terça-feira, 19 de julho de 2011

"A inquietude é o ventre da filosofia" (BAR)


                         

                  Pensamentos dispersos
  Sobre filosofia, otimismo e pessimismo

Estava eu já diante do computador, concentrando e aparando os pensamentos a fim de iniciar este texto, quando fui surpreendido com o toque do interfone. Quando o atendi, falou-me uma moça com a intenção de informar-me a respeito das lições bíblicas. Como sua voz expressasse doçura, decidi atendê-la pessoalmente. Prontifiquei-me a ouvi-la, sem desviar-lhe o olhar. Permaneci em silêncio, acenando-lhe com a cabeça que a compreendia. Limitei-me a dizer uma ou outra palavra dissílaba de condescendência, muito embora em meu espírito as ideias ateístas ficassem latejantes e agitadas. Se, ao cabo de seu discurso, previsivelmente, banhado na doutrinação bíblica, eu lhe dissesse eufemisticamente – simpatizo-me com o ateísmo – talvez o que antes era doçura tomaria feições de piedade. Então, mantive-me em silêncio durante todo o tempo em que ela falava.
Não tomou a rua, sem que antes me ofertasse uma revista destinada aos fiéis. Na capa, estampa-se em letras garrafais 6 PROFECIAS BÍBLICAS que estão se cumprindo hoje. Querem saber quais são essas profecias? A primeira são os terremotos, que, aliás, não têm nada de proféticos; eles acontecem desde que o mundo era mundo; não são eles “sinais” dos fim dos tempos. A segunda é a fome. Ora, fome é, certamente, o maior problema social que o homem, a despeito dos avanços técnico-científicos, tem de enfrentar. Certamente, um problema característico das sociedades capitalistas (embora não só) em que as desigualdades são consequência de seu próprio funcionamento. A terceira são as doenças. Elas também existem desde que o mundo era mundo. Vírus, bactérias, parasitas; enfim, a própria natureza está infestada de organismos nocivos à vida humana. A quarta é a falta de amor. Uma maneira simplista de entender o conflito humano. Quero dizer que há homens que amam, há homens que odeiam, há homens que invejam, há homens que salvam, protegem e se sacrificam, e há homens que matam, impingem sofrimento. Se a violência é um fato inegável da condição humana e a História o prova, não é a falta de amor que a explica. O amor é indispensável, mas ele não é suficiente para resolver todos os problemas que nos atingem. A quinta profecia é a destruição da Terra. Culpa-se aqui o homem por poluir o meio-ambiente, devastar as florestas, etc., enfim, causar a destruição da natureza. Ocorre que até aqui nada disso são, a rigor, profecias. Os relatos da Bíblia desses acontecimentos são relatos decorrentes da própria experiência dos homens que, ao longo de muitos séculos, escreveram os seus textos. Ora, a partir da constatação de fatos numa dada época, pode-se não profetizar, mas fazer um prognóstico sobre o que irá acontecer futuramente. Por exemplo, a fome existe e assola cerca de 800 milhões de pessoas em todo mundo. Entre suas causas estão as guerras, desastres ecológicos e pragas. É possível, mesmo sem um exame mais acurado de questões sócio-políticas e econômicas, predizer que essa situação continuará por alguns séculos. Os mais desacreditados poderiam dizer que, a menos que uma nova geração de seres humanos venham a habitar este planeta daqui a milhões de anos, a fome e outros males não terão fim. Seria isso uma profecia? Não, é claro. Mas um prognóstico, baseado em um dado estado-de-coisas que tenderá a permanecer durante muitos anos ou séculos, em virtude das condições sociais, políticas e econômicas que o mantêm.
A última profecia diz respeito à pregação mundial. Segundo essa profecia, a palavra de Deus seria levada a todo o mundo. Mas no Japão, por exemplo, a religião predominante é o budismo e estima-se que 65% dos japoneses são ateus ou agnósticos. Na Dinamarca, o número de ateus chega a 80%.  Na Índia, a religião hindu predomina. Ou seja, a pretensão de o cristianismo e suas ramificações ser uma religião universal cai por terra quando constatamos, por um lado, a grande diversidade de religiões e crenças no mundo; por outro lado, a secularização inegável que a nova visão de mundo, produto do século da Luzes, em que floresceu a mentalidade científica, acarretou.
