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sexta-feira, 8 de março de 2013

"Ensinar língua, falar sobre a linguagem é muito mais do que denunciar desvios de norma, martelar usos ultrapassados e policiar neuroticamente o comportamento linguístico dos falantes nativos" (BAR)


                     

      Em presença dos outros – a construção da face


Introdução

A onipresença das palavras

Para onde quer que olhemos, lá estão elas. Não conseguimos escapar à sua onipresença. Estamos imersos nelas e elas estão em nós. Elas nos constituem. Elas nos moldam, nos ensinam, nos modificam. É porque são tão presentes e penetrantes em nosso cotidiano, que, muitas vezes, (ou quase sempre) não nos damos conta de sua importância, de sua função em nossas vidas. Eu me refiro a essas sequências de letras que grafo neste papel ou as sequências sonoras emitidas em sua voz. Essas sequências dotadas de significado. Sim, me refiro às palavras, abundantes! Elas são materiais simbólicos que pertencem à lingua. E novamente é da língua que se trata, de sua relevância, de sua presença constante em nosso cotidiano. Estar em face do outro, e não haver outro modo de definir-se e defini-lo senão no interior do espaço dialógico aberto pela linguagem. Nada mais comum, nada mais fascinante! O Eu que é puro símbolo, pura imagem, que se instaura e se constrói na relação com um Eu-outro, igualmente simbólico e reconstruído nos jogos de interação pela linguagem. Só há Eu e Outro pela/ na linguagem. Não há como ser de outro modo. Seres humanos, homo loquens.
A razão, deusa dos filósofos? De que vale sem a linguagem? A razão é razão discursiva, é razão estruturada em signos. O pensamento pré-verbal, se um dia existiu, foi tão-só para nos indicar o caminho.... Como pensar fora dos quadros da linguagem verbal? Como elaborar raciocínios sem um lingua, sem as palavras e as regras que governam suas construções? Não há pensamento conceitual sem linguagem. Não é possível ao homem ser e viver fora do espaço simbólico. A essência do homem é ser um ser linguístico. Nada mais justo. Nada mais trágico. Trágico porque aprisionado no sentido. E os homens, ah essas criaturas frágeis e até bem estúpidas!, não vivem sem forjar sentidos e vivem a persegui-los, a recriá-los. São eles caçadores de sentidos. Por isso, as ideologias, as religiões, a educação, a cultura, as artes, as literaturas, a política... Tudo que toca ao humano é revestido do simbólico, do sentido produzido no ventre do simbólico.
Deveríamos homenagear a linguagem. Homenageá-la compreendendo-a mais e mais. Deveríamos colocá-la para objeto de pensamento e não submetê-la e aos seus usuários a meros julgamentos de valor. Saber português? O que é saber português? Esta é a pergunta que deveríamos fazer. Todo falante nativo de português sabe falar português e, quando alfabetizado, sabe escrever em português. O que é saber uma língua? É esta a pergunta. Como a língua se relaciona com a cultura, com a percepção-cognição e com a realidade? Outra instigante pergunta. Falar uma língua estrangeira é deter outra visão de mundo? É, de certo modo, ver a realidade de modo diferente? É a mesma a realidade para um falante de inglês e um falante de chinês?
Já se deram conta de que, ao interagir com alguém, buscamos elaborar uma imagem positiva de nós mesmos? E, ao fazê-lo, desejamos que ela seja reconhecida e valorizada? E já se deram conta de que nos esforçamos por proteger esta nossa imagem socialmente construída e que pretendemos seja valorizada, admirada, prestigiada...? A essa imagem que construímos de nós mesmos em face dos outros, dá-se o nome de face. O leitor já se deu conta do impacto emocional negativo que tem uma ofensa ou uma troça? Nessas circunstâncias, sofremos o risco de perdermos a nossa face. No caso da ofensa, ela realmente se perde. E quando chegamos próximos a um estranho para lhe solicitar uma informação? Em geral, buscamos ser polidos, formulando algo como “Por favor, poderia me dizer onde fica a rua tal?”. Essa estratégia de polidez sinaliza que nós reconhecemos a face negativa do interlocutor, ou seja, o seu território pessoal, a sua intimidade, a qual ele, supomos, deseja seja preservada. Ele não quer ser importunado, “invadido” em seu território pessoal.
 Quem nunca viu pessoas em estádios de futebol, ou em seus bairros, diante de uma câmera de televisão (por exemplo, nas reportagens da Rede Globo, no RJ TV) ostentar cartazes com frases do tipo “Filma eu!”? Um professor tradicionalista poderá ter noites e noites de insônia perturbado com o uso inadequado do pronome “eu”, que figura na posição de complemento do verbo. E sua insatisfação não o permitirá reconhecer uma função interessante aí: se o falante escolhe por usar o pronome “eu”, ao invés de “me” nessa função, é porque quer colocar em evidência justamente o eu-cidadão que reivindica melhores condições sociais de existência (no caso de o cartaz aparecer numa reportagem que enfoque problemas enfrentados por moradores de um bairro, por exemplo). Por outro lado, esse  “eu” pode servir para, em outro contexto, pôr em evidência a pessoa mesma que ostenta o cartaz. A posição de complemento preenchida pelo “eu” serve bem ao propósito de alcançar visibilidade numa era em que existir é ser visto. O eu é índice de uma ideologia, de uma visão de mundo, e não meramente uma marca colocada inadequadamente, segundo um cânone gramatical, numa posição sintática.
 É uma pena que ainda haja professores por aí que insistem em reduzir as questões de língua/ linguagem a meras questões do tipo "certo" e "errado".


