sábado, 18 de setembro de 2021

“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”. ( Paul Veyne)




A NOSSA VÃ FILOSOFIA


“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”.

 Paul Veyne

 

 

Estou de acordo. Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia: uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser. Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault, evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber milionário).

Mas aqui insisto em que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente, mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos, “ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante - talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde - quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.

Acho que, em parte, a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar, para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações, para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência, das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme (ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto, distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele.

 


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências" (Fritjof Capra)

 



LIVRANDO-ME

 

            Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado, inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais. Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos, tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum. Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição (philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada, uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária, uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta, que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático, simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento: o mundo dos corpos-leitores.

 


DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO

 

        A visão mecanicista de mundo da física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente, mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista. Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”. Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser ignorados:

1. O planeta Terra é um sistema vivo e autorregulador;

2. O mundo material é uma rede de interações, de padrões;

3. O cérebro, o sistema imunológico, cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;

4. A evolução não é mais concebida como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa, na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças propulsoras.

 




sexta-feira, 10 de setembro de 2021

"(...) a existência, tal como é, sem fim nem objetivo, mas inevitavelmente retornando, sem um finale no nada: "o eterno retorno"". (Nietzsche)

 



                      Quando a loucura chega ao poder

 

Em meio a essa insanidade coletiva, tenho me sentindo intelectual e emocionalmente asfixiado. E não é figura de linguagem ou força de expressão: tenho somatizado tudo que estamos vivendo em manifestações sintomáticas de ansiedade e desânimo cognitivo. Minha estratégia para não sucumbir a um estado de ansiedade generalizada ou irromper em fúria, é ler para entender, por exemplo, como é possível que o animal humano seja capaz de tanta loucura e estupidez. Mas, em vez de me aliviar, ler para entender intensifica minha perturbação e perplexidade, porque estudos em psicologia parecem confirmar que os animais humanos não são naturalmente predispostos a buscar a verdade. Há várias teorias, em psicologia comportamental, que buscam explicar por que muitas pessoas simplesmente se recusam a mudar suas opiniões, porque continuam a se comportar em conformidade com suas crenças estúpidas, irracionais, mesmo diante de evidências que as contrariam, que as invalidam. Em suma, tentar entender como é possível a estupidez humana generalizada não tem me ajudado muito emocionalmente. Muito pelo contrário, além de intensificar o sentimento de perplexidade e inquietação, lança por terra a minha confiança na racionalidade e na razão discursiva como ferramentas de combate. Sim, devemos admitir que nos enganamos quando acreditamos ser possível combater a desrazão com a razão, quando pressupomos que basta o diálogo logicamente organizado para extirpar a loucura das massas, para trazer de volta à lucidez uma pessoa que age e pensa em desconformidade com o bom senso. Já escrevi aqui que Descartes se enganou a respeito da distribuição igualitária do bom senso. Não é o bom senso o que é distribuído justamente entre os homens; mas a estupidez. A considerar o que nos ensinam os estudos em psicologia comportamental, os seres humanos não estão naturalmente predispostos à verdade, eles querem vencer discussões, querem proteger sua autoestima, seu ego, evitando o confronto com aquilo que lhes mostre que estão errados. O conhecido efeito Dunning-Kruger, por exemplo, nos diz, grosso modo, que “quanto mais burro você for, mais confiante você será de que não é realmente burro”. As pessoas sofrem de muitos vieses que funcionam como mecanismos psicológicos de preservação do valor próprio delas. Mas além desses vieses, devemos admitir que nem todos são inteligentes o suficiente para reconhecerem que estão errados, para reconhecerem sua própria estupidez (sim, os burros existem e não há nada que possamos fazer!). Nem mesmo sabendo disso, sinto-me mais aliviado, porque são minhas crenças iluministas básicas que estão em jogo, crenças inegociáveis, porque são elas que me motivam para o exercício da filosofia. Ora, vejam, estou me dedicando a uma pesquisa de doutoramento em filosofia em que procuro pensar o niilismo como condição de possibilidade para a desmitificação do homem, para seu retorno à vida da Lucidez, porque, na maior parte das vezes, esse animal estúpido e doente vive na Caverna de Platão. Como continuar acreditando ser possível essa travessia, esse resgate em face do caos de dissonância cognitiva, de insanidade, de irracionalidade em que vivemos? Talvez seja isto: o animal humano é terminantemente doente e irreversivelmente louco, sua condição insana é incurável.

