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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O caso dos verbos auxiliares

                       
                                


                   O caso dos verbos auxiliares
  Alguns critérios para a determinação da auxiliaridade


A auxiliaridade, ou seja, o comportamento estritamente gramatical que certos verbos exibem quando entram a fazer parte do que, tradicionalmente, se tem chamado de locução verbal, é, sem dúvida, um dos tópicos mais controversos em gramática. Tenciono, neste texto, examiná-lo com vistas a avaliar a adequação de um conjunto de critérios sintáticos que nos permitiriam determinar se, dada a proximidade de dois verbos, um dos quais deve ou não ser considerado um verbo auxiliar. A apresentação desses critérios se seguirá a um longo e acurado esforço analítico de uma série de problemas recobertos pelo fenômeno da auxiliaridade.
Minha hipótese inicial é que os referidos critérios sintáticos, em si, isto é, quando tomados sem qualquer referência ao aspecto semântico implicado na questão, não dão conta de todos os casos que a tradição gramatical considera casos de locução verbal. Sem embargo, penso que eles são indispensáveis para que se consiga estabelecer as condições que fazem de uma combinatória verbal um caso de locução verbal.
Antes de encetar a discussão, faz-se mister dar a saber um elenco de conceitos básicos que devem ser, de antemão, conhecidos, a fim de que a própria discussão se torne tanto mais compreensível ao leitor quanto menos dispendiosa para mim. Com a apresentação e definição desse conjunto de conceitos, creio não só contribuir para facilitar o trabalho de compreensão do leitor, como também me escuso da necessidade de fazer, vez ou outra, ao longo da discussão, alguma digressão para esclarecer um conceito circunstancialmente relevante.

1. Conceitos básicos

1.1. O que é gramática?

O primeiro conceito que eu gostaria de esclarecer é o de gramática. Duas acepções do termo gramática estarão pressupostas no desenvolvimento desta exposição. A primeira acepção do termo gramática recobre a ideia de sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse sentido, todas as línguas naturais são dotadas de uma gramática – de um sistema de regras -, que prevê as possibilidades combinatórias que tomam parte da produção de enunciados funcionalmente aceitáveis em cada língua. Assim, por exemplo, a gramática da língua portuguesa – o sistema de regras dessa língua – prevê uma regra que nos obriga a usar a preposição “de” para conectar o verbo “ter” a uma forma de infinitivo, procedimento de que resulta uma locução verbal (conforme veremos). Um exemplo dessa construção é a frase (a), abaixo:

(a) Tenho  de   sair cedo amanhã.
                         inf.

Por outro lado, a desobediência a essa regra gramatical torna a construção agramatical ou inaceitável para os usuários do português (o * marca a agramaticalidade):

(a1) *Tenho  # sair   cedo amanhã.

A segunda acepção do termo gramática que o leitor deve ter em conta ao longo desta exposição é recoberta pela designação gramática descritiva, a qual constitui uma hipótese elaborada pelo linguista com base na qual ele busca descrever e explicar a estrutura e o funcionamento de uma dada língua. A gramática descritiva, enquanto modelo teórico-metodológico, cientificamente construído com base nos postulados da observação e da análise de certo conjunto de “fatos linguísticos”, eles mesmos determinados pelo recorte teórico-metodológico que, por sua vez, norteia a observação e a análise, visa, portanto, à descrição e à explicação da gramática tomada na primeira acepção acima. A rigor, o que o linguista tenta descrever e explicar é esse sistema de regras – a gramática na primeira acepção - que se encontra inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos na forma de um saber que eles dominam intuitivamente.
Já de início, como eu pretenda situar a problemática sobre a qual me debruçarei, buscarei aporte em um exemplar de gramáticas tradicionais do português, chamadas também de gramáticas normativas, as quais, embora encerrem uma porção de descrição, são orientadas fundamentalmente por uma preocupação prescritivista. As gramáticas normativas, que se identificam com nossas gramáticas escolares, isto é, que, tradicionalmente, fornecem insumo ao ensino de língua portuguesa na escola, são manuais que reúnem certo número de regras pelas quais se estabelece “o bom uso” da língua. Assim,  acredita-se que os falantes que pretendem ser socialmente bem avaliados, quando do uso de sua língua materna, deverão pautar seu comportamento linguístico pelas regras prescritas por essa gramática.
É suficiente dizer – já que o território em que se desenvolve esta discussão não carece aqui de ser inspecionado – que os critérios pelos quais esse “bom uso” é estabelecido são não só variados, como também determinados e sustentados por uma argumentação atravessada por pressupostos elitistas ou aristocráticos quase sempre silenciados ou quase nunca acessíveis aos não-especialistas. O “bom uso” é um valor normativo, sociolinguisticamente determinado, inspirado num ideal de correção idiomática que se busca estabelecer, por seleção arbitrária dos usos feitos pelos assim considerados “grandes escritores” da literatura.

1.2. Formas nominais do verbo

Chamam-se formas nominais do verbo às formas que cumulam a função verbal com a de nomes. Significa isso dizer que tais formas preenchem funções sintáticas típicas de substantivo e adjetivo. Essas formas nominais apresentam as desinências –r, -do e –ndo. Dividem-se em infinitivo, que se comporta como um substantivo (cf. Recordar é viver); em particípio, que assume a função típica do adjetivo (cf. homem sabido/ empresa falida); em gerúndio, que assume a função típica de adjetivo (cf. Despeje a água fervendo na vasilha = água fervente) e também de advérbio, muito embora, atualmente, a classe dos nomes recubra apenas o adjetivo e o substantivo, em virtude do fato reconhecido de que eles são praticamente indistintos do ponto de vista morfossintático (cf. Amanhecendo, sairemos = assim que amanhecer, sairemos/ cedo sairemos). Note-se que, nesse último caso, a forma de gerúndio “amanhecendo” ocupa a posição suscetível de ser ocupada por uma oração adverbial ou por um advérbio simples.

1.3. Significado lexical e significado gramatical

O significado lexical recobre o modo como as línguas segmentam nossas experiências de mundo. Trata-se do significado que corresponde à organização do mundo extralinguístico. Por exemplo, o vocábulo “casa” comporta significado lexical, porque descreve um elemento, uma coisa do mundo exterior à língua.  Estou ciente de que simplifico demais a explicação; mas essa simplificação é indispensável para que não percamos de vista o que é necessário reter na distinção que ora procuro apresentar.
Por seu turno, o significado gramatical compreende o conjunto de distinções significativas que pertencem ao domínio estrito da gramática. Tomando-se a forma “casas”, o elemento “-s” marca a noção de pluralidade que está na base da distinção entre os pares “casa/casas”. A distinção singular x plural é marcada pela oposição ‘presença de marca –s’ e ‘ausência de marca -s’. A presença da marca ‘-s’ indica o plural, ou seja, expressa a quantidade ‘mais de um elemento’ relativamente ao ao referente ‘casa’; a ausência dessa marca indica a ausência da noção 'mais de um'. Nos substantivos, a distinção singular/plural é referencialmente motivada: o singular serve à expressão da ideia de unicidade; o plural, à ideia de pluralidade.  Ademais, essa distinção é determinada por condições gramaticais. A forma assumida pelo determinante (artigo, por exemplo) fixará a forma que deverá ser assumida pelo substantivo subsequente. Assim, em “as casas”, a ocorrência da desinência “-s” em “a” determina a ocorrência da desinência “-s” no substantivo “casa”. Por outro lado, a ausência de marca no primeiro elemento do sintagma implica a ausência de marca no segundo elemento (cf. a casa). Naturalmente, essa regra vale para a variedade de prestígio da língua. Em outras variedades, muito estigmatizadas, basta acrescentar o “s” no artigo para indicar que todo o grupo sintagmático foi pluralizado (cf. as casa).
A distinção entre significado lexical e significado gramatical pode ser estabelecida também em termos da distinção entre lexemas e gramemas. Assim, distinguem-se os lexemas, que são morfemas lexicais que comportam um significado de base extralinguística, o qual representa parcelas de nossa experiência de mundo, dos gramemas, os quais comportam significado estritamente gramatical, responsável pelas distinções operadas no interior da gramática. Por exemplo, se os nomes “Alexandre” e “Márcia” identificam entidades do mundo extralinguístico, os pronomes “ele” e “ela” apenas indicam as entidades do discurso, seja essas entidades designadas por substantivos [+ animado], seja por entidades [- animado]. As formas “ele” e “ela” não designam referentes no discurso, mas nos instruem para que os recuperemos no domínio discursivo. A distinção entre “ele” e “ela” repousa no fato de que a primeira forma remete a um referente designado por um substantivo masculino no singular; a segunda, a um referente designado por um substantivo feminino no singular.
Os lexemas pertencem a um inventário aberto, ilimitado de formas; ao contrário, os gramemas pertencem a um universo fechado ou limitado de formas. Verbos, adjetivos, substantivos e advérbios em –mente (felizmente, alegremente, etc.) são exemplos de lexemas. Artigos, preposições, conjunções, numerais e pronomes são exemplos de gramemas.
Essa distinção, conquanto suscite críticas e sem reivindicar qualquer rigor teórico-metodológico, será importante, todavia, para que se compreendam os verbos auxiliares como formas gramaticalizadas, formas que perderam o significado lexical (mas não todo e qualquer significado, conforme veremos) e com ele sua natureza valencial, no ambiente sintático em que se encontram.

1.4. Locução verbal

Por locução, entende-se um grupo constituído por dois ou mais elementos em vias de cristalização, que pode ser totalmente invariável ou pode admitir a pluralização de um de seus elementos constituintes, desde que não seja o último. Essa definição, deveras, abrangente reúne num mesmo elenco construções como “atrás de” e “cesta básica”, “merenda escolar”. Também aí devemos incluir os substantivos e adjetivos compostos, tais como “navio-escola” e “verde-garrafa”, entre outros tantos.
A definição que apresento não pretende dar conta da complexidade envolvida nessa questão. É extremamente difícil determinar a natureza locucional de um grupo de palavras. Essa definição deve ser encarada apenas como um guia para a compreensão do conceito de locução verbal, que é o conceito que convém elucidar para efeitos de discussão.
A locução verbal é uma unidade semântico-sintática formada pela combinação de dois ou mais verbos, um dos quais preserva sua natureza semântico-sintática. Cumpre, então, esclarecer o seguinte. A locução verbal é um complexo constituído por pelo menos dois verbos, o primeiro dos quais perde significado lexical e assume o papel de suporte para a expressão das categorias gramaticais de tempo, número, pessoa, modo e aspecto. O segundo verbo, no entanto, conserva seu comportamento valencial; é ele o predicador, o responsável por determinar a estrutura relacional da oração.
As noções de número e pessoa são reflexos da pessoa e número do sujeito. Destarte, o verbo se flexiona para expressar as categorias de número e pessoa inerentes ao sujeito. Na locução verbal, é ao verbo auxiliar que cumpre manifestar as flexões de tempo, número, pessoa, modo e aspecto.
A categoria de aspecto diz respeito à duração do processo verbal independentemente da instanciação do tempo. O aspecto indica ou não a estrutura temporal interna de um fato (Costa, 1997, p.38). Assim, por exemplo, na oração “O garoto começou a correr”, o aspecto incoativo, ou seja, a expressão da fase inicial do processo de “correr”, é marcado pelo verbo “começar”, que também atualiza as categorias de tempo, número, pessoa e modo.

