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sexta-feira, 25 de junho de 2021

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam." (Platão)

 


               

                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                                PARTE 2


 

3. A política e a filosofia: um retorno às origens

 

Tendo analisado o bolsonarismo como um movimento autoritário de viés fascista, com ênfase em sua recusa aberta do pensamento e do conhecimento, na primeira parte deste estudo, dedico-me agora, nesta segunda etapa, a trazer à baila a experiência política da Atenas do século V-IV a.C. A Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, é o solo progenitor da política. A filosofia nasce com os antigos gregos, e coube a Platão (427-347 a.C.) ser o primeiro filósofo a nos legar um sistema de pensamento político. Em outros termos, a filosofia política nasce com Platão. O que me interessa, então, é revisitar esta herança tão rica e preciosa do pensamento político da Antenas de Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), com vistas a colher desse solo os subsídios necessários ao desenvolvimento de um debate público, no Brasil de hoje, mais amplo, mais elaborado, fundamentado teoricamente. Este será o objetivo que perseguirei também na terceira parte deste artigo, quando me debruçarei sobre a política tal como pensada e vivida na era moderna. Buscarei acenar para as contribuições de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, mas avançarei reflexões sobre conceitos tais como o de Estado, Democracia, Sociedade Civil, Poder, Política, Cidadania, entre outros, que precisam ser, segundo creio, bem definidos e esclarecidos para quem quer que esteja disposto a recusar-se a reduzir a atividade política a um negócio de plutocratas e de políticos profissionais que agem em proveito próprio para perpetuarem-se no poder. Não que esta não seja uma experiência política muito familiar na história de nossa sociedade; é, aliás, uma percepção generalizada entre pessoas em outros lugares do mundo, conforme mostrarei. Vivemos numa época em que é cada vez mais patente aos estudiosos da política o recuo das democracias e a deterioração do sistema político em vários países do Ocidente. Esta é uma questão que não deixarei de considerar, muito embora não venha a desenvolvê-la em profundidade. Comecemos, pois, nosso retorno à filosofia política grega. Espero que o leitor colha daí lições valiosas para que a sua existência como zoon politikon possa tornar-se mais fecunda enraizando-se no solo do verdadeiro pensamento.

 

3.1. O idiota é, antes de tudo, um marginal

 

Os antigos consideravam idiotés aquele que só se ocupava da vida privada, que recusava a política, que vivia uma vida apartada da atividade política, que dizia não à política. Os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, criadores do canal do Youtube Meteoro Brasil, são também autores do livro Tudo que você precisou desaprender para virar um idiota, publicado pela editora Planeta do Brasil, em 2019. Neste livro, os autores nos ensinam que o idiota é, antes de tudo, um marginal, e prosseguem nos seguintes termos:

 

(...) Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota ancestral. (ibid., p. 11).

 

Mas quem é o idiota hoje? Segundo os autores, o idiota do século XXI está obcecado pela política. Portanto, parece que os idiotas migraram do reduto da vida privada, de onde vociferavam contra a política e contra aqueles que se ocupavam da vida política, para povoar as esferas por onde transitam as questões políticas. No entanto, não basta habitar essas esferas para deixarem de ser idiotas. Como nos fazem ver os autores,

 

 (...) É nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública, mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas participa dela continuamente. (ibid.).

 