Resta aos sãos de corpo-espírito tocar o barco...



(...)


Neste cair da noite, revisitando as páginas de Nietzsche, supero, momentaneamente, aqueles sentimentos diurnos de cansaço, fraqueza e desespero, ao recordar que o mundo, para Nietzsche, é um  processo cujas forças múltiplas combatem umas com outras sem trégua. Recordo, em suas páginas, que a vontade de potência precisa daquilo que lhe faz resistência para se autossuperar. Que a vontade de potência é uma força plástica e criadora. Que a luta que se trava entre as vontades de potência não visa a metas ou a objetivos, mas expressa o caráter agonístico e a pluralidade beligerante do mundo enquanto criação e destruição contínuas. Se Nietzsche sofreu, soube ser combatente de seu sofrimento, combatente de todas as manifestações de fraqueza, de degenerescência das vontades de potência infestadas pela negatividade. Em suma, o vir-a-ser do mundo é o do conflito, da guerra sem trégua entre os contrários e a afirmação deste mundo exige-nos uma única tarefa inalienável: “ser o que sempre deve superar a si mesmo” (Zaratustra)




                                  A lucidez niilista


Situado numa abordagem dialógica das filosofias de Nietzsche, Schopenhauer e Cioran, o niilismo é, em nossa pesquisa, encarado como a condição sine qua non do pensamento, na medida em que pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante. Assumindo esse pressuposto, propomo-nos discutir a problematicidade do niilismo compreendendo-o, na esteira de Nietzsche, como um fenômeno polimórfico e polissêmico que, não podendo ser reduzido à lógica do movimento agonizante dos valores superiores, nem ao próprio movimento histórico-cultural que leva à aniquilação todo um imaginário-simbólico plasmado na interpretação socrático-platônico-cristã moral de mundo, descerra a sua própria Lucidez como a qualidade que leva o homem a despertar-se, a desenganar-se, a desiluniosar-se acerca de sua condição como ser no mundo. Habitando a Lucidez niilista, o homem pode reconhecer-se como um animal integrado à natureza, como um fio da teia da vida. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Nós, homens e mulheres do Ocidente, vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo, como pensava Nietzsche, é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. É esta a qualidade que tem o niilismo também no pensamento de Schopenhauer e Cioran, conforme se mostrará. Este trabalho de desmitificação do homem, no entanto, não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. O niilismo ativo também deve ser ultrapassado para que se perfaça o niilismo extremo, este sim a variante de niilismo que torna possível ao homem assumir-se como criador, como artista de sua existência. Articulada ao atual contexto pandêmico da Covid-19, nossa pesquisa nos leva a questionar não só o estatuto metafísico-imaginário que o homem atribui a si mesmo crendo-se o ápice da Evolução ou a coroa da Criação, como também nos incita a pensar nos impactos de suas ações predatórias sobre o ecossistema do qual ele não se reconhece como parte, por força de sua constituição como ser social ou cultural alienado. Nesse contexto de questionamento, é possível pensar o niilismo como a condição histórico-antropológica para a abertura de uma visão de mundo calcada sobre uma ecologia profunda, à luz da qual o mundo é uma totalidade integrada e os seres humanos não são seres apartados do meio ambiente natural, mas um fio da grande teia da vida.





quinta-feira, 2 de setembro de 2021

"O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem - uma corda sobre o abismo". (Nietzsche)

 




         O animal enjaulado

Se, como escreve Rosa Dias, com razão, ao ler Nietzsche, “a vida é atividade criadora”, e se o animal humano vive, é parte do ecossistema da vida, é um organismo vital, é o homem também criador. No entanto - Pasmem-se!-, historicamente, o homem se alienou de sua natureza; criou instituições, toda uma ordem simbólico-institucional que o nega enquanto tal. Alienado, o homem concebe-se ainda hoje como criatura de um Criador, vive como escravo de uma ordem institucional em cuja origem ele não se reconhece. A vida civilizada, produto da atividade laboral deste animal excêntrico e periclitante que é o homem, é a causa de seu adoecimento, de seu apequenamento, de sua demência. Civilizando-se, o homem construiu para si mesmo seus cárceres, dentro dos quais ele vive como um estranho que não se reconhece na sua criação, e luta pelo direito de permanecer encarcerado, pelo direito de ser quem acredita imaginariamente ser: o herdeiro primogênito de um Pai celestial, sem suspeitar que esse Pai é criação sua, que toda a ordem que cria tem a marca de um criador ausente, de um criador que se renegou.




