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sexta-feira, 27 de setembro de 2024

"O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades" (Dardot & Laval)

 


   




O neoliberalismo

sua racionalidade e dominação

 

                                 PARTE I

 

O que é o neoliberalismo? O que o torna distinto do liberalismo? O emprego do radical neo para a formação do composto “neoliberalismo” pode levar o leitor incipiente a acreditar que o vocábulo designa uma nova forma de liberalismo, um liberalismo repaginado ou radical. Em certo sentido, o neoliberalismo radicaliza a centralidade do mercado na organização de toda a vida social e econômica; no entanto, conforme mostrarei, o neoliberalismo não advoga a completa abstenção do Estado na vida social e econômica. Consoante observam Dardot & Laval, “o neoliberalismo não é, nem pode ser, no plano da prática “algo” antiestado, como proclamado por doutrinas que são mais ligadas ao libertarismo do que propriamente aos neoliberais”. Rechace-se, portanto, a suposição de que os neoliberais advoguem alguma versão liberal do laissez-faire.

Como seja complexo o fenômeno do neoliberalismo, neste artigo, será forçoso que eu me limite a dar conta da discussão sobre as duas referidas questões apresentadas no limiar do primeiro parágrafo. Ao buscar responder à questão o que é o neoliberalismo, valho-me das contribuições de Dardot & Laval (2016) e de Laval (2020). Este último trabalho é dedicado ao estudo das análises que Foucault (e Bourdieu) fazem do neoliberalismo. A pertinência desse livro de Laval, para os propósitos da presente exposição, é trazer à luz alguns elementos importantes da crítica foucaultiana do neoliberalismo. Ressalve-se, contudo, que não pretendo me aprofundar na investigação do neoliberalismo empreendida por Foucault. Uma vez que existem diferentes abordagens do fenômeno neoliberal, urge dar a conhecer em qual delas situo a presente discussão. Por conseguinte, duas noções fundamentais compõem a concepção de neoliberalismo, de cujo esclarecimento me ocuparei aqui: a primeira noção é a de racionalidade, que nos é apresentada por Dardot & Laval (2016) e elucidada por Casara (2021); a segunda noção provém da pena de Foucault. Trata-se da noção de governamentalidade. À luz desse conceito, deve-se pensar o neoliberalismo como uma forma de governo dos homens por intermédio de uma regulação concorrencial da sociedade.

Fixadas, pois, as linhas diretrizes deste estudo, trago, inicialmente, à baila algumas considerações sobre o liberalismo, momento em que estou interessado em evidenciar o que é o liberalismo, quais são suas proposições e quais fatores determinaram o seu fracasso. Conquanto o fracasso do liberalismo clássico não signifique, em absoluto, seu fim, foi a não realização de suas promessas que levou à implementação de uma política econômica no início da década de 1980, cujo fito era estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, como também a conduta deles. Que promessas foram aquelas? Para que eu possa elucidá-las, far-se-á mister me debruçar sobre a história do nascimento e do desenvolvimento do liberalismo. A primeira parte deste texto é destinada ao desenvolvimento desse tema.

 

 

1.   O liberalismo: sua origem e seu desenvolvimento

 

O liberalismo surge no século XVIII como filho das Revoluções Francesa e Americana. Na segunda metade desse século, surgiram, em alguns Estados da América do Norte, as primeiras Constituições escritas da época moderna, dentre as quais se destacam a Declaração de Virgínia, datada de 12 de junho de 1776, e a da Pensilvânia, de 16 de agosto de 1776. No fim desse século, o constitucionalismo atinge sua culminância com a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e a Constituição Francesa (1791). Essas constituições são a expressão jurídica do liberalismo, que nasce no século XVIII como reação ao Absolutismo real. Tanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos quanto a Declaração do Bom Povo de Virgínia, ao disporem sobre os direitos humanos, patenteiam os pressupostos jusnaturalistas e individualistas que as inspiram. Os direitos à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade reconhecidos nessas Declarações se estendem a todos os indivíduos pelo mero fato de seu nascimento. Tais direitos são considerados universais e invioláveis, e o direito positivo não pode deixar de reconhecê-los e garanti-los. É da Escola Clássica do Direito Natural Iluminista que se originaram, em grande medida, os princípios fundamentais com os quais se edificou o arcabouço da moderna civilização ocidental. Enumerem-se aqui algumas de suas muitas contribuições: 1) a liberdade de ir e vir e de vocação profissional; 2) o começo do exercício da liberdade espiritual e religiosa; 3) o fim da tortura e a humanização da punição no direito penal; 4) o fim dos julgamentos por bruxarias; 5) a preocupação com a segurança jurídica e com o princípio de igualdade perante a lei; 6) a elaboração de princípios gerais do direito internacional.

A dimensão política do liberalismo deu origem à democracia moderna. Esta, por sua vez, surge quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França. A democracia moderna constituiu a formulação politica de que se serviu a burguesia para extinguir os privilégios dos principais estamentos do ancien régime, quais sejam, o clero e a nobreza. Aproveitando-se da moderna democracia, a burguesia logrou também tornar o governo responsável pelo curso de sua vida, enquanto classe. Não se pode, portanto, perder de vista o fato de que a democracia moderna não foi instituída para a defesa do pobre contra a minoria de proprietários, mas sim para a defesa desses proprietários ricos contra o antigo regime de privilégios estamentais e de governo despótico. Com a democracia moderna, limitou-se amplamente os poderes governamentais, sem que houvesse qualquer interesse em defender a maioria pobre da exploração pela minoria rica.

Tendo em vista seu aspecto político, o liberalismo nos legou a democracia, em cujo cerne está o princípio jurídico segundo o qual todos são iguais perante a lei. Somente a lei pode limitar o poder. Em seu aspecto econômico, o liberalismo assenta na convicção de que a harmonia social só poderia se realizar por meio de um mecanismo de regulação única – o mercado. Antes de fazer incursão no terreno temático do sistema mercantilista e nos meandros do liberalismo econômico, convém definir o que entendo por mercado, já que esse termo aparecerá muitas vezes, ao longo desta exposição.

A grande imprensa propala diariamente que “o mercado está nervoso”, “o mercado reagiu negativamente ao novo projeto de política fiscal do governo”. Quase todas as pautas políticas e econômicas em que se apoia o discurso midiático fazem alguma referência ao mercado. Mas, afinal, do que estamos falando quando falamos de “mercado”? Dowbor (2013) nos ensina que, na ciência econômica, o conceito de mercado recobre os mecanismos de concorrência que possibilitam aos milhares de agentes econômicos competir em condições de igualdade nos espaços de trocas comerciais. Esse conceito originário de mercado tem um cunho democrático, para o desagrado de grupos de poderosas corporações que passaram a adotar o termo mercado para se referir ao domínio desses grupos poderosos a partir de mecanismos de controle chamados managed market (mercado gerido). Mais recentemente, com o poder avassalador dos grupos de especulação financeira, o termo mercado passou a designar o núcleo de grandes investidores institucionais. Sempre que a grande imprensa informa sobre o nervosismo do mercado, ela está se referindo ao mercado nessa acepção. Contudo, conforme nota Dowbor, o nervosismo, nesse caso, é de apenas meia dúzia de grupos financeiros. Para fins deste estudo, usaremos o termo mercado na acepção econômica originária que diz respeito aos mecanismos reguladores da concorrência e competição entre os agendes econômicos nos espaços sociais de trocas comerciais.

Convém, também, chamar a atenção para o fato de que o uso da expressão liberalismo clássico, definida à luz da filosofia, diz respeito à tradição de pensamento que situa no centro de suas preocupações a liberdade individual. Ao liberalismo clássico cabe responder às questões prementes acerca das liberdades individuais, dos direitos civis, da separação entre os poderes, da tolerância política e religiosa, entre outras. Desceremos a mais considerações sobre o liberalismo clássico, à luz das contribuições da filosofia política, evocando a autoridade de John Locke, mais adiante. Por ora, cumpre retornar ao ponto em que nos propúnhamos investigar a formação do sistema mercantilista.

Retome-se aqui a centralidade do mercado na proposta de organização de uma sociedade liberal. Tendo-se organizado o Estado político, nos séculos XVII e XVIII, Inglaterra, França e Holanda passaram a se preocupar em se tornar ricas e poderosas. Para alcançar tal objetivo, era necessário elaborar teorias e leis que levariam à formação de um sistema mercantil. Espelhando-se na Espanha, talvez o país mais rico do mundo no século XVI, graças à extração de ouro e prata de suas colônias, os demais governos passaram a acreditar que também enriqueceriam seus países se possuíssem ouro e prata. Assim, não hesitaram em formular leis com o fito de se apropriar desses metais e conservá-los em seus limites territoriais. Os mercantilistas buscavam impulsionar as vendas internacionais, as quais deveriam, segundo pensavam, ser maiores do que as compras. Eles se propunham estimular a indústria por todos os meios possíveis, visto que seus produtos valiam mais do que os produtos agrícolas, o que justificaria a aquisição de mais metais nos mercados estrangeiros. Os produtores que se empenhavam no comércio de exportação recebiam prêmios. Altos impostos incidiam sobre a importação de produtos manufaturados. Os governos chegaram a proibir a importação de certos bens. Eles não hesitavam em lançar mão de todos os meios possíveis para atrair trabalhadores estrangeiros competentes o bastante para introduzir no país novos ofícios e métodos de trabalho. A esses trabalhadores concederam-se muitos privilégios, tais como isenção de impostos, moradia gratuita, monopólio por certo tempo no setor a que se dedicassem e até mesmo empréstimos de capital para a aquisição de equipamentos necessários.

Os mercantilistas lograram consolidar o poder e a riqueza nacionais, sem, contudo, descuidarem da produção de cereais, para assegurar a alimentação do povo que, dessa sorte, estariam fortes para enfrentar a guerra. Acalentados pela crença de que um país só poderia desenvolver seu comércio às expensas do outro, os mercantilistas se empenharam em reduzir o comércio e a indústria dos Estados rivais, fato que tornou a guerra uma consequência necessária da política mercantilista.

Em Riqueza das Nações, Adam Smith, não sem veemência, assinalava os limites impostos pelo mercantilismo à liberdade de comércio. Segundo o autor, os comerciantes já não aceitavam mais o mercantilismo e passaram a desejar uma parte dos grandes lucros auferidos pelas companhias que detinham o monopólio comercial. Tendo sido privados desses lucros, eles reivindicaram o livre comércio, defendido especialmente pelos fisiocratas, na França. Nesse tocante, pondera Azevedo (2018, p. 35):

 

 

(...) era de se esperar que a oposição ao mercantilismo surgisse na França, pois nesse país o controle estatal da indústria atingira seu mais alto nível, cerceado por regulamentos minuciosos que continham uma rede de pode e não pode inaceitável.

 

 

O governo francês chegou a regulamentar o comprimento e a largura de cada peça de tecido, e também o número de fios que ela deveria conter. Outrossim, determinou o preço da mercadoria. Adam Smith, estribando-se em fatos como esses, opunha-se terminantemente ao mercantilismo. Antes dele, os fisiocratas rejeitavam aquela regulamentação excessiva, advogando a eliminação de qualquer mecanismo de controle sobre a atividade econômica. Mas a influência de Smith foi muito maior.

