quarta-feira, 13 de julho de 2011

Hoje escrevo para não ser esquecido

                                                    
                      


                          Verberotismo


- O que há contigo? Por que te inquietas?
- Quero viver mais!
- E o que te impede?
- Não sei dizer.
- Oh! Homem de tantas palavras! Agora, admites não tê-las?
- O que sinto é inefável!
- Inefável, escolheste bem! O que desejas?
- O gozo do amor sem interdito.
- É o que te falta?
- é.
- E do que careces para consegui-lo?
- ousadia ou sorte.
- Ora, ousadia depende de nosso abandono de certos hábitos. Sorte? Tu não és daqueles que acreditam em sorte.

As férias, definitivamente, não me favorecem; que discordem de mim, mas a alguém acostumado à leitura, a elucubrações, que vive, cotidianamente, rodeado por livros, enchendo a cabeça de pensamentos, de palavras, discursos, teses, argumentações, e que busca em Sartre, Sócrates, Heidegger, Marx, Nietzsche, Schopenhauer matéria para elevadas e fecundas reflexões, as férias não favorecem, porque propiciam uma grande extensão de tempo para a ociosidade. No entanto, acho que incorri num equívoco. O trabalho espiritual é também uma forma de atividade. Escorrego no terreno da ideologia, que faz a distinção entre os que trabalham (operam com o corpo) e os que pensam (operam com o intelecto).
Marx ensinava que o lazer dado usufruir ao trabalhador alienado, numa sociedade capitalista, é uma forma de lazer alienado, de sorte que o lazer torna-se uma extensão da alienação existente nos modos de produção capitalista. Nesse sentido, a atividade de pensamento ou de reflexão está excluída dessa forma de lazer.
Parece que eu fui, graças à minha própria formação acadêmica, privilegiado, porque posso usufruir a atividade de pensamento, durante o tempo em que não leciono. De qualquer modo, eu não escapo às inquietações intelectuais, às questões do conhecimento; eu não escapo às tramas da linguagem, porquanto respiro as palavras continuamente. Em suma, estou envolto às palavras e delas me sirvo não para apenas comunicar,  mas, principalmente, para sentir-me.
Cuido que, ao me socorrer da companhia das palavras, busco uma compensação; uma compensação para um vazio existencial, cuja extensão é imensurável, que me atravessa. Nesse vazio, situa-se meu coração. Outrora, escrevia para ser notado, para bradar – Eu existo! Hoje, escrevo para que não seja esquecido.
Sublimação e repressão são duas palavras cuja significação toca-me intimamente. Em primeiro lugar, com Marcuse, a sublimação não deve implicar diminuição da energia erótica ou seu empobrecimento, mas uma forma de concentrá-la numa outra esfera de atividade, que não a genital. Vou elucidar mais esse ponto, citando um trecho em que Guido Mantega, em Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da dominação, artigo que compõe o livro Sexo e poder, ensina-nos sobre a contribuição de Marcuse na reflexão sobre os mecanismos repressivos das sociedades autoritárias:

“(...) Marcuse também concebe um tipo de sublimação que não implica o empobrecimento da energia libidinal, mas somente sua canalização para uma nova esfera de prazer. Isso é possível em função da erotização maior do corpo e das várias atividades humanas, de modo a criar zonas erógenas ou atividades eróticas fora da esfera genital, que possam extravasar os limites do próprio corpo. Trata-se das manifestações erógenas “espirituais”, derivadas do poder criador de Eros (o princípio de prazer), tais como o “amor das belas ocupações”  e “o amor dos belos conhecimentos”, que vêm juntar-se ao amor corporal, para formar a nova constelação de prazer de uma sociedade não repressora. Nessas atividades, a sexualidade não é desviada e nem impedida de atingir seu objetivo (o prazer sexual); pelo contrário, ao atingi-lo, transcende-o em favor de outros, buscando uma gratificação plena”.
(p. 26)
(grifo meu)