O ALÉM-DO-HOMEM COMO CATEGORIA TRANS-HISTÓRICA


       A partir de dois pequenos textos que publiquei em minha página do Facebook e estimulado pelas leituras sobre Nietzsche (estou agora lendo um ensaio de Giacoia que se acha no livro “Labirintos da Alma: Nietzsche e a autossuperação da moral”), fiz a mim a questão: quem é o além-do-homem hoje? Como pensá-lo em nosso tempo? A quais tipos culturais se contrapõe? É interessante pensar que Nietzsche nos legou uma categoria, um tipo conceitual trans-histórico, uma categoria que nos permite pensar a necessidade de autossuperação contínua do homem no devir histórico. (Diferentemente do que julgava eu há algum tempo, não acho que o além-do-homem é um conceito superado, inoperante para nos auxiliar a pensar a condição do animal humano como ser no mundo). Acho que se trata de uma categoria filosófica sumamente valiosa, que descerra o horizonte teórico à luz do qual o homem é um experimentador de si mesmo, um criador de mundos históricos, um criador de si mesmo. Ocorre que Nietzche soube bem denunciar o tipo humano que vicejou na cultura ocidental com a mudanização do cristianismo. Nestes pouco mais de 2.000 anos de subsistência do sistema cristão de interpretação moral-religiosa, ainda predomina entre nós o tipo humano asceta, infestado pela vontade de nada, habitado pelas forças reativas do ressentimento, submisso aos poderes constitutivos da moral de rebanho. Se como escreve Giacoia, “ pode-se legitimamente caracterizar a filosofia de Nietzsche, em linhas gerais, como um ousado esforço teórico para levar a cabo uma crítica radical das formas superiores da cultura no Ocidente, que são por ele interpretadas como produto e superfície da reflexão do tipo histórico-cultural constitutivo do homem moderno”, como, então, pensar o tipo humano hegemônico em nossas sociedades hipermodernas (Lipovetsky), pós-modernas... em relação ao qual o além-do-homem, que Deleuze pensa caracterizar-se por uma “nova maneira de sentir e de pensar”, e poderíamos dizer “de viver, de afirmar”, se constitui agonisticamente? Nietzsche não assistiu ao terror dos totalitarismos, não viveu para assistir às duas Grandes Guerras Mundiais, não acompanhou o predomínio e expansão do homem-massa no pós-guerra, homem-massa hoje transfigurado no escravo digital... Nietzsche não assistiu ao avanço do fascismo histórico, como também não pôde pensar seu além-do-homem contra o que Reich chama de “peste fascista” “uma certa concepção de vida e uma atitude perante o homem, o amor e o trabalho”. O fascismo como estrutura do caráter, da personalidade do animal humano que continua entre nós, que continua a ameaçar não só nosso modo de vida democrático liberal, mas a própria vida em geral. Reich disse que “o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida”. Como pensar o além-do-homem como horizonte de autossuperação do homem autoritário, do tipo humano fascista, que persiste entre nós? Enfim, o além-do-homem é um dos mais significativos legados filosóficos de Nietzsche, uma categoria trans-histórica, atemporal que nos permite pensar a necessidade de autossuperação das formas-homem historicamente constituídas como formas infestadas da negatividade, do ódio contra a vida, contra a diferença, contra a diversidade. Mas que fique bem claro: o além-do-homem é sempre pensado no registro do individual, não no da coletividade. Não caracteriza o homem em geral (abstrato), mas cada indivíduo humano. Pensar o além-do-homem é pensá-lo no campo de forças que é o mundo, onde ele se afirma em combate com outros tipos humanos hegemônicos. Entre nós hoje, o campo agonístico tem cada vez mais sido disputado e ocupado pelos tipos humanos da política ressentida, que reanimam e querem impor os valores decadentes forjados no imaginário-simbólico cristão e ultraconservador. Esses tipos e grupos humanos querem reativar a absolutidade dos sentidos e valores dessa tradição, querem nos fazer funcionários da servidão moral contra a qual há mais de um século se insurgiu Nietzsche. Aqui como em outras partes do mundo, a libertação niilista ainda não encontrou terreno para prosperar e dar frutos. O Brasil é hoje como o tem sido em sua relativamente curta história tão espiritual quanto social, política, economicamente atrasado.