 

1.2.    O liberalismo e o laissez-faire

 

Destinarei a próxima subseção ao tratamento do liberalismo à luz da filosofia política. Por ora, concentro-me no exame do liberalismo econômico e, desde já, enfatizo que ele não se reduz ao laissez-faire. Começo por referir as palavras de Dardot & Laval (2016, p. 66), que lançam luzes sobre o aspecto central do liberalismo econômico.

 

(...) o liberalismo econômico é o princípio diretor de uma sociedade em que a indústria é baseada na instituição de um mercado autorregulador. É verdade que, uma vez que esse sistema esteja mais ou menos realizado, necessita-se menos intervenção de certo tipo. Contudo, isso não quer dizer, longe disso, que o sistema de mercado e a intervenção sejam termos que se excluam mutuamente (grifos meus).

 

Urge dizer que a crença no mercado autorregulador é uma ilusão. A experiência histórica prova que não há crescimento ou desenvolvimento econômico sem algum tipo de intervenção estatal na economia. Uma sociedade de laissez-faire é uma quimera. O ponto, contudo, que deve ser destacado no excerto supracitado é que uma sociedade de mercado não é incompatível com mecanismos de intervenção do Estado. Os partidários da economia liberal exigem, sem hesitar, a intervenção do Estado, sempre que inexiste um sistema de mercado. Essa intervenção estatal é necessária para criá-lo e mantê-lo.

Encetei esta subseção afirmando que o liberalismo econômico não se reduz ao laissez-faire, expressão francesa que significa “deixem-nos em paz”, “deixem-nos fazer”.  Em economia, quer-se com esta frase exprimir que o mercado deve ser livre de toda e qualquer intervenção do Estado na economia. Não obstante, nenhuma economia do mundo funciona ou gera crescimento, ou desenvolvimento social, se submetida ao regime de mercados “livres”. Antes de me ocupar dos diferentes tipos de intervenção do Estado, a que recorrem os liberais, especialmente nos momentos de crise econômica, como a grande crise imobiliária de 2008, que fez os neoliberais se socorrerem do governo, desenvolverei um pouco mais o entendimento do laissez-faire.

Quem cunhou a expressão laissez-faire foi um defensor da fisiocracia, o comerciante francês Vicent de Gournay (1712-1759), fundador da escola dos fisiocratas, que não compreendendo por que um cidadão tinha de obter o direito de qualquer coisa que pretendesse vender como condição para realizar a venda. Ademais Vicent não aceitava que o vendedor tivesse de pagar para tornar-se um participante de uma corporação de ofício. Insatisfeito, portanto, com esta situação e querendo que a França se livrasse dessa forma de regulamentação, esbravejou “laissez-faire”, que, em tradução livre, significa “deixem-nos em paz”. Não é absolutamente equivocado associar o liberalismo econômico com o laissez-faire, uma vez que, historicamente, o liberalismo é uma herança da Revolução Comercial, ou seja, ele só foi possível devido à transição da economia estática e contrária ao lucro, que marcou a Idade Média, para o dinâmico regime capitalista dos séculos XV e seguintes. No que tange à importância histórica da Revolução Comercial para o surgimento do liberalismo, oportuna é a lição de Azevedo (2018, p. 37), reproduzida abaixo:

 

A Revolução Comercial atingiu sua maior amplitude com as grandes descobertas dos séculos XV e XVI. Dentre suas causas, revela o monopólio comercial do Mediterrâneo exercido pelas cidades italianas de Gênova, Pisa e Veneza, o que obrigava a Península Ibérica a pagar altos preços pelas sedas, perfumes, especiarias e tapeçarias importadas da Ásia.

 

Como esse monopólio cerceava a ambição dos espanhóis e dos portugueses de apropriar-se dos lucros do comércio com o Oriente, eles iniciaram as viagens ultramarinas com vistas a buscar uma nova rota para esse comércio. Como se vê, o liberalismo surge da necessidade que os homens de negócios tinham de obter lucros sem que tivessem de enfrentar condições reguladoras limitantes. No entanto, a Revolução comercial não instituiu a tão almejada e sonhada sociedade de livre mercado. O liberalismo não pode sobreviver sem algum tipo de intervenção estatal na economia. Há que se considerar, doravante, a distinção entre tipos de intervenção do Estado.

 

1.2.1.    Tipos de intervenção do Estado                   

 

Dardot & Laval (2016) ensina-nos que há diferentes tipos de intervenção do Estado na economia. As motivações para as diferentes formas de intervenção do Estado podem dizer respeito a princípios heterônomos à mercantilização ou podem ligar-se a princípios de solidariedade, compartilhamento e respeito a tradições ou a preceitos religiosos. Quando uma intervenção é realizada segundo esses motivos, ela constitui um contramovimento à tendência do mercado. Há, por outro lado, intervenções que visam à inserção de setores inteiros de produção e da vida social no mercado. Essas formas de intervenção se realizam por meio de políticas públicas ou despesas sociais que servem, ao mesmo tempo, à proteção das empresas capitalistas e à promoção de seu desenvolvimento.

Polanyi, em seu clássico A grande transformação (1944), viu na contradição entre o movimento mercantil e o contramovimento a causa da destruição do liberalismo econômico. Nesse livro, Polanyi defende a tese de que o Estado liberal, no século XIX, produziu duas ações cujas consequências foram contrárias entre si. Por um lado, atuou no sentido de criar mecanismos de mercado; por outro lado, criou mecanismos que o limitavam. Por um lado, apoiou o movimento de formação de uma sociedade de mercado; por outro lado, reforçou o contramovimento de resistência da sociedade aos mecanismos de mercado.  Aqui não se pode olvidar o seguinte: o próprio modelo de sociedade gerado pela Revolução Industrial não se poderia sustentar sem a intervenção do Estado no mercado. Apresso-me em elucidar este ponto da presente discussão.

A Revolução Industrial só foi possível com a condição de constituir-se um sistema de mercado em que os homens deveriam se conceber como vendedores de serviços cujo fim era a aquisição de recursos vitais indispensáveis à troca monetária. Eles seriam forçados a se tornar vendedores sob o aguilhão da fome. Para que assim se situassem nessa forma de sociedade, seria necessário que a natureza e o trabalho se tornassem mercadorias, que as relações entre os homens e deles com a natureza assumissem a forma de relações mercantis. Consoante observam Dardot & Laval (2016, p. 63), “para que a sociedade inteira se organize de acordo com a ficção do mercado, para que se constitua como uma grande máquina de produção e troca, a intervenção do Estado é indispensável (...)”. (grifos meus). A intervenção do Estado é indispensável não só no domínio legislativo, onde se fixa o direito de propriedade e se estabelecem contratos, como também no plano administrativo, onde se instauram, nas relações sociais, regras variadas, imprescindíveis ao funcionamento do mercado concorrencial. No domínio administrativo, é função do Estado também exigir o respeito a essas regras. Para Polanyi, portanto, o chamado mercado autorregulador origina-se de uma ação deliberada da qual um dos principais teóricos foi Betham.

O que se destaca nessa paisagem de reflexões é que o laissez-faire, consoante Polanyi, não era dotado de uma espontaneidade natural; tampouco os mercados livres, tão almejados pelos liberais, poderiam surgir se fossem abandonados a si mesmos. Entre 1830 e 1850, assistiu-se a uma explosão de leis ab-rogando regulamentos restritivos, sem bem que também houvesse um aumento exponencial das funções administrativas do Estado, então estruturado em torno de uma burocracia central habilitada para cumprir as tarefas estabelecidas pelos partidários do liberalismo.

Se um utilitarista típico vê o liberalismo econômico como um projeto social que deve realizar-se para o máximo de felicidade do maior número de pessoas, o laissez-faire estava longe de constituir um método adequado para realizar a prosperidade econômica. Não obstante, era a coisa que deveria ser realizada.

Considere-se agora o que Polanyi entendia como o segundo paradoxo do Estado liberal. O primeiro paradoxo já o apontei: trata-se da dupla ação levada a efeito pelo Estado liberal. Segundo Polanyi, esse Estado liberal, administrativo, ao mesmo tempo criador e regulador da economia e da sociedade de mercado, tornou-se, sem que seus agentes se dessem conta disto, um Estado administrativo que reprime a dinâmica espontânea do mercado e protege a sociedade dos abusos deste. Em suma, Polanyi nos mostra que, enquanto a economia do laissez-faire era produzida pela ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes surgiram espontaneamente, de sorte que o laissez-faire era planejado, mas a planificação não o era. Lembram Dardot & Laval que, após 1860, e para o descontentamento de Herbert Spencer, um “contramovimento” generalizou-se em todos os países capitalistas, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Inspirado por ideologias as mais diversas, esse contramovimento buscava satisfazer a necessidade de “proteção da sociedade”. Fazia-se necessário reagir contra as tendências destrutivas do mercado autorregulador por meio do protencionismo comercial nacional e do protencionismo social, que se tornaram vigentes no século XIX.

Dardot & Laval (2016) instam em que não se ignore um duplo movimento na história da formação do mercado capitalista: um deles levou à criação desse mercado; o outro, em sentido contrário, acarretou a resistência a ele. Esse último movimento de autodefesa espontânea contra as forças destrutivas do mercado prova que uma sociedade de mercado total é impossível, que os sofrimentos que acarreta são tão pungentes que os poderes públicos são obrigados a erigir “diques” e “muralhas” para conter aquelas forças.

Um interlúdio se impõe neste momento. É preciso mostrar que o mercado se caracteriza por um desequilíbrio que lhe é inerente. Todo desequilíbrio decorrente do funcionamento do mercado ameaça a sociedade a ele submetida. Inflação, desemprego, crise de crédito internacional, crush financeiro são alguns dos fenômenos econômicos que, afetando diretamente a sociedade, demandam iniciativas protetoras das autoridades políticas.  Se as autoridades políticas que vieram à cena histórica após o fim dos conflitos da  Primeira Guerra Mundial, tivessem colhido a lição disponível já no período anterior à Guerra, elas talvez renunciassem ao projeto de reconstrução de uma ordem liberal mundial assaz frágil, que cumulava tensões entre o movimento de reconstrução do mercado em nível mundial e o movimento de autodefesa social. É importante ressaltar que essas tensões, ligadas à contradição interna à sociedade de mercado migraram da esfera econômica para a esfera social, e desta passaram para a esfera política, chegando a infestar os âmbitos nacional e internacional e a provocar, por fim, a reação fascista e a Segunda Guerra Mundial. Conforme notam Dardot & Laval (2016), os anos de 1930 e 1940 se caracterizaram pelo desaparecimento da civilização de mercado. Antes, nos anos de 1920, houve uma tentativa desesperada de restaurar o mercado autorregulador.