1. A linguagem em cena

É inegável que os estudos em Linguística, especialmente os desenvolvidos no âmbito da pragmática e da sociolinguística interacional são devedores da contribuição do sociólogo Erving Goffman, que se notabilizou estudando a interação social no cotidiano. Sua perspectiva teatral da atividade linguística consiste na ideia de que cada um de nós, ao interagir por meio da língua, se apresenta e se representa assumindo determinados papeis definidos pela situação em que nos encontramos a fim de alcançar os objetivos perseguidos. Ao participar dos eventos de interação social, cada indivíduo elabora uma representação de si, ou uma imagem de si, com vistas a obter a aprovação dos outros e a encaminhar a interação de tal modo que venha lograr sucesso. Em seu clássico artigo A Elaboração da face (1967), Goffman apresenta e define um conceito que se tornou fulcral nas discussões posteriores sobre as estratégias comunicativas de que lançam mão os interactantes de modo a alcançarem, com sucesso, seus objetivos, qual seja, o conceito de face (que, em inglês, além da acepção de ‘rosto’, também abriga as ideias de ‘dignidade’, ‘auto-respeito’ e ‘prestígio’).
O conceito de face desempenha papel fundamental na teoria de polidez e, posteriormente, foi desenvolvida por dois outros estudiosos da vertente pragmática – Brown e Levinson. Nos estudos desses autores, a noção de face foi expandida, desdobrando-se em dois tipos: face positiva e face negativa. Antes, contudo, de  considerar o conceito de polidez (não faremos incursão na teoria propriamente) e de definir esses dois tipos de face, bem como de compreender como esses conceitos são importantes para a compreensão das formas como as pessoas buscam alcançar sucesso em suas práticas discursivas, devemos nos deter um pouco mais na contribuição de Goffman, que, afinal, foi o precursor nesse terreno. Devemos também entender a concepção de linguagem no interior da pragmática, bem como as leis que governam toda prática discursiva. Voltemos, em primeiro lugar, a Goffman.
Em seu livro A Representação do Eu na vida cotidiana (2011), Goffman nos descreve a situação em que se acha um indivíduo em face dos outros, quando se investe da função de interactante. Um aspecto importante nesta situação é o fato de ele assumir um papel (um papel social, que está, necessariamente, ligado à situação em que se encontra e que envolve direitos e deveres). Todo papel social compreende tarefas que, decorrendo de um status, devem ser desempenhadas por uma pessoa ligada a um grupo nelas interessado. Leiamos com atenção a seguinte passagem:

“Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que apresenta possuir, que o papel que representa terá consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Concordando com isso, há o ponto de vista popular de que o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo “para benefício de outros”.

(p. 25)


Prossigamos um pouco mais com Goffman, que nos ensina adiante:

“Num dos extremos, encontramos o ator que pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade. Quando seu público está também convencido deste modo a respeito do espetáculo que o autor encena – e esta parece ser a regra geral – então, pelo menos no momento, somente o sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a “realidade” do que é apresentado”.
(ib.id.)


Chamo atenção, desde já, para o vocabulário empregado pelo autor, tomado ao domínio discursivo do teatro (ator, encenar, espetáculo, representar, etc.). Para Goffman, usar a linguagem é encenar; participar dos “jogos de linguagem” (para usar uma expressão bastante feliz de Wittgenstein) é interagir assumindo o papel de uma personagem. Essa personagem que se constrói interacionalmente busca causar uma boa impressão nos outros com quem interage. Para tanto, lançará mão de várias estratégias sociocomunicativas, entre as quais a elaboração da própria face.
Note-se que o interactante buscará construir uma realidade de cuja veracidade se convencerá e de cuja veracidade pretende também que os outros se convençam. Lembramos que ele quer causar boa impressão, quer que a imagem de si construída e a própria versão da realidade elaborada em seu discurso seja aceita ou se identifique com a realidade mesma (ou melhor, com aquilo que todos pensam ser a realidade mesma).
Creio suficientes essas considerações da perspectiva de Goffman, para os meus propósitos neste texto. Avancemos um pouco mais. De que trata a pragmática? A pragmática é um domínio dos estudos da linguística que se ocupa da língua em uso. Entram em seu escopo não só as regras linguisticas propriamente ditas, mas principalmente as regras ou convenções sociais que governam as relações entre indivíduos e que influenciam os usos da língua. A pragmática concebe a língua como um lugar de interação social ou como forma de ação intersubjetiva. Pelo uso da língua, os falantes agem uns sobre os outros, de modo a se influenciarem reciprocamente. Um dos capítulos mais ilustrativos da pragmática é o dos atos de fala. Assim, cada enunciado produzido é um ato de fala, é uma expressão verbal de uma ação, necessariamente, social.
O que é uma convenção social? Ela, necessariamente, pressupõe um acordo quanto ao modo de se comportar em uma dada situação social. Convenção social consiste num conjunto de normas, acordos ou padrões aceitos por uma dada comunidade para regular os modos de conduta de seus membros. Por exemplo, num enterro, em nossa cultura, espera-se que demonstremos nosso pesar, que manifestemos nossas condolências e não que contemos piadas. Espera-se que façamos escolhas linguísticas apropriadas à situação, produzindo algo como “Lamento a perda de seu marido”; mas, de modo algum, “já foi tarde este velho ranzinza” (ainda que dele tenha sido esta a imagem que ficou em nossa memória).
A pragmática, portanto, abrigará, em seu escopo, as convenções sociais, também as regras, os valores, os conhecimentos e crenças pressupostos como partilhados pelos interactantes, ao se ocupar dos usos da linguagem. Há também as leis do discurso, ou seja, certo conjunto de normas que devem ser seguidas pelos participantes da interação, tais como o “princípio de cooperação” (Grice, 1960), que Charaudeau denominará de “contrato de comunicação”.
Reza o princípio de cooperação ou contrato de comunicação que os interactantes se esforçarão por conduzir a interação de modo que os objetivos sejam alcançados. Quando me disponho a interagir, viso ao sucesso da interação, ou seja, esforço-me, juntamente com os demais participantes (eles também se esforçam, ou assim é esperado) para que a interação chegue a bom termo. O princípio de cooperação é o alicerce de outras leis do discurso, a saber: a lei da pertinência (a adequação ao contexto sociocomunicativo); a lei da sinceridade (o engajamento do interactante no ato comunicativo); a lei da informatividade (permitindo ao seu interlocutor a produção de inferências); a da exaustividade (o interactante deve fornecer as informações relevantes, de acordo com a situação, evitando lacunas que não podem ser satisfatoriamente preenchidas com base em inferências); a da modalidade (o interactante deve procurar a clareza e a brevidade tanto quanto possível); e a da preservação das faces (o interactante evitará atos de ameaça à face dos outros, ao mesmo tempo em que procurará defender sua própria face e proteger a dos outros). É dessa última lei que me ocuparei nesse artigo.