1.5. Valência

Entendo por valência a propriedade que tem o verbo, por excelência, na condição de predicador, de determinar certo número de lugares vazios passíveis de ser preenchidos pelos seus actantes. A valência é um fenômeno de base semântica que exibe, no entanto, uma dimensão sintática. Além do número de lugares vazios, o verbo determina também as propriedades morfossintáticas e semânticas dos actantes. A valência é uma propriedade semântica também extensiva a certos substantivos e adjetivos, mas é o verbo a forma que mais sistematicamente a manifesta.
Por actante, entendo cada um dos constituintes sintáticos que preenchem os lugares vazios determinados pela valência do verbo. O fenômeno de valência verbal se sustenta pelo princípio da previsibilidade valencial, por mim demonstrado em minha dissertação de mestrado, o qual se define como o fato de o significado do verbo prever certo número de lugares vazios e tipos morfossintáticos e semânticos de actantes.
Cada um dos lugares vazios é representado por uma das variáveis x, y, z, que são marcadores de posição. A variável x corresponde à posição típica do actante sujeito; a variável y, à posição do complemento direto (objeto direto), outro actante; e a variável z , à posição do complemento indireto (objeto indireto), outro actante.
Assim, tomando-se os verbos “construir” e “dar”, temos as seguintes estruturas relacionais formalizadas abaixo:

(b) X  construir Y
(c) X dar  Y  a  Z

Essas estruturas servem de modelos para a produção de um sem-número de frases das quais “construir” e “dar” são predicadores. Vejam-se os dois exemplos abaixo:


(b1) O rapaz construiu a maquete em uma hora.
           X            v              Y

(c1) O pai    deu   a mesada   ao garoto.
           X       v          Y             Z

Acrescente-se que, além de determinar o número de actantes, o verbo “construir” faz restrição de seleção quanto aos traços semânticos que devem comportam seus actantes. Assim, o actante sujeito deve ser preenchido por um substantivo [+ humano], na função semântica de AGENTE (entidade dotada dos traços [+ animação] e [+ intencionalidade]). O verbo “construir” não autoriza a ocorrência de um substantivo como “cachorro”, por exemplo, para ocupar a posição de sujeito. Ora, claro está que “construir” codifica uma experiência complexa que supõe um agente inteligente, dotado de capacidades cognitivas e motoras que lhe permitam praticar a ação de “construir”.
Por seu turno, o verbo “dar”, na acepção com que foi empregado em (c), a saber, na acepção de ‘transferir ou doar o que se possui a outrem’, tem uma seleção menos restritiva, já que autoriza a ocorrência de um sujeito [+ animado], como “cachorro”, desde que o segundo actante designe um elemento que possa integrar a experiência de um cachorro. Naturalmente, “cachorros” não dão mesadas, mas podem ser treinados para “dar” um molho de chaves ao seu dono.
Há que considerar verbos que fazem ainda restrições quanto à forma do sujeito. Um exemplo desse tipo de verbo é o verbo “convir”, que seleciona uma oração  reduzida de infinitivo para ocupar a posição de sujeito.

(d) Convém dizer sempre a verdade.
                         actante-sujeito

Não menos importante é que esse verbo exige que o sujeito lhe seja, sistematicamente, posposto.  Relativamente aos seus actantes, o verbo determina suas (1) propriedades morfossintáticas; (2) propriedades sintáticas; (3) propriedades semântico-categoriais; (4) propriedades semântico-relacionais.
As propriedades do tipo (1) – morfossintáticas -, recobrem a presença ou ausência de marcas preposicionais introduzindo os actantes. Por exemplo, o verbo gostar exige um actante introduzido de preposição “de” (cf. Gosto de sorvete). As propriedades do tipo (2) – sintáticas – recobrem, por sua vez, as diferentes possibilidades de pronominalização dos actantes. Por exemplo, os verbos obedecer e recorrer exigem diferentes formas de pronominalização de seu actante imediatamente posposto. Para uma frase como “Ele obedece ao pai”, temos a correspondente com pronominalização do actante “ao pai” “Ele lhe obedece”. Mas o verbo “recorrer” recusa a forma “lhe” para substituir seu actante lhe posto à direita. Nesse caso, devemos usar a forma “a ele/a ela”: “Pedro recorreu ao pai”/ Pedro recorreu a ele.
Também é uma propriedade sintática a forma assumida pelo  actante por exigência do verbo predicador. Assim, o verbo “alegrar” pode selecionar para acantante sujeito um SN cujo núcleo é um substantivo, como em “Alegra-me a sua vinda”, ou um SN na forma de oração desenvolvida, como em “Alegra-me que você venha”. É possível também construir o verbo “alegrar” com um actante na forma reduzida de infinitivo, como em “Alegra-me cumprimentá-lo”.
As propriedades do tipo (3) – semântico-categoriais – dizem respeito a restrições de seleção dos semas constitutivos do significado do núcleo dos actantes. Por exemplo, o verbo “espantar” exige que o actante correspondente à função de sujeito seja ocupado por um substantivo [+ animado], como em “O garoto se espantou com a atitude do colega”. Esse verbo recusa a ocorrência de um substantivo nessa mesma posição desprovido desse traço, como em “* A cadeira se espantou com o mau tempo”.
Finalmente, as propriedades do tipo (4) – semântico-relacionais – recobrem as funções semânticas que os actantes devem assumir no estado-de-coisas designado. Novamente, é o verbo que determinará essas funções para seus actantes. O verbo “ouvir” fixa a função semântica de “EXPERENCIADOR” para o actante x (sujeito), ao passo que o verbo “arremessar” fixa a função semântica de AGENTE para esse mesmo actante (cf. João ouviu o barulho que vinha da cozinha/ Paulo arremessou a pedra na vidraça).

1.6. Verbos ergativos

O conceito de verbos ergativos também será importante num momento de minha análise. Verbos ergativos são verbos cuja estrutura valencial encerra um sujeito que cumpre a função semântica de PACIENTE.
Cada uma das construções em que se especificam os actantes do verbo e seus respectivos papéis semânticos é uma diástese. Vejamos um exemplo de verbo ergativo:

(e) O tanque encheu.

O verbo “encher” pode assumir uma forma ergativa. Em (e), ele determina a ocorrência de um substantivo no papel semântico de paciente. Coteje-se (e) com (e1):

(e1) O frentista encheu o tanque.

Agora, o verbo “encher” assume um comportamento transitivo. Seleciona um actante sujeito AGENTE e um actante complemento PACIENTE.
Verbos como “encher” são transitivos-ergativos, porque se comportam como transitivos ou ergativos. A esse grupo deve-se acrescentar o verbo “abrir”, que ocorrerá em um dos próximos exemplos que tratarei de examinar neste estudo. A construção ergativa também é determinada pela valência do verbo.


2. Situando a problemática

Em sua Moderna Gramática Portuguesa (2002), o gramático Evanildo Bechara aduz sua definição de locução verbal nos seguintes termos:

“Chama-se locução verbal a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, o gerúndio ou particípio de outro verbo que se chama principal (...) Muitas vezes o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal dando origem aos chamados verbos aspectuais (p. 203)”.

Deve-se notar que a definição de locução verbal de Bechara assenta apenas no domínio formal do fenômeno, ou seja, sua definição descreve a estrutura de uma locução verbal, e nada nos diz sobre o que faz com que um verbo seja considerado verbo auxiliar, questão principal deste trabalho. Tampouco nos dá a razão por que o outro verbo constituinte da locução é chamado de principal.
Bechara ajunta que, entre o verbo auxiliar e o principal na forma de infinitivo, pode ocorrer ou não uma preposição, entre as mais comuns refere as preposições de, em, por, a e para (cf. Tenho de sair/ Estou para conseguir um emprego). Prossegue o autor observando que, na locução verbal, é somente o auxiliar que manifesta as flexões de pessoa, número, tempo e modo (cf. Haveremos de fazer, iam trabalhando).
Veja-se o elenco de verbos auxiliares apresentado por Bechara a seguir:


1) ter, haver e ser

Os verbos ter e haver constituem os chamados tempos compostos, caso em que se combinam com a forma de particípio do verbo principal. Assim, temos “tenho cantado” e “havia vendido”.

O verbo ser se combina com o particípio-adjetivo (porque variável em gênero e número) para a formação da voz passiva, equivocadamente chamada pela tradição passiva de ação. Não nego que, em muitos casos, o verbo ser entra a fazer parte da formação de uma voz passiva de ação, mas isso se dá apenas quando o particípio deriva de um verbo que indica ação ou processo. Por exemplo, em “O carro foi comprado ontem”, há uma voz passiva de ação, já que o verbo “comprar” denota ação. No entanto, em “João é amado por todos”, não há voz passiva de ação, pois que a forma participial “amado” é formada a partir do verbo “amar” que não denota ação, mas uma experiência de ordem psico-física. É lícito dizer – me parece – que “ser amado” encerra um significado estativo, no sentido em que a entidade amada encontra-se no estado de objeto do amor.

2) estar e ficar

Os verbos estar e ficar também formam a voz passiva; estar integra a construção passiva de estado; e ficar, a construção passiva de mudança de estado. Assim, temos “Estou acordado” e “Depois de tanto caminhar, ficou cansado”.
Os verbos estar e ficar também podem-se combinar com gerúndio, como se vê nas frases “Estamos andando o dia todo” e “Ficava conversando sem parar”.

3) auxiliares aspectuais que se combinam com infinitivo ou gerúndio para determinar as fases da duração do fato expresso pelo verbo. Nesse grupo, Bechara inclui os verbos: começar a, por-se a, continuar, estar para, estar (a), andar, vir, ir, tornar a, costumar, acabar, cessar de, deixar de, parar de.
Notemos, de passagem, que os verbos estar e ficar, quando combinados com gerúndio, indicam o aspecto cursivo, ou seja, marcam a ação em seu desenvolvimento, em seu curso, como em “Estou escrevendo este texto agora”.

4) auxiliares modais, que se combinam com o infinitivo ou o gerúndio do verbo principal para marcar as atitudes que o locutor projeta sobre seu enunciado. Na esteira da tradição lógica aristotélica, tais marcas expressam as modalidades fundamentais do possível e do necessário e, por negação, os seus respectivos contrários, o impossível e o contingente. A despeito de sua herança lógica, a modalidade é tratada em Linguística como modalização, que não é pura e simplesmente um novo termo para um já reconhecido fenômeno linguístico, mas uma nova maneira de encará-lo. Basicamente, o que a Linguística fez ver foi a importância de considerar o envolvimento dos interlocutores na tentativa de compreender o fenômeno da modalização. As línguas naturais não conservam as definições estabelecidas pela Lógica, justamente porque o envolvimento de interlocutores, numa dada situação de interação, implica a existência de um contrato epistêmico que redefine as modalidades sentenciais propostas pela Lógica tradicional.
Constituem exemplos de verbos auxiliares modais ter de, dever, precisar, poder. Os três primeiros expressam a modalidade.  deôntica (do dever, do ser necessário); o último a do possível. É claro, no entanto, que a determinação da função modalizadora desses verbos, ou melhor, do seu conteúdo modal depende sempre das condições contextuais. O verbo “poder”, por exemplo, expressa possibilidade e/ou permissão em “Ele pode faltar à aula hoje”, mas ‘capacidade’ em “Ele já pode caminhar sozinho”. O verbo “dever” expressa ‘obrigatoriedade, necessidade’ em “Você deve ajudar os mais velhos”, mas ‘dúvida’, ‘incerteza’, em “Amanhã, devo ir à escola (não sei)”.
Outro verbo que serve para modalizar o enunciado é o verbo “parecer” combinado com infinitivo, como em “Ele parece estar sozinho agora” (expressão de dúvida, incerteza). É preciso entender que é o enunciador que, ao fazer uso de uma forma como “parecer”, projeta sobre o enunciado uma atitude de dúvida ou incerteza sobre o conteúdo comunicado. O fenômeno da modalização já foi objeto de exame em outros textos neste blog, por isso não vou me estender sobre ele. Mas cumpre dizer que a modalização deve ser entendida em termos de mais ou menos adesão do enunciador ao seu enunciado. Quem diz “Ele parece estar sozinho” não se compromete totalmente com o valor de verdade do seu enunciado, não adere totalmente ao conteúdo proposicional. A modalização, nesse sentido, é uma das estratégias de que dispõem os enunciadores para preservar a sua face. Ademais, o fato de o enunciador marcar mais ou menos adesão aos seus enunciados tem claras implicações na orientação argumentativa por ele tomada. O fenômeno da modalização é, portanto, um dentre os recursos de que dispõem os usuários da língua para fazer uso eficaz dela argumentativamente. Por exemplo, se estou insatisfeito com a insistência de minha namorada ou esposa para que vamos à praia amanhã, posso demonstrar meu desinteresse por ir, enunciando que “Parece que amanhã vai chover” (as razões de meu desinteresse podem ser outras, é claro; e isso certamente pode ensejar uma discussão, mas vamos desconsiderar essa possibilidade). O “parece que amanhã vai chover” constitui não só uma estratégia de recusa de um pedido indiretamente, mas, por força da ocorrência de “parecer”, também uma estratégia pela qual não me comprometo, ou melhor, afrouxo minha responsabilidade pela confiabilidade da informação. Manifesto dúvida sobre a possibilidade de chover (ouvi dizer, trata-se de uma previsão meteorológica da qual tomei conhecimento), mas não se me podem imputar a responsabilidade por enunciar uma falsidade caso “amanhã” faça um sol escaldante. O “parece que amanhã vai chover” também dá certa margem de liberdade de escolha a minha interlocutora, que pode se “arriscar” ou não a ir à praia, na esperança de que a previsão falhe. Assim, ao mesmo tempo em que lhe dou uma margem de escolha, busco mascarar qualquer atitude autoritária em minha fala, comunicando-lhe, no entanto e ao mesmo tempo implicitamente, que não estou disposto a me “arriscar”.
Retomando o elenco proposto por Bechara, cabe ainda referir outros conjuntos de verbos considerados por ele como auxiliares. Trata-se de casos, deveras, problemáticos. Vejamos quais são esses conjuntos.