Polanyi observa que o liberalismo econômico dos anos de 1920 buscou o restabelecimento de um sistema autorregulado que eliminasse todas as políticas intervencionistas, então consideradas ameaçadoras da liberdade dos mercados de terra, trabalho e moeda. Entretanto, o surgimento do fascismo na década de 1930 evidenciou o fracasso da iniciativa dos liberais de 1920. Sobre esse tema, esclarecem-nos Dardot & Laval (2016, p. 66) o seguinte:

 

O imperativo da estabilidade monetária e da liberdade do comércio mundial levou a melhor sobre a preservação das liberdades públicas e da vida democrática. O fascismo foi o sintoma de uma “sociedade de mercado que se recusava a funcionar” e o sinal do fim do capitalismo liberal tal como fora inventado no século XIX.

 

Dardot & Laval, no entanto, divergem de Polanyi  quando este decreta o fim do liberalismo econômico. Segundo os autores franceses, o erro de Polanyi consistiu em subestimar um dos principais aspectos do liberalismo, embora ele mesmo o tenha sublinhado: o liberalismo não é incompatível com mecanismos de intervenção. Mas há que distinguir, segundo os autores, entre diversas formas de intervencionismo do Estado, a intervenção de criação de mercado e a intervenção de proteção da sociedade. Existe ainda um terceiro tipo de intervenção estatal, a saber, as intervenções de funcionamento do mercado. Estas últimas, conquanto não se diferenciem facilmente das outras formas de intervencionismo, são constantemente empregadas no governo liberal. Destinadas a assegurar a autorregulação do mercado, tais formas de intervenção visam à obediência do princípio de concorrência pelo qual se rege o mercado. Polanyi cita como exemplo dessas intervenções as leis antitrustes e a regulamentação das associações sindicais. Nos dois casos, o objetivo é limitar a liberdade de coalizão a fim de garantir o melhor funcionamento possível das regras de concorrência. O autor também refere o papel desempenhado pelo teórico liberal Walter Lippmann, que não hesitou em sacrificar o laissez-faire para salvar o mercado concorrencial.

 

1.3.     O liberalismo à luz da filosofia política

 

Do ponto de vista da filosofia política, chamamos de liberalismo clássico uma tradição de pensamento em cujo cerne reside a preocupação com as liberdades individuais. Já me referi ao conjunto de preocupações recobertos pela agenda política do liberalismo; mas convém recordá-las aqui: 1) ênfase na defesa dos direitos dos cidadãos à sua vida e à sua propriedade; 2) defesa da tolerância política e religiosa; 3) luta pela instituição de um sistema político que não centralize todo o poder em sua mão. O liberalismo clássico tem sua inscrição histórica e o começo de seu desenvolvimento nas reflexões de filósofos como Thomas Hobbes, no século XVII, até Aléxis de Tocqueville, no século XIX.

É importante, a esta altura, não descurar do fato de que, em cada momento político, um ou outro pensador liberal privilegiou um aspecto do liberalismo em detrimento de outros. Não obstante, os três traços prototípicos do liberalismo – defesa do direito dos cidadãos à sua vida e à sua propriedade, defesa da tolerância política e religiosa; instituição de um sistema político descentralizado – compõem um padrão que define a essência do pensamento liberal clássico. O liberalismo clássico não é capaz, contudo, de oferecer respostas aos nossos problemas atuais. O capitalismo financeiro, fase dominante do capitalismo mundial, é fundamentado na racionalidade neoliberal, de modo que todos nós, capitalistas ou trabalhadores, estamos submetidos a uma nova lógica do capital. Disso, no entanto, ocupar-me-ei mais tarde. Nesta etapa de minhas análises, gostaria de traz à luz a importância do trabalho de John Locke (1632-1704), a quem inaugura e consolida o pensamento liberal na Filosofia Política. Os grandes temas do liberalismo, tais como o respeito à vida e à propriedade, a tolerância política e religiosa e, sobretudo, a separação dos poderes do Estado, princípio básico de nossas democracias modernas, foram por ele apresentados e discutidos. Toda vez que, hoje, recolocamos a questão acerca das liberdades civis e políticas, fazemos ecoar, mesmo que sem consciência disto, as ideias defendidas por Locke e seus seguidores.

John Locke foi um contratualista, tal como o foi Hobbes, ou seja, ele também preconizava a existência de um Contrato social que teria dado origem ao Estado. Todavia, ao contrário de Hobbes, Locke acreditava que o estado de natureza não era uma condição desprovida de lei ou de segurança. No estado de natureza, vigeriam leis naturais, estabelecidas por Deus ao ser humano. Deus lhes ditaria como o homem deveria agir e o que lhe era proibido fazer. Nas palavras de Brito (2012, p. 123),

 

O direito natural indicava que promessas tinham de ser cumpridas, e cada um já tinha direito à sua vida e aos frutos do seu trabalho. A passagem, via Pacto, do estado de natureza para a Sociedade Civil se faz para melhorar e garantir melhor as benesses do Estado de Natureza, sendo, portanto, mais um aperfeiçoamento do que uma ruptura.

 

Como expoente do Liberalismo, Locke se notabilizou como defensor da responsabilidade do Soberano em face de seus súditos. O filósofo inglês rechaçava tanto o direito divino dos reis, concedido por Deus, quanto a visão hobbesiana de um Soberano cujo poder absoluto era efeito de um Contrato. Para Locke, o Soberano é mais um gerente do Estado do que a instância que concentra em si todo o poder político e jurídico. Deveras, a figura do Soberano é imprescindível, mas seu poder deve ser controlado. Para controlá-lo, Locke advogava a separação dos poderes do Estado em dois: ao Soberano cabia executar as leis e realizar os julgamentos das infrações por ele mesmo cometidas. Nesse caso, o Poder Executivo e o Poder Judiciário estavam unidos na pessoa do Soberano. Ao Poder Legislativo caberia fazer as leis. Este Poder representaria o povo, e este se comporia de homens proprietários que escolheriam livremente seus representantes. Vê-se que Locke não chegou a propor o  sufrágio universal, graças ao qual todas as pessoas passam a ter direito ao voto. Locke, todavia, acreditava que sua proposta oferecia uma melhoria do sistema politico vigente.

Avancemos em nossa compreensão do tipo de liberalismo formulado por Locke. Convém dar a conhecer o que ele entendia por propriedade. Estou, especificamente, interessado em mostrar como Locke defende o direito natural da propriedade – entenda-se da propriedade privada. Por propriedade, Locke não só entende a posse de bens por um homem, mas também a posse que cada homem tem de sua pessoa. A pessoa de cada ser humano é uma propriedade sua, e cada posse que ele tem em sua própria pessoa constitui um bem inalienável. São propriedades do homem também o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos. Para Locke, como a terra é um bem concedido aos homens por Deus, de forma indiscriminada, ela é, portanto, um bem comum a todos os homens (os latifundiários, no entanto, não concordam com Locke!). É claro que Locke estava atento ao fato de que o trabalho sobre determinada porção de terra dá àquele que realiza o trabalho o direito de fixar sua propriedade, separando essa porção do que é comum. Segundo Locke, o que dá início ao que chamamos de propriedade privada é a ação de tomar qualquer parte daquilo que é comum, de retirá-la do estado em que a natureza o deixou.

Para o filósofo inglês, o trabalho é que dá direito à propriedade a quem faz uso conveniente daquilo que todos os homens possuem em comum, que é a natureza. A natureza fixou os limites para a propriedade privada, de sorte que ninguém pode dispor de tudo, e todos podem ter tudo de que precisam, visto que a mesma lei natural que nos concede a propriedade também a limita. O ser humano, portanto, na opinião de Locke, em estado de natureza, deve defender sua propriedade do ataque de outros homens cobiçosos. Ademais, ele dispõe do poder executivo da lei de natureza, isto é, do poder de julgar e punir quem quer que atente contra a sua propriedade e a de outros. Locke insiste que o estado de natureza, conquanto fosse um estado de perfeita liberdade, não é um estado de licenciosidade, visto que ninguém tem o direito de destruir qualquer outra pessoa ou a si mesma. Como seja a lei da natureza a referência em relação à qual devemos determinar nossa conduta, todos são obrigados a preservar sua própria vida e a vida de toda a humanidade. Aquele que transgride a lei natural se torna inimigo da humanidade e de todos que se ocupam de protegê-la. Por isso, todos esses que vivem sob a obediência à lei têm o direito de castigar o infrator, caso em que se tornam executores da lei.

Em que pese a existência de direitos e leis naturais no estado de natureza, a instituição da sociedade política se faz, necessariamente, como resposta ao problema que consiste no poder de que todos os homens são dotados para começar a julgar em causa própria, situação esta que introduz na sociedade um estado de confusão e desordem. Consoante ensina Brito (2012, p. 126), “é contra esse mal que a sociedade política deverá servir de remédio”. A instituição de uma sociedade política pressupõe que cada um dos membros de uma comunidade renuncie ao poder executivo da lei de natureza, transferindo-o às mãos da própria sociedade que formará um corpo político que agirá em conformidade com a vontade da maioria. Para Locke, somente dessa maneira se pode instituir um juiz imparcial que julgará, em consonância com os dispositivos legais ou as conveniências da lei, todas as disputas e os impasses que poderiam fazer surgir um estado de guerra. Para Locke, o homem abandona o estado de natureza para assegurar sua propriedade e protegê-la contra qualquer ataque de terceiros. O objetivo principal da adesão do homem ao Estado político é, portanto, a preservação de sua propriedade. Essa tese marca fundamentalmente o pensamento político de John Locke.

O pensamento liberal de Locke é também profundamente marcado pela defesa da tolerância religiosa. No tempo de Locke, as discussões políticas faziam ressoar posições extremamente religiosas, de modo que qualquer apelo à tolerância produzia muito alarde. Em sua Carta sobre a tolerância, Locke advogou que todas as crenças religiosas que não violassem ou não ameaçassem diretamente a existência do Estado deveriam ser toleradas. Para o filósofo, as religiões estão a serviço tão somente da salvação da alma individual e as crenças religiosas são matéria de foro íntimo, do que se segue que nenhuma religião deveria imiscuir-se na  política. Todavia, a tolerância propugnada por Locke tem seus limites – nenhuma tolerância deveria ser estendida aos ateus.

Passando em revista o que vimos nesta subseção, é imperioso observar que a ideias de Locke, tendo sido assumidas e modificadas, viriam a formar a base do pensamento político liberal. Para quem, por insipiência ou desleixo intelectual, acredita que a filosofia é incapaz de mover o mundo, estudar a história do liberalismo clássico é acompanhar os processos pelos quais aquelas ideias foram dando origem a instituições políticas, sociais, foram sendo transformadas, portanto, em leis, Constituições, foram; enfim,  foram constituindo uma visão moral. Os Iluministas franceses, como Voltaire e Montesquieu, as adotaram e propuseram que elas fossem colocadas em prática. Os dois filósofos foram inspirados pela situação política da Inglaterra dos fins do século XVII, a qual parecia destinada a transformar os preceitos defendidos por Locke em lei e costumes. Embora houvesse, a partir do final do século XVII, mais do que uma tentativa de efetivar em práticas políticas e sociais as ideias defendidas por Locke, nas transformações que marcariam a Inglaterra desse período em diante, as contribuições desse filósofo aproveitaram tanto aos homens de seu tempo que era impossível não considerar Locke o profeta daqueles novos tempos.