Como é possível que participem continuamente da atividade política e continuem a se desinteressar dela? É que o idiota continua sendo hoje, tal como era na Antiguidade, um sujeito autocentrado, egoísta, preocupado exclusivamente consigo. O que difere o idiota da antiga Antenas do idiota das redes sociais como Facebook do século XXI é que o idiota antigo ficava fora da política. Hoje, o idiota tomou de assalto a política. Ele entende a política a partir de seu ego. Como observam os autores, “tudo é feito por ele, para ele, em nome dele”. (p. 12). Por isso, o idiota combaterá qualquer filosofia ou pensamento que considera a problematicidade das questões políticas a partir de valores coletivos. Como bem espirituosamente escrevem os autores, “se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota”. (ibid., p. 12). Repensar, portanto, a política começando pelos antigos gregos se faz ainda mais necessário hoje porque os idiotas infestaram a vida pública com sua artilharia e munições de ódio e desprezo pelo bem comum. E se puderam infestar as esferas da vida pública, sobretudo pelas redes sociais, é que se sentem hoje representados nas esferas de poder. E quando os idiotas representados seguem um líder idiota que governa em nome do poder contra os princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, é a democracia que corre sério risco de extinguir-se. Como nos lembram os autores, “(...) no século XXI, não é com  tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo” (ibid., p. 16). É o que nos ensinam Levitsky e Zilblatt, em Como as Democracias Morrem (2018), “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. (p. 15). O idiota hoje não é bobalhão e importunador; ele é ameaçador e perigoso, ou porque está investido de mais poder político, ou porque seus modos de ser, pensar e viver encontram ressonância naqueles que hoje ocupam o poder de tomar decisões políticas que impactam significativamente nossas vidas. É oportuno lembrar que é no âmbito das significações que se dá a disputa pelo poder na atualidade. A guerra que travamos em torno do acesso ao poder e da limitação do poder daqueles que já o detêm é uma guerra semântica, em nossas sociedades democráticas modernas.

 

 

3.2. A política: uma experiência grega

 

Na Antenas em que viveram Platão e Aristóteles, a política era pensada como uma atividade pedagógica. A política visa à transformação de homens e mulheres em cidadãos. A política é paidéia. Essa é uma concepção de política que nos é estranha a nós, modernos. Na modernidade, a política passou a ser pensada/percebida como aquilo que diz respeito aos cidadãos, à gestão pública, ao governo e aos regimes de governo, à administração dos negócios públicos, e o governante é visto como gestor de uma grande empresa, que é a cidade, o município ou o país. Mas, como tentarei mostrar, é possível pensar a atividade política fora dos quadros do aparelho burocrata-adminsitrativo. É possível e necessário pensá-la como uma missão civilizatória, já que a política confere sentido humano ao mundo, confere significado para a vida dos seres humanos, seja como partes de uma coletividade, seja individualmente. É possível e necessário pensar a política como uma atividade libertária. Mas, por ora, nossa atenção será dispensada à concepção grega de política a partir das lições que nos foram legadas pela pena de Platão e Aristóteles.

O termo política foi cunhado com base na experiência da atividade social desenvolvida pelos homens na Pólis. Embora traduzido por cidado-Estado, o termo pólis designa melhor uma espécie de comunidade (koinonía). Como toda Kononía, a pólis possui seus próprios fins: é a comunidade cívica mais perfeita e adequada para a coexistência humana, lugar necessário do homem como ser racional. Para Aristóteles, o homem é um animal político  por natureza: ele está destinado naturalmente à vida na pólis. O homem é dotado de um instinto natural para a gregariedade. Aristóteles insiste em que a pólis é o lugar onde o homem poderá realizar a sua essência, porque a pólis é uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. A finalidade precisa da pólis é a promoção do bem viver juntos, ou seja, do exercício de um modo de vida pautado pelos princípios da justiça e da virtude, pelo respeito à igualdade (isonomia) e à liberdade (eleutheros) dos cidadãos. Ser cidadão na antiga Atenas é diferente do que entendemos por cidadania hoje. Cidadão, na antiga Atenas, era o homem adulto, livre e nativo que gozava do direito de exercer a atividade política. Não eram cidadãos os metecos (estrangeiros residentes), os estrangeiros não residentes, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres eram aqueles que não condicionavam sua vida à vida de alguém (como os escravos), ou que não condicionavam sua vida às necessidades materiais de subsistência. Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relações assentadas em distinções hierárquicas (como marido e mulher), ou a relações baseadas no comando e na obediência (mestre/escravo; pai/filho).

A pólis será, portanto, a comunidade de cidadãos finalisticamente ordenada para o bem viver juntos (o bem comum). A autoridade desta comunidade é a política, o que significa dizer que a ordem política está baseada tanto na liberdade quanto na igualdade dos cidadãos. Para os antigos gregos, política e liberdade são a mesma coisa, conforme nos ensina Arendt, no seguinte excerto:

 

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e positivamente como o espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares. Sem esses que são meus iguais, não existe liberdade, razão pela qual o homem que domina outros – e que precisamente por essa razão é diferente deles em princípio – é, de fato, mais feliz e invejável do que aqueles que ele domina, embora nem um pouco mais livre. Também ele se move em um espaço onde não há liberdade. (Arendt,  2016, p. 172).