2. O conceito de face e seu desenvolvimento

Em primeiro lugar, devemos ter em conta que o conceito de face se prende ao de self (eu). Os valores pessoais ligados ao self entram em jogo na interação verbal e serão determinantes das escolhas linguísticas que fará o interactante. Para Goffman entende-se por face “o valor social positivo que uma pessoa reclama para si” e a isso acresce que “toda pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imediata à face que lhe é proporcionada num contato com os outros”.
A face não é apresentada de modo permanente  e estável; ela é um bem passível de ser alterado ao longo da interação. Por isso, ela pode ser ameaçada e deve ser protegida, recuperada, caso seja momentaneamente perdida, ou salva. A face é um constructo teórico de base sócio-interacional. Ela define o território do self que, necessariamente, se constrói nas relações sociais pelo uso da linguagem e que, portanto, está sujeita a toda sorte de ameaças em potencial. A ela estão associados sentimentos e regras sociais que variam de um grupo para outro. São essas regras que definirão quantos sentimentos ou valores a ela se associarão. A face envolve, portanto, emoções pessoais, donde se segue experimentarmos sentimentos de culpa, humilhação, inferioridade, quando nossa própria face é ameaçada ou perdida.
Pode-se compreender a face como uma auto-imagem que o interactante constrói na relação com os demais interactantes numa dada situação interacional. O interactante pretende que essa imagem de si seja aceita e aprovada pelos seus parceiros de comunicação. No referido artigo, Goffman, assim se expressa a esse respeito:

“Uma vez tendo assumida uma auto-imagem, que se expressa através de uma face, há expectativas e modos que a pessoa deve preencher. De diferentes modos, em diferentes sociedades, exigir-se-á que as pessoas mostrem auto-respeito, recusem certas ações por estarem estas acima ou abaixo de si mesmas, ao mesmo tempo em que se esforçam para desempenhar outras mesmo que isto lhes custe muito caro. Ao entrar em uma situação na qual lhe é dada uma face a manter, a pessoa toma a si a responsabilidade de patrulhar o fluxo de eventos que passa diante de si.”

(p. 81)

Urge salientar que, numa interação social, espera-se que um indivíduo não se preocupe em apenas proteger a sua própria face, mas também a dos outros, segundo reza o princípio geral da cooperação. Espera-se que ele tenha consideração pelos outros, sem a qual se verá em sérios problemas. Por exemplo, um indivíduo que não se demonstre desconfortável com a perda da face alheia (como a humilhação de outrem), será tachado de insensível. Goffman ensina que a manutenção da face é condição para que haja interação.
Goffman nos dá a saber dois grandes grupos de ações relacionadas à face: as práticas de defesa da face e as práticas de proteção da face. As primeiras servem como meio de o indivíduo defender a própria face; ao passo que as segundas servem para que ele proteja a face de um ou mais parceiros de comunicação. No primeiro caso, alguém pode ser motivado pelo orgulho próprio, pelo apego à sua auto-imagem, à honra ou ao poder e status em face dos outros; no segundo caso, pode estar emocionalmente ligado ao parceiro cuja face foi ameaçada, ou pode julgar que esse outro é merecedor de proteção moral, ou pode temer hostilidades, caso não tome partido em sua defesa, etc.
Vamos ver, doravante, como os teóricos Brown e Levinson desenvolveram a teoria de faces de Goffman, de modo a aperfeiçoá-la, lançando luzes sobre a compreensão das formas como os interactantes buscam lograr sucesso nos eventos de interação de que participam. Antes de considerar a distinção feita pelos autores entre face positiva e face negativa, é importante que se tenha em conta a importância da polidez para a vida social.
Muitas vezes, podemos pensar a polidez como uma espécie de “verniz social” que torna o indivíduo que dela se vale alvo de prestígio e admiração, muito embora ela não deva ser aplicada a todas as situações, sob pena de conferir ao trato artificialidade. Mas ela tem sua importância e por isso devemos ponderar nas seguintes palavras, colhidas do Dicionário de Análise do Discurso (2006):

“Ainda que nem tudo se reduza a questões de face, ainda que a polidez não se aplique em todas as situações, ainda que ela seja apenas a “virtude das aparências”, a polidez não se reduz a uma simples coleção de regras formais mais ou menos arbitrárias: ela desempenha um papel fundamental na regulação da vida em sociedade, permitindo conciliar os interesses geralmente desencontrados do Ego e do Alter, e manter um estado de equilíbrio relativo e sempre precário entre a proteção de si e a consideração de outrem. Ora, é sobre esse equilíbrio que repousa sobre o bom funcionamento da interação.”

(p. 384, grifo no original)


Tome-se a palavra chave “equilíbrio”, em negrito no texto citado. É desse equilíbrio relativo entre os interesses conflitantes do eu e do outro que depende o sucesso da interação. E uma das formas de alcançar esse equilíbrio é o recurso a estratégias de polidez. Na mesma página, mais abaixo, podemos ler ainda o que se segue:

“A polidez não é nada mais do que uma máquina para manter ou restaurar o equilíbrio ritual entre os interactantes, logo, para fabricar contentamento mútuo (ao passo que sua falta desencadeia reações de brutal descontentamento)”.

(ênfase no original)