 

 

                                                    PARTE II


 

Nesta segunda parte deste artigo, proponho-me não só esclarecer o que é o neoliberalismo e de que modo sua racionalidade estende seu poder de dominação a todas as esferas da vida social, alcançando o mais íntimo dos sujeitos, como também estou interessado em aventar a hipótese de que o surgimento, o desenvolvimento e o recrudescimento dos ataques do neoliberalismo ao Estado de Bem Estar Social têm minado as bases do imaginário-simbólico de nossas democracias liberais. Desde o fim dos anos de 1970, as sociedades ocidentais não estão mais organizadas segundo a racionalidade liberal. Se ainda podemos falar em liberalismo, é apenas porque queremos manter vivos os ideais que, no plano político e social, ele nos legou como instrumentos necessários na luta por uma democracia onde a liberdade em face dos poderes opressores, tirânicos e a tolerância em face das forças homogeneizadoras, uniformizadoras, sempre prevaleçam. Todavia, no plano político e econômico, tanto o Estado quanto a sociedade civil estão submetidos à lógica ou à racionalidade neoliberal. É chegado o momento em que convém examinar se é possível dizer que o neoliberalismo suplantou o liberalismo tal como o conhecemos. Para tanto, duas questões iniciais se impõem à reflexão: 1) O que levou ao fracasso o liberalismo?; 2) O neoliberalismo é um novo liberalismo?

Antes de atacar essas duas questões primeiras, convém dar a conhecer o que se deve entender por racionalidade nas expressões reiteradamente empregadas neste texto racionalidade liberal e racionalidade neoliberal.

Começo por citar Casara. Segundo o autor (2020, p. 33), “a racionalidade é tanto o estado ou a qualidade de agir a partir de razões quanto o conjunto de elementos que explicam, condicionam e justificam essas ações e fins visados”. As razões pelas quais agimos são crenças e ideias tomadas como corretas e adequadas às ações adotadas e aos fins a que visamos. Para o autor, há uma relação necessária entre o poder e a racionalidade, de modo que não deveríamos nos surpreender com o fato de que o horror advém, não raro, do excesso de razão.

A racionalidade diz respeito a um modo de ver e compreender o mundo, e todo poder se exerce a partir de um determinado modo de compreender o mundo. Portanto, todo poder se exerce a partir de uma dada racionalidade. Assim, ensina Casara (2020, p. 30) que “a maneira como o poder atinge o corpo de uma pessoa ou produz uma mudança na realidade depende sempre de um modo específico, que se pretende racional e aceitável, de se relacionar com o mundo”. (grifo meu).

Evitando o uso do termo capitalismo, Dardot & Laval preferem empregar o termo racionalidade como conceito central na definição do neoliberalismo. A racionalidade, para ele, não é a qualidade ou estado do agir, mas um elemento estruturante e organizador não apenas da ação dos governantes, mas também da conduta dos governados. Nas palavras dos autores, “a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (p. 17). Não é o momento ainda de nos debruçarmos sobre o modus operandi da racionalidade neoliberal. Volto olhares sobre as razões por que o liberalismo foi superado pelo neoliberalismo.

 

 

2.   Por que o liberalismo fracassou?

 

Segundo Casara (2021), a crise do liberalismo foi gerada no interior do próprio liberalismo. O movimento liberal foi marcado por tensões entre os partidários da liberdade individual, entendida como um fim em si mesma, e os reformistas sociais, que defendiam o ideal do “bem comum”, isto é, concebiam a liberdade como meio pela qual se poderia construir esse bem comum. Essa longa crise espelha um modelo político-econômico sedimentado em torno de dogmas contraditórios, a qual durou de 1880 até a Grande Depressão dos anos de 1930, quando se dá a emergência do neoliberalismo. Segundo o autor, toda crise compartilha uma característica básica: o desmanche ou a transformação do funcionamento das instituições então erigidas e justificadas a partir da racionalidade hegemônica à beira do colapso. Numa crise, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário passam a funcionar de maneira distinta, e o Direito, bem como as diretrizes econômicas, se tornam disfuncionais. Para o autor, o neoliberalismo surge como necessidade de revisar as leis e os dogmas liberais; ou melhor, surge como expressão da necessidade de readaptar as instituições aos novos fins do Estado (então transformado em Estado neoliberal) e de impor a ideia de que o Estado tem de assumir um papel ativo na direção da economia. Casara observa que o liberalismo, com sua racionalidade, normatividade e imaginário, foi superado em função de sua incapacidade de responder adequadamente à questão prática que toca à intervenção política no âmbito econômico.

Como esteja interessado em investigar de que modo a constituição de um imaginário próprio é fundamental para a legitimação da arte de governar neoliberal, Casara entende a gradual superação do liberalismo como um processo de esgotamento do caráter legitimador das ideias e imagens sustentadas pela sua racionalidade. Em outros termos, as ideias e as imagens estruturantes da racionalidade liberal já não davam conta de explicar a razão por que, em várias circunstâncias, o Estado precisou socorrer o mercado. A crise do paradigma liberal revela também que as regras do jogo econômico mudaram (caem por terra as concepções originais de lei da oferta e da procura e a crença de que as decisões econômicas deveriam ser deixadas ao mercado concorrencial). Os direitos invioláveis dos indivíduos foram percebidos como obstáculos tanto para a governamentalidade liberal quanto para o mercado. Acresça-se a isso que as transformações do capitalismo em meio aos movimentos de industrialização e urbanização crescentes passaram a exigir do Estado uma atuação mais direta na economia, de modo a atender à necessidade de ampliar as margens de lucro da elite do dinheiro. Ao Estado também se exigia uma resposta aos conflitos de classe que ameaçavam a propriedade privada. Reunidas, estas condições estruturais levaram muitos entusiastas do modelo liberal a defender a necessidade de permitir intervenções estatais em domínios que, antes, era destinados aos indivíduos.

O modelo de vida do capitalismo dos fins do século XX não correspondia às antigas representações liberais da economia e da política. A nova fase do capitalismo financeiro era incompatível com a crença liberal em harmonias econômicas e  na mão invisível do mercado. Os dissidentes do liberalismo clássico estavam convencidos de que as novas condições socioeconômicas advindas do fenômeno da empresa, um modelo de gestão e organização da vida social que, pouco a pouco, passou a ser reproduzido por todos os setores da sociedade, inclusive pelo Estado, reclamavam uma resposta diferente daquela oferecida pelo liberalismo. En passant, vale notar que a forma jurídica empresa acarretou a naturalização da ideia de concentração ilimitada de recursos e de poderes numa instituição privada. Referindo as palavras de Casara (2020, p.88), deve-se atentar para a inaplicabilidade do método liberal às novas regras do jogo econômico:

 

(...) as regras do jogo do liberalismo clássico não davam conta do surgimento de cartéis (grupos que concentram as pequenas unidades empresariais adequadas ao antigo modelo atomístico de agentes econômicos independentes e em concorrência “justa”), do desenvolvimento de técnicas que criam necessidades artificiais e enfraquecem a crença na autonomia dos consumidores, das manipulações no mercado conduzidas por oligopólios e dos monopólios sobre preços (...).

 

Ora, todos esses fenômenos reunidos por Casara desvelam o embuste que há na crença numa concorrência justa orientada para o melhor resultado para todos. A racionalidade liberal não impossibilitou o controle político pelo poder econômico. Não só não o impossibilitou, como também possibilitou a opressão econômica dos indivíduos, entre os quais os pequenos proprietários. Nessa opressão, pesou a mão invisível dos empresários, dos agentes financeiros e dos políticos aliados a estes grupos.

Outro aspecto da crise do modelo liberal é o empobrecimento da população. As propostas do liberalismos clássico não surtiam efeitos sobre os problemas concretos das pessoas; ademais, eram inconsistentes com as demandas por reformas sociais e ajustes salariais, tão necessárias para evitar o agravamento dos conflitos de classe. Consoante nota Casara (2020, p. 89), “pode-se tentar resumir a crise do liberalismo clássico pela constatação da ausência de uma teoria e de uma orientação para as práticas governamentais que foram se fazendo necessárias diante das próprias contradições da racionalidade liberal”.

Com o agravamento das condições de empobrecimento da população europeia ao longo do século XIX, o imaginário popular foi, pouco a pouco, desacreditando das imagens positivas do laissez-faire com sua crença na liberdade como um fim em si mesma. Não só o liberalismo clássico com seu ciclo de negócios gerou a nova onda de pobreza que ceifou as esperanças de prosperidade do século XIX, como também a ideia liberal de que a relação salarial redundava de um contrato harmonioso entre partes iguais com vontades independentes se revelou um grande engano. Evidente o embuste, não tardou para que a Europa fosse tomada por movimentos sociais, revigorados pelas reformas de Bismarck (nos fins dos anos de 1870), que exigiam a criação de dispositivos, leis e regulamentações destinadas à proteção dos trabalhadores. É claro que a proteção coletiva e a segurança social, nesse contexto, foram uma concessão dos detentores do poder político e econômico, que se viam pressionados por um forte movimento operário, que se insurgia contra a mentira da “harmonia social” que seria gerada pela concorrência  e pela liberdade de contratar. Evidentemente, tais concessões, que estão na origem dos direitos sociais por cuja garantia é responsável o Estado são inadmissíveis para aqueles que pregam a ideia de liberdade, entendida reducionistamente como liberdade de contratar. Aqueles dentre os liberais que defendiam as reformas sociais, não raro, eram taxados de socialistas. Estes dissidentes tinham de enfrentar a resistência de grupos de liberais que se mantinham firmes em sua adesão aos dogmas do liberalismo clássico, mormente, ao dogma da ausência de intervenção estatal na economia. Dentre esses fiéis à doutrina liberal, destaca-se a figura de Herbert Spencer, a quem se deve atribuir a famigerada expressão “a sobrevivência dos mais aptos”. Spencer acreditava que qualquer interferência do Estado na esfera econômica representa um estorvo inadmissível à lei da evolução, cujo fim é fomentar a cooperação voluntária de indivíduos associados segundo um contrato social.

A explicação para o fracasso do liberalismo e para o surgimento do neoliberalismo oferecida por Casara não esgota o cenário das razões por que uma nova imagem de mundo começa a se delinear nos fins dos anos de 1970. Foucault, por exemplo, vê o surgimento do neoliberalismo como um sintoma de uma crise de governamentalidade mais ampla e diversificada. Este é o tema que me ocupará na próxima subseção.  