A Lucidez niilista: é possível ser niilista sem ser decadente?

 

Não obstante ter Nietzsche entendido o niilismo como a lógica da decadência, o niilismo, em Nietzsche, não se reduz ao anúncio da morte de Deus. A teorização nietzscheana do niilismo se desenvolve por muitos trajetos, abre-nos diversos caminhos semânticos. O fenômeno do niilismo em Nietzsche é polimórfico (há diversas variantes do niilismo) e polissêmico ( há vários temas a ele associados). No registro do anúncio da morte de Deus, o niilismo se revela como uma experiência do Nada como abismo sem fundo dos valores superiores que até então davam sentido e sustentação à existência do homem ocidental. O niilismo é, nesse contexto de problematização, a lógica do movimento agonizante dos nossos valores superiores. Mas Nietzsche não para por aí: é preciso levar o niilismo até suas últimas consequências lógicas. É necessário completar a travessia do niilismo. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Vattimo tanto quanto Giacoia nos lembram que o niilismo, em Nietzsche, tem caráter ambíguo. Ele tanto pode significar uma síndrome de declínio, a experiência do cansaço da vida, quanto pode ser uma potência ascendente do espírito. Meu esforço teórico consiste em inscrever o niilismo como parte do projeto nietzscheano de desmitificação do homem e de transvaloração dos valores que o tornaram um animal doente, esgotado e habituado ao autoengano. Não é o niilismo que deve ser superado, mas suas formas decadentes. Porque, se tudo que há são vontades de potência em relações agonísticas, também o niilismo é um campo agonístico de vontades de potência. A forma assumida pelo niilismo dependerá do predomínio da qualidade das forças em combate em seu interior. No Ocidente, por força da hegemonia do sistema de interpretação moral-religioso que é o Cristianismo, predominaram no niilismo entre nós as vontades de poder decadentes, negadoras. Nós vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. Mas este trabalho não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. Como ensina Vattimo:

“ Se (...) o niilismo tem a coragem de aceitar que Deus está morto, ou seja, que não existem estruturas objetivas dadas, torna-se ativo em pelo menos dois sentidos: antes de tudo, não se limita a desmascarar o nada que está na base de significados, estruturas, valores; produz e cria, também, novos valores e novas estruturas de sentido, novas interpretações. É só o niilismo passivo que diz que não há nenhuma necessidade de fins e significados”.

Longe de ser o deserto do pensamento, o seu veneno e impedimento, o niilismo é a condição sine qua non do pensamento, porque pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante.





      A VONTADE ASCETA E A DÉCADENCE

 

Vista à luz do conceito de DÉCADENCE, a aproximação que Nietzsche faz entre Sócrates-Platão e o Cristianismo, permite-nos inferir dentre os dois termos dessa aproximação, o traço que lhes é comum: a vontade ascética, a qual se expressa de modo paradigmático na figura do sacerdote asceta, como nos patenteia Nietzsche em GENEALOGIA DA MORAL. O sacerdote asceta é a formação típica da vontade de potência infestada pelo negativo. Ela se configura paradoxalmente na medida em que transforma a negatividade que a constitui em condição de triunfo e conservação da existência. Como fenômeno da DÉCADENCE, a vontade ascética só pode afirmar-se e dominar aniquilando aquilo a que se contrapõe, a saber, a natureza, a vida. Por isso, Nietzsche via o ascetismo como a expressão histórica de antinatureza. Para ele, na interpretação ascética de mundo e da vida, domina a vontade de poder do sacerdote ascético e sua perspectiva valorativa em face da vida e de tudo quanto integra a vida dos homens, a natureza, o mundo, o devir.