 

 

Para os antigos gregos, portanto, quem domina e quem é dominado são ambos destituídos de liberdade. Isso pode parecer estranho para nós modernos, tão habituados que estamos a associar igualdade ao conceito de justiça, e não ao de liberdade. Hoje, definimos isonomia como “igualdade de todos perante a lei”. Mas, originalmente, isonomia não significava que todos os homens são iguais perante a lei ou que a lei é a mesma para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política. Na pólis, essa atividade era fundamentalmente dialógica, ou seja, assumia a forma de falar com os outros. Assim, isonomia é, essencialmente, o direito de falar e, como tal, é o mesmo que isegoria. Com Políbio, mais tarde, isonomia e isegoria passaram a dizer simplesmente isologia. Para os antigos gregos, quem falava sob o modo do mandar e quem ouvia sob o modo do obedecer não falava nem ouvia realmente; ambos não eram livres, porque estavam submetidos não ao diálogo, mas ao processo do fazer e do elaborar. As palavras funcionam aí como substitutas do fazer algo, de um fazer que pressupunha o uso da força e o ser coagido. Destarte, o déspota não é jamais livre, pois só conhece o mandar, o ordenar. Para falar, ele precisa de outros, seus iguais. Novamente é Arendt quem nos ensina o seguinte:

 

A liberdade não requer uma democracia igualitária no sentido moderno, mas uma oligarquia ou aristocracia muito estritamente limitada, uma arena na qual pelo menos uns poucos, ou os melhores, possam interagir entre si como iguais e entre iguais. Essa igualdade não tem, evidentemente, nada a ver com justiça. (ibid., p. 173).

 

 

Arendt chama de “preconceito moderno” a crença de que a política é uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor. A filósofa lembra que “a política começa onde termina a esfera das necessidades materiais e da força física”. (ibid., p. 74). E ajunta que a política como tal existiu raramente e em tão poucos lugares, “que só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram realidade”. (ibid.). Tornemos a considerar, contudo, a noção de pólis.

A pólis é uma associação política que reunia certo número de comunidades. A pólis era um estado federal, uma reunião de comunidades vizinhas, que compartilhavam entre si recursos e ambições. Em tempos de guerra, estavam submetidas ao poder dos mesmos chefes; nos tempos de paz, só admitiam um só soberano. Situada na tradição clássica, a política é uma ciência que pertence ao domínio da phrónesis (sabedoria prática). A política é de natureza normativa, pois que estabelece os critérios de justiça e do bom  governo, e examina as condições sob as quais o homem pode atingir a felicidade (o sumo bem) na sociedade, em sua existência coletiva. A pólis é uma comunidade organizada segundo a justiça e o princípio da autarkéia (autossuficiência, autogoverno). Ela é a consequência natural e necessária da atividade da razão prática, isto é, da capacidade humana de agir, em consonância com o verdadeiramente bom para nós e os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Convém, a esta altura, esclarecer por que Aristóteles considera o animal político que é o homem como um ser destinado a viver na pólis. Para entender isso, precisamos remontar à concepção de alma em Aristóteles. Concebendo a alma como enteléquia, isto é, ato primeiro e definitivo de um corpo, Aristóteles distingue nela três funções: a) a função vegetativa, como o nascimento, nutrição e crescimento; b) a função sensitiva, como movimento e sensação; c) a função racional ou intelectiva, como conhecimento, deliberação e escolha. Com base nessas três funções da alma, Aristóteles distingue entre uma alma vegetativa, uma alma sensitiva e uma alma racional ou intelectiva. Essa tripartição da alma feita por ele é resultado de sua investigação sobre os seres vivos em geral, no âmbito da biologia e da psicologia. A alma é o princípio da vida, e todos os seres vivos possuem, ao menos, uma alma. As plantas possuem apenas a alma vegetativa; os animais, por sua vez, possuem a alma vegetativa e a sensitiva; por fim, os seres humanos são constituídos de uma alma vegetativa, uma sensitiva e uma racional. A alma racional constitui a essência do homem. Também chamada de intelecto, ela é irredutível ao corpóreo; não se mistura com ele, consoante ensina Reale:

 

A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual: é o divino em nós. (Reale, 2007, p. 89).