 

2.1. O Neoliberalismo e uma crise de governamentalidade

 

Para Foucault, o neoliberalismo responde a uma crise de governamentalidade mais ampla e diversificada e não apenas a uma crise de acumulação do capital. Mas, convém esclarecer o conceito foucaultiana de governamentalidade, antes de delinear a interpretação foucaultiana  das razões do surgimento do neoliberalismo.  Por governamentalidade, Foucault entende o conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e técnicas que possibilita o exercício de uma forma de poder bem específica, qual seja, a gestão da população. Conforme notam Dardot & Laval (2020, p. 48), “(...) a governamentalidade vai assumir um sentido muito mais amplo [do que o de biopolítica], intercambiável com a “arte de governar” ou a “racionalidade governamental” para designar as maneiras muito concretas, frequentemente finas e invisíveis de condução dos indivíduos”. O leitor atento precisa reter, portanto, a seguinte articulação de ideias. Falar em governamentalidade, em Foucault, é falar em gestão de toda uma população através de técnicas, dispositivos, instituições, análises, imperceptíveis, embora capazes de moldar subjetividades e exercer controle sobre a conduta individual. Além disso, falar em governamentalidade é falar em arte de governar. A governamentalidade se define como a articulação entre as técnicas de dominação exercida sobre os outros e as técnicas de si. Governar, para Foucault, é estruturar o eventual campo de ação dos outros; ou, para falar com Dardot & Laval, governar é conduzir a conduta dos indivíduos, tanto a conduta de si mesmos quanto a conduta que se exerce sobre o comportamento dos outros. Em outras palavras, na arte de governar, molda-se tanto a conduta de si quanto o modo como devemos conduzir os outros. Mas governar não é governar contra a liberdade ou a despeito dela. Governa-se em nome da liberdade, através da liberdade, pois que governar é “agir ativamente no espaço de liberdade dado aos indivíduos para que estes venham a conformar-se a si mesmos a certas normas”. (Dardot & Laval, ibid., p. 19).

O neoliberalismo, conforme dito no começo do parágrafo anterior, constitui uma resposta a uma crise de governamentalidade ampla e diversificada. Essa crise, segundo Foucault, se prende a uma série de profundas crises históricas, tais como a crise do governo pastoral, a crise da soberania, a crise da disciplina e, especialmente, a crise do liberalismo clássico nos anos de 1920 e 1930. Para o filósofo francês, a crise da governamentalidade que leva à emergência do neoliberalismo se manifesta, sobretudo, em 1968 e nos anos de luta social e cultural subsequentes.

O neoliberalismo, nascido com a crise dos anos de 1930, questionava a ideia da espontaneidade do livre-mercado. Por um lado, era necessário superar o laissez-faire; por outro lado, era preciso combater as formas de intervenção estatal que desregulavam o funcionamento do mercado e que abriam espaço para um totalitarismo em potencial. Cabe aqui fazer uma advertência. A investida neoliberal contra os mecanismos de intervenção do Estado não deve conduzir a conclusão de que o neoliberalismo é um retorno ao naturalismo liberal. Tampouco se deve disso concluir que o neoliberalismo é uma forma de ultraliberalismo, como costuma pensar a esquerda.

Quando se considera a relação do governo com a sociedade em seu conjunto, o neoliberalismo não se limita a dar conta da crise do capitalismo. Cabe sublinhar, de passagem, que, para Foucault, não existe um único capitalismo, mas muitos capitalismos, porque o capitalismo muda de forma e funcionamento em virtude de mecanismos de poder historicamente diversos. Ademais, a crise a que o neoliberalismo se pretende uma resposta é muito mais ampla, estendendo-se sobre setores diversos da sociedade, tais como o psiquiátrico, o médico, o carcerário, o escolar, etc. Essas  diferentes formas de manifestação dessa ampla crise se expressam como um questionamento do regime geral de disciplinas desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX e das formas estatais de biopolítica, difundidas nos séculos XIX e XX.

Ao suplantar a racionalidade liberal, o neoliberalismo traz em seu bojo uma nova arte de governara arte de governar neoliberal. Em que consiste essa arte de governar? Identificada com a essência do neoliberalismo, ela “designa um certo tipo de poder que age a distância sobre os indivíduos através do seu meio de vida com o fim de favorecer a autovalorização do capital humano”. (Laval, 2020, p. 75). Essa é, aliás, uma das definições possíveis do neoliberalismo. E qual é o meio de vida do homem neoliberal? O mercado, e o mercado o guia.

A nova arte de governar neoliberal pretende remodelar as relações entre os indivíduos não à moda dos movimentos da contracultura, mas segundo o princípio da concorrência. É assim que a arte de governar neoliberal vai se constituir como uma resposta assaz eficaz à série de crises anteriormente mencionadas, angariando o apoio, nos anos de 1980, de ex-contestadores da arte de governar liberal. Como nova forma de poder, a arte de governar neoliberal, baseada em um jogo de incitações à concorrência, dispensa disciplinas e normalizações de grande alcance, para agir direta e autoritariamente sobre os indivíduos. O neoliberalismo responde, politicamente, à crise das instituições disciplinares e a certas formas de governar biopoliticamente por meio do social e do escolar.

Em resumo, é como dupla resposta política que o neoliberalismo se apresenta, segundo a análise foucaultiana. De um lado, ele responde à crise das instituições disciplinares “clássicas”; de outro lado, responde ao esgotamento das formas de governo da biopolítica. Alinhado com o espectro político da direita, o neoliberalismo busca dar conta das críticas das disciplinas e do biopoder levadas a efeito pela esquerda.

Antes de pôr termo a esta subseção para, finalmente, me concentrar na discussão da natureza do neoliberalismo e de algumas das dimensões de sua dominação, é indispensável acrescentar que, se o neoliberalismo nascido nos anos de 1930 era uma reação à crise do liberalismo clássico, o neoliberalismo dos anos de 1970 “é, em grande parte, uma reação ao keynesianismo institucionalizado”. (Laval, ibid., p. 134). O que isso significa? Significa que o neoliberalismo surge como um conjunto de teses econômicas e discursos políticos, cujo objetivo é consagrar a ideia de que os mecanismos de redistribuição de renda e riqueza e a promoção da igualdade não lograram produzir efeitos positivos sobre a economia num contexto histórico caracterizado pela intensa concorrência internacional. Para os neoliberais, os métodos corretivos do tipo keynesiano, utilizados a partir de 1945, acarretaram uma série de consequências nefastas no âmbito econômico. A resposta neoliberal se enuncia como um meio de remediar os malefícios socioeconômicos produzidos por aqueles métodos através de uma nova política social lastreada não mais pelo pleno emprego e pelo crescimento econômico voluntarista, mas pelos dispositivos de gestão individual do desemprego em massa e de controle de uma população econômica e socialmente desamparada. Cite-se Laval (ibid., p. 136) que nos patenteia aquilo que constituiria, se posso dizer, o fim último a que visa o neoliberalismo: tornar o mercado o modelo para todas as relações sociais. Transformar o mercado como modelo para todas as relações sociais é justamente o que faz o neoliberalismo.

 

A resposta especificamente neoliberal à crise de governar dos anos de 1970 consiste em colocar, no centro de uma “política social” completamente redefinida, a regra do mercado. A sociedade [inteira] deve ser dirigida e regulada pelo “jogo” da concorrência – concorrência externa entre economias nacionais, concorrência interna entre empresas e entre indivíduos. (grifos meus).

 

Com o neoliberalismo, a concorrência e o modelo empresarial formam um certo regime invisível de governo das condutas, em função do qual o modo de imposição da norma diferirá do modo como ela era imposta na soberania ou nos aparelhos disciplinares. E esse novo modo de imposição da norma vai além da esfera propriamente econômica. O neoliberalismo cria “mundos”, cria uma nova dinâmica social, reconfigura subjetividades e modos de viver individuais. Criando dispositivos novos de governo da conduta, o neoliberalismo cria seu próprio sujeito (o sujeito neoliberal), adaptado para sobreviver num mundo onde a concorrência é a regra. Doravante, numa ordem econômica, social e política estruturada pela lógica neoliberal, sobre os princípios de solidariedade, de redistribuição e de igualdade que inspiraram (e inspiram) a social-democracia, prevalece o imperativo da concorrência. Como assinala Laval (ibid., p. 136), “exclusão e igualdade de oportunidades serão suas palavras de ordem”.

 

 

3.   O neoliberalismo: sua racionalidade e sua dominação

 

Sem delongas, apresento, abaixo, uma das definições possíveis do neoliberalismo. A  definição que se acha abaixo é oferecida por Dardot & Laval (2016). Escolho-a como fio condutor dos desdobramentos conceituais do complexo fenômeno do neoliberalismo por duas qualidades que saltam aos olhos: sua clareza, consistência teórica e concisão.

 

O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de  um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral da vida. O neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. (Dardot & Laval, 2016, p. 17, grifos meus).

 

Vejamos o que apreendemos dessa definição do neoliberalismo proposta por Dardot & Laval. Primeiramente, eles afirmam que o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, o que pode ser parafraseado como: o neoliberalismo é a racionalidade do capitalismo contemporâneo. O primeiro aspecto a ser destacado na definição de neoliberalismo é justamente o fato de ele ser uma forma de racionalidade, ou um tipo específico de racionalidade. Em segundo lugar, os autores esclarecem melhor o que é o neoliberalismo, ao dizer que “é um conjunto de discursos, de práticas e de dispositivos”, cujo fim é determinar “um novo modo de governo dos homens” em consonância com o “princípio universal da concorrência”. Pode-se concluir que a racionalidade neoliberal se se materializa na forma desse conjunto de discursos, práticas e dispositivos que estabelecem – aqui mais um elemento fundamental do neoliberalismo – “um modo de governo dos homens”. Outro elemento não menos importante da definição do neoliberalismo é “o princípio universal de concorrência.” A racionalidade neoliberal tem como característica central a generalização da concorrência imposta como norma de conduta dos governantes e dos governados.

Dardot & Laval mantêm que o sentido exato do termo neoliberalismo deve ser buscado nas intuições de Foucault. O neoliberalismo é, então, um certo tipo de governo dos indivíduos,  que exige um certo tipo de exercício de poder mediante um Estado forte, autoritário; às vezes violento, que promova uma nova articulação das esferas pública e privada. Em que consiste a essência ou o núcleo do neoliberalismo? Consiste em ser o neoliberalismo um certo modo de governar a sociedade inteira em consonância com a razão ou a lógica do capital transformada em medida universal. Em outras palavras, o neoliberalismo é certo modo de governar a sociedade inteira segundo a norma da concorrência e a lógica da empresa, que passam, então, a estruturar as atividades e a fabricar subjetividades.

Os autores insistem que não se deve confundir o neoliberalismo com um novo liberalismo. Nem mesmo os autores das formulações da nova arte de governar recoberta pelo termo neoliberalismo souberam reconhecer em que este se diferencia do novo liberalismo, do qual a teoria econômica de Keynes é uma expressão mais elaborada. O novo liberalismo propunha-se reexaminar o conjunto dos meios jurídicos, morais, políticos, econômicos e sociais a fim de construir uma sociedade de liberdade individual em benefício de todos. Destarte, o novo liberalismo pode ser resumido à luz de duas propostas: 1) as agendas do Estado devem superar os limites que o dogmatismo do laissez-faire impôs a elas, caso pretendam assegurar os benefícios de uma sociedade liberal; 2) essas novas agendas devem, na prática, questionar a fé que se depositou nos mecanismos autorreguladores do mercado, bem como a confiança na justiça dos contratos estabelecidos entre indivíduos supostamente iguais.