Sabemos que a polidez expressa moderação no trato, expressa fineza educacional, ou seja, ela revela quanto nós somos educados e conhecemos os bons modos de comportamento aceitos pela sociedade ou pela comunidade a que pertencemos, e a língua põe à nossa disposição recursos habilitados para a sua expressão, tais como “por favor”, “por gentileza”, “poderia”, etc. Um enunciado como “A senhora, poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?” encerra duas expressões que denotam polidez: uma delas é “a senhora”, que além de marcar polidez, marca distanciamento social e respeito; a segunda é a forma do futuro do pretérito do verbo “pedir”, cuja formalidade linguística mostra que damos ao interlocutor um status de importância (nós supomos que ele é merecedor de um tratamento linguístico mais formal). Podemos entrever aqui a relação da polidez com a preservação das faces. Não nos apressemos, contudo. Quero fazer ver que, se nossas escolhas linguísticas tivessem sido outras, ou seja, se outro fosse o enunciado, provavelmente, nosso interlocutor (supondo se tratasse de um estranho que encontramos na rua), não estaria disposto a nos dar a informação desejada. Imagine se disséssemos algo como “Diz aí, coroa, onde fica a rua....?” É muito provável que essa senhora nos passasse uma reprimenda e se negasse a nos ajudar. Trata-se de uma escolha infeliz e até extrema, mas o resultado não seria menos infeliz, se tivéssemos escolhido “tia” ou se nos limitássemos a tocar-lhe no ombro e lhe perguntássemos, sem qualquer forma de tratamento, simplesmente “onde fica a rua...?”.
Em Brown e Levinson, o conceito de face está intimamente ligado ao de polidez. Além disso, face incorpora, nos estudos desses autores, a noção de território. O território do eu seria a região ou a zona que compreende o corpo, o espaço de situação, de tempo, os bens materiais e simbólicos de que dispõe. Esse território é a sua face negativa.
A face positiva compreende o conjunto de imagens de si mesmos que os interactantes constroem e valorizam e que esperam sejam reconhecidas e valorizadas por outrem. Portanto, a auto-imagem construída socialmente é composta de duas faces: uma negativa, que diz respeito ao desejo de não imposição ou à preservação do território pessoal (à nossa intimidade); e uma positiva, que diz respeito a imagem de si valorizada pelo interactante e que ele espera seja também valorizada e aprovada pelos parceiros de comunicação.
Como vimos, a face, por ser uma realidade simbólica construída interacionalmente, está sujeita a ameaças, de tal modo que os interactantes mobilizarão estratégias que visam a preservar à própria face e a proteger a face dos parceiros. É nesse momento que surgirão os procedimentos de facework (figuração), mediante os quais buscarão neutralizar os atos de ameaça à face, influenciando as decisões dos interactantes.
Segundo Brown & Levinson, há, portanto, quatro faces em cena: as faces positiva e negativa do locutor; e as faces positiva e negativa do interlocutor. São atos de ameaça à face negativa do locutor: fazer promessas, já que elas comprometem o locutor em realizar o que foi prometido, avaliar competências alheias, fazer julgamentos, agradecer, aceitar favores, etc. São atos de ameaça à face positiva do locutor: atos de auto-humilhação, por exemplo, quando o locutor reconhece sua própria fraqueza, de incompetência, de limitações pessoais (que lhe exige pedido de desculpas e admissão de um erro), etc.
São atos de ameaça à face negativa do interlocutor: atos que restringem a liberdade de ação do interlocutor, perguntas diretas sem demonstrar polidez (cortesia), perguntas indiscretas, conselhos que não foram solicitados, ordens, cobrança de um favor que lhe fizemos, etc. São atos de ameaça à face positiva do interlocutor: receber crítica, insulto, desaprovação, ser escarnecido, ser refutado.
Se voltarmos ao nosso exemplo, claro está que, em se tratando de uma pessoa estranha, é desejável, caso queiramos obter sucesso na interação estabelecida com ela e, portanto, caso queiramos ser informados sobre a localização da rua, que evitemos atos de ameaça à sua face negativa (o seu território, à sua intimidade). Ao nos dirigirmos a essa pessoa, estamos, de certo modo, “invadindo” essa zona pessoal que lhe cabe, colocando-a na condição de “alguém que precisa dar uma informação solicitada”. Pedir uma informação é um ato de ameaça potencial à face negativa do outro, por isso, para evitar que se realize a ameaça procuramos lançar mão de recursos linguísticos apropriados a esse fim. Ao fazê-lo, também protegemos nossa face positiva, já que transmitimos uma boa impressão (Goffman nos ensinou sobre a importância das impressões que nossas imagens pessoais causam), ou seja, a impressão de pessoas bem educadas que reconhecem qual deve ser o comportamento linguístico apropriado àquela situação. Por exemplo, sabemos, tacitamente, que aquela pessoa a quem nos dirigimos é uma estranha, que, por isso, não nos dá a liberdade de falar de qualquer jeito, que não deseja ser importunada, que não tem a obrigação de dar a informação que desejamos (afinal, deveríamos saber localizar a rua por conta própria), etc. Esses conhecimentos tácitos estão, pois, inscritos tacitamente no ato de linguagem no momento mesmo em que produzimo-lo adequadamente àquela situação. Em outras palavras, quando me dirijo a essa senhora proferindo “Por favor, a senhora poderia me informar onde fica a rua São Bernardino?”, os saberes tais como: a) eu não a conheço; b) ela não quer ser importunada; c) ela não é obrigada a me informar o que eu quero que me informe; d) ela não concordaria em me transmitir a informação se eu formulasse meu enunciado de qualquer jeito; e) ela pode não saber onde fica a rua, etc. estão nele pressupostos.
Com vistas a levar a bom termo esta exposição, consideremos este pequeno diálogo do seriado A Grande Família, em cuja cena encontram-se Tuco (filho de Nenê e Lineu), Paulão (mecânico e amigo) e Floriano (filho de Bebel e Agostinho), e observemos como se estruturam os atos de ameaça às faces dos interlocutores.
Contexto: os três personagens assistem a um programa do Tuco na televisão.

Paulão – Sabia que essas letra do seu Fofolho mexe comigo assim por dentro?
Floriano – Não sei quem é mais bobo, tio farofa ou o Serginho.
Tuco – Ó moleque, mais respeito comigo, que eu sou seu tio, hein!


http://www.youtube.com/watch?v=l52Z-XrWZzU


Bastam esses três enunciados para que deles colhamos questões interessantíssimas sobre os usos da linguagem. Para os meus propósitos aqui, interessa fazer ver que o Paulão, ao produzir seu enunciado, busca construir uma imagem de si, caracterizada pela sensibilidade. Em outras palavras, ele quer causar a impressão de ser um homem sensível. Ele expõe sua face positiva, que pretende seja reconhecida e valorizada pelos interactantes (Tuco e Floriano). No entanto, ignorando a tentativa de Paulão, Floriano avalia negativamente as duas personagens representadas pelo tio Tuco (o tio farofa e o Serginho), considerando-as “bobas”. A depreciação das personagens é um ato de ameaça à face positiva de Tuco em face do sobrinho. A fim de restaurar sua face, ele produz um ato de fala de comando, ordem, advertência, de modo a exigir dele mais respeito. Ele está autorizado a exercer este ato na condição de seu tio (vê-se aqui a importância do status social como fonte legitimadora da produção do ato de ordenar). Tuco exige do sobrinho respeito e, ao fazê-lo, demarca o grau de hierarquia que fora, momentaneamente, ignorado, defende sua face e, ao mesmo tempo, põe a perder as faces positiva e negativa de Floriano, já que, por um lado, lembra ao menino que ele deveria reivindicar para si uma imagem de alguém que respeita os mais velhos, especialmente quando eles são membros de sua família (face positiva – alguém respeitador, educado); por outro lado, limita seu espaço de ação, já que o adverte de que não pode se comportar daquela maneira, criticando seu próprio tio (face negativa).
Posteriormente, Agostinho, entrando em cena, adverte a todos, lembrando-os de que têm de se ocupar com outras atividades, em vez de ficarem assistindo televisão; no caso de Tuco e Paulão, para Agostinho, eles deveriam estar trabalhando. Nesse momento, Agostinho põe a perder as faces de todos eles, já que os avalia negativamente como ociosos e preguiçosos. Tuco tentará restaurar, recuperar sua face positiva (enquanto artista e trabalhador), justificando o tempo livre.
De tudo que foi exposto, cumpre notar que, ao entrarmos nos jogos de interação, ao aceitarmos jogar segundo as regras desses jogos, estamos constantemente negociando significados, não só os associados aos nossos enunciados, mas também os associados às imagens que fazemos deles, da situação em que nos encontramos e de nós mesmos.
Longe de serem permanentemente harmoniosos, os eventos comunicativos não deixam de exibir tensões, conflitos, que devem, é claro, ser atenuados e, tanto melhor resolvidos, a fim de que a interação seja proveitosa para todos os participantes. É claro que os interactantes buscam sustentar a harmonia durante a interação, mas a arena da qual os discursos são uma representação deixa entrever que a harmonia desejada deve ser sempre negociada e nunca é algo garantido de antemão. 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A comunicação é uma encenação (Charaudeau)