 

 

Os seres humanos, porque são compostos de uma alma vegetativa, de uma alma sensitiva e de uma alma racional, não devem viver apenas para satisfazer suas necessidades de natureza animal; devem, sobretudo, viver para o exercício do que há de mais elevado, do que é divino, em sua natureza – a razão, ou seja, a parte de nós que nos capacita para atingir o conhecimento verdadeiro. Ocorre, contudo, que não é suficiente apenas a razão para determinar nossas ações, ou seja, não basta saber o que é o melhor a ser feito. É necessário aprender a querer o que é racionalmente posto como verdadeiramente bom. Em outras palavras, é necessário que os fins que queremos alcançar por meio de nossas ações sejam fins moralmente bons. Aristóteles, por isso, afirma a utilidade da sabedoria prática (phrónesis) na determinação da ação. A phrónesis permite-nos o conhecimento dos princípios que orientam a conduta humana com vistas à felicidade (eudaimonia).

A pólis é, por natureza, anterior à casa e a cada uma de suas partes constitutivas; é governada pela justiça, cuja prática na pólis torna o homem o mais perfeito dos animais. Justiça significa ordem e racionalidade. Ela é um bem para a comunidade. Para Aristóteles, o homem injusto, o homem que vive apartado da justiça e da lei, é a pior de todas as bestas.

Vejamos, doravante, como Platão pensou a atividade política. Platão foi o primeiro dentre os filósofos a elaborar um sistema de pensamento político; e o fez com o propósito de definir a melhor forma de governo para a Pólis[1]. Aristóteles também estava interessado em determinar qual é a melhor politeia, ou seja, Constituição ou forma de Estado. Mas desse tema me ocuparei depois. Concentremo-nos na contribuição platônica para a determinação dos fins da política. Platão queria, portanto, determinar a melhor forma de governo da pólis. Para tanto, era necessário preparar gerações de filósofos em sua Academia para que se tornassem suficientemente aptos para o exercício das funções públicas. Mas também era necessário reunir um conjunto de reflexões teóricas que representariam o remédio a ser aplicado para a constituição de um novo corpo estatal. Ademais, Platão acreditava que esse corpo estatal deveria ser sustentado pela justiça e pela educação, os dois grandes pilares da filosofia política. Destarte, Platão vai propor a aproximação paulatina do filósofo, por meio da teoria (theoría), à realidade política, e sua prática (práxis), de modo que a maioria pudesse se conscientizar da necessidade de a pólis ser governada pelo rei-filósofo. Como político teórico, Platão teve o mérito de ter sido o primeiro filósofo que reuniu, numa síntese vasta e espantosa, a complexidade do funcionamento de todo um sistema político. Como filósofo, como estadista que pretendeu ser, raciona, viaja e elabora, a partir dos dados fornecidos pela experiência, a concepção sublime e original de um Estado Ideal. Expõe-lhe os amplos e sólidos alicerces; põe, a seu serviço, um grupo seleto de homens inteligentes e disciplinados, desapegados de interesses materiais, livres dos cuidados e do egoísmo da família.

Para Platão, a política é uma epísteme (ciência). E o político possui uma epísteme, ou seja, uma ciência que lhe é própria: a ciência das almas. Assim, segundo Chauí,

 

 

Graças às artes e ciências auxiliares, o político educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para que alcance a virtude que lhe é própria). Educados e urdidos os cidadãos, o político tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opostos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repetição contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magistraturas, os cargos e funções públicas. O político é um artesão que fia e tece as almas para que realizem sua areté e a da Cidade. (Chauí, 2002, p. 314).

 

 

A analogia com a atividade do artesão, faz da política, para Platão, uma arte. Arte, em grego, se diz tékne (técnica). Mas, para Platão, o político não se define pela arte de tecer, e sim pela ciência dos laços. Se o político é um artesão, não seria ele um técnico? Deveras, o político pratica uma técnica, apenas na medida em que possui a ciência das almas humanas. Possuindo essa ciência, sua função é tecer os laços humanos. A ciência do político é a ciência dos caracteres humanos, dos seus acordos e desacordos, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os prejudica e os vicia. O político porta uma ciência diretiva, que tem de ser perfeita, não só porque recobre a totalidade dos homens que serão governados por ela, mas também porque é ela mesma a origem das normas, regras e leis. Assim, a ciência do político não se deixa determinar por nada mais além de si mesma. O político não apenas transmite ordens e as faz cumprir; ele as produz: o político é criador das leis fundadoras da pólis. O político, que possui, de fato, a ciência diretiva, ocupa-se da pólis inteira e a governa em sua totalidade. É importante atender no papel que desempenham as leis na constituição da ordem política para os gregos, no seguinte passo que nos dá a saber Chauí:

 

Normas, regras, ordens e leis criadoras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois dotada de alma (as leis, normas e regras). (ibid., p. 311).