5) Verbos que expressam tentativa ou esforço, em alguns casos seguido de decepção.

Busco escrever
Pretendo viajar
Tento ficar
Ouso reclamar
Procuro examinar


6) Verbos que indicam volição ou desejo:

Quero escrever
Desejo escrever
Odeio estudar

7) Verbos que exprimem consecução:

Consegui terminar
Logrei fazer


8) Verbos auxiliares causativos e sensitivos:

a) causativos: deixar, mandar e fazer;
b) sensitivos: ver, ouvir e sentir.

Todos esses casos merecem uma avaliação crítica, mas vou circunscrevê-la a dois casos que, uma vez se demonstrem incorretos à luz da crítica, os outros dois também estarão. Ater-me-ei aos casos 6) e 8).
Segundo Bechara, verbos como querer, desejar e odiar podem ou não se comportar como auxiliares. Em nota, ele nos dá a conhecer o que é necessário considerar para que estes verbos sejam considerados ou não auxiliares:

“Por exemplo, na frase: queríamos colher rosas, os verbos queríamos e colher constituirão expressão verbal se pretendo dizer que queríamos colher rosas e não outra flor, sendo rosas objeto da declaração. Se, porém, pretendo dizer que o que nós queríamos era colher rosa e não fazer outra coisa, o objeto da declaração é colher rosas e a declaração principal se contém incompletamente em queríamos” (p.233).



Bechara cita aí José Oiticica. Esclareça-se o que nos ensina o gramático. O que está dizendo Bechara é que é a intenção do falante que determinará se, em “queríamos colher rosas”, há uma locução verbal “queríamos colher” ou, ao contrário, uma oração principal “queríamos” a que se articula uma oração de infinitivo “colher rosas”. O problema patente dessa proposta é o total abandono da descrição à arbitrariedade em que se baseia o recurso à “intenção do falante”. É claro que a intenção do falante é um dos elementos importantes a ser considerados quando se descreve a língua em uso, mas a intenção é sempre pensada como um elemento constitutivo da troca verbal, o qual deve, para ter valor epistemológico, ser passível de apreensão pela materialidade linguística. Na esteira da Pragmática, em Linguística, a intenção é realizada por meio de textos; dito de outro modo, os textos realizam a intenção dos falantes e permitem recuperá-la. O que Bechara fez, a meu ver, foi simplesmente renunciar a se decidir sobre a questão. Ele se negou a lançar mão de um critério seguro, tangível ou operancional para determinar se em “queríamos colher rosas”, o verbo “querer” é um verbo auxiliar ou não.
A razão por que a análise mais adequada é a que fixa o caráter não-auxiliar para verbos como “querer” é que esse verbo conserva seu significado lexical e, por consequência, a sua natureza valencial ou predicadora. Substituamos “colher rosas” por “casar com você”, e ajustemos a oração, para vermos que o verbo “querer” seleciona para actante à direita toda a oração “casar com você” (cf. Quero casar com você). Ora, o sintagma preposicional “com você” não está sob a dependência do conjunto “quero casar”, mas apenas de  “casar”. Ele integra a oração de “casar”. O verbo “querer” conserva seu estatuto valencial, selecionando um complemento direto na forma oracional. Mais adiante, veremos se os critérios sintáticos se aplicam satisfatoriamente a esse caso.
Detendo-me doravante no caso dos auxiliares causativos e sensitivos, convém notar que Bechara (p.430), aduzindo os exemplos abaixo,

Vejo abrir a porta
Ouço soprar o vento
Vejo crescer as árvores

mantém que, em “Vejo abrir a porta”, “a porta” é objeto direto de “abrir”, interpretação equivocada, porque, nessas construções, o SN é, sistematicamente, deslocado para a posição posterior à combinatória verbal. Essa possibilidade de deslocamento é garantida pela natureza semântico-sintática do infinitivo. Os verbos “soprar” e “crescer” são verbos que recusam objeto direto; e o verbo “abrir” é um verbo do tipo ergativo-transitivo. Quando ergativo, o verbo “abrir” seleciona um actante sujeito-PACIENTE. Por exemplo, “A porta abriu”. Na construção “Vejo a abrir a porta”, “a porta” é sujeito de “abrir”, que está apenas deslocado de sua posição canônica (cf. Vejo a porta abrir). O verbo “abrir” admite uma diátese transitiva, caso em que se construiria com um sujeito-AGENTE – objeto-PACIENTE, como em “Pedro abriu a porta”.
Apesar do equivoco da análise de Bechara, ele entende que o conjunto formado pelo infinitivo e o SN que o acompanha é uma unidade sintática dependente do verbo “vejo”, do que resulta a admissão de que o verbo “ver” não é um auxiliar.
Um expediente extremamente eficaz para determinar o caráter não-auxiliar dos chamados verbos sensitivos é o desenvolvimento do conjunto formado pelo infinitivo numa oração encetada de “que”. Assim, para “Vejo abrir a porta”, temos “Vejo que abriu a porta (ou que a porta abriu)”. Esse expediente formal é extensivo ao conjunto dos verbos causativos também. Assim, para “Mandei o garoto ir ao mercado”, temos “Mandei que o garoto fosse ao mercado”. A transformação da oração reduzida de infinitivo em uma oração desenvolvida patenteia que ela é um constituinte selecionado pela valência do verbo que a precede (respectivamente, “ver” e “mandar”).


3. Critérios sintáticos para a determinação da auxiliaridade dos verbos

Finalmente, cumpre atentar para os critérios de base formal que podem ajudar-nos na busca por determinar se há, numa dada combinatória de verbos, um verbo auxiliar.

1º critério: existência de um único sujeito para o grupo verbal.

Segundo esse critério, há locução verbal e, portanto, um verbo auxiliar sempre que houver um único sujeito que está em dependência de todo o conjunto verbal. Nesse caso, o sujeito é selecionado pelo verbo principal, o verbo que comporta a função de predicação no conjunto. Seguem-se os exemplos abaixo:

(f) Eu vou correr na Lagoa amanhã.
(g) Ele ficou caminhando o dia todo.

Em (f) e (g), são os verbos “correr” e “caminhar” que selecionam, respectivamente, os sujeitos “Eu” e “Ele”. São esses verbos que conservam significado lexical e, portanto, sua natureza valencial. Comparem-se esses casos como o caso (h), abaixo:

(h) Vejo o menino subindo às escadas.

Em (h), o sujeito de “vejo” é diferente do sujeito de “subindo”. Podemos transformar o conjunto “subindo as escadas” na forma desenvolvida: Vejo que o menino sobe às escadas. Claro está que os sujeitos são diferentes e que, por isso, não há locução verbal.

2º critério: impossibilidade de transformação do verbo pleno numa oração desenvolvida

Só há locução verbal, quando não conseguimos transformar o verbo pleno numa oração desenvolvida, à semelhança do que fizemos acima. No exemplo abaixo, é impossível tal procedimento:

(i) Eu tive de sair cedo.
(i1) * Eu tive de que saí cedo.

3º critério: inserção da negação na tentativa de romper com a unidade do conjunto verbal

Se for possível a inserção da negação no conjunto verbal, sem perturbar sua unidade semântica, não há locução verbal; do contrário, há locução verbal. No exemplo abaixo, a impossibilidade de usar a negação entre os dois verbos indica que se trata de uma locução verbal e que o primeiro verbo é um auxiliar.

(l) A criança está brincando.
(l1) * A criança está não brincando.

Ora, a partícula de negação só pode orbitar o conjunto “está brincado”, donde se segue que seu escopo é todo o conjunto (cf. A criança não está brincando).
Esse critério me parece ser o menos eficiente, já que ele pode não valer para os casos aos quais os outros critérios se demonstraram aplicáveis. Assim é que, em “Deixa o menino brincar”, a inserção da negativa entre “deixa” e “brincar” torna o enunciado inaceitável - “* Deixa o menino não brincar” - ou muito pouco aceitável “ (?) Deixa não brincar o menino”. Não obstante, vimos que construções com verbos como “deixar” seguido de infinitivo não encerram locução verbal. Os critérios 1 e 2 garantem ser este o caso.



                    4º critério: pronominalização

Se o verbo que ocupa a segunda posição na construção supostamente perifrástica for pronominalizável, segue-se daí que esse verbo comporta-se como um actante do primeiro verbo. Assim, não há locução verbal, e o primeiro verbo é também um verbo pleno. Veja-se o seguinte exemplo:

(m) Você sabe agradar ao seu marido.
- Eu o sei.  (o = agradar ao seu marido)

Não há dúvida de que o verbo “saber” não se comporta como verbo auxiliar, não só porque ele conserva seu significado lexical, quando combinado com um infinitivo, mas também porque pode construir-se com uma oração desenvolvida encetada por “que” (ou, se na negativa, com “se”). Por exemplo, temos “Eu sei que o professor dará prova amanhã”. Ademais, em “Você sabe agradar ao seu marido”, “ao seu marido” não é um actante do conjunto “sabe agradar”, mas apenas de “agradar”.


Os critérios aqui elencados, longe de resolver a complexidade do problema de que me ocupei aqui, lança algumas luzes sobre o estudo da locução verbal e das condições que conferem a propriedade de auxiliaridade a um verbo. Creio, no entanto, que a adoção desses critérios não pode levar o estudioso a desconsiderar a raiz semântica do problema, qual seja, a conservação ou não do significado lexical do primeiro verbo do conjunto e de sua natureza valencial. Isso é importante quando queremos determinar, por exemplo, se o verbo “conseguir”, em “Eu consegui namorá-la por dois anos”, é um verbo auxiliar ou um verbo pleno; se há uma locução verbal ou uma oração principal de que depende outra oração dita, por isso, subordinada. 

sábado, 7 de setembro de 2013

A gramática é o mecanismo organizacional da língua

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                      Explorando a sintaxe do português
                                 A predicação e a transposição em foco
                          

Este texto se destina a um estudo da sintaxe da língua portuguesa, cujo desenvolvimento se orienta pela compreensão dos fenômenos de predicação e transposição. Esses fenômenos constituirão, portanto, os temas condutores deste estudo. Convido o leitor a comigo fazer incursão no universo da estruturação e funcionamento do sistema sintático da língua portuguesa.