Ora, pregar para diferentes povos foi o que o grande responsável por disseminar e consolidar o cristianismo, Paulo de Tarso, fez, ao discursar para os antigos gregos, em Corinto, por exemplo. Este homem, convertido para o cristianismo, percorreu ainda cidades como Tarso, Derbe e Listra (situadas na Ásia Menor, porção asiática da Turquia), Filipos e Atenas, na Grécia, entre outras. Finalmente, chegou a Roma. Em todas as cidades por que passou, Paulo de Tarso procurou converter os povos que ali viviam ao cristianismo.
Creio, contudo, que estiquei demais meus pensamentos, orientando-os para caminhos que não estavam planejados. Este texto destina-se à mera expressão de pensamentos que me adejavam na mente, enquanto lia o livro Ateísmo e Revolta – os manuscritos do padre Jean Meslier, pensador materialista ateu pouco conhecido entre nós, leitores brasileiros. Não tenho intenção de comentar partes do livro, tampouco versarei sobre ideias ateístas. Mas vou me servir deste livro para externar aos leitores o que significa ser filósofo. Esse é meu ponto de partida: o filosofar. O que é isso? Tendo em conta as reflexões sobre a atividade de filosofar, iniciarei uma discussão sobre atitudes pessimistas, realistas e otimistas, baseando-me, para tanto, num estudo desenvolvido por uma neurocientista israelense sobre a atitude otimista dos homens (pós-)modernos.
À página 95 do livro sobre os manuscritos do padre Meslier, referido acima, o seu autor busca avaliar se o cura pode ser classificado como filósofo. Para tanto, tenta situá-lo na história da filosofia. Isso significa examinar o valor argumentativo de suas teses. Ocorre que não basta apenas equipará-lo a um dos muitos grandes filósofos, consagrados pela História, em termos de linguagem, estilo. É preciso questionar os parâmetros da academia pelos quais um pensador é ou não classificado como ‘filósofo’.
Sabe-se que a tradição acadêmica nos fez acreditar que um filósofo é um homem dotado de erudição e, como tal, deve ser um leitor inveterado dos grandes clássicos da filosofia. Critica-se aqui o pendatismo de certos filósofos profissionais que, não sendo filósofos, são professores de filosofias ou comentadores. Naquela obra, encontraremos a citação de Camus, ao ponderar: “Os filósofos antigos (naturalmente) refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto. A tipografia mudou isso. Nós lemos mais do que refletimos. Não temos filosofia, apenas comentários.” (p. 95)  As produções acadêmicas, em Filosofia, são teses, dissertações de comentadores do pensamento de um grande filósofo. Outro crítico é chamado à cena, Gonçalo Palácios. Ele observa que “a filosofia tornou-se, desde a época medieval, um assunto privado, reservado a centros inacessíveis e a pessoas afastadas do povo, verdadeiros santos”. Esse mesmo crítico, refutando a ideia de Heidegger, segundo a qual a filosofia só poderia expressar-se em grego ou em alemão, escreve:
Afirmo que é a atitude perante as coisas que nos permite ou não filosofar. Sem essa atitude jamais iremos filosofar. Se achamos que não podemos fazê-lo por conta própria, certamente não o faremos, falando grego, latim ou sânscrito. Filosofamos na medida em que, tendo uma certa atitude, pensamos como meros seres humanos, não por falarmos esta ou aquela língua”.
Outros críticos serão evocados - e mesmo um filósofo consagrado como Montaigne - para defender a tese de que um filósofo não se define pela sua competência enquanto leitor de um ou outro filósofo ou de ser especialista em filosofia. O filósofo se define pela assunção de uma atitude de espanto, de questionamento em face do mundo. É o desejo de pensar criticamente que faz um filósofo, e não o grau elevado de conhecimento que possa ter de uma ou outra obra do pensamento filosófico. Filosofia não é erudição.
Outros críticos combateram a chamada “sacralização da linguagem filosófica especializada” e, portanto, sua inacessabilidade ao homem comum. Outro crítico ainda defende que muito do que escreveu Heidegger sobre a morte e outros tantos temas poderia ser muito bem expresso numa linguagem corrente. E deve-se lembrar que Heidegger tem a fama de ser um filósofo prolixo.
Dessas considerações sobre o filosofar, podemos depreender que qualquer um de nós pode, uma vez beneficiado pelas condições necessárias, ser um filósofo. Para tanto, devemos ser habituados ao exercício do pensamento reflexivo e crítico. O homem-filósofo é aquele que reconhece ser a realidade um problema e, portanto, algo que deve ser pensado, questionado, investigado, explicado.
Sóbrias são as palavras de Schopenhauer, filósofo de primeira grandeza, em  A arte de escrever (2009), ao nos ensinar que:

“(...) só tem valor o que uma pessoa pensou, a princípio, apenas para si mesma. Aliás, é possível dividir os pensadores entre aqueles que pensam a princípio para si mesmos e aqueles que pensam de imediato para os outros. Os primeiros são pensadores autênticos, são os que pensam por si mesmos, são eles mais propriamente os filósofos. O prazer e a felicidade de sua existência consistem exatamente em pensar. Os outros são os sofistas: eles querem criar uma aparência e procuram sua felicidade naquilo que esperam receber dos outros.”
(pp. 52-53)

Não estou preocupado em comentar ou avaliar as conclusões a que chegou a neurocientista em seu estudo sobre o comportamento otimista. Quem desejar ler a reportagem pode acessá-la em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/941968-pesquisa-mostra-lado-negro-do-otimismo.shtml.
Comecemos, pois, definindo o otimismo. Pode-se defini-lo da seguinte forma: otimismo é a concepção segundo a qual a realidade é intrinsecamente boa; assim, o bem sempre predominará sobre o mal. Por outro lado, o pessimismo é a visão negativa das coisas, a partir da qual acreditamos que o pior sempre vai acontecer. Leibniz pode ser considerado um filósofo otimista, pela sua tese de que este mundo é o melhor dos mundos possíveis, mundo este criado por Deus. Schopenhauer, muita vez, foi considerado, por seu turno, um filósofo pessimista.
O otimismo tem o inconveniente de mascarar os problemas que atingem a humanidade e de levar o espírito a refugiar-se num universo de fantasia. Por outro lado, o pessimista, por acreditar que o mal e o sofrimento são realidades insolúveis, pode, radicalmente, decidi pela contenção dos esforços por solucioná-los. O pessimista pode, simplesmente, tornar-se um conformado.
Tanto uma quanto outra visão é unilateral, é parcial, é fragmentária, porque incapaz de apreender a totalidade do real. A visão otimista recobre o aspecto positivo da realidade, realçando-o em detrimento do aspecto negativo. O pessimista, ao contrário, enfatiza o aspecto negativo e se torna cego para o aspecto positivo. Ambas as visões, por serem parciais, não abrangem as contradições inerentes ao real.
O realismo, enquanto visão de mundo, não tendendo exclusivamente para um ou outro aspecto do real, busca apreendê-lo integralmente. Um realista se ancora no acontecimento e o avalia, considerando suas consequências positivas e negativas.
A supervalorização de um aspecto, nas duas visões contrapostas, dá lugar, na visão realista, a uma avaliação da realidade tendo em conta seus aspectos tanto negativos quanto positivos.
O leitor, muitas vezes, já se deparou com movimentos sociais em que pessoas, muitas das quais vítimas da violência, reivindicam a paz. Cartazes com a palavra “paz” e fotos de parentes vitimados pela violência são ostentados, no meio de uma aglomerado de pessoas em passeata. Um observador deste acontecimento social que declarasse que a paz é um ideal, uma aspiração humana, mas nunca uma realidade concreta e universal não está sendo, de modo algum, pessimista. E se acrescentar que a guerra é um fato que caracteriza a vida dos homens desde os tempos mais remotos e que, muito dificilmente, deixaremos, um dia, de produzir guerras, de perpetrar violência, também não está sendo pessimista. Veja-se, a propósito, o que se escreve na Introdução da Enciclopédia de Guerras – conflitos mundiais através dos séculos (2005: 8):