 

Quão distante é a nossa concepção moderna de lei!. Nesse matéria, somos herdeiros antes dos romanos e do seu Direito que dos gregos. A lei para nós é comando; ela fixa limites, exige obediência e pune, na figura de seu guardião, o Juiz, aquele que a infringe. Claro é que a lei também é indispensável e necessária ao ordenamento político e jurídico de nossas sociedades atuais, mas não a percebemos como um dispositivo educativo. Faz-se mister acrescentar aqui alguns esclarecimentos. Por isso, interromperei, momentaneamente, o fio discursivo para estabelecer um contraste bem esquemático entre a política grega e a política romana.

O termo política designava (e, em alguns casos, ainda designa), em locais como na Pérsia e no Egito, a atividade própria do governante que comada autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos, quais sejam, as guerras, as edificações públicas, a pacificação interna, etc. Na Grécia Antiga, além dessas atribuições do soberano, lhe cabia, através da atividade política, reunir todos os membros da pólis de modo a formar uma totalidade ordenada e sólida. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é justamente  o que nós, hoje, na pós-modernidade, e especialmente, no Brasil, estamos perdendo: a referência à comunidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à soberania, à lei. A política dos romanos difere fundamentalmente da política dos gregos por servir a fins manifestamente particulares (isso não nos parece bastante familiar?!). A política, na Roma Antiga, deveria servir aos interesses dos gens[2] originais que precisavam assegurar o seu monopólio sobre as riquezas saqueadas ou sobre a exploração da terra. A palavra pátria, tão fartamente repetida pelo discurso bolsonarista, revela ainda essa origem familiar. Ela se forma a partir de pater, que quer dizer “pai” no sentido de “pai de família”, aquele que exercia poder absoluto sobre os filhos, mulher, escravos. Os nobres romanos seriam os patrícios, ou seja, os proprietários. Além destes, havia os escravos e aqueles que só possuíam a sua prole, chamados proletários (do latim proletarius). O proletário era o cidadão romano pobre cuja única utilidade era gerar filhos. O bom governante era visto como um tutor. Assim pensava Cícero, para quem o bom governante deve resguardar os interesses de seus pupilos mais do que aos seus próprios. O Estado romano seria como uma espécie de administrador que tutela interesses dos patrícios, impondo aos demais os interesses destes, seja pelos tributos – “impostos” -, seja utilizando-se dos não proprietários como instrumentos de saque, como guerreiros. Na Roma Antiga, portanto, a atividade política, além de se caracterizar pela dominação do Estado, concernia à relação entre tutor e pupilos. Essa relação era mediada pelo direito romano. O direito romano garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios e a não intromissão do público, do coletivo na esfera do privado, do particular. Ora, não é difícil inferir daí que o Estado moderno, mais amplo e mais burocratizado, servindo aos interesses particulares e setoriais e os estendendo ao conjunto da sociedade, sem qualquer compromisso como agente de realização do bem comum – como Tomás de Aquino batizaria o bem supremo de Aristóteles -, tem seu modelo em Roma. A Roma Antiga não era uma pólis. A atividade política romana nada tinha que ver com as relações cidade-Estado, mas era, sobretudo, um jogo entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia – e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. A atividade política, em Roma, centrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, o qual era uma instituição a serviço de interesses privados.