1. O que devemos entender por gramática?

O termo gramática designa aqui o sistema de unidades e de regras que permitem que aquelas se combinem para a construção de unidades de nível e extensão variáveis. A gramática inclui, pois, tanto as unidades dotadas de significado quanto os recursos necessários à combinação delas nos diferentes níveis estruturais da língua. A gramática é, necessariamente, um sistema de combinatórias. Tomemos, para efeito de ilustração do conceito de gramática, os pares abaixo:

(1) ama - mos
    ama - m

(2) re – fazer
   des – fazer

(3) os meninos
    o# menino#

(4) amor a Bianca
    amor de Bianca

A definição de gramática, acima apresentada, recobre as ideias de sistema de unidades e sistema de regras. A gramática compreende não só as unidades dotadas de significado (essa concepção exclui do domínio da gramática a fonologia), mas também as regras que permitem estruturá-las para a construção de unidades de nível superior. De passagem, noto que a fonologia pode pertencer à gramática, se por esta entendermos o sistema de unidades e de regras que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse caso, a gramática abriga todas as unidades de uma língua, quer sejam providas de significado, quer não.
 Considerando-se os casos acima referidos, note-se que, em (1), as unidades mínimas “-mos” e “-m” se articulam à forma “ama” para a construção das unidades “amamos” e “amam”, respectivamente. Da articulação de “-mos” e “-m” a “ama-” resulta uma distinção funcional, de tal modo que “amamos” é a forma correspondente à primeira pessoa do plural, e “amam” é a forma correspondente à terceira pessoa do plural do verbo “amar” (no presente do indicativo). Em (2), as unidades mínimas “re-“ e “des-“ se combinam com a base “fazer” para formar as palavras “refazer” e “desfazer”, respectivamente. A combinação dessas partículas com a base “fazer” produz diferença de significado. Em (3), a gramática permite distinguir os conteúdos de número singular e plural nas construções “o menino/ os meninos”. Nas variedades de prestígio do português, a gramática prevê a redundância na marcação do número no SN (sintagma nominal), com o acréscimo simultâneo da desinência de número /s/ ao determinante e ao substantivo núcleo, para indicar o plural. O singular é expresso justamente pela ausência do /s/, ou seja, por um morfema-zero (0). Finalmente, em (4), a gramática prevê dois padrões de estruturação do SN cujo núcleo é o substantivo “amor”. O substantivo “amor” pode-se prender ao seu complemento selecionando “a” (por vezes, “por”) ou “de”.  Cada uma das formas de articulação do substantivo “amor” com o seu complemento, ilustrada em (4), expressa um significado distinto. Em “amor a Bianca”, entendemos que “Bianca” é o objeto ou alvo do amor; em “amor de Bianca”, entendemos “Bianca” como o experienciador, como a pessoa que nutre amor.
O linguista dinamarquês Louis Hjemslev, em sua clássica obra Prolegômenos a uma teoria linguística (1943), contribuiu significativamente para a compreensão do mecanismo do sistema gramatical da língua. Seu modelo de teoria linguística foi inspirado no formalismo cujas raízes remontam a Ferdinand Saussure. Embora eu não esteja interessado aqui em pormenorizar o modelo de Hjemslev, sua visão do funcionamento do mecanismo gramatical ajuda-nos a iluminar o entendimento do conceito de gramática como sistema que opera combinações por meio de regras.
Seguindo Saussure, Hjemslev assume que o sistema da língua opera com base na interseção entre os eixos paradigmático e sintagmático. Ao eixo paradigmático, Hjemslev chama sistema; ao sintagmático, processo ou texto. O sistema identifica-se com a langue de Saussure; e o processo, com a parole (fala). Hjelmslev sustenta que os elementos linguísticos contraem uma função uns com os outros, uns em relação com os outros. Esses elementos se dizem, por isso, functivos. Em Hjelmslev, função envolve a ideia de relação de pressuposição entre termos. Oportunamente, destinarei um texto à exposição e à discussão do modelo de funcionamento do mecanismo gramatical proposto por Hjemslev; neste texto, cinjo-me a notar que os functivos se relacionam segundo os três seguintes padrões, definidos com base na noção de pressuposição. Em Hjemslev, o quadro de relações estruturais é, decerto, mais complexo.

a) A e B pressupõem-se mutuamente:

Toda sílaba pressupõe uma vogal e toda vogal pressupõe uma sílaba, visto que não há sílaba sem vogal em português. Analogamente, sujeito e predicado se pressupõem mutuamente. Mesmo as orações tradicionalmente vistas como desprovidas de sujeito apresentam um sujeito na estrutura profunda (cf. [a chuva] choveu ontem).

b) A pressupõe B, mas B não pressupõem A.

Assim, o verbo “confiar”, na acepção de ‘ter confiança em’, pressupõe a preposição “em”, mas o inverso não é verdadeiro (cf. Eu confio em você/ Nós estamos em casa/ Nós comemos no restaurante hoje). A ideia de pressuposição significa aí que o uso do verbo “confiar” pressupõe o uso da preposição “em” quando da relação desse verbo com o seu complemento, relação que formalizo do seguinte modo:

 X CONFIAR em Y

Já em “Embora esteja chovendo, vou ao cinema”, a oração “embora esteja chovendo” pressupõe a oração “vou ao cinema”, mas esta não pressupõe aquela. Essa relação pode ser assim formalizada:

Embora esteja chovendo, __________________________
                                Oração-base.

A ocorrência de uma oração introduzida por “embora” pressupõe outra oração, a que a oração de “embora” se subordina; mas a oração subordinante (oração-base) não pressupõe a oração subordinada. Por conseguinte, “vou ao cinema” pode figurar de modo autônomo no discurso, mas “embora____”, não.

c) não há relação de pressuposição entre A e B.

Em “Lúcia e eu saímos à noite”, o verbo “sair” não pressupõe o uso do constituinte “à noite”.

É a gramática, como sistema de combinatórias, que regula a combinação dos auxiliares com as formas nominais dos verbos. Por exemplo, os verbos modalizadores como “poder” e “dever” combinam-se com o infinitivo, mas não com o particípio ou o gerúndio:

(5) Os meninos podem cantar agora.
     Os meninos devem cantar agora.
    (?) Os meninos podem cantando agora.
    * Os meninos podem cantado agora.

Se o asterisco marca agramaticalidade, o sinal (?) exprime dúvida sobre a possibilidade de uso de “poder” com gerúndio. Minha intuição linguística enquanto falante nativo de português faz parecer-me aceitável a combinação de “poder” com gerúndio em atos de fala cuja força ilocucionária é a de ‘comando’ ou ‘ordem’, como em “Meninos, podem descendo daí já!” (em usos menos monitorados). Como não se pode fazer ciência com base em intuição, necessário é investigar se enunciados análogos ocorrem de fato, a fim de determinar os fatores que tornam possível a combinação de “poder” com gerúndio. Não pretendo me debruçar sobre esta questão aqui. Por ora, convém reconhecer que, para usar “poder” com gerúndio, é ao infinitivo “ir” intercalado que os falantes nativos de português recorrem de modo sistemático (cf. Os meninos podem ir se vestindo?).
O verbo auxiliar “ir” combina-se tanto com o infinitivo quanto com o gerúndio, mas não com o particípio:

(6) Os torcedores vão comparecer em grande número.
      Os torcedores vão deixando o estádio tranquilamente.
     * Os torcedores vão comparecidos em grande número.

Os auxiliares aqui exemplificados devem inserir-se no caso b), em que ‘A pressupõe B, mas B não pressupõe A”. Assim, o verbo “poder” pressupõe o infinitivo, mas este não pressupõe o verbo “poder” (cf. Sair à noite é bom/ Eles se arrumaram para sair).
A gramática do português organiza-se hierarquicamente em estratos ou níveis. Cada nível corresponde a uma unidade linguística. O nível mais baixo da escala hierárquica é o do morfema. O nível mais alto é o do período. Os níveis intermediários são, numa ordem ascendente: vocábulo, sintagma e oração. Esquematicamente, os estratos gramaticais se organizam como se seguem:

Período
Oração
Sintagma
Vocábulo
Morfema
(leia-se de baixo para cima)

Para compreendermos como uma unidade linguística passa de um nível a outro, tomemos a palavra “psicológico”. “Psicológico” forma-se pelo acréscimo de “-ico” à base presa e composta “psicolog-”. Dizer que “psicolog-” é uma base presa significa dizer que seu uso como forma autônoma, como palavra não é possível. É somente pelo acréscimo de “-ico” que “psicolog-” passa a ter status de forma livre e autônoma no discurso, ou seja, passa a ser uma palavra ou vocábulo. Pertencente ao estrato do vocábulo, “psicológico” pode combinar-se com outro vocábulo de modo a compor uma unidade de nível imediatamente superior. Assim, podemos ter, por exemplo, “um problema psicológico”. O conjunto formado de “um”, “problema” e “psicológico” constitui o nível do sintagma. Oportunamente, definirei esse termo. Esse sintagma pode articular-se a outro sintagma complexo cujo núcleo é necessariamente um verbo, como em “um problema psicológico a afetou profundamente”. A articulação de “um problema psicológico” com “a afetou profundamente” compõe uma unidade de nível hierarquicamente superior, qual seja, o da oração. Essa unidade imediatamente superior, cujo núcleo é o verbo, pode combinar-se com uma unidade do mesmo nível, compondo uma totalidade ainda maior, correspondente ao período. Assim, por exemplo, podemos articular “um problema psicológico a afetou profundamente” a “ela procurou um psiquiatra”, mediante o conectivo “e” (cf. um problema psicológico a afetou profundamente   e   ela procurou um psiquiatra). Segue-se, então, a estruturação em níveis:

Um problema psicológico a afetou profundamente e ela procurou um psiquiatra   período
 Um problema psicológico a afetou profundamente  oração
 Um problema psicológico    sintagma
                  Psicológico      palavra
                  Psicolog-         morfema

                    -ico          morfema

Em certo sentido, a análise gramatical consiste na atividade de identificação dessas unidades e das regras que as combinam entre si em cada nível.
Antes de passar para a próxima seção deste texto, cabe salientar que o conceito de gramática que adotei aqui não é o único corrente na literatura especializada. A definição de gramática que eu esposei supõe que a gramática é o mecanismo organizacional da língua, visto de uma perspectiva externa à consciência dos usuários da língua, muito embora saibamos que a gramática pode ser também definida como um tipo de competência e/ou conhecimento internalizado que se supõe estar inscrito na mente/cérebro do falante nativo de uma dada língua, graças ao qual ele é capaz de fazer uso normal, eficiente e adequado dessa língua. Nesse caso, os linguistas falam em gramática internalizada. A gramática também pode ser entendida como uma disciplina ou modelo teórico, designando o produto do trabalho de gramáticos e linguistas. Por exemplo, os linguistas investigam certos fenômenos linguísticos, segundo certos pressupostos teóricos e uma metodologia adequada, a fim de produzir modelos de gramática, que constituem uma hipótese da gramática internalizada que todo falante nativo tem em sua mente/cérebro. É nesse sentido que dizemos que eles produzem “gramáticas”, ou seja, um conjunto de fatos linguísticos que foram submetidos a uma análise criteriosa e rigorosa, com base num corpus representativo, que se pretende um modelo do conhecimento linguístico implícito e inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos de uma dada língua.

2. Conceitos básicos

O que se seguirá aqui é a definição de certos conceitos de cuja compreensão depende o bom andamento da leitura.

1) Construção: é a unidade resultante da combinação de unidades de níveis imediatamente inferiores. O conceito de construção supõe que as unidades de níveis superiores se constituem de unidades de níveis inferiores.

