quarta-feira, 30 de março de 2011

O mistério da consciência é que somente nela existimos

                 Futuro – o não-ser

O nascimento de um ser humano se acompanha do desejo dos pais pelo prolongamento dessa então frágil e ingênua existência, para o futuro. Tão logo nascemos – dizendo mais precisamente – nossos familiares nos projetam para o futuro. O futuro é o que desejamos e perseguimos, uma vez plenamente conscientes de que pertencemos a uma totalidade social, de que compartilhamos experiências, desejos, receios e sofrimento com outros seres humanos.
Serão necessários, contudo, muitos anos e muitas experiências culturais, entre as quais está uma grande dose de instrução formal e livresca – para nos apercebermos de que o futuro não existe. Explico-me. As noções de presente, passado e futuro são formas de abstração universal, com que a cognição humana “recorta” o tempo, este que só existe para/na consciência. Nossa consciência só conhece uma única realidade temporal: o agora. A totalidade de seu domínio, que é seu campo de atuação e reflexão, é o presente. E apenas este. Nossa consciência está ancorada no presente. O futuro é o não-existente, o não-consciente. Eu ainda não existo no ano 2021, muito embora meu coração e minha consciência me projete para esta época; mas, nesse tempo, eu ainda não sou. O futuro é o “lugar virtual” do não-ser. Ele é a negação da consciência. O Eu só é possível no presente; no futuro, só existe em potência, muito embora a morte, como possibilidade irrecusável de sua realização, viva a espreitá-lo.
Que diremos do passado? O passado também não existe, embora um dia tenha existido. Na verdade, só existe na memória. Nesse tocante, a memória desempenha um papel fundamental para a nossa identidade: eu sei que entre o meu “eu” de dez anos atrás e o meu “eu” de agora há uma continuidade identidacional. Embora, a rigor, eu não seja a mesma pessoa de dez ou vinte anos atrás, é graças à memória que tomo consciência de uma continuidade de mim mesmo através do tempo. Claro também que esta consciência deve muito às experiências minhas com os outros, especialmente, com os outros que me são próximos, tais como pais, avós, primos, tios e amigos. Esses outros asseguram-me de quem sou, ao mesmo tempo que me ajudam a lembrar-me de quem eu fui.
E crescemos ouvindo aquele provérbio, incessantemente reproduzido pela voz daqueles que, por terem vivido mais e por, supostamente, saberem mais do que nós: quem espera sempre alcança. Até o dia em que, ouvindo a canção Bom conselho de Chico Buarque, aprendemos a questionar tal saber popular: quem espera nunca alcança – escreve Chico. Mais precisamente, ele escreve “está provado, quem espera nunca alcança”. Verifique-o, leitor, caso duvide disso.
É provável que vivamos por longo tempo a acreditar nesse velho ensinamento, sustentáculo da paciência, princípio da prudência. Eis que nos tornamos adolescentes e o futuro torna-se objeto ainda mais desejável. Nada mais irritante para um adolescente do que chamá-lo de criança,  infantilizá-lo. A infância é passado para ele; deixou, pois, de existir. O adolescente vive intensamente o presente; para ele só existe esse tempo imediato da consciência. O futuro, ao que parece, só ganhará contornos quando ele se submete ao exame de vestibular para auferir uma vaga na universidade.
É na adolescência que o presente ganha hegemonia, abrangendo a totalidade do ser. É também nessa fase da vida que se descobre o AMOR. E com ele surge a aspiração à eternidade. Sim, porque o AMOR aspira à eternidade, a persegue, se projeta para um ir sempiterno. O AMOR reivindica projetos, se alimenta da projeção do desejo recíproco dos amantes. Por sua natureza subversiva e inquisitiva, o AMOR nos indaga incessantemente sobre o sentido da vida. É ele que constrói a longa estrada da felicidade – destino para o qual flui toda existência humana. Como nos ensina Aristóteles, o homem, por sua própria natureza, deseja a felicidade; é este o fim de sua existência.

Com a maturidade, o AMOR ganha rédeas, se equilibra na sensatez, muito embora ainda exerça sobre nós sua força centrífuga, que nos aparta do egocentro. Deslocado, nosso eu mora no eu do outro. O AMOR nos descentra. O impacto desse descentramento sobre nós é de tal ordem, que nos sentimos vulneráveis, visto que amar é estar vulnerável. Vulnerabilidade aqui não se confunde com insegurança; define-se, na verdade, como disposição ao desapego, a ser tocado, abrangido pela extensão infinita do AMOR. Como escrevi alhures, o AMOR EXCEDE AS MEDIDAS DA ALMA. Acontece que esse excesso do AMOR nutre-nos, mais vigorosamente, o desejo pelo futuro. Como a eternidade é absurda e, portanto, inalcançável não só à vida humana, mas também a qualquer forma de vida neste planeta, não nos resta senão contentarmo-nos com o indefinido. O AMOR maduro deseja prolonga-se indefinidamente, até que a morte venha pôr um fim a sua ousadia. O AMOR maduro projeta-se para este futuro, que ainda não é e nunca será, porque o que, realmente, há é uma sucessão de presentes. A rigor, com Heráclito, devemos reconhecer que a existência humana e toda a sua grandiosidade miserável é puro devir (um incessante movimento de alternância entre o ser e o não-ser).
Destarte, passado, presente e futuro não são compartimentos do tempo; mas tão-só a maneira pela qual ele existe para o pensamento. Mas, a rigor, o eu-consciente se realiza no presente, pois, no passado, ele não é; e, no futuro, ele nunca é. Daí não se segue que devamos viver inconsequentemente. Cada novo presente só é possível na medida em que sou responsável por minhas escolhas. Mas não posso escolher no futuro, já que não existe futuro, porque o futuro é o vazio do ser. E devemos sempre ter em conta o acaso, que nos lembra quanto somos frágeis e suscetíveis ao infortúnio.
Eu sou na medida em que me faço presente à minha consciência, num agora que se reatualiza indefinidamente. O AMOR é uma inesgotável fonte de liberdade: ele nos liberta de nossa prisão temporal. Torna-nos felizes hoje, pois que, no AMOR, a felicidade jamais é adiada. Tal adiamento significaria o seu fenecimento. O AMOR é o berço de nosso sonho de um presente infinito.

O futuro











Futuro

O futuro é pura ausência
O vazio escuso da consciência
Porque o Eu, ancorado no tempo
Só conhece o instante, o Ser
O AMOR, todavia, demanda projetos
Navega na proa dos sonhos virginais
Veleja sereno, resistindo aos temporais
Do tempo que se arrasta, inconstante...

O AMOR se enamora da decência
Bebe doses fundas de carência
Enquanto vive se equilibrando nos desejos
Dos amantes que se adoram sem receios
O futuro é o não-eu, o não-existente
Aos amantes resta apenas o presente
Que se quer prolongado eternamente
Até que a eternidade a morte beije docemente.