                          
                                 O discurso como encenação

                                                  Como o texto faz falar



Vou-me esforçar por que este texto seja o mais inteligível possível ao leitor, porque estou ciente de que as questões de que me ocuparei podem lhe ser ignoradas. A fim de facilitar tanto quanto possível a compreensão pelo leitor, é forçoso que eu defina, previamente, alguns termos que constituirão o conjunto  de pressupostos mediante os quais se orientarão minhas reflexões. Entre eles, estão:



a) Ato de linguagem – é a ação social na qual o falante, apropriando-se da língua, converte-se em sujeito da produção de enunciados, segundo uma intencionalidade que pode lhe estar ou não transparente.  Todo ato de linguagem evidencia duas condições: o da produção e o da interpretação. Assim é que todo ato de linguagem instaura dois tipos de relações:

- a relação que o sujeito enunciador e o sujeito interpretante estabelecem entre si em face do propósito linguístico;



- a relação que eles mantêm um em face do outro.



Todo ato de linguagem encerra o Explícito, que toca à atividade de Simbolização referencial feita na/ pela linguagem (ou seja, atividade através da qual a realidade é referida e conceituada pela linguagem), e o Implícito, que toca às representações coletivas que nos foram legadas pelas nossas experiências sócio-culturais e que constituem o conjunto de saberes a respeito do mundo. O Implícito é dependente das circunstâncias de produção do discurso.



b) Discurso – constitui a totalidade de um ato de linguagem particular.



c) Texto – é a configuração linguística de um ato de linguagem.



d) real – o real não existe independentemente do discurso. Trata-se de uma instância construída na e pela linguagem em discurso. Ao usar a língua, os protagonistas supõem sua existência exterior ao discurso, de modo que eles agem como se a realidade verdadeira exterior à linguagem existisse. No entanto, o que chamamos de real não é senão produto das representações coletivas produzidas nas práticas sociais mediante o uso da linguagem (em discursos).



e) Circunstâncias de discurso – constitui o conjunto de saberes pressupostos pelos protagonistas da linguagem e que são atualizados quando da interação verbal. Trata-se de

- saberes pressupostos a respeito do mundo: práticas sociais partilhadas;

- saberes pressupostos sobre os pontos de vista recíprocos dos protagonistas.



Cabe ainda considerar que a significação de um ato de linguagem não preexiste à interpretação. A significação é construída pelos protagonistas no interior da prática discursiva. Assim é que nossos enunciados e as palavras não significam fora do discurso. Toda interpretação é uma suposição de intenção (Charaudeau, 2010). Assim, o sujeito interpretante formula hipóteses sobre a intencionalidade do sujeito enunciador. Para ser mais preciso, o sujeito interpretante elabora hipóteses a respeito:



- do saber do sujeito enunciador;



- do seus pontos de vista em relação a seus enunciados;



- do seus pontos de vista em relação ao próprio sujeito interpretante.



O sujeito interpretante não pode nunca deixar de formular hipóteses. Também o sujeito enunciador formula hipóteses sobre o saber do sujeito interpretante.



f) sujeito



Definir o sujeito, no interior da Análise do Discurso, é concebê-lo como um ser do discurso, como um ser social que se inscreve no discurso. O sujeito, assim, não se confunde com o sujeito psicológico. Trata-se do sujeito socio-histórico, interpelado pela ideologia. Ele é caracterizado pela heterogeneidade e pela dispersão. A rigor, devemos pensá-lo como uma função do discurso (a função sujeito). Pensá-lo como heterogêneo significa entender que ele é atravessado por diferentes vozes sociais. Sua identidade não é fixa; está, ao contrário, em constante reconstrução no discurso. Logo, não podemos imaginá-lo como a pessoa de carne e osso, dotada de autonomia quando da produção de seu discurso. O sujeito não é o senhor do que diz, tem apenas a ilusão de sê-lo. Essa “ilusão” é produto da ideologia.

O trecho que se segue ajuda-nos a compreender alguns aspectos do sujeito. Em Autoria, discurso e efeitos do trabalho simbólico (2007), Eni P. Orlandi esclarece-nos a respeito do conceito de sujeito:

“Quando o sujeito fala, ele está em plena atividade de interpretação, ele está atribuindo sentido às suas próprias palavras em condições específicas. Mas ele o faz como se os sentidos estivessem nas palavras: apagam-se suas condições de produção, desaparece o modo pelo qual a exterioridade o constitui. Em suma, a interpretação aparece para o sujeito como transparência, como o sentido lá”.

(p. 65)



O excerto em tela permite-nos entrever algumas noções desenvolvidas na Análise do Discurso que precisam ser explicitadas. A primeira delas é que não só o sujeito interpretante se encarrega de produzir um sentido para os textos produzidos pelo sujeito enunciador, mas este também produz sentidos para seus próprios enunciados. Ao fazê-lo, ele se ilude quanto à transparência desses sentidos. Os analistas do discurso propõem que a linguagem é caracterizada pela opacidade, de tal modo que o sentido não é autoevidente, não está  inscrito nos enunciados, mas são construídos pelos sujeitos em interação, assumindo a forma de efeitos de sentido. O sentido é dependente da formação ideológica, do lugar sócio-histórico de onde se enuncia. Estou evitando falar em formação discursiva, já que não tenho a intenção de me alongar nessa problemática. Mas é certo que os sentidos são produzidos relativamente a uma dada formação discursiva.

Em suma, a noção de sujeito com que operarei a análise de uma amostra de discurso, mais adiante, é a que se acha nas palavras de Fernandes, em Análise do Discurso: reflexões introdutórias (2007):



“(...) o sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo; portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em uma individualidade, em um “eu” individualizado, e sim um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não em outro”.



(p. 33)





1. O discurso como encenação



Interagir pela linguagem é encenar, à guisa do que acontece no teatro. No teatro, o diretor se vale de um espaço cênico,  que inclui os cenários, a luz, a sonorização, os atores e o texto. Os atores visam a produzir efeitos de sentido em um dado público imaginado. Também o locutor se vale de textos para produzir efeitos de sentido num destinatário imaginado.