Assim, por exemplo, a palavra “deslizamento” é uma construção, na medida em que é constituída da combinação de “des-“, “liso” e “-mento”. Ressalte-se, contudo, que “deslizamento” forma-se a partir da forma já derivada “deslizar”, de tal modo que a sequência de derivação é a seguinte: liso > des-liz-ar > desliza-mento. A construção tem nível e extensão variáveis. A unidade “a casa amarela” é uma construção pertencente ao nível do sintagma.

2) Valência: a valência é uma propriedade tipicamente verbal, muito embora a exibam também certos substantivos, adjetivos e advérbios. Neste texto, empregarei o termo valência para fazer referência a uma propriedade que os verbos plenos têm de prever configurações frásicas em seu significado. A valência instaura, assim, uma dada rede de relações sintático-semânticas em torno do verbo. Para ser mais preciso, a valência designa a propriedade que tem o verbo de estabelecer certo número de lugares vazios, os quais são preenchidos por determinados argumentos também previstos pela semântica do verbo. A valência é um fenômeno léxico-semântico que se manifesta sintaticamente e supõe ser o verbo o elemento central da oração do qual “irradia” a estrutura relacional que a configura. É o verbo que determina sintático e semanticamente a estrutura da oração. Considere-se, pois, o exemplo, abaixo:

(7) Os policiais prenderam o ladrão em flagrante.

Entre as informações que constituem parte da competência linguística do falante nativo de português, ao usar o verbo “prender”, está a de que esse verbo estabelece ao seu redor dois lugares que devem ser preenchidos por dois termos. Esses termos funcionam como participantes envolvidos na ação/evento descrito pelo verbo. Podemos formalizar a estrutura relacional determinada pelo verbo “prender” da seguinte forma:

(7a) X prender Y

O elemento “X” corresponde ao sujeito, que desempenha, no nível semântico, o papel de agente; e o elemento “Y”, ao objeto direto, que desempenha o papel de paciente. Assim, “X” pratica a ação; e “Y” a sofre. Dizer que “prender” determina dois lugares vazios, correspondentes a X e Y é dizer que X e Y são variáveis previstas pelo próprio significado do verbo “prender”. Ou seja, “prender” codifica uma situação (um estado-de-coisas), em que uma entidade-agente realiza a ação descrita pelo referido verbo, a qual exerce um efeito sobre uma entidade-paciente. O falante nativo de português sabe que todas as vezes que seleciona o verbo “prender” construirá enunciados cuja estrutura relacional resulta da articulação de dois argumentos, quais sejam, X e Y. Os argumentos são, portanto, os participantes da relação predicativa estabelecida pelo verbo, são os constituintes que preenchem os lugares vazios previstos pela valência do verbo.
Como se vê, a valência de um verbo decorre de seu significado. É uma propriedade que caracteriza o verbo como unidade lexical; ela estabelece o número de argumentos que estão logicamente previstos no núcleo (verbo) da oração.

3) Estado-de-coisas: esse termo diz respeito à função que têm as línguas de simbolizar, de estruturar nossas experiências de mundo. O estado-de-coisas é a representação na frase de uma dada experiência de mundo. Trata-se da codificação linguístico-cognitiva de uma situação, que se apresenta como uma ‘cena’ do mundo em que se distinguem uma ação e participantes direta ou indiretamente envolvidos nela. O estado-de-coisas manifesta o significado proposicional, entendido como o significado referencial inferível com base na estrutura do próprio enunciado.

4) Proposição: é o resultado semântico da relação de um predicador com os seus participantes. Recobre a organização do significado da frase. Trata-se do significado denotativo da frase (significado proposicional). Proposições podem ser avaliadas em termos de “valor de verdade”. Por exemplo, se digo “Está chovendo”, tenho neste enunciado a realização de uma proposição que não é senão o significado que compreendo com base na sua forma. O significado proposicional é o que ele comunica. A proposição denota um fato possível, um acontecimento cujo valor de verdade se determina com base na correspondência entre o significado e o estado-de-coisas do mundo real. Assim, “está chovendo” constituirá uma proposição verdadeira se e somente se dadas condições do mundo se verificarem.
Não pretendo me ocupar das complicações da análise proposicional, mas preciso esclarecer que proposições se apresentam na forma de sentenças declarativas afirmativas. O termo proposicional tem origem na filosofia e é usado em linguística para o tratamento de aspectos de análise semântica. É particularmente interessante nos estudos pragmáticos (por exemplo, na teoria dos atos de fala) e na gramática de casos. Na teoria dos atos de fala, o significado proposicional contrasta com o significado que resulta do acréscimo de uma força ilocucionária (que podemos chamar de significado pragmático, porque originado do uso da língua em contexto), de modo que, num enunciado como “a janela está aberta”, considerando-se o efeito de uso, não é o significado descritivo ou proposicional que têm relevância para a interação, mas o significado que se constrói com base num conjunto de informações pragmáticas compartilhado pelos enunciadores. O significado do enunciado, justamente o que deve ser construído, a fim de satisfazer o propósito sociocomunicativo de quem o produziu, resulta de um cálculo operado pelo enunciatário tendo em conta variáveis contextuais, tais como a intenção do enunciador, a constatação de que a janela está aberta, o fato de estar frio e o enunciador não estar adequadamente agasalhado, etc. Esse conjunto de saberes está na base da interpretação do significado daquele enunciado como a realização de um ato de sugestão ou pedido para que se feche a janela.

5) Núcleo: é o elemento central de um sintagma, que equivale distribucionalmente ao sintagma como um todo. Todo sintagma é necessariamente constituído de um núcleo. O núcleo determina as relações de concordância e regência em partes de um sintagma ou da sentença.
No interior de um sintagma, o núcleo é o elemento central, em torno do qual se organizam as demais unidades. O núcleo é o elemento de valor referencial, no sentido de que é representado por uma unidade linguística que designa um ‘dado’ do mundo. No sintagma “as canetas coloridas”, “canetas” é o núcleo, visto que: a) é distribucionalmente equivalente ao sintagma como um todo, isso significa dizer que “caneta” pode figurar em outros ambientes sintáticos sozinho. (cf. As canetas coloridas não escrevem/ compre caneta por ciquenta centavos/ eu não gosto de escrever com caneta.); b) “caneta” controla a relação de concordância, determinando a forma dos demais elementos adjacentes.
O verbo é o núcleo da oração, já que ele determina a estrutura sintático-semântica da oração. Por exemplo, o verbo determina o tipo de sujeito e complemento que deve acompanhá-lo. Assim, em “A camisa rasgou”, o verbo “rasgar” exige que o participante afetado pela ação de rasgar comporte o traço sêmico [-animado], [+ maleável], [+divisível], [-sólido], etc. Trata-se de restrições semânticas feitas pelo verbo “rasgar” relativamente ao conjunto de argumentos passíveis de preencher a posição de complemento na estrutura argumental. Um enunciado como “A pedra rasgou”, embora gramaticalmente bem-formado, é semanticamente inaceitável.

6) Sintagma: Em Saussure, sintagma designava toda combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior. Essa definição, por ser geral, permite que se diferenciem o sintagma suboracional, sintagma lexical, sintagma locucional, sintagma oracional e sintagma superoracional. Assim, o fato de uma palavra como “pedreiro” ser constituída pela combinação de “pedr-” e “-eiro” dá-lhe o status de sintagma lexical.
O sintagma, contudo, é um conceito operacional corrente em teorias sintáticas. Entende-se por sintagma uma construção sintática constituída por uma ou mais de uma unidade; essa construção funciona como um “bloco” significativo. Todo sintagma é constituído de um núcleo obrigatório. O sintagma pode constituir-se apenas do núcleo, ou a este pode haver elementos adjacentes. Cada uma das unidades, cujos elementos se dispõem numa relação de interdependência, em que se estrutura a oração, é um sintagma. Os sintagmas são os constituintes imediatos da oração.
Na seção em que trato do processo sintático da transposição, discorrerei com mais vagar sobre o sintagma. Por ora, basta observar que nas ocorrências abaixo aparecem, entre colchetes, os sintagmas:

(9) [Aqueles três grandes homens]  [leem muito]
                         Núcleo – homens                       núcleo - leem
  
[A casa [de [praia] ] ] [fica [em Saquarema]]
        núcleo – casa                       núcleo - fica
 [de praia] – núcleo –de                     [em Saquarema] – núcleo - em
[praia] – núcleo – praia                     [Saquarema] – núcleo – Saquarema


3. A Predicação

Em Fundamentos de Gramática do Português (2002), Azeredo observa o seguinte no tangente à predicação:

“Pelo ato de predicar, o homem exercita e expressa seu raciocínio, não apenas isola uma parcela de sua experiência do mundo e lhe dá um nome (pela função de designação), mas também “pronuncia-se sobre essa parcela”, formulando um pensamento sobre ela”.
(p. 75)


Em seguida, acrescenta:

“(...) o ato de predicar constitui ordinariamente uma declaração sobre um conceito, e só é possível graças ao verbo”.
(ib.id.)


O verbo, portanto, é o elemento indispensável para o estabelecimento de uma estrutura de predicação, muito embora a função de predicar possa ser desempenhada por predicadores não-verbais.

“(...) os verbos simbolizam nossa experiência do mundo como representações dos modos de existência dos seres expressos como predicação”.
(ib.id.)

Toda oração se estrutura em torno de um predicador e graças a ele. O predicador designa propriedades ou relações e estabelece uma relação entre termos, os quais designam entidades. A totalidade dessa relação constitui uma predicação. A predicação é o fato sintático-semântico de estabelecimento de relações entre termos por meio do predicador. A predicação representa um estado-de-coisas. Nele, representa-se uma cena, um quadro, uma estrutura experiencial do mundo da qual participam determinadas entidades implicadas na situação designada pelo predicador.
A predicação é o resultado da relação de um certo número de termos com o predicador.
A Apolônio Díscolo, um gramático alexandrino do século I d.C, devemos a compreensão de que as relações sintáticas podem-se manifestar na forma de predicação, que se caracteriza por ser uma relação assentada na concordância, e na de complementação, que é uma relação da qual está ausente a concordância. Ambas as formas envolvem uma atribuição de casos: nominativo, à esquerda do verbo, na predicação; acusativo, dativo e ablativo, à sua direita, na complementação.
Com Apolônio, portanto, a predicação recobria tão-só a relação entre um predicador e seu sujeito; a relação do predicador com seus argumentos internos é recoberta, ao contrário, pela complementação. Escusa dizer que as gramáticas tradicionais modernas rejeitam essa separação, incluindo a complementação na predicação.
No exemplo abaixo, o verbo “querer” é um predicador de dois lugares:

(9) Ela quer um novo celular.

O verbo “querer” estabelece uma estrutura predicativa. Nessa relação, se verifica um constituinte “ela”, que representa o participante que deseja, e um constituinte “um novo celular”, que representa o participante ‘objeto’ que é desejado. O verbo “querer” estabelece, portanto, uma relação entre esses dois participantes.

3.1. Predicação e semântica

O estudo da predicação me levou a propor a necessidade de distinguir nesse fenômeno dois planos: o semântico e o sintático. Tratarei nesta seção do plano semântico.
Na lógica aristotélica, a designação recobre o processo de predicação, de tal modo que todo item lexical pleno de significado é um predicador. Predicar é, para Aristóteles, designar. Assim, os substantivos, que designam entes e coisas; os adjetivos que designam estados ou modos dos seres e coisas; os verbos, que designam ações e eventos; as preposições, que designam relações, e assim por diante, são predicadores.
A predicação por designação é responsável pela produção do sentido, o qual resulta da relação entre a palavra e seu referente. Essa relação corresponde ao sistema semântico referencial, que é responsável por relacionar o símbolo à coisa que ele representa (referente).
Pode-se, ainda, ver a predicação como um processo de produção de significados não-contidos nos itens lexicais tomados isoladamente. Nesse caso, a predicação depende da relação entre um item-predicador e um item-sujeito.
Constitui papel do predicador, de acordo com essa perspectiva:

1) transferir a seu sujeito uma propriedade sua que pode ser:
a) a emissão de juízos sobre o valor de verdade da classe sujeito;
b) a alteração da extensão dos indivíduos designados pela classe-sujeito;
c) a alteração de propriedades intensionais do sujeito.