(BAR)

sábado, 12 de março de 2011

O ideológico no cotidiano

                                                               O ideológico no cotidiano
Uma amostra analítica de práticas discursivas


Este texto oferece uma discussão sobre as representações de felicidade num discurso do cotidiano, com vistas a avaliar seu revestimento ideológico.
O evento discursivo, que se realizou na esfera da relação familiar, se erigiu sobre o tema felicidade, que, de imediato, foi associado à perspectiva da sociedade de consumo. Discriminamos os participantes da interação, mediante o emprego das notações E1, E2 (autor) E3 (e E5). Com vistas a preservar a identidade dos enunciadores, escusamos menção a aspectos das condições de produção do discurso, tais como  lugar social, imagens recíprocas, vínculos familiares, excetuando-se o grau de escolaridade, que referiremos no lugar oportuno. Basta notar, por ora, que o E1 fala da perspectiva da classe dominante; o enunciador E2, embora também enuncie a partir de uma perspectiva de classe, procura situar-se numa perspectiva não-ideológica, comportando-se como uma espécie de problematizador das posições ideológicas assumidas pelos outros enunciadores; o E3, parece aderir à perspectiva de E1, embora a relativize, aproximando-se, assim, da perspectiva do E2. Vale notar as tensões discursivas, que revelam, nos índices de valoração de que se impregnou historicamente a palavra felicidade, a luta de classes, o conflito resultante de interesses contraditórios. Fique claro que “felicidade” está sendo considerado num contexto sócio-histórico determinado, a saber, no contexto da sociedade capitalista contemporânea, caracterizada pelo neoliberalismo. Logo, claro é que os sentidos da palavra “felicidade” variam segundo o contexto sócio-histórico em que circula.
Reproduzimos a tese básica defendida por cada qual dos enunciadores:

Contexto: os enunciadores, ligados por vínculo familiar, em conversação circunstancial, se posicionam em face da relação entre felicidade e dinheiro.
Limitamo-nos a mencionar que o E1 detém grau de escolaridade superior; o E2 é pós-graduado; e o E3 é graduando.

E1 – O dinheiro traz felicidade. (tese)
E2 – A vida de um ser humano não pode limitar-se à acumulação de riquezas, à aquisição de dinheiro. A felicidade está intimamente ligada às condições sociais de existência de sujeitos sociais, organizados em classes.

E3 – o dinheiro traz felicidade, mas há pessoas ricas que podem ser infelizes, em face de uma doença incurável, por exemplo.

O enunciador 1 assume uma perspectiva afinada com a sociedade de consumo, que associa a felicidade ao consumo (desenfreado) de bens culturais, propiciado pela acumulação de dinheiro. O enunciador 2 propõe a problematização e aponta para o fato de que, na discussão sobre a relação entre “o ser feliz” e “o ter muito dinheiro”, não se pode esquecer os valores sociais implicados aí. O enunciador 2 procura alertar para o fato de que a felicidade depende de certas condições sociais de existência, mas não depende do acúmulo de riquezas. Deve-se admitir que a felicidade, segundo o enunciador 2, pode ser experimentada pelas pessoas, sempre que algumas condições sociais são satisfeitas, independentemente de elas serem ricas. O enunciador 3, embora acolha a perspectiva do enunciador 1, admite que a felicidade não se resolve no acúmulo de riquezas, lembrando que há pessoas que, mesmo tendo muito dinheiro, uma vez acometidas por uma doença incurável, não poderão restituir a plenitude da saúde, o que lhes acarretam infelicidade. Há aqui, implícita, a consciência da vulnerabilidade e finitude da existência humana. Trata-se de uma posição filosófica que sugere  a necessidade de levar em conta que o sentido da vida humana não pode limitar-se à aquisição de dinheiro e riqueza.
Antes de aprofundarmos nossa reflexão, gostaríamos de observar que estamos em face de, pelo menos, duas perspectivas em conflito: uma dominante, que associa felicidade a acumulo de capital; outra que entende ser possível experimentar a felicidade, sem que seja necessário o acúmulo de riqueza. A terceira perspectiva (E2) procura revelar os enredamentos ideológicos implicados na discussão, já que, em certa altura do discurso, o E1 parecia acreditar que a sua perspectiva era a única possível e que, supostamente, representava “a verdade”, “a posição inquestionável” (isso se notava na entoação, nos gestos fisionômicos do enunciador). Embora não tenha sido explicitada a posição autoritária, é possível sugerir que, ao parecer assumir sua perspectiva como incontestável, o E1 posiciona-se de modo autoritário, o que revela sua inclinação aos setores dominantes, marcados, essencialmente, pelo autoritarismo.
Quando avaliamos a perspectiva de E2 como não-ideológica, não estamos sugerindo que E2 não enuncie de uma perspectiva de classe, mas tão-só pretendemos alertar para o fato de que o discurso de E2 representa um espaço de resistência à perspectiva dominante. Sua perspectiva está mais próxima da realidade dos dominados, por isso não pode ser considerada ideológica. Ademais, a posição de E2 é orientada de modo a desvelar as implicações ideológicas envolvidas na discussão. Por exemplo, ao assumir que a felicidade só pode ser experimentada plenamente quando se detém muito dinheiro e quando se acumula muita riqueza, E1 ignora o fato de que a felicidade é um estado de alma humano, que se manifesta, em geral, no comportamento, e que está intimamente relacionado às condições sociais de existência dos homens, independentemente do acúmulo de bens culturais. As representações do que é ser feliz variam entre os grupos sociais. Dificilmente, para os membros das classes mais prestigiosas (ou melhor, para a sociedade de um modo geral), uma criança de rua possa ser feliz, o que mostra que o estado de felicidade é determinado pelas condições sociais de existência de um indivíduo. É claro que a felicidade de um indivíduo depende da satisfação de certas necessidades básicas. Quiçá, para a grande maioria das pessoas, seja inconcebível que a felicidade possa ser experimentada por um indivíduo a quem foram negadas as condições básicas de subsistência (alimentação, habitação e saúde). Logo, assumimos que, para que alguém possa experimentar felicidade, é necessário o preenchimento de certas condições sociais básicas. Contudo, isso só não basta para que os homens se sintam felizes. Não pretendemos aqui determinar as condições em que os homens podem ser felizes, já que acreditamos em que as formas de experimentar felicidade sejam demasiadamente variadas e, não raro, estejam associadas a tendências patológicas.
Ora, se, por um lado, não basta apenas que sejam preenchidas aquelas condições básicas de subsistência para que um ser humano se considere/ seja feliz (afinal, entre outras coisas, a fruição da felicidade está ligada a relações afetivas sólidas e autênticas, quer no âmbito familiar, quer em esferas públicas de relação social); por outro lado, a felicidade só parece tornar-se possível, quando da satisfação daquelas necessidades básicas. O fato de assumirmos que a felicidade depende da satisfação daquelas necessidades básicas não significa que denegamos o fato de que, sendo a felicidade um estado de espírito, ela esteja suscetível a oscilações, ou seja, os indivíduos podem até se considerarem felizes por determinadas razões, mas isso não quer dizer que se comportem como se experimentassem a felicidade em todo momento. Há momentos de efusão de felicidade; outros em que a felicidade está-nos adormecida na alma, circunstâncias em que o tédio, o marasmo do cotidiano nos inunda o espírito; outros ainda em que somos invadidos pela tristeza, pelo desânimo, a despeito dos sólidos laços familiares, da boa convivência social, etc.
Observamos, de passagem, que tanto a perspectiva do E2 quanto a do E3 encaminham o discurso no sentido da assunção de um princípio filosófico segundo o qual a existência humana é marcada pela finitude; em outras palavras, devemos reconhecer que os seres humanos são os únicos seres vivos que têm consciência da morte. Essa consciência repercutirá evidentemente de modo positivo ou negativo na vida das pessoas; desencadeará angústia em uns, ou aguçará a ansiedade vital de outros - ansiedade graças à qual nos lançamos a empresas árduas, iniciamos projetos, fazemos planos, damos prosseguimento a nossa marcha que se funda na necessidade elementar de evitar, ou melhor, retardar a morte. Se a existência é finita, então os seres humanos não deveriam, segundo as perspectivas de E2 e E3, limitar sua existência ao gozo da riqueza e  à conquista do status social dela decorrente.
O psicanalista Roberto Shinyasihiki, aqui considerado um E4, em entrevista concedida à revista Isto é, em dezenove de outubro de 2005, assim se expressou a respeito da proximidade da morte:

“Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro em imóveis.”

O especialista advoga que a felicidade pode ser experimentada nas circunstâncias imediatas e comuns do cotidiano, tais como nos passeios de um pai com o filho, no almoço em família, no beijo de um neto nos avós, etc. Mas, vale dizer, essa felicidade só é possível, se não forem negadas ao indivíduo as condições necessárias para experimentá-la.  Para um menino que vive num contexto familiar marcado pela agressividade e desafeto, certamente será difícil experimentar essa singela felicidade que parece jorrar da fonte do cotidiano. Estando os homens envolvidos pela cotidianidade e, sendo este nível – o cotidiano – o nível imediato das relações humanas, a felicidade do indivíduo está estreitamente relacionada às suas experiências cotidianas. Para o indivíduo, a felicidade não pode ser um projeto a ser alcançado, sempre distante de seu ser, relegado a espaços longínquos da imaginação, a universos escusos e inatingíveis de sua idealização; deve ser experienciada no dia-a-dia e reconhecida como fonte de força e vitalidade, gerada pelas relações com as pessoas queridas, com os amigos, com os colegas de trabalho (e também nas gratificações do trabalho). Deve, em suma, manifestar-se, ainda que em pequenas doses, no tempo fugaz do cotidiano.
O especialista também enuncia de uma perspectiva de classe, a saber, a das classes favorecidas. Ele ignora as reais condições de existência das classes sociais: indivíduos a quem faltam as condições necessárias ao seu bem-estar, dificilmente poderão experimentar a felicidade simples a que fez apelo. Lembremos que, a despeito de o trabalho, no sistema capitalista, ser, em geral, alienador, não se negue que ter emprego é sempre um motivo de felicidade para um indivíduo, ainda que ele receba um salário baixo, que não corresponde à quantidade real de seu tempo de trabalho – período em que aplicou sua força de trabalho (capacidade para trabalhar) para a produção seriada de mercadorias, por exemplo.
Nosso objetivo, fique claro, não é propor um modelo de felicidade, se assim fosse, assumiríamos uma posição ideológica. Na verdade, o que pretendemos é desmascarar o processo ideológico em que se fundamenta a perspectiva do E1, ao defendermos que o conceito de felicidade está intimamente ligado às reais condições de existência dos indivíduos, organizados em classes sociais. Não nos preocupamos em determinar o que é, afinal, ser feliz, que, de qualquer forma, seria um esforço inútil, mas patentear que a palavra felicidade ganhará significados, contornos ideológicos diferentes, conforme apareça numa ou noutra formação discursiva. A palavra felicidade acumula, historicamente, pontos de vistas sociais e, necessariamente, contraditórios, portanto, conflitantes.
Vamo-nos deter na herança ideológica da palavra felicidade, representada na perspectiva do E1. O enunciador 1 associa, ainda que inconscientemente (no sentido de que, sob o efeito ideológico, ele não se dá conta disso), felicidade a consumismo, a acúmulo de riqueza, à fruição de prazeres proporcionados pela obtenção de uma quantia alta de dinheiro. Essa perspectiva sobrepõe-se às demais perspectivas: é como se elas não pudessem ser enunciadas, como se só a perspectiva dominante valesse, representasse a “verdade” para todos os grupos sociais. Sabemos que a realidade não é bem assim. Não raro, ouvimos pessoas, que não dispondo de muitos recursos econômicos, se dizem felizes, quer porque tenham saúde, quer porque tenham uma família unida e afetuosa, quer porque tenham um teto sobre a cabeça, etc.
A perspectiva do E2 procura chamar a atenção para os valores sociais inscritos na palavra felicidade, de modo que se faça ver os modos como os homens experienciam a felicidade variam de acordo com as classes sociais a que pertencem e com as condições sociais de existência. Em suma, a concepção segundo a qual, para ser feliz, é preciso enriquecer corresponde apenas a uma perspectiva – a perspectiva da classe dominante.
Agora, devemos considerar que, na atividade discursiva referida, os enunciadores falavam também sobre o que fariam se acertassem na loteria. Sem pretender dar a saber pormenores nesse tocante, gostaríamos de apontar para a tendência entre o enunciador E1 e o enunciador E3 (bem como um enunciador 5, que participava do evento comunicativo, a essa altura) de acreditar (trata-se de uma crença implícita, não-anunciada) em que a felicidade plena e satisfatória só poderia ser alcançada quando do ganho de uma bolada em dinheiro. Vê-se logo que a felicidade, nos discursos de E1, E3 e E5, está vinculada ao enriquecimento, ao acúmulo de capital.
Nas conversações cotidianas, especialmente no âmbito familiar, em que se manifesta o senso-comum (a saber, as concepções parciais e superficiais da realidade), é comum que, dado o obscurecimento da realidade pela ideologia, de tal sorte que os indivíduos conservam certo grau de ignorância, estando impedidos de assomar a um estado de consciência crítica, manifestem posicionamentos autoritários, opiniões/ interpretações que dizem univocamente o real, que produzem autoritariamente um único sentido para os aspectos da realidade. Em suma, são comuns, nesse contexto marcado pelo senso-comum, atitudes que inibem a pluralidade de perspectivas, de interpretações e mesmo a possibilidade de que sejam revistas certas concepções, certas “visões de mundo”, tornando, assim, o equívoco, o “erro” quase um grave “pecado”. Ao contrário do que parece suceder em contextos caracterizados por debates intelectualizados, como nas conferências científicas, nas discussões em sala de aula, orientadas pelo professor, etc, nos contextos cotidianos de interação, não há lugar para reformulações de perspectivas, revisão de interpretações, pluralidade de pontos de vista; há, em geral, dependendo dos papéis sócio-comunicativos assumidos pelos interactantes e do grau de hierarquia existente entre eles, bem como das imagens que fazem de si e uns dos outros1, mas também do assunto, da situação de comunicação, etc., um sentimento de intolerância em relação à perspectiva do outro. Haverá, em geral, uma perspectiva dominante, que está associada a quem detém o poder (sócio-econômico, político, cultural e discursivo); e perspectivas que devem ser ofuscadas, combatidas e invalidadas – a dos dominados.
 Cabe enfatizar que nenhum dos enunciadores considerados, aqui, insere-se em estratos sociais dominantes, do que se conclui que a ideologia dominante, produzida pelas classes e instituições dominantes na sociedade, impõe-se a todas as camadas da sociedade, torna-se o modo como os membros das classes menos favorecidas, incluindo-se aqui a classe média, aliada das classes dominantes, pensarão e perceberão a realidade social.
Nas esferas sociais mais intelectualizadas, não existe uma só verdade, e as concepções são sempre passíveis de serem revisadas, podem ser superadas, substituídas por outras, reajustadas de algum modo. Claro é que, às vezes, se nota certa intolerância intelectual, nesses meios, mas, de um modo geral, os debates de orientação filosófico-científica (lingüística, psicologia, ciências naturais, sociologia, etc.) se estabelecem sobre o pressuposto de que as teorias (os pontos de vista), dependendo da metodologia adotada e dos pressupostos assumidos pelo teorista, construirão uma verdade. A verdade não se encontra em algum lugar na realidade empírica, mas resulta de uma construção teórica, qual seja, uma interpretação humana.
A palavra felicidade no discurso de E2 parece despir-se de sentido ideológico, já que o enunciador alerta para o fato de que, quer se abone a perspectiva utilitarista-consumista, quer se rejeite, acolhendo-se, assim, a perspectiva contrária, a saber, a que nega que o dinheiro traz felicidade, estar-se-á comprometendo-se ideologicamente por, pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque se oculta o fato de que há muitos modos de experimentar a felicidade que, embora dependentes da satisfação de necessidades básicas do homem (alimentação, saúde, moradia, afeto, etc.), não se limitam à mera aquisição de riqueza, ao acúmulo alienante de capital; em segundo lugar, porque se oculta o fato de que a riqueza, o acúmulo de capital, quando bem administrado, quando usufruído de modo que promova a imersão do indivíduo em práticas culturais cada vez mais diversificadas e marcadas pela intelectualidade, pelo cultivo do espírito reflexivo, práticas que lhe possibilitem novas formas de perceber e conhecer o real; enfim, que lhe proporcionem um “enriquecimento intelectual” (por exemplo, mediante viagens ao exterior, circunstância em que entrará em contato com uma outra realidade cultural e em que poderá ter acesso a uma outra história social, etc.), contribui para experenciar a felicidade. Melhor seria admitir que, independentemente do modo como o dinheiro será administrado, se o utilizarão para a compra de carros-zero e importados, ou para a compra de roupas de grife, ou ainda se o utilizarão para estroinices, é verdade que, para muitas pessoas, a felicidade plena reside no acúmulo de capital. No entanto, lembramos que a felicidade é um estado de alma tramado nas malhas finas da existência humana; é um sentimento instável, que pode insuflar a alma de uma pessoa, em circunstâncias corriqueiras, como no momento em que um casal experencia uma noite prazerosa de afeto e companheirismo, e diluir-se diante das exigências do superior no trabalho, da doença que acomete um ente querido, da incompreensão da esposa ou marido, em que pese ao fato de o indivíduo ter em sua conta bancária uma quantia exorbitante de dinheiro ou de possuir outras formas de capital, como apartamentos em bairros nobres na cidade, empresas, etc.
Nas práticas de leitura na escola e na universidade, o professor deve propiciar situações em que os alunos sejam estimulados a refletir sobre as representações ideológicas que atravessam todo discurso. O professor deve, junto aos alunos, discutir aspectos ideológicos, chamar-lhes a atenção para as lacunas, os silenciamentos, para os “não-ditos” que permeiam todo discurso. Durante a atividade de leitura, o professor deve desvelar aos alunos as posições ideológicas, que sustentam e reproduzem relações de dominação de um grupo social sobre outro. Como não seja nosso objetivo aqui construir um quadro metodológico para a prática escolar, cingimo-nos a essas considerações.
É na escola, espaço em que se refletem as contradições sociais, que a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial devem ser problematizadas, devem ser postas em pauta. Conforme foi patenteado aqui, a prática pedagógica, que tome a atividade de leitura como uma ocasião essencial para levar os aprendizes à consciência do mascaramento do real produzido pela ideologia, no entanto, só poderá desenvolver-se satisfatoriamente se o professor tiver em conta que a escola é também uma instituição ideológica e, como tal, está longe de posicionar-se  de modo “neutro” em relação à realidade social; mas deve ser um espaço para o questionamento do status quo, para a problematização do instituído; afinal, consoante ensina Althusser (1983, apud. Konder, 2002:122), ao considerar a natureza sócio-histórica do sujeito:

“suas idéias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico material donde provêm as idéias do dito sujeito”

___________
1. Um enunciador pode atribuir ao parceiro de comunicação a imagem de uma pessoa intolerante, tacanha, em dadas condições, de sorte que encaminhará suas contribuições lingüísticas, por exemplo, de modo a atenuar tensões, evitando adotar certas perspectivas, ou adotar uma posição que exibe um grau maior de conhecimentos sobre o assunto do que possui o interlocutor, etc.

"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." (Adorno)

   O ideológico e a indústria cultural: um desafio pedagógico


São os homens, envolvidos num processo de produção material, que fazem a história da humanidade. O homem não se define apenas enquanto “ser”, mas, mormente, por seu “saber”. O homem é um ser natural humano que age tanto como “ser” quanto por seu “saber”.
Se lançarmos olhares sobre a organização dos homens no processo de produção, ao longo da história, não nos será custoso verificar que a humanidade é marcada por divisões contraditórias, que se caracterizam por lutas e conflitos que fazem mover a história: alguns são escravos; outros, senhores; uns são nobres; outros, servos; uns são operários, outros, patrões. Destarte, consoante ensinava Marx, a luta de classes é o motor da história.
É consabido que o sistema capitalista é, essencialmente, explorador. No capitalismo, tudo se transforma em mercadoria, inclusive os homens. No modo de produção capitalista, o operário vende sua força de trabalho, que se torna, pois, uma mercadoria, em troca de um salário. A função da mercadoria é atender a uma necessidade. No tocante à recepção pelo consumidor, deve-se ficar claro que essa necessidade é fabricada: oferecem-se as mercadorias aos indivíduos de tal sorte, que eles são levados a acreditar em que elas satisfazem suas necessidades. Há, no ato de consumir, uma satisfação que não se restringe ao objeto consumido, mas que transcende ao deleite proporcionado por ele. A satisfação, ou o gozo, reside no próprio ato de consumir – ato a que os indivíduos se abandonam através de uma vontade que atende aos imperativos do mercado. O consumismo, assim, levaria a um anestesiamento da consciência das massas.
A par do valor de uso de uma mercadoria, há seu valor estético. Tome-se a mercadoria “tênis”, por exemplo. Essa mercadoria tem um valor de uso, a saber, serve para calçar nossos pés. No entanto, não compramos tênis apenas pela razão de que eles servem para proteger nossos pés ou porque são necessários à mobilidade social (trabalhar, estudar, ir ao mercado, etc.); compramo-los também porque são sofisticados, porque exercem um efeito estético sobre nós. O acabamento da confecção, o designe, as cores, e outros recursos tecnológicos empregados, bem como a marca do fabricante são elementos que determinam a compra de um dado tênis. O tênis reveste-se, assim, de valores sociais referentes ao apelo estético que possui.
Para que se possa compreender o funcionamento das trocas de mercadorias no sistema capitalista, considere-se que, nas sociedades primitivas, um indivíduo que cultivasse abóboras podia trocá-las por outra mercadoria de que necessitasse (um tecido de linho, por exemplo). Todavia, não é o valor de uso que determina a troca, ou seja, que serviria de parâmetro para que se trocasse um par de sandálias por dois quilos de farinha, por exemplo.  Impunha-se estabelecer uma medida comum de troca. Essa medida comum é a quantidade de tempo empregado e necessário para a confecção da mercadoria. Assim é que, se o trabalho de um sapateiro, em termos de consumo de tempo, é maior que o de uma costureira, então é justo que um par de sapatos seja trocado por duas camisas. Ora, a confecção dos sapatos exigiu um consumo de tempo maior; logo seu valor de troca deve ser maior.
Hoje, ninguém troca mais um quilo de açúcar por um quilo de arroz, por exemplo. O dinheiro é o meio pelo qual as trocas são realizadas. Cabe lembrar que o preço de uma mercadoria não resulta exatamente de seu valor de troca; na verdade, na determinação do preço, entram fatores tais como custo da matéria-prima, tempo gasto na sua produção, produção e manutenção dos meios de produção, etc. Tais fatores constituem o chamado custo de produção. Na sociedade capitalista, é raro encontrarmos um sapateiro que fabrica calçados; em geral, o que se nota são indústrias de calçados.
Considere-se, agora, a estrutura de uma fábrica de calçados. Essa fábrica pertence a alguém. O dono da fábrica é que possui o capital, ou seja, ele é dono dos meios de produção e das mercadorias. É ele que comprará o couro e contratará os trabalhadores para confeccionar os sapatos. Terminada a confecção de um par de sapatos, por exemplo, o capitalista não poderá vender a mercadoria pelo valor resultante do preço do couro somado ao preço das horas de trabalho gastas, porque, senão, não obterá lucro algum. Para obter lucro, ou ele deverá vender o produto por um preço maior (o que nem sempre é possível, em virtude das condições do mercado), ou ele deverá pagar aos seus empregados um salário menor. Assim, se ele conseguir que os trabalhadores produzam dez pares de sapatos por dia e recebam apenas o correspondente ao valor (trabalho) acumulado em cinco pares de sapatos, o valor concentrado nos outros cinco redundará em lucro. Assim, no modo de produção capitalista, há um tempo de trabalho excedente não-pago; a diferença existente entre o salário pago aos operários e o valor de trabalho acumulado na produção da mercadoria constitui a mais-valia. A mais-valia, base do regime capitalista e prática econômica de exploração, tornou-se possível em um contexto sócio-histórico em que os trabalhadores, desapropriados dos meios de produção, reificados nos ambientes de trabalho, só possuíam a sua própria força de trabalho, a saber, a sua própria capacidade de trabalhar, como um produto passível de venda.