 

 

“A esfera inteira do vir-a-ser e da transitoriedade é posta em referência a uma existência outra, com a qual ela está em relação de oposição e exclusão, a não ser que eventualmente se volte contra si própria, negue a si mesma: neste caso, no caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para aquela outra existência... Uma tal monstruosa maneira de valorar não está inscrita como um caso de exceção e curiosidade na história do homem: É UM DOS MAIS AMPLOS E LONGOS FATOS QUE HÁ. Lida a partir de um astro longíquo, essa escrita em maiúscula de nossa existência terrestre induziria talvez à conclusão de que A TERRA É PROPRIAMENTE A ESTRELA ASCÉTICA, UM RINCÃO DE CRIATURAS DESCONTENTES, PRESUNÇOSAS E REPUGNANTES, QUE DE UM PROFUNDO FASTIO POR SI, PELA TERRA, POR TODA VIDA, NÃO SE DESVENCILHARIAM NUNCA E A SI PRÓPRIAS FARIAM TANTO MAL QUANTO POSSÍVEL, PELO CONTENTAMENTO DE FAZER MAL: PROVAVELMENTE SEU ÚNICO CONTENTAMENTO. (...)”

(Genealogia da Moral, III, § 11)





Como muito perspicaz e apropriadamente nos lembra Byung-Chul Han, “quanto mais poderoso for o poder, mais SILENCIOSAMENTE ele atua. Onde precise dar mostras de si, é porque já está enfraquecido”. Decerto, os poderes nos constituem, nos atravessam, moldam nossos hábitos, nossos gostos, constituem nossos discursos, nosso modo de ser social, e o fazem de modo a que não percebamos sua ação sobre nós. Surpreender os poderes lá onde eles operam silenciosamente, com disfarces e máscaras, é a condição para a formação de homens e mulheres deveras emancipados e livres.




Do lamento à resistência

 

É lamentável, é revoltante que nós, professores, amarguemos salários tão baixos que, associados à precarização das condições de trabalho da categoria, nos desestimulam ao mesmo tempo que nos coagem a aceitar qualquer coisa por necessidades de subsistência. Enquanto padecemos as agruras da falta de um projeto político-desenvolvimentista-educacional no Brasil, carência que é um problema crônico de nossa história social e política, vigora ainda no imaginário social o cinismo da romantização do magistério, o cinismo das ideias, das representações coletivas da Educação e do professor como a atividade mais nobre e como o agente social e político mais admirável de uma “Pátria amada” que o maltrata, que os põe à margem das preocupações de um sistema político que atende aos interesses mercadológicos do capital financeiro. Chegamos ao ponto de sermos perseguidos por defendermos política e pedagogicamente os interesses dos oprimidos, por lembrarmos a obra de Paulo Freire, de Darcy Ribeiro, por nos posicionarmos firmemente contra uma racionalidade neoliberal que estende a lógica do mercado para muito além das fronteiras do mercado, produzindo subjetividades contábeis por meio do estímulo da concorrência contínua entre os indivíduos. Se nos posicionamos contrariamente a essa racionalidade neoliberal cuja característica principal é a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação, se nos recusamos a aceitar passivamente as condições socioeconômicas impostas por um sistema econômico (o capitalismo) que a tudo transforma em mercadoria de consumo, que estende a lógica do capital a todas as esferas da vida social, somos tachados pelas vozes da estultícia e do autoritarismo estrutural de “esquerdistas”, “comunistas”, “esquerdopatas”, embora seja o “páthos” da paranoia, do delírio que alimente os discursos beligerantes dos militantes da irracionalidade, da desrazão, da política como máquina de produção de guerra e de morte. Se não nos curvamos a essas vozes da intolerância, a essas vozes reacionárias que reduzem a complexidade do real aos limites estreitos de sua insanidade perversa, enquanto não cedemos aos seus gritos, ao seu ódio que em tudo inocula veneno, aos tentáculos de sua burrice, à violência de seu obscurantismo, é que compreendemos o que significa verdadeiramente a Educação: uma prática de resistência! Educadores são, portanto, agentes da resistência contra os poderes instituídos que oprimem, que coagem, que escravizam, que querem fazer calar as vozes daqueles que são forçados a viver às sombras, à margem.