 

 

3.2.1. A pedagogia política

 

A política, no pensamento de Platão, é indispensável à condução dos negócios públicos e representa o conjunto dos cuidados para com os indivíduos e os cidadãos. Cabia à atividade política o papel de determinar o destino da pólis e de determinar a realização do indivíduo. Para Platão, não é o indivíduo que existe para o Estado, mas o Estado que existe em função do indivíduo. Platão mantém que a legislação é responsável pelas grandes transformações na vida cotidiana e na vida individual. A função da política é educar, preparar os cidadãos com vistas a conduzir a pólis ao melhor. A política, tal como concebida por Platão, deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis), adequada aos fins e em conformidade com o Bem Comum. O grande propósito da política é a educação dos cidadãos para a vida justa na pólis.

Traduzido como República, Estado ou Constituição, a politeia diz respeito aos regimes de governo. Platão julga bom e justo um governo apenas: a aristocracia. Cuida desfavoráveis à pólis: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Aristóteles acompanhava Platão na rejeição à democracia. Na verdade, Aristóteles denunciou os riscos de cada um dos regimes então conhecidos. Propôs para os gregos a politia como o regime de governo mais conveniente, a qual permitiria a alternância de homens capazes de governar e ser governados segundo a lei, mesmo que não sobressaíssem na virtude política. A politia é um termo médio entre a oligarquia e a democracia. Na politia, governaria uma multidão suficientemente abastada, não pobre como na democracia, para poder servir ao exército e se destacar nas habilidades guerreiras. Para Aristóteles, a democracia era uma forma de governo que favoreceria demais os pobres, descurando do bem de todos. Nós, modernos, veríamos nessa concepção negativa de democracia não a democracia como a concebemos mas a demagogia.

O Estagirita definia a Politeia ou Constituição como uma ordem de magistraturas, que estabelecem o seu modo de distribuição e determinam qual é o poder supremo. Magistrado, provém do latim magistratus, e significa tanto a função de governar como a pessoa que governa. Na Antiguidade, o magistrado era um funcionário do Estado investido de autoridade. São magistrados também os membros que participam da administração política ou que integram o governo de um Estado, tal como o Prefeito, o Governador e o Presidente da República. É mais comum, no entanto, atualmente, o uso de magistrado para se referir a juízes, desembargadores e ministros. Cada Constituição, segundo Aristóteles, determina como deve ser distribuída a autoridade política na pólis, como deve ser distribuído o poder. Se este pertence a um só, temos a monarquia; se pertence a um grupo apenas, temos a aristocracia; se pertence a todos os cidadãos, temos a república. Todos estes três regimes políticos são convenientes, a menos que façam predominar o interesse geral sobre os interesses particulares. Mas todos podem correr o perigo de desvios, sempre que precisamente os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral. Destarte, a monarquia pode degenerar em tirania; a aristocracia, em oligarquia ou despotismo dos ricos; e a república, em democracia ou tirania das massas.

 

 

3.2.2. A política, a leis e a função do Estado

 

A política depende das leis para realizar-se e ser praticada. Mas, para os antigos gregos, as leis não se destinam apenas a proibir e coibir; elas também servem ao propósito de estimular, incentivar, educar. Às leis cumpre a função de incitar o político a dispensar os cuidados devidos à coletividade como um todo, bem como aos cidadãos, considerados partes de uma totalidade ordenada. No tocante à função do Estado, cabe a este não somente prover os cidadãos com o mínimo necessário à sua subsistência, como também – e sobretudo – conduzi-los para o bem viver. A verdadeira missão da política reside na educação, e educar as almas é a função do Estado. As almas são educadas para servir aos fins maiores do Estado (o que, para muitos de nós, modernos, defensores do regime democrático fundado na liberdade e pluralidade dos indivíduos, pode nos soar como uma forma de servidão totalitária). Cada tipo de função fixada para um cidadão exige um tipo de educação. O bem-estar da pólis e do indivíduo é determinado pelas condições em que se estruturam as políticas do Estado. A verdadeira função do Estado é desenvolver as habilidades, as aptidões dos cidadãos, a fim de que se tornem os mais excelentes e virtuosos. No pensamento platônico tanto quanto no de Aristóteles, política, educação e ética são indissociáveis. Na obra de Platão, a educação e a cultura constituem os alicerces da construção dos espaços públicos, de sorte que a política e as leis se põem a serviço da realidade educacional e dos ideias de felicidade humana.