 Tomemos para reflexão o conceito de Indústria Cultural, doravante. A idéia fulcral que subjaz ao conceito de Indústria Cultural é a que toca à expansão da lógica da mercadoria para as esferas culturais. Assim, ao atuar na realidade humana e ao produzir novas necessidades, a Indústria Cultural oferece entretenimento com vistas a ocultar a contradição que resultaria da diminuição do tempo de trabalho. A Indústria Cultural impõe seu esquematismo aos produtores, reificando os homens, tornando-os peças da produção contínua e ampliada do capital. Avaliando a influência da televisão como parte do sistema da Indústria Cultural na vida cotidiana dos indivíduos, Renato Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo publicado no livro A Indústria Cultural hoje (2008: 113), escreve:


“Ela [a televisão] se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas penosas exigências do processo de trabalho, quer sejam estas físicas ou psicofísicas”.



O autor observa ainda que se trata de uma oferta ilusória que reforça a tendência anti-intelectualista da sociedade e que, oferecendo a diversão como uma espécie de subterfúgio às agruras do dia-a-dia, contribui fundamentalmente para a restituição da força de trabalho. A diversão é, assim, uma extensão do tempo de produção. Segundo Adorno, a diversão implica resignação. Tanto o processo de trabalho mecânico quanto a diversão dispensam a atividade do pensamento. Aliás, a televisão não reprime o exercício do pensamento, da reflexão; na verdade, ela não o exige. Diante da televisão, basta aos espectadores deixar-se embriagar pelo fascínio das imagens, que se transformam na totalidade do real. A fronteira entre a imagem e a realidade aparece à consciência de modo atenuado: a realidade produzida pela televisão acaba por se tornar, para os telespectadores, o próprio real. Nesse sentido, pode-se dizer, com Adorno, que a televisão promove a regressão da consciência.




“Essa regressão da consciência não é produzida, contrariamente ao que estamos acostumados a pensar, apenas pelo suposto baixo nível cultural impingido pela televisão comercial aos seus consumidores, mas, sobretudo, pelo conjunto dos aspectos implicados no consumo doméstico desse aparato tecnológico.”
(Franco, 116)


Tomando-se a atuação da Indústria Cultural no âmbito cultural, cabe observar que a cultura, pela ação desse sistema de entretenimento e manipulação social, sofre um processo de mercantilização, para cujo desenvolvimento concorrem a racionalidade da produção e a indústria. Assim, os vínculos culturais se revestem de homogeneidade e a Indústria Cultural confere a tudo um ar de semelhança. A dinâmica da Indústria Cultural se assenta na necessidade de repetição ilimitada e incessante de certos produtos. Essa repetição massacrante se observa nos programas de televisão, nas programações de rádio e em toda a indústria do entretenimento. Novamente, aqui, vale notar que a repetição engendrada pela Indústria Cultural, que martela na consciência dos indivíduos a necessidade de consumo, está relacionada à regressão dos nossos sentidos e de nossa condição humana – condição que se erige sobre duas faculdades especificamente humanas: pensar e saber.
No tocante à manipulação ideológica da Indústria Cultural, conforme já foi observado, os bens de consumo que são oferecidos às pessoas, apenas aparentemente atendem a necessidades que, por assim dizer, emanam delas. Os bens culturais são, na verdade, impostos como se fossem reivindicados pelos indivíduos. Através de uma rede de manipulações, na qual se incluem pesquisas de mercado promovidas pelos agentes da Indústria Cultural, vai-se determinando para toda a sociedade o que se deve fazer, como se deve fazer, o que se deve pensar, como se deve pensar, o que se pode ou não desejar, etc. Por isso, insistimos em que as supostas necessidades do público consumidor são, na verdade, imposições, são fabricadas por todo um complexo de ações institucionais, que influenciam o inconsciente do sujeito, fazendo-o acreditar que deseja determinado produto, que necessita consumi-lo, que se trata de algo indispensável a sua existência.
A Indústria Cultural é responsável por produzir indivíduos subjetivamente esvaziados que, no momento em que consomem, não só buscam uma identificação narcísica com o objeto manipulado, mas também se submetem docilmente aos imperativos do mercado.
Doravante, vamo-nos ocupar com um elemento das práticas sociais responsável pelo obscurecimento da realidade, ou seja, graças ao qual os homens representam para si a sua relação com as suas reais condições de existência: a ideologia. Portanto, na representação ideológica, consoante ensina Althusser, não é a realidade tal como é produzida pelos homens que se representa, mas a relação imaginária dos homens com sua própria condição real de existência.
Vamos assumir que a ideologia é um dos meios usados pelas classes dominantes para exercer sua dominação. A ideologia mascara as reais condições de existência dos homens. Obscurece as contradições, oculta a exploração do modo de produção capitalista. A ideologia se sustenta sobre a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas e sobre a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, entre aqueles que executam tarefas e aqueles a quem compete a produção das idéias, a quem cabe “pensar”. O trabalhador é, então, aquele que não deve pensar; deve tão-só despender seu vigor no processo de produção de mercadorias; o “pensador”, a seu turno, é aquele que, não trabalhando, se encarrega de produzir idéias.
Vamos adotar, para efeito de reflexão, o conceito marxista de ideologia em cujo cerne se acha a idéia de ocultação da realidade. A ideologia, consoante ensina Marilena Chauí (1980: 129), constitui:


“um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias, valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e com devem fazer. (...) A função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classe e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação ou o Estado”.



Fique claro, pois, que a ideologia é, por natureza, hegemônica, já que, necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, assim, constitui um instrumento de reprodução da ordem social que favorece a grupos dominantes.
Embora nos situemos na concepção marxista de ideologia, colhemos a contribuição do filósofo Mikhail Bakhtin que, ao tratar do conceito de ideologia, procura corrigir o equívoco perpetrado pelos marxistas, ao sugerirem que a relação entre a infra-estrutura e a superestrutura é direta. Em outras palavras, Bakhtin rever a proposição marxista, segundo a qual os acontecimentos da estrutura sócio-econômica repercutem imediatamente na esfera da superestrutura (em que se acham a cultura e a ideologia), situando a questão da ideologia não na consciência do sujeito, tampouco num universo supra-individual e transcendente, mas na esfera do cotidiano, o que o leva a propor uma ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano está em relação dialética com a ideologia oficial (a das classes e instituições dominantes). A ideologia do cotidiano é (re)produzida nos encontros casuais do dia-a-dia, nas esferas marcadas pela proximidade com as condições de produção e reprodução da vida.
Destarte, de um lado, se acha a ideologia oficial e dominante relativamente estável; de outro lado, a ideologia do cotidiano, relativamente instável. Ambas  em relação recíproca, constituindo o contexto ideológico pleno e único, inserido no processo global de produção e reprodução social.
Como adotássemos a perspectiva de Bakhtin, ao conceito de ideologia citado anteriormente deve acrescer-se a idéia de que a ideologia é a expressão de uma tomada de posição determinada. Essa tomada de posição redunda na adoção de uma perspectiva de classe, ou seja – considerando-se que o discurso é o lugar privilegiado da manifestação ideológica -, ao tomarmos posição em face de um assunto, de uma questão qualquer; enfim, ao participarmos das múltiplas práticas de linguagem, falamos a partir de um determinado lugar social, adotamos determinadas perspectivas, que, a seu turno, dizem respeito a posições de classes em conflito.
Tendo em conta que o discurso é o “lugar” da constituição do sujeito e da manifestação da ideologia, impõe-se considerar, em consonância com a perspectiva de Bakhtin, a natureza ideológica da palavra. Vamos assumir que toda palavra é signo ideológico. Em toda palavra utilizada, inscreve-se um “ponto de vista”. Toda palavra é tecida por inúmeros fios ideológicos, já que, ao tomar a palavra, o sujeito representa a realidade a partir de um lugar valorativo. A palavra acumula, assim, “as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade (...)”. (Stella, 2005: 178)
É preciso ter em conta, quando se considera o papel da palavra nas relações humanas, que a palavra é responsável pelo contato entre a consciência do sujeito – consciência cuja realidade é o signo – e o mundo exterior à mente, que também é constituído de palavras. A consciência é construída discursivamente, ou seja, pela inter-ação com o outro pela palavra.
Outrossim, na discussão sobre a ideologia, devemos reconhecer que o meio social envolve por completo o indivíduo. O sujeito tem natureza sócio-histórica e é função das forças sociais. O indivíduo se torna sujeito em virtude da interpelação ideológica, que o impele a tomar uma posição determinada.
Bakhtin ensina que, no nível da ideologia do cotidiano, as atividades mentais e a consciência ainda não ganharam um revestimento ideológico nítido. É somente no estrato da ideologia oficial que os conteúdos ideológicos ganham mais densidade e concretude, já que terão passado por todas as etapas de objetivação social, penetrando no eficiente sistema ideológico especializado e formalizado da arte, da moral, da religião, do direito, da ciência, da escola, da literatura, etc. À medida que as interações, no nível do cotidiano, se reiteram, reproduzindo padrões, vão-se integrando no sistema ideológico que se vem formando num determinado grupo social; assim, nos estratos superiores da ideologia do cotidiano, se consolidam as enunciações, as representações, que, então, se integram completamente ao sistema ideológico social.
Esperamos que fique elucidada a idéia de que o modo como os homens pensam, os conteúdos de sua fala refletem o modo como representam a sua relação com as suas reais condições de existência. Nossas opiniões, concepções, crenças sobre o real, sobre as relações sociais são produzidas nas práticas sociais, são produtos do meio sócio-cultural e ideológico em que nos situamos. Nosso ser é modelado pelo sistema social. Em suma, convém atentar para as palavras de Valdemir Miotello, que, em Bakhtin – conceitos-chave (2005: 176), escreve:


“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representações de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.