Todo ato de linguagem coloca em confronto pelo menos dois sujeitos: o enunciador e o enunciatário, que se alternam nessas funções cada vez que têm o turno de fala. Temos, então, um sujeito enunciador e um sujeito interpretante. Entretanto, todo ato de linguagem, enquanto evento de produção e interpretação de enunciados, implica saberes supostos entre os protagonistas, saberes que estão intimamente relacionados às dimensões do Explícito e Implícito, que, por sua vez, são indissociáveis das circunstâncias de discurso.  Todo ato de linguagem pode ser representado na seguinte equação, tomada a Charaudeau (2010):



         Ato de linguagem = [Explícito x Implícito] C de D



Lê-se “C de D” como “circunstâncias de discurso”.



Uma vez designando por EU o sujeito responsável por produzir o ato de linguagem e por TU o sujeito interlocutor desse ato de linguagem, convém entender que:

- O TU não é simplesmente o destinatário de uma mensagem, mas um sujeito que constrói uma interpretação na base de um ponto de vista sobre as circunstâncias de discurso; portanto, também sobre o EU.



- O TU- interpretante não se identifica com o TU-destinatário, ao qual o Eu se dirige. Assim, o TU-interpretante, ao produzir uma interpretação, constrói uma imagem do Eu, que difere da imagem que o Eu fez de si mesmo, quando da produção de seus enunciados.



Em outras palavras, o Eu dirige-se a um TU-destinatário que esse EU acredita (deseja) adequar-se ao propósito de seu ato de linguagem (o Eu faz uma “aposta”). Entretanto, ao descobrir que o TU-interpretante não se identifica com o TU-destinatário imaginado (fabricado), é forçado a concluir que o Eu que produziu o enunciado não é o mesmo EU construído pelo TU; trata-se de um EU suposto (fabricado) pelo TU- interpretante.

Assim, no domínio da produção, se acha um EU que se dirige a um TU-destinatário (fabricado pelo EU); no domínio da interpretação, se acha um TU-interpretante, que constrói uma imagem do EU-enunciador.

Passarei a usar a abreviação EUc (Eu comunicador) para referir-me ao EU responsável pela produção do enunciado; e a abreviação TUd (Tu-destinatário) para referir-me ao TU a quem se dirige o EUc. Correlativamente, distinguirei um TUi (Tu-interpretante) que não se identifica com o TUd e que age independentemente do Eu e que se investe de autor do ato de interpretação; e um EUe (Eu-enunciador) que é uma imagem construída pelo TUi (Tu-interpretante).

Vê-se que o que antes eram dois sujeitos, agora tornaram-se quatro sujeitos, a saber: o EUc, o TUd, o EUe e o TUi.

Convém esclarecer melhor essa configuração cênica do ato da linguagem. Vamos situar cada ser do discurso relativamente aos domínios da produção e interpretação. Situando-nos no processo de produção, o EUe é uma imagem fabricada pelo Euc (EU-comunicador) – ele pode estar explicitamente marcada no enunciado, como em “Eu não quero mais sair”, ou pode estar apagada, como em “Ele disse que você não cumpriu com o acordo”.

Situando-nos no processo de interpretação, o Eue é uma imagem construída pelo TUi (isto é, uma hipótese de como é a intencionalidade de EUc, que se realiza no ato de produção).

É importante reter que, independentemente do âmbito em que nos situemos, o Eue (como também o TUd) é um ser do discurso e que só existe no ato de produção-interpretação. Sendo uma entidade discursiva, ele independe em parte do Euc (e do TUi). O Eue é tão-só uma máscara de discurso utilizada pelo Euc. O Euc é o sujeito agente que se institui como responsável pelo processo de produção do ato de linguagem, em função das circunstâncias do discurso. O TUi é o sujeito responsável pela interpretação que pode não coincidir com a imagem TUd construída pelo Euc.

Como pensar estas oposições relativamente aos efeitos de sentido? Quem é o responsável pela produção dos efeitos de sentido? Resumidamente, convém entender que:



- O Eue (sujeito enunciador) é um sujeito da fala tanto quanto o TUd. É ao Eue que compete produzir efeitos de sentido sobre o TUi. Mas esses efeitos de sentido dependem do TUi, e este é responsável por construir uma imagem do Eue. O Eue é, portanto, sempre uma imagem do discurso que mascara em maior ou menor grau o Euc.



- O Euc (sujeito comunicador) é um sujeito agente, que se situa na esfera exterior ao ato de linguagem, como também o é o Tui (sujeito interpretante). O Euc é o sujeito responsável pela produção de um ato de linguagem e é a relação entre Euc e Eue que produz um efeito de sentido sobre o TUi. O Euc é sempre entendido como uma testemunha do real.



Finalmente, convém ainda ter em conta que todo discurso se estabelece na base de contratos e estratégias. Por contrato, devemos entender que os protagonistas de um discurso estão dispostos a sustentar um acordo sobre as representações linguísticas do corpo de práticas sociais em que se inserem. Há uma expectativa mútua de que ambos se esforçarão para manter o contrato tácito.

Por estratégia, devemos entender que o Euc procura estruturar e encenar suas intenções (o que configura sua intencionalidade) de modo a produzir determinados efeitos – persuasão, sedução, convencimento – sobre o TUi, com o objetivo de levá-lo a identificar-se – consciente ou inconscientemente – com o TUd idealizado pelo Euc.

Consoante ensina Charaudeau, em Linguagem e Discurso – modos de organização (2010),



“(...) falar, em outras palavras, comunicar é um ato que surge envolvido em uma dupla aposta ou que parte de uma expectativa concebida por aquele que assume tal ato: (i) o “sujeito falante” espera que os contratos que está propondo ao outro, ao sujeito-interpretante, serão por ele bem percebidos; e (ii) espera também que as estratégias que empregou na comunicação em pauta irão produzir o efeito desejado”.

(p. 57)





2. Uma amostra de análise



Vejamos, agora, como se pode operacionalizar os conceitos anteriormente discutidos. Segue-se um recorte de uma situação discursiva do programa de televisão A Grande Família.





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Situação: Lineu colocando terra em pratinhos de planta para evitar acúmulo de água que possa atrair o mosquito da dengue.



TUCO – Tá fazendo o que aí popozão?



LINEU – Esses vasos aqui são um convite a dengue. Sabia que é na água parada que a fêmea do mosquito da dengue deposita os seus ovos?



TUCO – Que que adianta depositarem aí nesse vasinho se agora lá tem um lugar muito maior pra fazer isso.