Não pretendendo me estender sobre essa visão tradicional e alargada de predicação – tema a que seria necessário destinar outro texto -, noto que atualmente, entendendo o predicador como a função desempenhada pela unidade linguística (por excelência, o verbo) responsável por determinar a estrutura sintático-semântica da oração, a ele compete:

a) a determinação da constituição morfossintática do sujeito (função morfossintática):

Ex.: Custa-me acreditar nisso.

O predicador “custar”, na acepção de ‘ser difícil’, nas variedades de prestígio do português, seleciona um sujeito na forma de uma oração de infinitivo.

b) a determinação dos semas (componentes mínimos em que se pode dividir o significado de uma palavra) que deve comportar o sujeito (função semântico-denotativa):

Ex.: ______Rasgar
      sujeito
       [+ maleável], [- animado], [- sólido}, etc.
       papel
       tecido
       roupa
       *pedra
       *copo
       *espelho


c) a determinação dos papéis temáticos ou semânticos dos seus argumentos (função semântico-funcional):

O menino   caiu.
 paciente

A chave abre a porta.
 instrumento            objeto

João abriu a porta com a chave.
agente             objeto          instrumento

     

d) a determinação da estrutura relacional, o que envolve a determinação da forma do seu complemento e o modo como se dá a relação deste com o predicador:
Ex.: Eu permito a sua saída.
    Eu permito que você saia.
         Eu permito o casamento.
         *Eu permito os noivos.
         Eu permito aos noivos dormir aqui hoje.

     Os exemplos ilustram que o verbo “permitir” seleciona:

 a) um complemento direto na forma de um SN simples ou oracional (cf. a sua saída/ que você saia) e um complemento introduzido da preposição “a” (aos noivos);

A complementação oracional é uma propriedade do verbo “permitir”, propriedade que compartilha com outras classes de verbos, mas não é comum a todos os verbos da língua, evidentemente. O verbo “dispensar”, embora admita um SN simples como complemento, como em “Eu dispensei o empregado”, não admite um complemento oracional (cf. *Eu dispensei que o empregado...).

b) um complemento direto na forma de uma oração de infinitivo (cf. dormir aqui)

Ademais, do ponto de vista semântico, parece que “permitir” rejeita a ocorrência, na posição de complemento direto, de um substantivo [+ concreto] e [+ animado], e autoriza a ocorrência, nessa posição, de um substantivo abstrato que designa ação ou evento (cf. saída/casamento).
A dimensão semântica da predicação abriga, portanto, a) a determinação dos papéis semânticos dos argumentos e b) a restrição de seleção quanto aos tipos de argumentos que devem preencher os lugares vazios previstos pela valência do verbo. Escusa dizer que é o predicador que desempenha essas duas funções.
A dimensão formal ou sintática da predicação envolve: a) a determinação pelo predicador da forma dos argumentos e b) a determinação do número de argumentos que configuram a estrutura relacional. Destarte, tomando-se o predicador DIZER, percebemos que sua ocorrência determina a seguinte estrutura relacional, formalizada como:

 X DIZER Y a Z

Nela, distinguimos um X sujeito, um Y objeto direto e um Z objeto indireto. O constituinte correspondente a Z é encetado pela preposição “a” e é passível de comutação com “lhe”. Complementos verbais representados por substantivos [+anim/hum] introduzidos pela preposição “a” (ou “para”) são, sistematicamente, passíveis de serem substituídos por “lhe”. Na verdade, “lhe” pode substituir estruturas ‘aSN’, mesmo que elas não sejam formadas de substantivos [+anim], conforme mostrei em minha dissertação de mestrado. Desse grupo devem-se excluir, no entanto, os substantivos que comportam o traço [+ locativo], os quais não admitem a comutação com “lhe” (cf. Eu fui ao cinema/ *Eu lhe fui). A possibilidade de comutar a estrutura ‘a__SN’ com lhe é um aspecto formal da predicação do verbo “dizer”. Essa observação importa, já que verbos como “acreditar”, cuja estrutura relacional prevê um constituinte ‘emY’, não autoriza a ocorrência de “lhe” (cf. Eu acredito em você/ *Eu lhe acredito). É notável o fato de que a dimensão semântica da predicação determina o plano sintático. Por exemplo, o verbo “confiar”, em seus usos mais frequentes, prevê duas estruturas relacionais, formalizáveis como:

(1) X CONFIAR em Y
(2) X CONFIAR a Y Z

No entanto, (1) corresponde ao significado ‘ter confiança’; (2), ao significado ‘entregar aos cuidados de’ (cf. Eu confio em você/ Eu confio o meu filho a você). Em (2), o pronome “lhe” pode comutar com ‘a_Y’.

 Lembro que a palavra forma (ou estrutura), desde Saussure, pela pena de Aristóteles, designa uma rede de relações. A forma é o resultado da articulação sistemática dos elementos linguísticos para compor um todo coeso. Assim, na frase (10), abaixo

(10) Nós fomos à praia ontem.

A disposição sistemática das unidades na frase constitui a forma. A forma resulta da união de uma “coerência sintática” (espécie de sintaxe mental) e a “coerência semântica” (o universo conceptual organizado na/pela língua).  Fala-se também de análise formal para se referir à análise que prescinde dos aspectos significativos das entidades linguísticas. Ou seja, usa-se o termo forma/formal para referir-se à análise que não leva em conta as relações significativas entre as unidades linguísticas. Por exemplo, se quiséssemos determinar a função sintática do constituinte “à praia” do ponto de vista formal, bastaria observar, entre outras coisas, que ele é passível de ser substituído por um advérbio locativo como “lá”, o que confirmaria sua natureza adverbial. Nesse caso, não se faz menção a noções como ‘lugar’, ‘lugar para onde’ se destina o agente, etc. Se quiséssemos também determinar a função de “nós”, bastaria notar que esse constituinte se dispõe à esquerda do verbo, em português. Também poderíamos fazer ver que “nós” é o termo com o qual o verbo concorda e serve para comutar um constituinte como “eu e os meus amigos”, por exemplo. Com base nessas propriedades do termo “nós”, determinamos sua função, que é a de sujeito. O sujeito é o termo com o qual o verbo concorda e que é passível de comutação com um pronome reto (cf. Eu e meu amigo vamos à praia / Nós vamos à praia).
O rigor, contudo, impõe-me a necessidade de esclarecer que a forma ou estrutura de uma construção resulta de uma abstração teórica. A estrutura não é imediatamente acessível a quem não dispõe de algum conhecimento sobre notações de formalização. A forma deve prever padrões, deve ser expressão de modelos de estruturação, a despeito das diversas maneiras de organizar as substâncias. Assim, por exemplo, dadas as frases (11), (12), (13) e (14),

(11) Nós fomos à praia ontem.
(12) Meu irmão e eu chegamos bem ao aeroporto.
(13) Eu levei o cachorro ao veterinário
(14) Eu levei o carro à oficina

suas diferenças evidentes não podem mascarar o fato de que a forma delas revela padrões estruturais previstos em português. Modelos arbóreos dão-nos a conhecer suas estruturas. Vou-me limitar a apresentar os modelos de (11) e (12).

(11)                     O
             SN                           SV

                                  SAdv            SAdv


(12)                       O
              SN                       SV

                                 SAdv         SAdv


Deve-se lê-los assim: O (oração) se constitui da articulação de um SN e um SV. SAdv, num plano mais baixo, é parte do domínio do SV. A estruturação da oração não é linear, mas hierárquica: a oração é a unidade mais alta, que domina o SN e o SV, e o SV domina os SAdv.
Evidentemente, eu simplifiquei a apresentação dos modelos arbóreos, já que uma descrição detalhada interessa pouco, para efeito de definição do conceito de forma. Importante é ver que a estrutura ou a forma de uma construção linguística, como a oração, por exemplo, só nos é acessível quando apreendemos o modo como as categorias sintáticas (os sintagmas) se articulam para formar o esqueleto da construção. O esqueleto é a forma da construção. A metáfora do esqueleto ajuda-nos, finalmente, a compreender bem o que significa forma, em teoria linguística. Assim como os ossos se articulam para compor o esqueleto, assim também as unidades linguísticas se articulam para compor a forma. A forma, tal como o esqueleto, é o resultado da articulação das unidades linguísticas na cadeia sintagmática.
Do modo como vimos definindo forma aqui se conclui que as palavras também são dotadas de forma. Uma palavra como centralizar tem uma forma, que é resultado da articulação de um ‘rad. (central) e um sufix. (-izar)’. Podemos apresentar a seguinte formalização:

CENTRALIZAR = Rad. + Sufix.

A estrutura ‘Rad__Sufix.’ é comum a uma série de construções, como se pode ver abaixo:

Casamento
Atualizar
Felicidade
Lealdade
Honestidade
Amável
Gostoso
Saboroso
(...)

4. Transposição

4.1. O sintagma

Azeredo (2002: 151. seção 305) refere dois expedientes analíticos para identificar os sintagmas: o deslocamento e a substituição. A esses expedientes acrescento mais dois: a coordenação por “e” e a interrogação com “que”, “quem”, “quando”, “onde”, etc.
Tomemos para exemplo a seguinte frase:

(13) Aqueles pássaros fazem seu ninho em galhos de árvore.

Valendo-nos do teste de deslocamento, devemos admitir que as seqüências aqueles pássaros, seu ninho, em galhos de árvore são sintagmas. Vejam-se as possibilidades de deslocamento abaixo:

(13a) Fazem aqueles pássaros seu ninho em galhos de árvore.
         Aqueles pássaros fazem em galhos de árvore seu ninho.
         Em galhos de árvore, aqueles pássaros fazem seu ninho.

A substituição por uma pró-forma também nos permite considerar aquelas seqüências como sintagmas.

(13b) Eles (= aqueles pássaros) fazem seu ninho em galhos de árvore.
         Aqueles pássaros fazem-no (= seu ninho) em galhos de árvore.
         Aqueles pássaros fazem seu ninho ali (ou lá, aqui...) (= em galhos de árvore).

Pelo expediente de deslocamento, patenteia-se que as seqüências aqueles pássaros, seu ninho, em galhos de árvore são unidades coesas, já que não se pode romper com a ligação entre os elementos. Assim, não é possível deslocar tão-só “aqueles” ou “pássaros”. Também não é possível interpor “aqueles pássaros” entre “em” e “galhos”, já que se romperia a coesão desses elementos (cf. *em aqueles pássaros galhos...).
Outrossim, porque se pode substituir todo o conjunto em galhos de árvore, por exemplo, por uma forma como ali, sabemos se tratar de um conjunto coeso, ou seja, de um sintagma.
Entende-se por pró-forma toda unidade lingüística capaz de substituir outra na cadeia sintagmática por uma equivalência funcional e, eventualmente, semântica. Uma forma lingüística equivale funcionalmente a outra quando pode figurar no mesmo lugar da unidade substituída. A pró-forma pode substituir seqüências lingüísticas de extensão vária. Por exemplo, o verbo fazer antecedido do pronome o (o faz) substitui a oração anterior (ou melhor, como veremos, o SV anterior) em “Os deputados cobravam seus direitos, e o faziam (= cobravam seus direitos) com cinismo”. Ressalte-se que a possibilidade de substituir cobravam seus direitos por o fazer atesta-nos a natureza sintagmática de cobravam seus direitos.
Cabe dizer que as unidades aqueles pássaros, seu ninho, em galhos de árvore e seus correlatos funcionais Eles, -no, ali, respectivamente, são sintagmas porque podem ocupar certos lugares na estrutura frasal. Os sintagmas que ocupam o mesmo lugar na cadeia sintagmática são classificados da mesma maneira. Assim é que Eles e aqueles pássaros são ambos sintagmas nominais; -no e seus ninhos também são ambos sintagmas nominais; ali e em galhos de árvore são, pois, sintagmas adverbiais.
O teste da coordenação serve melhor para identificar sintagmas que pertencem à mesma classe funcional. Por exemplo, se introduzirmos na frase-exemplo (13) uma forma como “falcões”, do que resulta “aqueles pássaros e (aqueles) falcões fazem seu ninho em galhos de árvore”, percebemos que a conjunção “e” relaciona duas unidades da mesma natureza, ou seja, funcionalmente semelhantes: “aqueles pássaros” e “(aqueles) falcões” são ambos sintagmas nominais. Numa frase como “O chocolate lhe manchou a manga da camisa e a saia”, a conjunção “e” liga dois sintagmas nominais – a manga da camisa e a saia – que cumprem a função de complemento verbal.
O último expediente que importa considerar é o da interrogação mediante as formas (o) que, quem, quando, onde, quanto, etc. Trata-se de um tipo particular de substituição, que patenteia a correlação funcional entre as unidades envolvidas. Assim, tendo em vista a frase (13), pode-se formular as seguintes perguntas com aquelas formas:

(13c) Quem fez seu ninho em galhos de árvore?
          Onde os pássaros fizeram seus ninhos?
          O que os pássaros fizeram em galhos de árvores?