Para que seja possível realizar os ideais do liberalismo, é necessário que se saiba utilizar os meios, aparentemente, contrários à doutrina liberal para defender a realização plena de uma sociedade liberal. Assim, os liberais vão admitir leis de proteção do trabalho, impostos progressivos sobre a renda, auxílios sociais obrigatórios, etc., mas com o objetivo de garantir as condições concretas da realização dos fins individuais.  Ora, se é verdade que, em certos aspectos, o neoliberalismo aparece, mais tarde, como uma celebração do novo liberalismo; em outros aspectos, constitui uma alternativa aos tipos de intervencionismo econômico e reformismo social apregoados pelo novo liberalismo.

Lembremos que o neoliberalismo não propõe uma política de retirada do Estado. Os neoliberais admitem a necessidade de uma certa intervenção do Estado no mercado; todavia, se opõem a toda ação estatal que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados. O Estado deve estar a serviço da racionalidade neoliberal: não deve limitar o mercado por métodos de correção ou compensação, mas deve desenvolver e purificar o mercado concorrencial por meio de um enquadramento jurídico minuciosamente ajustado.  No neoliberalismo, já não mais se pressupõe um acordo entre interesses individuais, mas se produzem as condições ótimas para que o jogo de rivalidade, de competição satisfaça o interesse coletivo.

Antes de passarmos a considerar, brevemente, a contribuição foucaultiana para a determinação do conceito de neoliberalismo, prosseguindo ainda na esteira de Dardot & Laval, podemos ver, facilmente, que o neoliberalismo combina a reabilitação de uma intervenção estatal com uma concepção de mercado em cujo cerne repousa o imperativo da concorrência. O neoliberalismo operou o deslocamento do eixo do liberalismo, erigindo o princípio de concorrência como princípio central da vida social e individual. O neoliberalismo alinha-se com o reconhecimento de que a ordem do mercado não é naturalmente espontânea, mas um produto artificial, uma construção histórica e política.

Como meu compromisso é trazer à baila alguns aspectos das análises de Foucault sobre o neoliberalismo, seria romper com esse compromisso se eu adentrasse na abordagem neomarxista-foucaultiana elaborada por Wendy Brown. Não obstante, duas lições de Brown merecem nota aqui. O primeiro excerto de Brown (2019) destaca o impacto global da emergência do neoliberalismo:

 

O neoliberalismo – as ideias, as instituições, as políticas, a racionalidade política -, juntamente com sua cria, a financeirização, provavelmente moldaram a história mundial recente tão profundamente quanto qualquer outro fenômeno que possa ser situado no mesmo período, mesmo que acadêmicos continuem a debater o que ambos são precisamente. (Brown, 2019, p. 28).

 

Segundo Brown, o neoliberalismo representa o ataque oportunista dos capitalistas e seus lacaios políticos aos Estados de Bem-Estar social keynesianos, às social-democracias e ao socialismo de Estado. Nesse sentido, escreve o autor,

 

O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros. (ibid., p. 28-29).

 

 

Para o autor, o neoliberalismo foi concebido e manifestado na prática como um “projeto global no qual a soberania econômica do Estado-nação seria suplantada pelas regras e acordos estabelecidos por instituições supranacionais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional”. (p. 29-30). O neoliberalismo tem como meta desmantelar as barreiras que dificultam o fluxo de capital e a sua acumulação. Os neoliberais buscam também neutralizar as demandas por redistribuição de riqueza e renda do Sul, recentemente descolonizado. É possível, segundo o autor, aventar a hipótese de que a revolução neoliberal foi projetada para frustrar as expectativas da classe trabalhadora, quer no mundo desenvolvido, quer nas regiões pré-coloniais em desenvolvimento, na medida em que universaliza o baixo nivelamento de salários e das condições de trabalho. Nas palavras do autor, pode-se dizer que o projeto neoliberal visa a (...) liberar o capital para caçar mão de obra barata, recursos e paraísos fiscais em todo o mundo”, gerando, assim, padrões de vida mais baixos para as faixas da classe trabalhadora e da classe média no Norte global e a exploração persistente, além de estabelecer limitações à soberania dos Estados-nação, as quais vêm acompanhadas de um desenvolvimento desigual no Sul global.

 

 

3.1. O neoliberalismo como governo pelo mercado: aspectos elementares da análise foucaultiana

 

De tudo que se expôs até aqui, deve-se inferir que o neoliberalismo não é apenas um reflexo do poder do capital financeiro, tampouco se reduz a mecanismos econômicos, mas recobre, fundamentalmente, um modo de governo dos homens que se espraia por todas as instituições. A abordagem foucaultiana do neoliberalismo pretende patentear como governos, sujeitos e subjetividades são transformados pela remodelação neoliberal. Ademais, ao nos debruçarmos sobre as análises foucaultianas do capitalismo, vemo-lo assumir que o capitalismo é sempre organizado por formas de racionalidade política.

Com Foucault, o exame do modo como se instancia a razão governamental neoliberal mostra-nos que o mercado torna-se o critério pelo qual os neoliberais avaliam a atividade governamental e legislativa. Ao se debruçar sobre a racionalidade neoliberal, Foucault desenvolve uma análise crítica do poder. Sendo uma forma de governo dos homens, a racionalidade neoliberal descortina os efeitos que a ação pública produz sobre a conduta e as escolhas individuais.

O neoliberalismo não é apenas um modo de governo dos homens; é também, segundo Foucault, um certo tipo de poder que age a distância sobre os indivíduos a partir da criação de seu meio de vida. Já disse que o meio de vida do sujeito neoliberal é o mercado. No mercado, a norma não se impõe nem de fora nem de uma instância superior; ela se impõe como efeito do jogo das forças econômicas, isto é, ela é efeito da concorrência.

Uma vez que a única norma efetiva e legítima é imanente ao próprio funcionamento do mercado, observa Laval (2020, p. 76) que “o neoliberalismo se atribui continuamente ares de evidência, quer dizer, de conformidade com um movimento natural da sociedade e com uma realidade à qual os governantes e os governados devem se adaptar (...)”. Evidentemente, essa “realidade” é, no entanto, fabricada, criada historicamente; é feita de regras, de instituições, de situações historicamente criadas com vistas a orientar a conduta dos homens.

Foucault esforçou-se por evidenciar o caráter de objetividade do governo neoliberal. Ora, a ação governamental a distância, estabelecendo “regras do jogo”, objetiva estruturar o espaço no qual os indivíduos agem segundo a lógica da concorrência. Uma vez posicionados nesse espaço, os indivíduos precisarão se adaptar ao meio concorrencial, funcionando como empresas de si que administram seu capital de recursos sempre com vistas a maximizá-los. O espaço neoliberal é estruturado por técnicas comportamentais, cada vez mais refinadas, que agem sobre toda a vida social até o mais íntimo do indivíduo.

Foucault não se ocupou do exame do neoliberalismo estadunidense. Não dispôs de tempo suficiente para articular, com a devida consistência, o neoliberalismo alemão e o neoliberalismo estadunidense. Não obstante, ele via os dois neoliberalismos como exemplos contemporâneos de uma razão liberal de governo. No neoliberalismo estadunidense, identificou um radicalismo que estava ausente do ordoliberalismo. As duas formas de neoliberalismo eram correlatas de uma única e específica arte de governar. Segundo Laval, a originalidade da abordagem foucaultiana consiste em ligar as duas formas do neoliberalismo a fim de definir um modo singular de governamentalidade, cuja compreensão só pode ser alcançada quando esses dois braços do neoliberalismo estão correlacionados.

A chave de compreensão do neoliberalismo que adotarei a partir das análises foucaultianas sobre o fenômeno é o conceito de governamentalidade, intercambiável, conforme vimos, com a ideia de arte de governar. Daí se segue que será necessário esmiuçar os aspectos da arte de governar neoliberal. Assim, o neoliberalismo instancia um modo de governar pela concorrência.

Em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber escreve sobre a adaptação dos indivíduos à ordem econômica capitalista. Reproduzo, abaixo, o trecho de Weber do qual Foucault colhe a questão que lhe interessará na análise do neoliberalismo.

 

A atual ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo está imerso por nascimento e que, para ele, ao menos enquanto indivíduo, é dado como uma jaula (Gehaüse, ou gaiola de ferro) de fato, imutável, na qual ele deve viver. Uma vez que o indivíduo está intricado na rede de mercado, a ordem econômica lhe impõe as normas de seu agir econômico. (grifo meu).

 

 

Retrata-se assim a fatalidade de cada vida individual, lançada pelo nascimento neste imenso cosmos que constitui a ordem econômica capitalista: cada indivíduo nela aprisionado precisará se adaptar ao seu meio de vida. Foucault está particularmente interessado na questão de como a ordem econômica impõe ao indivíduo as normas de seu agir econômico. Diferentemente do que pensa Weber, o mercado não é uma prisão, para Foucault. Afora isso, Foucault entende que a arte de governar neoliberal supõe a existência de um sujeito governável e um modo de ação sobre esse sujeito. O cerne da racionalidade neoliberal é, portanto, o governo dos indivíduos por meio de uma regulação concorrencial da sociedade como um todo. A condição histórica da racionalidade neoliberal é a governabilidade do homo economicus, ele mesmo já governável, de sorte que a racionalidade neoliberal transformará esse tipo humano em sujeito neoliberal. Para Foucault, o homo economicus é eminentemente governável, mas o é por uma intervenção no seu meio, o qual age não diretamente sobre os sujeitos, mas indiretamente sobre as regras do jogo. Destarte, segundo Laval (2020, p. 79), “o neoliberalismo redefine (...) de uma só vez o sujeito econômico como ser adaptável às variáveis do mercado e a função do governo como arte de criar e dar sustentação às condições de funcionamento do mercado”. Portanto, ao subsumir a função do governo à sua racionalidade, o neoliberalismo transforma a função governamental, não mais orientada para atender às demandas do social, mas reformulada para atender aos imperativos do mercado.

Sob a dominação da racionalidade neoliberal, o homo economicus é redefinido como capital humano e como empresa. O neoliberalismo busca, portanto, criar uma sociedade inteiramente regida pela maximização do capital humano. Essa redefinição do homo economicus é correlata com a ação sobre o meio, defendida pelos ordoliberais alemães sob o rótulo de “política de sociedade” ou de “política de moldura”, ou ainda de “política de vida”. Essa política de sociedade consiste em agir sobre o ambiente social com o objetivo de orientar a conduta dos indivíduos. Consoante lembra Laval (2020, p. 78-79), ao considerar a condição existencial do indivíduo,

 

O indivíduo já está sempre mergulhado em um “mundo da vida” que se deve, ao mesmo tempo, proteger e transformar, quando necessário, para o funcionamento da economia de mercado. Assim, esse indivíduo deve sempre ser colocado diante de escolhas alternativas, como um desempregado que necessita escolher entre o emprego ou o ócio, um empreendedor entre investimento, uma família entre as opções de escolas ou de serviços de saúde, etc. Mais precisamente, o meio concorrencial conduzirá o indivíduo a agir como uma “firma” que opera escolhas com o objetivo de produzir o máximo de satisfação.