 

 

3.2.3. Política e Justiça

 

Também política e justiça são indissociáveis no pensamento político de Platão. A justiça só pode realizar-se no Estado. Quando Platão afirma que ao Estado compete o papel de prover o indivíduo das coisas necessárias à sua subsistência, fica patente que o Estado existe em função do indivíduo. Indivíduo e Estado não se opõem, mas completam-se e se devem auxílio mútuo. O Estado, contudo, deve incumbir-se de tutelar os direitos dos súditos e fornecer aos cidadãos os meios comuns indispensáveis à sua felicidade neste mundo.

Considerar a justiça como uma realização que compete ao Estado é rechaçar a crença de que a ordem política é instituída com atos de irracionalidade violenta. Para Platão, pelo menos, as coisas não se dão dessa maneira (ou não deveriam se dar). Para ele, o arbítrio, a ignorância, a guerra, a força, a violência não são modos de realização do poder nem os meios de ter acesso a ele, nem de conservá-lo. Platão advoga em favor da política justa, cuja conquista e manutenção se devem ao conhecimento. Essa é a base de suas meditações sobre o Estado ideal. O Estado é, para Platão, o meio suficiente para poder realizar a felicidade geral (essa concepção de Estado não corresponde ao modo como realmente o Estado se instituiu e funciona, conforme mostrarei na terceira parte deste trabalho). Para Platão, o Estado deve proporcionar o exercício da virtude maior, deve possibilitar o alcance do Bem Comum. Por conseguinte, o Estado é exclusivamente Estado ético. O mau governo não cumpre sua função; ele não representa aquilo que deve à coletividade.

A justiça, que se faz no Estado, só se realiza quando as partes exercem suas funções conforme lhes foram previamente determinadas. A pólis, para ser justa, tem de funcionar à semelhança de um organismo cujas partes realizam suas respectivas funções. A tarefa de cada um é definida pela política e pelo corpo de dirigentes políticos. Platão pensa a ordem da pólis por analogia com a estrutura da alma. A alma precisa ser governada pela parte racional. As partes da alma estão organicamente a serviço da razão. Nenhuma das partes se sobrepõe às outras. Também a estrutura da pólis deve ser governada pela razão, e não pela paixão. A pólis se organiza em partes que não suplantam umas as outras. Portanto, a ideia de igualdade entre todos os cidadãos repousa na atribuição de funções a cada qual e na realização por cada um dessas funções com vistas ao bom funcionamento do todo. As distinções estabelecidas entre as partes se fazem com base nas aptidões de cada uma e não em critérios aristocráticos. A justiça e a ordem de uma sociedade consistem na distribuição harmoniosa e equânime das atividades ou das funções, no funcionamento harmonioso dessas atividades sob o governo do rei-filósofo, a quem tem a capacidade de determinar o melhor destino para a pólis, porque só ele conhece a ideia do Bem e é guiado por ela. Somente o filósofo é o representante apto para transformar a política no espaço das preocupações mais importantes para o crescimento da alma humana. Somente ele é capaz de aproximar os mortais (os humanos) do imortal (o divino), ligando-os.

 

 

Palavras finais

Antecipando uma característica contrastante, que se esclarecerá melhor na última parte deste artigo, entre a concepção política da Antiguidade e a da Modernidade, convém atender nas seguintes palavras de Arendt:

 

(...) desde a Antiguidade, ninguém acredita que o sentido da política seja a liberdade (...), no mundo moderno, quer teórica, quer praticamente, a política tem sido vista como meio de proteção dos recursos vitais da sociedade e da produtividade de seu desenvolvimento livre e aberto. (ibid., p. 163).

 

Para Arendt, política e liberdade significam a mesma coisa, pois “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito” e a “liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo” são “a substância e o significado de tudo que é político”. (ibid., p. 185). Para Arendt, “a política se baseia no fato da pluralidade humana” (ibid., p. 144) e acrescenta “política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes”. (ibid., p. 145). Só há, portanto, possibilidade de liberdade, para Arendt, no interior do espaço político; fora da política, não há liberdade possível para o homem. Ser verdadeiramente livre é não ser determinado ou movido pelas condições da existência concreta.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

METEORO BRASIL. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REALE, Giovanni. Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

 



[1] Os textos fundamentais em que Platão desenvolve uma discussão sobre a política são República, Político e Leis.

[2] Gens era um termo usado, na Roma Antiga, para referir-se à identidade familiar de um conjunto de famílias ligadas à aristocracia romana.