LINEU – Onde? (espantado)



(Lineu e Tuco se dirigem até a casa de Agostinho, onde o encontram enchendo com uma mangueira a sua piscina)



LINEU – Agostinho! Você pode me dizer o que é isso?



AGOSTINHO – Isso aqui, Lineu, isso aqui é uma pscina.



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



TUCO – Popozão, o Agostinho ele escreveu a gente no programa de hospedagem domiciliar do panta. O turista vai ficar hospedado aqui como se ele estivesse num hotel



AGOSTINHO – É hotel com piscina. O senhor tem que ter ó (com o dedo indicador tocando a própria cabeça).





Começarei notando que as personagens assumem cada qual uma identidade social definida em termos biológicos (no caso da relação pai-filho), mas também legais (já que o pai é um papel social assumido por uma pessoa que detém direitos e reconhece deveres). No Pequeno Dicionário de sociologia (2009), lemos no verbete papel social o que se segue:



“tarefas decorrentes de um status, que devem ser realizadas por uma pessoa, ligadas e apreciadas positivamente por um círculo de pessoas”.

(p.109)



A noção de status expressa melhor a noção de pai como um sujeito social portador de direitos e submetido a deveres instituídos por lei. Esse conjunto de direitos e deveres definem seu status social. A identidade social é, portanto, esse conjunto de direitos e deveres estabelecidos e reconhecidos socialmente.

Todavia, o fenômeno da identidade não pode ser pensado fora dos quadros da linguagem. Daí ser necessário estabelecer uma identidade discursiva (ou linguística) A identidade social e a identidade discursiva são indissociáveis. A primeira é reforçada, reiterada, ou ocultada no discurso; e a identidade discursiva se constrói na base da identidade social. Lembramos que a dimensão biológica associado ao status de “pai” é também passível de receber significações pelos atores sociais.

O Eu constrói sua identidade na relação com o outro e vice-versa. Charaudeau ensina que a identidade se constrói na base de um paradoxo: o Eu, para tomar consciência de sua existência, precisa da diferença do outro; mas ao tomar consciência dessa diferença, desconfia dele e sente necessidade de rejeitá-lo, ou de assimilá-lo, eliminando a diferença. No entanto, procedendo assim, não disporia mais da diferença a partir da qual se define; ou perderia um pouco da consciência de sua própria existência, que se constrói na diferenciação. A solução é a regulação sutil entre aceitação e rejeição do outro; valorização ou desvalorização do outro.

A identidade social deve ser designada, a rigor, como identidade psicossocial, já que está impregnada de traços psicológicos. A identidade discursiva configurará o modo de ser assumido por um sujeito no momento mesmo em que produz seu discurso. Assim é que um pai (identidade social) pode comportar-se discursivamente como alguém autoritário, protetor, compreensivo, indiferente, etc. (identidade discursiva). A construção da identidade discursiva depende da mobilização de um dois espaços de estratégias, a saber, de credibilidade e de captação. A credibilidade se vincula à necessidade que tem o falante de que se acredite nele, tanto em termos de valor de verdade de seus enunciados, quanto em termos de sua sinceridade. Há diferentes atitudes discursivas relacionadas a estratégia de credibilidade, mas não vou defini-las aqui.

Basta saber, finalmente, que a captação consiste na necessidade que tem o falante de assegurar que seu interlocutor reconheça seu projeto de intencionalidade, ou seja, acolha suas ideias, compartilhe de seus pontos de vista, opiniões e crenças.

Em suma, como observa Charaudeau, em Identidade social e Identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional (2009):



“(...) a identidade discursiva se constrói com base nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos imaginários socio-discursivos. Ao contrário da identidade social, a identidade discursiva é sempre algo “a construir – em construção”. Resulta das escolhas do sujeito, mas leva em conta, evidentemente, os fatores constituintes da identidade social (...)”.

(p. 5)





A identidade social de Agostinho não conta com traços biológicos definidores (em relação a Lineu e ao Tuco), evidentemente; mas tão-só se define no corpo de práticas sociais, que fixa seu status por uma relação legalizada com a filha de Lineu (Agostinho é marido da Bebel). Agostinho é o genro de Lineu, e seu status social se define na relação que estabelece com ele, Lineu, que reconhece esse status.

O primeiro turno de fala é de Tuco. Ao valer-se da língua, Tuco se investe em sujeito do discurso, instaurando um EUc (responsável pela produção do enunciado). O Euc constrói uma imagem de si, o EUe.  Este EUe não está explícito no enunciado, embora pressuposto. Esse Eue é um sujeito-que-pede-uma-informação. Em outras palavras, o EUe se inscreve como um sujeito que visa a obter uma informação, através de seu ato de linguagem. Lineu é o TUd, a quem se dirige o Euc, ou seja, uma imagem construída pelo Euc. Esse TUd é construído como um ser do discurso em condições de oferecer a informação solicitada pelo EUe. Mas note-se que Lineu, na posição de sujeito interpretante (TUi) não responde diretamente à pergunta do EUe. O EUe é construído de modo diferente pelo TUi, já que a imagem do EUe construída pelo TUi é de alguém que parece ignorar a importância de prevenção contra o mosquito da dengue; em outras palavras, ignora que o que o pai fazia era encher de terra os pratinhos de planta a fim de evitar a proliferação do mosquito da dengue. A imagem do Eue, construída pelo TUi, é, portanto, a de um sujeito ignorante da importância daquela iniciativa, mas também ignorante de um conhecimento dado por uma educação científica, qual seja, o fato de que é a fêmea do mosquito Aedes aegypt que deposita os ovos na água parada.

No segundo turno de fala de Tuco, o EUe assume uma imagem de si como ‘quem-precisa-advertir’ o TUi da imprudência de outra pessoa (no caso, do cunhado Agostinho). O EUe consegue, nesse caso, obter o efeito pretendido, já que mobiliza o TUi a verificar o fato que foi enunciado (TUd coincide com TUi). Lineu, TUi, ao formular a pergunta “onde?” pretende que o EUe lhe mostre o lugar que favoreceria a proliferação do mosquito da dengue. E Lineu se depara com uma piscina de plástico e com Agostinho a enchendo de água.