 

Convém demorar-nos na reflexão sobre esse excerto de Laval. O conceito de “mundo da vida” devemos a Hurssel. O mundo da vida recobre  o mundo imediato em que vivemos intuitivamente, com suas ocorrências familiares, com as coisas que aprendemos na experiência comum no cotidiano.  O mundo da vida é o mundo habitado por todos nós  na lida com as coisas, nas ocupações da vida cotidiana. Esse mundo tão familiar, vivido intuitivamente, é transformado para servir aos interesses relacionados ao funcionamento da economia de mercado. Em outras palavras, tudo que fazemos e nossas próprias vivências se tornam produtos comerciais, fontes para a obtenção de lucro, mercadorias inseridas no processo de monetização. Aliás, nós mesmos, enquanto sujeitos sociais, enquanto subjetividades contábeis, nos tornamos mercadorias. Como na descrição weberiana há pouco mencionada, o indivíduo lançado no “mundo da vida” estará necessariamente subjugado ao meio concorrencial que o governará de modo que ele será forçado a agir e a viver como uma empresa. Veremos, mais adiante, como a racionalidade neoliberal produz sujeitos como empresas de si. O que se deve esclarecer, doravante, é o que Foucault entende por meio, ou melhor, por governo pelo meio.

Esse meio concorrencial está sobreinvestido por novas técnicas de normalização, que se articulam indissoluvelmente com técnicas de controle, de avaliação, de incitação e estímulo. Ora, toda conduta humana não é apenas racional; ela é também econômica, porquanto é uma resposta adaptativa maximizadora a uma situação não só de produção e de consumo, mas também de escolha entre fins alternativos.

 

3.1.2. O neoliberalismo como governo pelo meio

 

A governamentalidade neoliberal é um governo pelo meio, isto é, pelo mercado. O conceito de meio, em Foucault, além de dar coerência à noção de racionalidade neoliberal, descerra a possibilidade de compreendermos como ela expõe o desafio de estender ilimitadamente os mecanismos reguladores da conduta. O neoliberalismo acentua a definição de governamentalidade como um governo pelo meio, como o meio afeta o jogo de interesses. O meio de que se trata, reitere-se, é o mercado. Para Foucault, o que há de essencial no poder neoliberal é que ele opera no sentido de estruturar o espaço de conduta dos indivíduos, fazendo-os agir de maneira determinada, segundo as injunções do meio, ou seja, do mercado. Disso se seguem as seguintes conclusões, arroladas abaixo:

 

1) O Neoliberalismo é uma racionalidade governamental que torna o cálculo econômico o princípio de seu exercício e de sua regulação;


2) O Neoliberalismo é um tipo de governo pelo mercado;


3) O Neoliberalismo faz do mercado o “meio” através do qual o homem econômico pode ser governado.

 

Por meio, Foucault entende não apenas uma moldura, uma arquitetura. O meio é o conjunto de relações entre o indivíduo e tudo aquilo que o cerca, seja as grades da cela, janelas, o ritmo das jornadas da vida no presídio, as relações entre os prisioneiros e os outros indivíduos, seja todo espaço onde o vivente age estabelecendo normas, de modo que toda ação humana acontece sempre em um meio que estabelece normas. O meio, naturalmente, não é apenas o presídio, é a família, o espaço urbano, as instituições disciplinares em geral e, no caso do sujeito neoliberal, é o mercado e seu quadro concorrencial ao qual os sujeitos econômicos precisam se adaptar. Foucault está sempre interessado em analisar a relação entre o meio e o indivíduo.

Quem quer que conheça minimamente a obra de Foucault dar-se-á conta de que ele jamais deixou de mostrar que a sociedade, a geografia, a vida mesma não são espaços livres de poder e coerção. Elas são, na verdade, há muito tempo, investidas pelo poder das normas, por uma normalização cuja função central é modelar as condutas e as subjetividades. Deve-se, portanto, ter em conta que o meio em que os seres humanos vivem é sempre um espaço normativo. A ação humana, ao transformar o meio, transforma também o próprio homem. Assim, referindo Laval, devemos reconhecer que “o homem necessariamente se produz, produzindo seu próprio meio”. (Laval, ibid., p. 98). Convém agora deter-nos um pouco sobre a questão das normas. O que são normas, para Foucault? Como elas estruturam o meio? Em princípio, devo enfatizar que o poder, em Foucault, mobiliza, frequentemente, normas que são inerentes aos processos e as práticas. Deve-se recordar que Foucault não analisa o poder reduzindo-o ao seu aspecto coercitivo, tampouco o limita à esfera do Estado, da política. Lembro que o poder, antes de mais nada, é produtor de discursos, de normas, de subjetividades, de saberes; ele induz ao prazer; é poder reticular, invisível, que se espraia por toda a malha social (daí devermos falar em “poderes”), ou seja, atravessa todo o corpo social. O poder, para Foucault, nunca se exerce senão produzindo certo tipo de sujeito; o poder age sobre o sujeito e através do sujeito, sempre submetido a normas de conduta, de fala, de pensamento. O poder atravessa os indivíduos e os normaliza.

Toda norma, para funcionar, tem de ter um investimento linguístico. Pensamos em “normas”, habitualmente, como regras impositivas, como proposições que preceituam o modo como devemos agir e nos comportar a fim de atender às expectativas sociais, a fim de ajustarmo-nos às determinações sociais do que é bom, correto, válido. Estou ciente de que essa descrição do que entendemos, comumente, por “norma” não esgota a semântica do termo. Escusa lembrar que “norma” também recobre o comportamento que se observa com maior frequência; a norma seria aquilo que é considerado a prática corrente, largamente observada numa população.

No terreno teórico em que se inscrevem as reflexões de Foucault, as normas constituem o terreno da luta, o que não significa que possamos nos esquivar delas. Afinal, as normas, para o filósofo francês, embora possam ser modificadas, são imanentes às práticas. Não há práticas que não sejam normatizadas, nem há normas que não se efetivem na ação. É porque toda prática e toda existência são investidas de normas, que o poder político e social modifica o campo normativo com vistas a agir sobre as condutas individuais.

As normas, portanto, integram o meio, no seio do qual as práticas e as existência individuais se desenvolvem. Como elas sejam partes não só das práticas, mas também das existências, toda existência é, necessariamente, normatizada.

Ponto termo a esta etapa de minha reflexão sobre o conceito de meio em Foucault, pode-se, em resumo, dizer que “o meio é, ao mesmo tempo o espaço onde vive uma população e  a maneira de agir sobre ele” (Laval, ibid., p. 93).O meio é, para Foucault, tanto o suporte como o elemento de circulação de uma ação.

As técnicas da governamentalidade neoliberal não visam apenas ao governo da conduta; são também mobilizadas para fabricar, cunhar um tipo de sujeito, o sujeito neoliberal, o sujeito empreendedor de si. Não intento desenvolver à exaustão este tema; limitar-me-ei a contorná-lo, com o único propósito de mostrar como o neoliberalismo produz o sujeito de que precisa, o sujeito bem adaptado ao governo pelo mercado, um sujeito que, crendo-se autônomo, livre, colaborador, não é mais do que um indivíduo submetido à racionalidade neoliberal.

 

3.2.    Empresa de si: o Ethos da autovalorização

 

 

Vimos que o neoliberalismo faz do mercado e da empresa o princípio de estruturação da vida social e de fabricação dos sujeitos. Falar em sujeito como empresa de si significa dizer que cada indivíduo pode ter domínio sobre sua vida: pode conduzi-la, guia-la e controlá-la em conformidade com seus desejos e necessidades, sempre empenhado na elaboração de estratégias adequadas. A empresa de si implica a produção de um ethos de autovalorização, e isso pressupõe todo um trabalho de racionalização do desejo, de uma racionalização que atua no mais íntimo do sujeito. A empresa de si é a maneira de ser do próprio homem fabricado pelo neoliberalismo. Ela é também o próprio modo de ele governar-se em consonância com os valores e princípios empresariais, tais como energia, iniciativa, proatividade, ambição, cálculo, responsabilidade pessoal, etc. O que é ser empresa de si mesmo? Ou, o que é ser empreendedor de si? Tais questões se inscrevem num horizonte enunciativo de uma nova ética – a ética empresarial. A empresa de si é um método de formação profissional, que constitui um conjunto de propostas prescritivas e performativas dirigidas aos assalariados. Como empresa de si, o indivíduo não deve se ver mais como trabalhador, mas como uma empresa que vende um serviço no mercado. Todo trabalhador, portanto, deve procurar um cliente, encontrar sua posição no mercado, fixar seu preço, gerir seus custos, realizar pesquisa-desenvolvimento e, é claro, formar-se. Destarte, para o indivíduo inserido nas relações de mercado, seu trabalho é sua empresa, e seu desenvolvimento define-se como uma empresa de si mesmo.

Agora, é preciso nos perguntar quem é o sujeito empreendedor de si. Diremos imediatamente: é o indivíduo competitivo e competente. É o indivíduo cuja vida está quase inteiramente devotada a maximizar seu capital humano em todos os campos de atuação. É o indivíduo que não deseja apenas projetar-se no futuro, calcular seus ganhos e custos, tal como fazia o velho homem econômico. Ele procura, sobretudo, trabalhar a si mesmo, sobre si mesmo, com o fito de se transformar continuamente, de se aprimorar, de se tornar cada vez mais eficaz, mais eficiente, mais dócil a esse novo ethos empresarial.

A ética empresarial é a ética de nosso tempo; é a ética de nosso mundo atual governado pela racionalidade neoliberal. O que essa ética celebra? Quais são seus princípios basilares? Vejamos. Ela celebra “o homem que faz a si mesmo”, recomenda a “realização plena de si mesmo”; mas ela se singulariza ao exaltar o combate, a força, o vigor e, é claro, o sucesso. Na ética empresarial, o trabalho é transformado no meio privilegiado da realização pessoal (enquanto se apagam dele as contradições sociais, econômicas). Se formos bem-sucedidos profissionalmente, nossa vida será um sucesso. Na ética empresarial, uma vida bem-sucedida é uma vida em que alcançamos a maximização da pequena empresa que somos.

Não pretendendo me alongar sobre esse tema, preciso, no entanto, acrescentar algumas palavras sobre como devemos entender precisamente a ideia de empresa de si e sobre qual é a especificidade do sujeito neoliberal. Para determinar, com mais clareza, o conceito de empresa de si, trago à tela as palavras de Dardot & Laval (2016, p. 335):

 

A empresa de si mesmo é uma “entidade psicológica e social, e mesmo espiritual”, ativa em todos os domínios e presente em todas as relações. É sobretudo a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial. A responsabilidade do indivíduo pela valorização do seu trabalho no mercado tornou-se um princípio absoluto. Essa relação de cada um com o valor de seu trabalho é “objeto de gestão, de investimento e desenvolvimento num mercado de trabalho aberto e cada vez mais mundial.

