. Seus valores são “virtude”,
“desinteresse”, o “sofrer junto” (moral altruísta), a negação da vida, etc. Os
tipos decadentes aspiram a uma condição na qual não mais sofram; mas isso
significa negar a vida, dado que o sofrimento é inerente aos modos de
conformação do tecido vital. Para os tipos decadentes, “a vida é considerada a
causa de todos os males”[6]. Para
eles, o enfraquecimento é tomado como sua verdadeira missão. O que eles querem?
O enfraquecimento dos desejos, das sensações de prazer e desprazer; o
enfraquecimento da vontade de poder, do sentimento de altivez, etc.
Consoante mostra
Nietzsche, Deus é o nome para aquilo que enfraquece, para aquilo que ensina a
fraqueza. Ora, Deus é, portanto, antítese da vida. Se vida, enquanto vontade de
poder, é aumento de poder, Deus, enquanto nome para o que enfraquece, é
impedimento desse aumento de poder.
Para Nietzsche, o tipo
forte age e pretende, em sua ação, aumentar seu poder, expandir suas forças, a
fim de alcançar, com a expansão da vontade (poder), mais alegria, mais prazer.
O tipo fraco, por seu turno, aspira à inação, quer permanecer impassível.
Assim, prejudica a si mesmo. Autodestruição – eis um tipo de decadência.
Todas as práticas das
ordens religiosas, dos filósofos solitários, dos faquires, são inspiradas por
uma justa avaliação do mundo que afirma que uma certa espécie de homem é mais
útil a si mesma quando se abstém, tanto quanto possível de agir.[7]
Para Nietzsche, a
configuração do modo de ser do tipo cristão é perversão do caráter criador da
vida; não porque ele não é criador de valores, mas porque cria valores
decaídos, valores que levam à deterioração da vontade de poder. O esgotamento
desse tipo decadente empobrece o valor; torna-o nocivo à própria vida. Por isso,
é necessário combater a moral cristã e seu tipo decadente de homem. E Nietzsche
o fez da seguinte forma: “ensino o não
em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica,
do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”.[8]
Concluímos esta segunda
parte de nosso estudo, referindo uma passagem de Ecce Homo, em que Nietzsche nos conta como veio a se tornar o
contrário de um decadente. Ao apresentar essa passagem, gostaríamos de que não
passassem despercebidos os seguintes ensinamentos de Nietzsche, que ela nos
permite entrever: 1) a filosofia de Nietzsche é uma filosofia inteiramente
interessada na criação de um modo de ser; 2) a filosofia de Nietzsche é a
expressão de sua própria vontade de poder que se quer a si mesma como vida que
se afirma incondicionalmente; 3) a filosofia de Nietzsche é um processo vital consequente dos modos
como ele foi afetado pela vida. Por isso, pode-se dizer, seguramente, que o
modo como Nietzsche viveu sua filosofia é consequência necessária de um modo
próprio de experimentação feita por ele do destinar-se da vida. O destinar-se
da vida se encarregou de cunhar um modo de ser nietzschiano, e Nietzsche, por
sua vez, soube apropriar-se desse modo de ser para convertê-lo em sabedoria de
vida; em uma palavra, em filosofia fortificante e combatente de todas as forças
debilitantes da vida.
A parte o fato de que
sou um decadente, sou também o contrário disso. Minha prova a respeito é, entre
outras coisas, que instintivamente sempre escolhi os remédios adequados para as
piores situações: enquanto que o decadente sempre escolheu os remédios mais
nocivos a si próprio. Como summa summarum,
eu era saudável; como detalhe, como especialidade, eu era decadente (...).
Tomei-me a mim mesmo em minhas próprias mãos, recobrei a saúde por mim mesmo: a
condição para chegar a isso – todo fisiologista deve admiti-lo – é a de estar fundamentalmente sadio. Um ser
tipicamente mórbido não pode tornar-se saudável, muito menos recobrar ele
próprio sua saúde; inversamente, para um
ser tipicamente saudável, estar doente pode até mesmo constituir enérgico
estimulante da vida, de mais vida. Assim, é que vejo agora, de fato, esse
longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, novamente a vida, a
mim mesmo inclusive, apreciei todas as coisas boas e até as pequenas, como não
é fácil que os outros possam apreciá-las – construí
minha vontade de saúde, de vida, minha filosofia (...): o instinto do
auto-restabelecimento me proibiu uma filosofia de pobreza e de desânimo...[9] (grifos
nossos).
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