Lineu, ao pedir explicação para Agostinho sobre o que estava fazendo, instaura-se como um EUe explícito no enunciado (veja-se a marca “me”), que dispõe de poder para interpelar Agostinho. O Eue constrói uma imagem de TUd como ‘alguém que tem de dar explicação sobre o que está fazendo’. Mas TUi não coincide com TUd, porque TUi age de modo diferente do esperado pelo EUe. TUi se coloca na posição de mero respondente. Agostinho responde o óbvio: trata-se de uma piscina. É interessante perceber que Agostinho faz de conta que não entende a intenção subjacente à produção do enunciado “Você pode me dizer o que é isso?”. Claro é que Lineu não estava perguntando sobre a realidade de X (isso). Ele sabia tanto quanto Agostinho que o objeto em questão era uma piscina. O contrato foi, momentaneamente, quebrado, porque Agostinho não reconheceu o fato de que ambos compartilham da mesma representação social a respeito daquele objeto. Nesse momento, fica clara a ideia de que o real não preexiste ao discurso. Isso é patente na sequência do discurso. Vou reproduzi-la baixo:



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



Ambos assumem o objeto ‘piscina’ como um dado de um modelo de mundo compartilhado. Mas, considerado como objeto de discurso, importa ver como a significação desse objeto é construída por cada um dos sujeitos. Do ponto de vista de Lineu, a piscina não é piscina, mas um “foco de dengue” em potencial. Do ponto de vista de Agostinho, a piscina não é puramente piscina, mas um “foco de dinheiro”, ou seja, um meio de obter lucro. Piscina se reveste de duas significações que expressam interesses antagônicos: constitui um ambiente favorável ao mosquito da dengue e representa, assim, um risco à saúde pública; e também um meio de ganhar dinheiro. Lineu tem interesse na prevenção; Agostinho, na obtenção de lucro. A identidade discursiva aí fica bem clara e se constrói numa relação caracterizada por antagonismo de interesses: Lineu é o pai de família responsável, consciente de seus deveres como cidadão (identidade discursiva); Agostinho é o genro irresponsável, (agindo como) um capitalista desinteressado do bem-estar da comunidade, que deseja apenas lucrar.

Na situação discursiva em questão, não importa tanto a referência à piscina como uma entidade pertencente ao mundo propriamente dito, mas como uma entidade que constitui objeto de discurso. Trata-se de duas realidades diferentes, segundo os pontos de vistas dos sujeitos em interação. Essa realidade não é fixa, acabada, imutável e dada a priori. Creio esclarecedoras as palavras seguintes de Marcuschi, em A Construção do mobiliário do mundo e da mente: linguagem, cultura e cognição, que se topa no livro Linguística e Cognição (2005):



“Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a mesma para todo sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a concordância geradora do consenso é o ponto de intersecção que produz a crença objetiva”.



(p. 69)





Há, portanto, uma realidade consensual; mas é preciso romper com uma visão realista do mundo, que supõe uma realidade objetiva acessível e igual para todos. Esse mundo objetivo é mera ilusão. A realidade se constrói por processos sociocognitivos dotados de um investimento linguístico e moldados num dado sistema cultural. Assim é que, ainda segundo o autor



“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião, livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura. O mundo de nossos discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O discurso é o lugar privilegiado da designação desse mundo”.

(id.ibi)







Embora ciente de que o texto já extrapola os limites da conveniência suposta para a publicação em blog, preciso esclarecer o que se deve entender por objetos de discurso. O conceito se situa na problemática da construção da rede referencial do texto, mas implica a relação entre linguagem e realidade, tal como a vim pensando aqui. Volvendo ao trecho em que se acham as contribuições finais de Lineu e Agostinho e recuperando aí o problema da representação da entidade “piscina”, devemos entendê-la como uma entidade do discurso (ou seja, entidade oriunda de uma construção mental, que constitui um referente). No momento em que, por ato de designação, pinça-se uma entidade e a introduz no discurso, cria-se um referente passível de predicação. A rede referencial (ou seja, o sistema de referentes textuais) é montada pelos objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades (referentes) construídas pelo discurso e é nele e por ele que são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. Assim, no trecho em que figura a palavra “piscina”, que reproduzo novamente abaixo,









LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.





o referente “piscina” é categorizado como “foco de dengue” (na fala de Lineu) e como “foco de dinheiro” (na fala de Agostinho). Para efeito de compreensão do discurso, não importa que se trata de um mesma entidade do mundo conhecido segundo uma dada representação coletiva consensual como “piscina”, ou seja, ‘tanque artificial destinado à natação ou ao banho para entreter’. Esse é o sentido dicionarizado, que não está em jogo na interação, já que, como disse, o discurso constrói a significação das palavras. Há um núcleo metadiscursivo (Charaudeau), que consiste neste sentido relativamente estável e consensual, que figura no dicionário e que  se sedimentou com uso feito pelas gerações. Mas ele é apenas uma parte da construção do que é um signo na significação de um ato de linguagem. Não posso ir além disso.

Veja-se, por exemplo, como Carlinhos Cachoeira, enquanto referente de discurso, pode ser reconstruído nos enunciados abaixo:



(1) Acusado de comandar a exploração do jogo ilegal em Goiás, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, foi preso na Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, em 29 de fevereiro de 2012, oito anos após a divulgação de um vídeo em que Waldomiro Diniz, assessor do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, lhe pedia propina. O escândalo culminou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos e na revelação do suposto esquema de pagamento de parlamentares que ficou conhecido como mensalão.



(2) Balanço das atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) mista que investiga relações entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e parlamentares e autoridades apontou que mais da metade dos depoentes convocados se recusou a falar. Segundo o presidente da CPI, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), das 24 pessoas chamadas para depor, apenas 11 falaram aos parlamentares - sendo que duas delas deram depoimentos parciais.





Em (1) introduz-se o referente “Carlos Augusto Ramos” (nome do contraventor), cujo uso produz uma ilusão de neutralidade do sujeito-escritor, após o qual se acha a expressão “ o Carlinhos Cachoeira”, designação com que ficou conhecido na mídia e pela sociedade brasileira. Trata-se da mesma pessoa, mas de dois modos diferentes de representá-la (construi-la). Em (2), aparece o termo pejorativo com que se designa o agente do jogo do bicho. Trata-se de uma representação depreciativa de “Carlos Augusto Ramos”, de duas identidades construídas discursivamente. Em contrapartida, omite-se a identidade dos “parlamentares e autoridades” com que o bicheiro manteve relações, mas obtém-se um efeito de sentido de denúncia contra o fato inadmissível de representantes do poder político envolver-se em negociatas com um contraventor. Um cenário de corrupção muito conhecido dos brasileiros, porque marca indelével de nossa história política.

Queria ter podido abordar outra questão que me parece fundamental para todo leitor que pretende tornar-se mais experimentado no seu trabalho de interpretação e compreensão de texto: a questão do autor. Quem é o autor? Que estatuto discursivo tem ele? Como se estabelece sua relação com o discurso e com o leitor? São algumas das questões implicadas nesse tema e que pretendo (re)visitar em outra oportunidade.