Veja-se que as formas quem, onde, o que correspondem respectivamente às unidades aqueles pássaros, em galhos de árvore e seu ninho. Pelo teste de interrogação, procura-se mostrar que essas unidades são sintagmas, ou seja, são unidades coesas, no interior das quais (e entre as quais) se estabelecem determinadas relações sintático-semânticas.
É claro que as formas onde e o que encetam a oração, já que se trata de frases interrogativas; poderiam, contudo, dispor-se no fim da frase interrogativa – o que corrobora a idéia de que essas unidades ocupam o mesmo lugar das unidades que substituem.

Onde os pássaros fizeram seus ninhos?
Os pássaros fizeram seus ninhos onde?
Em galhos de árvore, os pássaros fizeram seus ninhos.
Os pássaros fizeram seus ninhos em galhos de árvore.

O que os pássaros fizeram em galhos de árvore?
Os pássaros fizeram em galhos de árvore o quê?
Seu ninho os pássaros fizeram em galhos de árvore.
Os pássaros fizeram em galhos de árvore seu ninho.
Os pássaros fizeram seu ninho em galhos de árvore.

Cabe perguntar, porém, se, no sintagma em galhos de árvore, a unidade de árvore é também um sintagma. Deveras, o é. Como ensina Azeredo (2002: 151 ss 304), “pode haver sintagmas dentro de sintagmas mais amplos”. Está claro que não podemos deslocar de árvore, porque é um sintagma encaixado no sintagma mais amplo em galhos de árvore; mas podemos substituí-lo por uma forma como ela: em (nos) galhos dela.
Antes de referir os tipos de sintagmas e suas características sintático-semânticas e morfológicas, dou a saber os seguintes passos de Inez Sautchuk (2004: 40):
“O que acontece com qualquer falante da língua, ao processar enunciados escritos, é que ele o faz “dividindo” esses enunciados em blocos significativos que podem, inclusive, mudar de posição no eixo sintagmático. São esses blocos (ou “as combinações de unidades lingüísticas de nível inferior”) que constituem o que chamamos de sintagma”.

Azeredo também destaca as três seguintes características do sintagma:

a) “os vocábulos não formam a oração senão indiretamente, eles se associam em unidades complexas – os sintagmas – que são os verdadeiros constituintes da oração”;
b) “um sintagma pode ser constituído por um grupo de vocábulos ou por um vocábulo simples”;
c) os sintagmas, assim como os morfemas e as palavras, pertencem a diferentes classes.


Vejam-se, a seguir, as cinco classes de sintagma apresentadas por Azeredo:

a) SINTAGMA NOMINAL (SN):  tem como núcleo um substantivo ou palavra de valor substantivo (tais como pronomes retos, oblíquos, indefinidos, possessivos (quando antecedidos de artigo), demonstrativos, indefinidos-interrogativos, numerais substantivos, etc.).

b) SINTAGMA VERBAL (SV): tem como núcleo um verbo e pode incluir os complementos e adjuntos desse núcleo, ou constituir-se apenas do núcleo. Assim a extensão do SV varia conforme haja apenas o verbo ou este e os elementos a ele adjacentes.

c) SINTAGMA ADJETIVAL (SAdj.): tem como núcleo um adjetivo, mas pode constituir-se também de advérbios (de intensidade, de modo) que modificam o núcleo ou por sintagmas preposicionados.

d) SINTAGMA PREPOSICINAL (SP): o sintagma preposicional é sempre um sintagma derivado, já que se forma mediante a combinação de uma preposição com um outro sintagma. O índice formal do sintagma preposicional, pelo qual podemos reconhecê-lo, é a preposição.

e) SINTAGMA ADVERBIAL (SAdv.): tem como núcleo um advérbio, o qual, eventualmente, pode ser modificado por outro advérbio.
Citem-se os seguintes exemplos:

a) As asas do pica-pau quebraram. (SN)
    Os seis alunos estão em recuperação. (SN)
    Os cinco podem descer agora! (SN)
    Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SN)
    Alguns alunos não foram aprovados. (SN)
    Alguns dos eleitos não assumiram o cargo. (SN)
     Júnior escrevia cartas aos seus. (SN)
   
b) As asas do pica-pau quebraram. (SV)
    Os seis alunos estão em recuperação. (SV)
    Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SV)
    Alguns alunos não foram aprovados neste ano. (SV)
    Alguns dos eleitos não assumiram o cargo. (SV)
    Júnior escrevia cartas aos seus habitualmente. (SV)

c) Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SAdj.)
    Os trabalhadores da empresa de gás cobram melhores condições de trabalho. (SAdj.)
    Os deputados cassados tiveram seu sigilo bancário quebrado. (SAdj.)
    Os leões fugitivos foram muito bem alimentados pelos funcionários do zoológico. (SAdj.)

d) As asas do pica-pau quebraram. (SP)
   Os seis alunos estão em recuperação. (SP)
    Alguns alunos não foram aprovados neste ano. (SP)
    Júnior escrevia cartas aos seus. (SP)

e) Os leões fugitivos foram muito bem alimentados. (SAdv.)
    Júnior escrevia cartas aos seus habitualmente. (SAdv.)
    Clarice não gostava de acordar muito cedo. (SAdv.)

Urge ter em conta que a análise do sintagma preposicional varia. Autores há que o consideram um sintagma derivado, isto é, formado pela preposição e por outro tipo de sintagma (na maioria dos casos, por um sintagma nominal, mas pode constituir-se de um sintagma adverbial, como em “Fulano passou por aqui”, ou por unidades complexas, como em “A barata passou por cima de meu braço”, em que, não obstante a lição da tradição, que vê aí uma locução prepositiva (“por cima de”), pode-se dizer que o sintagma preposicional em itálico resulta da união de um sintagma preposicional derivado de um sintagma adverbial por cima e um sintagma preposicional de meu braço, que é também derivado, porquanto resulta da combinação da preposição “de” com uma forma nominal (braço)). O sintagma se diz básico quando é formado por uma classe de palavra que por si só pode constituir o sintagma, tal é o caso do substantivo ou pronomes substantivos, o adjetivo, que pode constituir sozinho o sintagma adjetivo, o verbo, que pode constituir sozinho o sintagma verbal, e o advérbio, que pode por si só constituir o sintagma adverbial.
Os sintagmas derivados, como o sintagma preposicional, são criados por meio de transposição. O conceito de “transposição” proposto por Azeredo será estudado mais adiante.
Como não seja uma unidade que apresenta significado lexical; portanto, não apresentando “carga semântica”, a preposição não é o núcleo do sintagma preposicional, mas a unidade característica, mediante a qual se derivam unidades de outras unidades pertencentes a classes diferentes. Alguns autores, ignorando esse processo, que está relacionado ao conceito de recursividade e criatividade da linguagem humana, consideram o substantivo como núcleo do sintagma preposicional. Todavia, é corrente a análise em que se que entende o sintagma preposicional como resultado da combinação de uma preposição com um sintagma nominal. Assim, uma seqüência como neste ano é analisada como:
        
              Neste ano
                  SP
           N
           em      SN
               DET N
                        este     ano

                  
Note-se, agora, a análise de em galhos de árvore:

              SP
        SP            SP

N         SN      N     SN
Em                   
           N      de      N
          galhos            árvore

Ainda no tocante à análise do sintagma preposicional, há que notar que esse sintagma se define do ponto de vista formal (mórfico, propriamente). Assim é que, normalmente, se classifica o sintagma preposicional pela função que exerce na frase. Tome-se para exemplo as frases abaixo:

(14) Os livros de literatura sumiram.
        Os livros são de literatura
        Elias viu com um binóculo a moça que tanto amava.
        A moça com um binóculo foi vista por Elias.

   Note-se que “de literatura” cumpre as funções de “adjunto adnonimal” e “predicativo do sujeito”, respectivamente; e “com um binóculo” exerce as funções de “adjunto adverbial” e “adjunto adnominal”, também respectivamente. Todos os dois sintagmas, entretanto, são sintagmas preposicionais, que cumprem funções sintáticas diferentes.
Para efeito de reconhecimento do sintagma preposicional, não importa a posição que ocupa na frase, ou, em termos tradicionais, a função sintática que exerce, senão sua estrutura mórfica, que resulta da combinação de uma preposição com um sintagma de um tipo específico.
Azeredo (2002:205 ss. 396), todavia, ignorando o aspecto mórfico a que me referi, inclui entre os sintagmas adverbiais certos sintagmas preposicionais, de acordo com a posição (“função”) que ocupem na frase. Assim, na frase “O garoto nunca tinha visto o amor de perto”, o sintagma “de perto”, não obstante apresentar a estrutura de um sintagma preposicional, é considerado por Azeredo como um “sintagma adverbial”, porquanto cumpre a função adverbial (‘lugar, posição’): “de perto” é, na gramática tradicional, um tipo de “adjunto adverbial de lugar”, de valor ‘situacional’, já que, por ele, situa-se a entidade que cumpre a função de sujeito num “ponto” espacial próximo ao “mar”, que é o objeto a que se aplica a visão.
Portanto, para Azeredo, o sintagma adverbial é estruturalmente formado ou por um advérbio apenas, ou por um advérbio antecedido de outro advérbio, ou por um SP.
Considerando o ponto de vista de Azeredo, pode-se dizer que, para a classificação dos sintagmas, concorrem os aspectos mórfico (classe de palavra que preenche a posição nuclear do sintagma) e funcional, no sentido de Bloomfield, a saber, a posição do sintagma na estrutura da frase.
Vamos adotar o ponto de vista segundo o qual o sintagma preposicional é identificado pela sua estrutura interna, e não pela posição que ocupe na estrutura frasal. Cabe enfatizar que, do ponto de vista estruturalista, quando se diz que um sintagma cumpre ou preenche uma função, quer-se dizer que ele ocupa determinada posição na estrutura da frase; a “função” de uma unidade lingüística (de um sintagma, portanto) é determinada pela posição que ocupa na cadeia sintagmática (em relação a outras unidades). Muito diferente é o ponto de vista da gramática tradicional que entende por “função” o comportamento sintático-semântico das unidades lingüísticas na frase, ou seja, de perto, por exemplo, é um adjunto adverbial não só porque ocupa posição própria de um adjunto adverbial (normalmente, após os complementos do verbo, quando estes estão atualizados) ou porque pode ser substituído por uma forma como daqui ou dali (cf. ver o mar daqui ou dali), mas, sobretudo, porque indica uma circunstância do fato verbal (a circunstância de ‘lugar’). Destarte, na gramática tradicional, a função de um sintagma é determinada por seu comportamento sintático-semântico, e não tão-só por seu aspecto formal ou funcional (isto é, posição na cadeia sintagmática, combinações ou correspondências com outras unidades, etc.).
O ponto de vista por mim esposado é também o ponto de vista adotado por Inez Sautchuk. É, muito provavelmente, o ponto de vista mais comum nos estudos sintáticos. Em que pese à minha posição teórico-pedagógica, importa ao futuro professor saber que existem os dois pontos de vista referidos, no que toca à análise do sintagma preposicional.