Para efeito de discussão, basta, de início, reter que as ideologias são produzidas nas práticas sociais, por homens sócio-historicamente situados. As idéias que nos ocorrem, as perspectivas que assumimos nas práticas discursivas não derivam de espaços transcendentes, “imaginários”, não brotam em nossa consciência, como a água emana de uma fonte. Não somos a origem do que dizemos: o sujeito não é a origem do seu discurso – tem apenas a ilusão de sê-lo;  ele é uma espécie de estação dos discursos; nas práticas discursivas, estamos constantemente reproduzindo outras práticas discursivas, adotando idéias, opiniões, argumentos, perspectivas veiculadas por outros discursos circulantes. A forma como representamos discursivamente a realidade é resultado do modo como nos relacionamos com essa realidade.
Um conceito que não pode ser ignorado, na consideração da ideologia, é o de alienação. A alienação torna possível o fenômeno ideológico. Consiste a alienação no fato de os homens não se reconhecerem como agentes sociais da história, como agentes produtores de suas próprias condições de existência. Ao contrário, alienados, eles se consideram produzidos por tais condições, eles se reconhecem como meros produtos da realidade, e não mais como produtores dela. A alienação inverte a relação entre realidade e produtor, de sorte que o produtor (homem) se torna o produto da realidade, a qual, por sua vez, torna-se uma entidade supra-individual que o domina, que o oprime, que o controla e esmaga. Os homens, alienados, atribuem a origem da vida social a causas “superiores”, sobre as quais eles não têm controle, tais como “deuses”, “natureza”, “razão”, “Estado”, “destino”, etc.
A título de ilustração de perspectivas ideológicas, assumir que o papel de mãe é um dom natural de toda mulher é assumir uma posição ideológica, ou seja, uma perspectiva afinada com os interesses das classes dominantes, uma vez que oculta o fato de que ser mãe é um papel determinado socialmente, e não um “dom natural”. Tampouco é uma posição a que toda mulher está predestinada. De certo modo, “ser mãe” não deixa de ser uma imposição social, já que existem expectativas sociais que acabam por “forçar” as mulheres a assumir a posição de “mãe”. Considere-se ainda dois temas tabu na sociedade, a saber, a virgindade das meninas e a homossexualidade. Tomemo-los no âmbito da família pequeno-burguesa e reconheçamos, de imediato, que, não obstante a verborragia institucional que acarretam, a valorização da virgindade das meninas e a repressão ao homossexualismo, quer entre os meninos, quer entre as meninas, têm razões que permanecem sob o véu ideológico e que, portanto, são ocultadas. Na família pequeno-burguesa, é necessário conservar a autoridade paterna e a domesticidade materna como forças para retardar o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, os quais serão úteis quando se tornarem arrimos econômicos, garantindo, assim, a unidade familiar. Por um lado, a defesa da virgindade está em consonância com a necessidade de evitar o fracionamento do capital: evita-se, assim, a constituição de novas famílias e a partilha do patrimônio acumulado decorrente da nova condição. Por outro lado, a repressão ao homossexualismo está afinada com o fato de que, nas relações homossexuais, não há reprodução e, portanto, não há vínculos familiares, que permitirão a reprodução do capital, pela geração de novos indivíduos para a inserção no processo de produção capitalista.
Se a ideologia mostrasse, por exemplo, que a repressão sexual e a conservação da virgindade estão ligadas à necessidade de conservar a energia vital para o trabalho, já que a atividade sexual diminui a rentabilidade e produtividade do trabalho alienado, ela se esfacelaria, não seria mais ideologia. Isso se deve ao fato de que a ideologia é, necessariamente, um sistema coerente e racional lacunar. Em outras palavras, o discurso ideológico é, por excelência, um discurso repleto de silenciamentos, de vazios, de lacunas. A ideologia é, assim, coerente “não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas” (Chauí, 1980: 130).
Conquanto não nos seja possível discorrer sobre esta questão neste texto, esperamos que a reflexão que desenvolvemos até aqui faça erigir a tese de que uma educação que se pretende transformadora tem de propiciar condições para a problematização das visões de mundo, das perspectivas ideológicas assumidas discursivamente e incorporadas pelos aprendizes de modo quase inconsciente. O trabalho com a prática de leitura deve atuar no nível da estrutura ideológica do texto, patenteando aos alunos as lacunas, os silenciamentos, as posições ideológicas assumidas pelo sujeito – sujeito que se apresenta no discurso de formas várias.  Durante a prática pedagógica, o professor deve-se esforçar por levar os alunos a se aperceberem do aparelhamento ideológico de que se serve a sociedade com vistas à conservação do status quo, pela imposição de padrões, de modelos de comportamento, atitudes, crenças, etc.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O outro escondido em nós

             

Freud e a condição humana
  Quem é o homem?



     Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus sentimentos? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Veja-se o que nos ensina o psiquiatra Fábio Herrmann. O trecho foi colhido de um artigo que se acha no livro da série primeiros passos, da companhia círculo do livro.

“(...) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e, o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)”.
(pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Se, por um lado, a razão e o intelecto conferem-nos uma posição especial na filogenia das espécies; por outro lado, parece que nos tornam seres bem estúpidos, na medida em que oferecem aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Reza a psicanálise que os homens se negam a reconhecerem-se como agentes responsáveis pela criação do mundo. Esse mundo domesticado, fabricado, transformado incessantemente, produto do desejo humano, gera irritabilidade nos próprios homens, justamente no momento em que se dão conta de que esse mundo corresponde bem ao seu desejo. Estranho? Freud explica.
A psicanálise ensina-nos que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como se verá, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Convém atentar para as palavras de Fábio Herrmann a seguir:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo.”

A psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trate de psicanálise nos levará à compreensão de que a consciência humana é determinada por impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.
A essa altura, convém referir as três fontes de sofrimento humano, segundo Freud. Leia-se o seguinte nesse tocante, em O mal-estar na cultura (2010):

“O sofrimento ameaça três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos”
(pp. 63-64)

Em suma, o sofrimento humano advém de três fontes: da fragilidade do corpo; da força destrutiva e inexorável da natureza; e dos conflitos das relações sociais.


O animal humano

A razão, a linguagem e a cultura são instâncias do universo humano responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele, cabendo a ele adaptar-se a esse mundo para poder sobreviver. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua própria alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real; ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por vários  processos de aprendizagem ao longo da vida. Os animais já estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc, mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de aprendê-lo.
Os homens aprendem a sobreviver em contato com as normas e regras de sua sociedade que, através de processos formativos educacionais, vai “lapidando” a criança, adaptando-a ao meio social complexo, já então construído antes de seu nascimento. Os homens, pela aprendizagem, que é um processo pelo qual se modifica o comportamento na experiência, ajustam-se à estrutura de sua sociedade. Convém dizer que o animal, como orangotangos e chipanzés, por exemplo, também podem aprender, mas são menos capazes para tanto, porque lhes falta a capacidade de raciocínio, própria da espécie humana. Também, aqui, há que reconhecer o papel da linguagem, no processo de adaptação da criança à sua sociedade. Nesse tocante, dá-nos a saber a psicóloga Maria Luiza Teles, no livro da mesma série:

“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
(p. 21)

Conquanto a humanidade se orgulhe de faculdades como a razão e o pensamento, dever-se-á notar que a psicanálise ensina que a consciência não pode tudo e que ela representa uma pequena parte da estrutura psíquica humana. Freud, aliás, ensinou que o “eu” não é “senhor de sua própria casa”. Foram três os golpes sofridos por nosso narcisismo:

1) Copérnico provou que a Terra não era o centro do universo, abalando a crença antropocêntrica, segundo a qual os homens são o centro do mundo;

2) Darwin mostrou que os homens descendem dos primatas e os reduziu, assim, apenas a um estágio da cadeia evolutiva das espécies, e não seres especiais criados por um Deus para dominar a natureza;

3) Freud mostra que o eu não é o senhor de sua vida psíquica e que a consciência é uma pequena parte do complexo mental.

No que toca ao abalo 3), é interessante notar que há pensamentos que não são de responsabilidade do ego (eu). Muitos pensamentos escapam ao seu controle.