 

Seria estender-me para além dos limites da conveniência fixados pelo plano de meu dizer o pretender esmiuçar a significatividade da empresa de si como entidade psicológica, social e espiritual. Serei, por isso, forçado a me deter em destacar o que considero importante trazer à consciência do leitor. Primeiramente, é interessante notar que “a empresa de si” não constitui um modo de ser, de se perceber típico apenas de indivíduos que atuam no setor empresarial; a empresa de si mesmo molda todas as relações sociais, é um componente da subjetividade de todos os indivíduos “aprisionados” na ordem econômica capitalista. Mesmo os funcionários públicos, como professores, por exemplo, precisam agir e se perceber como indivíduos responsáveis pela valorização de seu trabalho, como indivíduos competitivos, que prezam a eficiência, a produtividade; mesmo eles são avaliados pelos órgãos públicos, pelos gestores da administração pública segundo os cálculos, as métricas do tipo empresarial. Muitos deles não se dão conta disso, lamentavelmente.  Em segundo lugar, destaco também a constatação de que a responsabilidade do indivíduo pela valorização de seu trabalho no mercado se transformou num princípio absoluto.  Não devemos reivindicar que o valor de nosso trabalho seja reconhecido; é-nos vedado cobrar a valorização do nosso trabalho, porque, segundo a lógica da responsabilização pessoal pela valorização do próprio trabalho, se nosso esforço não está sendo valorizado, é porque nós não estamos trabalhando o suficiente e adequadamente para merecê-lo. O sujeito neoliberal responsável pela autovalorização é também culpado pela falta de reconhecimento de seu valor. Ademais, ser responsável por valorizar seu próprio trabalho impõe ao indivíduo o dever de relacionar-se com seu trabalho como um gestor, um investidor que busca sempre maximizar seu desenvolvimento.

O trabalho se torna, pois, um produto, cujo valor mercantil pode ser mensurado de forma cada vez mais precisa, donde se segue que o contrato salarial pôde ser substituído por uma relação contratual entre “empresas de si mesmo”. O sujeito neoliberal não é mais um funcionário da empresa, um trabalhador, mas um colaborador. O modelo da empresa que redefine as relações sociais transforma toda atividade em atividade empresarial. Por isso, o uso da palavra “empresa” está longe de ser metafórico, já que toda atividade de um indivíduo é representada como um processo de valorização do seu eu. A categoria “empresa” significa, então, que a atividade de cada indivíduo, em todas as suas dimensões e esferas, quer como trabalho remunerado, quer como trabalho beneficente para uma associação, quer como gestão do lar familiar, quer como aquisição de competências, quer como desenvolvimento de uma rede de contatos, quer como preparação para mudança de trabalho, etc., é, essencialmente, atividade empresarial.

O que não se pode perder de vista, a esta altura, é que todo trabalho envolvido na realização da empresa de si mesmo vai muito além do mundo profissional. A empresa de si é uma ética pessoal em tempos de incerteza. Dada a equivalência entre a valorização mercadológica do trabalho e a valorização de si próprio, seria a ética empresarial, ou melhor, a empresa de si uma versão moderna da epimeleia grega, ou o “cuidado de si”? Eu diria que a empresa de si não se equivale às práticas estoicas de cuidado de si. A empresa de si é uma corruptela moderna dos exercícios espirituais de que toda a tradição filosófica, tanto antiga quanto moderna, é um testemunho de inestimável valor e admiração até hoje. Não posso me deter em examinar as diferenças entre a epimeleia antiga e as técnicas empresariais destinadas a fabricar o sujeito neoliberal. No entanto, posso afirmar, com Foucault, que, se os exercícios espirituais da antiguidade grega visavam a cunhar um eu próximo do ideal proposto no discurso, na governamentalidade neoliberal, o governo de si é a própria condição para o exercício de um governo político ou religioso. Segundo Foucault, isso vale, em particular, para a relação entre o governo de si e o governo dos outros na pólis, tal como pensada na ética grega clássica. Aquele que é incapaz de governar a si mesmo é incapaz de governar os outros. As palavras, abaixo referidas, de Laval lançam luzes sobre a radical diferença entre as duas formas de “ocupação de si”:

 

(...) a ascese da empresa de si mesmo termina com a identificação do sujeito com a empresa, deve produzir o que chamamos antes de sujeito do envolvimento total, ao contrário dos exercícios da “cultura de si mesmo” dos quais trata Foucault, cujo objetivo é estabelecer uma distância ética em relação a si mesmo, uma distância em relação a todo papel social. (Laval, 2020, p. 339, grifos meus).

 

Não é custoso inferir que as práticas do “cuidado de si” da antiguidade grega visavam à conquista da verdadeira liberdade, ou seja, da sabedoria – pois só o sábio é verdadeiramente livre. Nada semelhante ocorre com a ascese da empresa de si mesmo, cujas técnicas e discursos visam a cunhar um sujeito apropriado e adaptado à nova ordem econômica governada pela racionalidade neoliberal.

A empresa de si é gestão de porftifólio; implica o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem, de casamento, amizade, educação dos filhos, administração do capital do sujeito como empresa de si. O capital é, portanto, tanto familiar quanto individual. O crescimento do capital depende de experiências, formação, contatos, competências, além, é claro, de esforço, energia, saúde, carteira de clientes, rendimentos e bens.

Em suma, a noção de empresa de si pressupõe que a vida pessoal esteja integrada à vida profissional; pressupõe também uma gestão familiar do portifólio de atividades, uma transformação da relação com o tempo, o qual não é mais determinado pelo contrato salarial, mas por projetos realizados juntamente com diversos colaboradores. Sob a dominação neoliberal, cada ser humano é resultado de um conjunto de técnicas práticas à disposição de si para alcançar essa nova forma de “sabedoria” que consiste no desenvolvimento autogerado da empresa de si mesmo.

Por fim, qual é a especificidade do sujeito neoliberal, que é o sujeito empresa de si? Esse sujeito se distingue de outras formas sujeito pelo empenho (obsessivo) de aprimoramento sobre si mesmo, que o leva a perseguir a otimização incessante de seus resultados e de seus desempenhos. O sujeito neoliberal é fabricado por um meio definido por paradigmas que englobam tanto o mercado de trabalho como o mercado da educação, com seu princípio de “formação para toda a vida”.

 

PALAVRAS FINAIS

 

O neoliberalismo é uma racionalidade governamental; é o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa. Essa lógica do mercado se expressa no imperativo capitalista da acumulação ilimitada (e, certamente, desastrosa, tanto no âmbito social quanto no âmbito ecológico). Deve-se frisar, conforme mostrei, que o neoliberalismo não retoma a questão dos limites do Estado. Na verdade, ele converte a lógica do mercado em lógica normativa desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade. Outrossim, o neoliberalismo não é o herdeiro natural do liberalismo clássico, assim como não é seu extravio, nem sua traição. O neoliberalismo está determinado a fazer do mercado tanto o princípio do governo dos indivíduos como o princípio do governo que cada indivíduo deve fazer de si mesmo.

O Estado neoliberal converteu-se num instrumento da classe capitalista, sempre desejosa de aumentar seu bolo na distribuição de renda.

Quando se enfoca a questão do neoliberalismo à luz de uma reflexão política, pode-se alcançar uma exata compreensão dos modos de dominação neoliberal. Visto de uma perspectiva política, o neoliberalismo não pode ser equacionado a uma proposta de retirada do Estado em face do mercado. Insistir na oposição entre mercado e Estado na análise do neoliberalismo é obscurecer a compreensão do que ele é. Ademais, à luz de uma reflexão política, o neoliberalismo descortina o fato de que não foi o mercado que, de fora, colonizou o Estado, passando a ditar a política que ele deveria seguir; ao contrário, foi o Estado (sobretudo, os Estados mais poderosos do Globo) que incorporou e adotou na economia, na sociedade e na sua máquina administrativa, a lógica da concorrência e o modelo da empresa. O mercado moderno sempre foi amparado pelo Estado, contrariando o que muitos idiotas ainda hoje preferem acreditar  A expansão das finanças do mercado, o financiamento do assalto que é a dívida pública são frutos de políticas deliberadas.

Cada vez mais, os Estados ocidentais adotam políticas eminentemente intervencionistas, cujo objetivo é transformar profundamente as relações sociais, modificar o papel das instituições de proteção social e de educação, moldar as condutas, criando uma concorrência generalizada entre os sujeitos, entre as instituições de ensino, entre diversos setores de mercado; afinal, os Estados estão eles mesmos inseridos num campo de concorrência regional e mundial que os força a agir dessa forma.

Finalmente, a via da reflexão política do neoliberalismo lança luzes sobre o fato de que é a mesma lógica normativa que rege tanto as relações de poder quanto as maneiras de governar em níveis e domínios variados da vida econômica, social e política. O conceito de governamentalidade de Foucault elucida a transversalidade dos modos de poder exercido no interior de uma sociedade num mesmo período histórico.

Como bem lembra Brown (2018, p. 66), “(...) o objetivo do neoliberalismo é derrotar a sociedade e o social”.  Ao que ele mesmo acrescenta, “o ataque neoliberal ao social é fundamentalmente para gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima”. (ibid., p. 39). De passagem, esclareço que o “social”  é, para Brown, o espaço onde somos reconhecidos como cidadãos, portadores de direitos políticos e reunidos politicamente mediante a provisão de bens públicos. É o local onde as desigualdades social, econômica, educacional, de gênero – entre outras - historicamente produzidas, se manifestam com voz e tratamento político diferenciados. No social, somos mais que consumidores, produtores, indivíduos e famílias; mais do que investidores ou meros membros da nação. O social é o lugar onde se busca realizar a justiça e atender aos interesses do bem comum. É este o local que o neoliberalismo se emprenha em destruir conceitual, normativa e praticamente.

 Brown mantém que, como o ataque ao social suprime a compreensão democrática de uma sociedade formada por um povo caracterizado pela diversidade e habilitado para o governo de si mesmo, de modo igualitário e solidário, a política se converte num campo de guerra, onde posicionamentos extremos e intransigentes ousam usurpá-la, e onde a liberdade se torna um direito de apropriação, de ruptura e mesmo de destruição do social – “o inimigo declarado dos neoliberais”.




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BIBLIOGRAFIA

 

AZEVEDO, Paulo Faraco de. Neoliberalismo: desmonte do Estado Social. Porto Alegre: Libretos, 2018.

 

BRITO, Ari Ricardo Tank. Liberalismo clássico. In: RAMOS, F.C.; MELO, Rúrion; FRATESCHI, Yara. Manual de Filosofia Política: para os cursos de Teoria do Estado e Ciência Política, Filosofia e Ciências Sociais. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosofia Politeia, 2019.

 

CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal: racionalidade, normatividade e imaginário. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Maria Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

DOWBOR, Ladislau. Democracia econômica: alternativas de gestão social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

LAVAL, Christian. Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2020.