Nem sempre a vida de um escritor (no sentido lato do termo) reflete-se na sua obra. Em outras palavras, nem sempre buscaremos na obra o testemunho da vida de um escritor. No entanto, tudo que escrevo sou eu mesmo verbalizado. Disso se segue que meus escritos carregam uma forte carga erótica e libidinal, embora, consoante Marcuse, sublimada. Lembro, certa vez, ter escrito que, ao escrever, tenho ejaculações de pensamentos. Aqui, está a libido verbalizada, harmonizada com o erotismo da linguagem, que produz o prazer do conhecimento e da estética.
O erotismo de meus textos é produzido pelo coração; é o coração que goza, que ejacula, que alcança o prazer em sua forma espiritual. Esse prazer, decorrente da expressão espiritual erógena não exclui o desejo sexual pelo corpo, mas o transmuda numa liricamente mais densa, forte e contemplativa atividade humana.
Também é em Marcuse que buscaremos a compreensão da importância do reino da fantasia. É aí que os desejos e impulsos do prazer (libidinal) se mantêm a salvo dos aparatos repressores da sociedade. O reino da fantasia é, para o autor, o próprio inconsciente. É ele que impede que o princípio de prazer sucumba ao princípio de realidade. Nele está o potencial transgressor. A fantasia não é senão uma forma de negar a repressão e, nesse sentido, torna-se uma forma mais elevada (superior) de vida.
E o que acontece com esse reino “protetor” dos desejos de prazer e inibidor da repressão. Novamente, é na obra já referida, que buscaremos um esclarecimento:

“Com o tempo, os aparatos ideológicos da sociedade capitalista conseguem invadir essa fortaleza outrora inexpugnável, e substituir a velha fantasia impulsiva por uma nova imaginação pré-fabricada pela sociedade repressiva, com sonhos que podem ser concretizados pela máquina de consumo. Dessa forma, o princípio do desempenho aprisiona esse último reduto de rebeldia, desfazendo a dualidade realidade/ fantasia correspondente ao princípio de realidade e do prazer – submetendo tudo ao princípio de desempenho econômico, e reduzindo o homem a uma única dimensão. O “homem unidimensional” é aquele onde até a consciência foi aprisionada pelo controle social
(p. 27)

Do fragmento acima, pode-se depreender a minha busca por uma atividade espiritual sempre emancipada e libertadora. Donde se segue minha disposição fervorosa para criticar e rejeitar certos padrões sociais, entre os quais os que reduzem a atividade sexual ao mero desempenho, à mera performance e praticidade.
No capitalismo, a aparência de liberdade implica o acionamento de mecanismos de controle por meio de artifícios ideológicos e psíquicos ‘ocultos’ (que operam à sombra de nossa consciência). A submissão existe, se bem que está invisível. A famigerada liberdade sexual deu ensejo a novas formas de controle da vida sexual dos indivíduos. Veja-se a grande quantidade de especialistas que detêm a competência para falar de sexo e de ministrá-lo (em livros de medicina, psiquiatria, psicologia, sexologia, etc.) e de produtos destinados ao aperfeiçoamento do desempenho sexual dos casais.

“[a liberdade sexual] aumentou consideravelmente. Porém essa liberdade deve ser entendida entre aspas, pois ela não representa a livre manifestação do princípio de prazer, mas sim uma sexualidade contaminada, pelo princípio do desempenho econômico. Trata-se da “dessublimação repressiva”, onde, aparentemente, existe uma liberação de Eros, mas, na verdade, permitem-se as ações, mas não o sentimento. O indivíduo desoritizado, incapacitado de manifestar os seus sentimentos mais profundos, passa a intensificar seus “exercícios” sexuais. Para usar uma imagem pretensamente lírica, é um corpo amando sem alma”
(p. 20)


Se me impus uma repressão sexual por rejeitar o imperativo de corpos que amam sem alma, não me imponho uma repressão verbal, em que erotizo os pensamentos, com vistas à harmonia entre o lirismo da alma e o corpo das palavras. 
Certamente, há muitos homens interessantes, que ousarão invadir o coração, ou entrar gentilmente. Mas, igualmente certo, é haver poucos os especiais, que se expandem pela alma, pela linguagem, pelo caráter, pelo coração, que têm sede de AMOR que cuida e se sacia na simples presença.



Um comentário:

  1. tb nunca aproveitei, devidamente, as férias.
    mas - confesso - sou mesmo dada ao ócio; nelas, só piora... =(

    seu texto, mais uma vez, propondo reflexão.
    ultimamente, tenho refletido sobre como não refletir tanto! :/ [é possível?]

    um beijo, querido

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