O inconsciente

Do que se ocupa a psicanálise? Em geral, percebemos uma preocupação constante dos psicanalistas com os sonhos; de fato, os sonhos constituem um meio importante para se chegar à compreensão de outra realidade. Essa outra realidade, que é o objeto de estudo da psicanálise, chama-se inconsciente. O inconsciente só é acessível através de um método de interpretação psicanalítico desenvolvido por Freud. Esse método consiste em levar o paciente a fazer associações entre palavras ou lembranças. O psicanalista diz ao paciente uma palavra e pede que este diga a primeira palavra que lhe vem à mente. Em geral, o paciente reage às palavras, deixando de pronunciar a que lhe vem à mente, censurando-a por algum instante. Circunstâncias há em que o paciente fica muito agitado e fala muito, quando da associação das palavras. Por esse método, busca-se compreender a vida inconsciente do paciente.
Antes de discorrer sobre o inconsciente, cabe notar que as experiências e lembranças que podem ser trazidas à consciência em algum momento se dizem pré-conscientes. O inconsciente abriga, assim, os estados mentais que não podem ser recuperados, a saber, trazidos à consciência em circunstâncias normais.
O que é o inconsciente? É uma hipótese teórica e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em tese, opera em nossa mente. Esse sistema explicaria os motivos que nos impelem a agir e reagir de tal ou qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. Essa interpretação visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Um conceito importante para a compreensão do inconsciente é a repressão. Experiências ou pensamentos que se mostram incompatíveis com os padrões sociais tendem a ser reprimidos, ou seja, afastados da consciência. O eu foge a eles. Trata-se de um mecanismo de defesa mediante o qual uma pessoa busca evitar conflitos interiores.
As pulsões do inconsciente estão, assim, reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas de boa educação e da civilização. Por exemplo, um desejo forte de pintar a sala com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser disfarçado (sublimado) e censurado, para que não chegue à consciência.
No tocante aos sonhos, Freud, ao tentar compreendê-los, assumiu o pressuposto de que eles fazem sentido, embora esse sentido nos esteja velado. O procedimento adotado pelo pai da psicanálise era o seguinte: considerando várias partes de um sonho, levava o sonhador a associar ideias e lembranças. Assim, pôde concluir que os sonhos dizem respeito a acontecimentos do dia anterior e, ao mesmo tempo, estão relacionados a comportamentos de nossa primeira infância. Os sonhos são formas de linguagem simbólicas, materializados em imagens. Para Freud, todo sonho é uma tentativa de realização do desejo. É somente pela interpretação das palavras, dos sonhos, das lembranças e gestos do paciente que se tem acesso à sua vida inconsciente.
Deve-se ficar claro que, ao contrário do que acredita o senso-comum, Freud, embora tenha dado especial destaque à sexualidade, conceito que foi por ele ampliado, na explicação dos fenômenos psíquicos, é errôneo dizer que ele procurou explicá-los, por uma espécie de reducionismo, pelo papel do sexo na vida dos homens.  A sexualidade, portanto, passou a recobrir toda forma de prazer que envolve o corpo. Ensinou que os bebês encontram prazer, primeiramente, nos estímulos orais (fase oral) e, posteriormente, nos estímulos anais (fase anal). Também coube a ele advogar que o menino sente desejo sexual pela mãe (complexo de Édipo), ao mesmo tempo em que teme a castração pelo pai.
O que Freud defendeu foi que as repressões encontram origem na primeira infância (até os cinco anos) e são, basicamente, de natureza sexual. Vou desenvolver esses pensamentos na seção seguinte.




O aparelho psíquico

A estrutura de nossa mente se organiza em três instâncias: o ego, o id e o superego. O ego é o “eu”, portanto, a consciência. É a sede de quase todas as funções mentais. É o ego o responsável pelo contato com a realidade exterior. É ele também responsável pelos atos mentais, tais como perceber, pensar, julgar, etc. O ego é submetido aos desejos do id e à censura do superego. Sua realidade fundamental é a angústia, já que, não podendo manifestar os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo (o ego se guia pelo princípio de realidade), para não ser aniquilado. O ego, portanto, busca objetos que satisfaça o id, sem transgredir as imposições do superego.
O que são o id e o superego? O id é um substrato inteiramente inconsciente, dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, segundo Freud, o indivíduo é todo id, que é reorganizado à medida que esse indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. O id é constituído de pulsões, que são os impulsos e desejos inconscientes. A mente humana se estrutura de tal modo que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica é regida pelo princípio de prazer: buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo nome libido. O id é um reservatório da libido. A sexualidade não se restringe, assim, ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte de nosso corpo.
O superego, a seu turno, é uma espécie de juiz social; é a voz da censura e da repressão interiorizada na psique por força dos processos formativos impingidos pela sociedade. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições que dada cultura impõe ao indivíduo. O superego forma-se entre os 6 e 7 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente.
A psicanálise reza que muitas doenças psíquicas e distúrbios de comportamento estão em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e na retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, ou seja, ao falo. O menino e a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se o objeto de prazer do menino; e o pai, o da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que determina toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo (suponho que o leitor conheça a tragédia de Édipo). O complexo de Édipo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Esse desejo é que determinará a totalidade de sua vida psíquica, a saúde dela depende do modo como atravessamos essa fase que, em geral, é conflituoso. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, denominado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo ( e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição pelo desejo incestuoso pelos progenitores.
Gostaria de volver, antes de encerrar, à angústia do ego. O ego cumpre um papel importante na vida psíquica, visto que a ele cabe recalcar os desejos demasiado fortes do id, satisfazendo ao imperativo do superego. O recalcamento é, pois, uma repressão forte imposta pelo ego ao id, evitando que as pulsões deste cheguem à consciência. No entanto, cabe ao ego também satisfazer o id, sob pena de viver um profundo e constante desprazer. Nossa vida consciente normal e saudável é resultado dessa dupla função do ego, desse equilíbrio produzido por ele, quando busca interditar os desejos arrebatadores do id e, ao mesmo tempo, limitar o poder do superego. O inconsciente oferece à consciência formas compensatórias de experimentar o prazer. O substituto oferecido pelo inconsciente satisfaz o id e o superego. Constituem substitutos a chupeta, o dedo, tintas, pintura, uma pessoa amada no lugar da mãe ou do pai, além dos sonhos, lapsos, atos falhos, etc. Através deles, realizam-se os desejos inconscientes de natureza sexual. O sonho, o ato falho e os lapsos de memória indicam que nossa existência não se dá ao acaso, nossa vida é determinada (daí o determinismo assumido por Freud, segundo o qual todo evento tem uma causa) pela natureza da libido. Em nossa vida psíquica, os objetos e as pessoas se revestem de sentido afetivo-sexual, são alvo de nossa adoração ou ódio, ou são objeto de nosso temor, sem que o saibamos.
Ao mencionar o papel dos substitutos para a satisfação do id, descurei de observar que o recurso pelo qual o inconsciente oferece alternativas à satisfação do id e do superego, dá-se o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciência, religião, filosofia, ações éticas, etc.
As palavras de Marilena Chauí põem termo a este texto e nos lembram que a consciência é frágil, mas, porque dotada de vontade e razão, decide aceitar ou abalar as opiniões e ideias estabelecidas:

“A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante”.