Em suma, podemos referir as seguintes características formais das classes de sintagmas:

a) SINTAGMA NOMINAL:
Núcleo – substantivo ou expressão equivalente;
O núcleo pode vir circundado de elementos adjacentes;
Os elementos adjacentes são: artigo, pronome possessivo, pronome demonstrativo, pronome indefinido, numeral, adjetivo ou palavra de igual valor.

b) SINTAGMA ADJETIVAL:
Núcleo – adjetivo
O núcleo pode vir acompanhado de advérbios de intensidade, de modo ou de sintagmas preposicionais.

c) SINTAGMA PREPOSICIONAL (ou Preposicionado):
Núcleo – preposição
É formado por preposição + sintagma nominal (SN) ou por preposição + advérbio. Pode articular-se a um substantivo, a um adjetivo ou a um verbo.

d) SINTAGMA ADVERBIAL:
Núcleo – advérbio
Pode compor-se ainda de advérbios de intensidade, de modo.

e) SINTAGMA VERBAL:
Núcleo – verbo.

Pode ser complexo, ou seja, formado pelo núcleo e por elementos a ele relacionados, como complementos (objeto direto, objeto indireto, complemento relativo, etc.), e adjuntos (adjuntos adverbiais). O SV compreende, pois, todo o domínio cujo elemento base é o verbo, ao qual se articulam outros elementos. Esses elementos podem articular-se uns aos outros. Assim é que um objeto direto pode ser modificado por uma estrutura preposicional, ou essa estrutura pode servir de complemento a ele. Por exemplo, em “Os políticos mais conservadores admitem a aliança entre partidos contrários”, ao constituinte ou sintagma “a aliança”, objeto direto de “admitir”, articula-se o constituinte “entre partidos contrários”, que lhe serve de complemento.
Não é unânime o reconhecimento do sintagma adverbial. Mário Perini (2004: 118), por exemplo, observa o seguinte:

“Dos chamados “sintagmas adverbiais”, há pouco o que dizer no momento. Eles constituiriam a classe dos constituintes que ocupam funções “adverbiais” na oração, como, por exemplo, em
(102) Terminamos a pintura em poucas horas.


Do exemplo citado pelo autor, deduz-se que ele considera, tal qual Azeredo, o sintagma adverbial um constituinte formado por “preposição + SN”, que funciona como adjunto adverbial. Á página 119, Perini corrobora nossa dedução, quando escreve:

“Pode-se dizer um pouco mais: esses sintagmas [os adverbiais] podem ser formados de preposição + SN (...)”.


Perini informa que não se fez ainda um estudo sistemático da natureza dos sintagmas adverbiais; disso se segue que o autor abandona a questão ao abrigo de estudos que venham lançar luz sobre ela.

“No entanto, a falta de uma definição (ou melhor, um conjunto de definições) que delimite com alguma clareza as entidades de que estamos falando impede qualquer tentativa séria de sistematização. Prefiro, por isso, limitar-me às observações gerais dadas acima, aguardando que se elabore uma taxonomia rigorosa desses sintagmas”.

Do exposto, há que admitir duas análises para o sintagma em poucas horas: a que o entende como sintagma preposicional; outra que o entende como sintagma adverbial, em virtude de levar em conta a sua função ou posição na cadeia sintagmática. De acordo com essa última análise, o sintagma adverbial pode constituir-se de preposição e SN, à semelhança do sintagma preposicional. Formalmente, portanto, muita vez, não é possível distinguir entre sintagma preposicional e sintagma adverbial; para tanto, é necessário observar a posição ou a função que o sintagma exerce na frase: cumprindo a função de “adjunto do nome” ou “complemento de verbo (inclusive, o complemento predicativo) ou de nome” será um sintagma preposicional; cumprindo, contudo, uma função “adverbial”, será um sintagma adverbial. Vejamos os dois modelos de análise:

Modelo 1 – todo sintagma que apresente a estrutura ‘prep.__SN’ é um sintagma preposicional:

Terminamos o trabalho em poucas horas. (= cedo)

                    Em poucas horas

                  SP

       N                SN
                    Det.      N
         Em                 poucas       horas

       
Ou: Modelo 2 – o sintagma preposicional que cumpra função adverbial é um tipo de sintagma adverbial.
                             
                SAdv.

                 SP

           N           SN

                   Em       Det.       N
                     poucas       horas

No entanto, em “O livro de Literatura sumiu”, de literatura é um sintagma preposicional, já que não cumpre a função de “advérbio”, senão de um “adjetivo”. A análise desse caso é, pois, a seguinte:


de Literatura

     SP

N         SN

de            literatura


Passemos, agora, a considerar a noção de transposição. A transposição é um processo sintagmático que permite a formação de sintagmas que têm distribuição distinta das unidades que constituem o seu núcleo. É preciso frisar que SN, SV, SP , SAdj. e SAdv. são categorias.
A transposição é um dos mecanismos gramaticais por que se expressam a flexibilidade e a  dinamicidade do sistema linguístico. Ela compensa a rigidez da estruturação sintagmática, permitindo expandir infinitamente os enunciados de uma língua. A transposição ilustra a capacidade que têm os usuários da língua de estabelecer entre as suas unidades diversas relações associativas. Os recursos responsáveis por realizar a transposição chamam-se transpositores.
A fim de que compreendamos adequadamente o processo de transposição, necessário se faz reconhecer que é a subordinação que constitui a forma com que se estabelecem as relações sintáticas. Pela subordinação, as unidades que compõem as orações passam a preencher funções. Na subordinação, uma categoria X posiciona-se sob o domínio de uma unidade da categoria Y. A distinção entre subordinação e coordenação, portanto, tem base formal e funcional, visto que a primeira supõe que as unidades associadas ocupam uma posição na hierarquia da estrutura sintática e os instrumentos dessa associação pertencem à unidade subordinada. Fala-se em subordinação quando um termo prende-se a um outro que pertence a um nível superior, do qual o primeiro é um constituinte. Por exemplo, sujeito e predicado são subordinados à oração; são dela constituintes.
Os transpositores são as unidades linguísticas (vocábulos e afixos) que realizam a transposição. São unidades instrumentais com as quais a transposição se realiza formalmente. Abaixo, elenco os transpositores:

a)     os subordinantes (preposições, conjunções e nominalizadores);
b)     os pronomes relativos;
c)      advérbios e pronomes interrogativos que introduzem SNs oracionais;
d)     o verbo SER introdutor de predicado (verbo de ligação);
e)      os verbos TER e HAVER seguido de particípio;
f)       os afixos ‘-ndo’ e ‘-do’;
g)      certos determinantes que servem para substantivar expressões não-nominais.
A noção de transposição ajuda-nos a compreender, por exemplo, como é possível que uma oração se subordine à outra. Na gramática tradicional, o exemplo (15) é um período cujas orações se relacionam por subordinação. A oração subordinada aparece grifada.

(15) Todos os alunos estavam sentados, quando o professor entrou em sala.

Diz-se que a oração “quando o professor entrou em sala” é do tipo adverbial, porque corresponde a um sintagma não-oracional de valor adverbial, como, por exemplo, “no momento da entrada do professor em sala”

(15a) Todos os alunos estavam sentados no momento da entrada do professor em sala.

Estou ciente de que, tradicionalmente, no ensino escolar, a identificação da oração adverbial se baseia em noções semânticas, como a de tempo. O expediente de substituição que acabei de mostrar apela apenas para o aspecto formal. Com ele, mostro que “quando o professor entrou em sala” e “no momento da entrada do professor em sala” têm a mesma distribuição (ou seja, podem preencher a mesma posição na frase). Em (15a), “no momento da entrada do professor em sala” é um constituinte da oração “Todos os alunos estavam sentados”. De passagem, note-se que as orações adverbiais, bem como os sintagmas suboracionais adverbais podem-se movimentar livremente no interior da frase:

(15b) Quando o professor entrou em sala, todos os alunos estavam sentados.
No momento da entrada do professor em sala, os alunos estavam sentados.
Os alunos, quando o professor entrou em sala, estavam sentados.
Os alunos, no momento da entrada do professor em sala, estavam sentados.

Acima, escrevi “a transposição é um processo sintagmático que permite a formação de sintagmas que têm distribuição distinta das unidades que constituem o seu núcleo”; isso significa que o sintagma “quando o professor entrou em sala”, de função adverbial, não tem por núcleo um advérbio. O núcleo desse sintagma é o verbo “entrou”. Sabemos, por outro lado, que outros sintagmas têm a mesma distribuição dos seus núcleos. O SAdj. tem como núcleo um adjetivo; o SN tem como núcleo o substantivo. Mas o SP, porque seja um sintagma formado por transposição, não tem a mesma distribuição de seu núcleo, que é, seguindo Azeredo (2000, p. 31), o substantivo a que se articula a preposição, e não a preposição.
Ora, para ser de natureza subordinada, a oração deve comportar-se à semelhança do constituinte de base não-oracional, ou seja, deve integrar a estrutura da frase. Pelo processo de transposição, a oração subordinada transpõe-se para o nível do sintagma (nível imediatamente inferior) para, assim, poder funcionar como uma unidade dependente da estrutura sintática da oração como um todo. Nesse caso, fala-se em sintagma adverbial formado por transposição, o que significa dizer que essa oração transpõe-se para o nível do sintagma, tornando-se, pois, um sintagma adverbial que toma parte na estrutura do sintagma oracional. É o conectivo “quando” – transpositor – o recurso que torna possível a transposição da oração para o nível do sintagma.

(15c)
 Todos os alunos estavam sentados,
                                         quando o professor entrou em sala
                                        sintagma adverbial formado por transposição
                                    
                                       (= no momento da entrada do professor em sala)

Na transposição, o transpositor é parte da unidade que ele transpõe; donde se segue que, no conjunto das ditas orações subordinadas substantivas, apenas as que são introduzidas por pronomes indefinidos ou advérbios interrogativos, devem ser consideradas como tais, já que seus transpositores ocupam a posição de um SN no interior da oração de que fazem parte Vejam-se os exemplos abaixo:

(16) Eu não conheço quem poderá desempenhar melhor essa função.
(17) Perguntaram-me quantos anos ele tinha.

As formas “quem” e “quantos” são transpositores. Como tais, eles integram as orações que introduzem. Sucede que eles também cumprem uma função no interior dessas orações. Em (16), “quem” é o sujeito (cf. quem poderá...); em (17), “quantos” exerce a mesma função de um constituinte  nominal (denotativo de ‘quantidade’), que funciona como complemento do verbo “ter” (cf. ele tinha trinta anos (quantos)). As conjunções integrantes “que” e “se” não cumprem uma função no interior da oração que introduzem, como se vê em (18):

(18) Eu sei que ele não gostava muito da minha irmã.

Em (18), o transpositor “que” não cumpre uma função sintática na oração transposta “ele não gostava muito de minha irmã”. A forma “que” opera tão-só a transposição, de modo a permitir que a oração “ele não gostava muito da minha irmã”, passando ao nível do sintagma (SN), possa preencher a posição de complemento do verbo “saber”. Trata-se de um sintagma nominal por transposição.

Não cabe aqui desenvolver, plenamente, o tema da transposição. Se, ao explaná-lo, contribuí para alargar a compreensão do leitor sobre o processo sintático de subordinação, creio ter alcançado de modo satisfatório meu objetivo fundamental.