“A guerra dominou a atividade humana desde muito cedo. Na Pré-História, ela consistia em conflitos tribais localizados e efêmeros – embates entre homens a pé armados de instrumentos de madeira ou de pedra. Contudo, por volta da idade clássica – iniciada em 500 a.C. -, as guerras ficaram mais complexas, sendo travadas entre nações e mesmo impérios. Os conflitos se tornaram mais demorados e as distâncias se estenderam. As táticas militares atingiram os mais elevados níveis, e diversos generais, sobretudo Alexandre, o Grande, e Aníbal, destacaram-se como líderes de verdadeira preeminência, com quem os demais comandantes acabavam sendo comparados”.

Os otimistas tendem à utopia, ao idealismo; e o pessimista pode acreditar que as coisas estejam irrevogavelmente ordenadas, sendo, assim, inútil pretender modificar sua ordem tendo em conta nosso benefício. Tanto uma quanto outra visão pode nos cegar, obscurecer nossa consciência.
No entanto, não se trata de advogar a eliminação de um ou outra visão, já que nós tendemos a uma ou outra, quando avaliamos, ponderamos. A base do otimismo é certa confiança, sem a qual nós não conseguiríamos atravessar a rua, por exemplo, nem beber água.
É necessário dizer, a esta altura, que as três visões aqui discutidas são interpretações. Diante do fenômeno das guerras, alguém, que se assuma “realista” em suas avaliações, poderia dizer que é verdade que há uma mobilização das grandes potenciais mundiais no sentido de evitar as guerras; ou seja, o homem da atualidade está mais preocupado com a sobrevivência pacífica (talvez, não  só porque se tenha conscientizado do valor de ser bom, mas  principalmente porque o custo da guerra é alto: guerras geram miséria, recessão econômica, doenças, etc.). A criação da ONU é uma prova da pretensão humana de evitar guerras (mormente aquelas que se servem de bombas atômicas) e preservar a paz. No entanto, as guerras ainda acontecem, como houve no Afeganistão,  há no Iraque e há na Líbia. Há séculos palestinos e israelenses guerreiam e, a despeito dos esforços pela paz, os conflitos não cessaram até hoje.
Considerar, de um lado, as guerras; e, de outro lado, as iniciativas políticas com vistas a contê-las e evitá-las, é considerar as contradições da realidade, ou seja, dialeticamente, é operar uma avaliação mais totalizante do real, tendo sempre em conta os limites inevitáveis dessa totalização.
Nós não estamos imunes ao pensamento generalizante, aos pre-conceitos de toda sorte. Uma avaliação generalizante como “o homem é um ser mau” pode revelar uma atitude pessimista em face do real, simplesmente porque ignora as contradições: abramos os olhos para dar-nos conta de que, a despeito de haver muitas pessoas perpetrando atos maus, há também muitas pessoas salvando vidas, dedicando-se ao benefício de outros seres humanos.  Uma visão realista – e acrescentaria, sensata -, nesse tocante, deve considerar o homem e suas condições sociais de existência. Não podemos avaliar fazendo abstrações desse tipo. Quando dizemos “o homem é um ser mau”, tomamos a espécie e a qualificamos, ignorando seus indivíduos. Um olhar mais atento nos permitiria reconhecer que há na espécie “homem” indivíduos maus e bons.
É possível que eu tenha mais a dizer sobre esse tema, mas contento-me, por ora, com estas meditações. Lembro que a situação do filósofo é a da inquietude, do pasmo. O próprio Sócrates já nos ensinara sobre isso, ao reconhecer-se ignorante. A ignorância é o início de toda filosofia. E o pensamento sua matéria-prima e pilar. Podemos contar sempre com os grandes filósofos e aprender com eles, mas nunca abdicar de nosso pensamento, de nosso anseio por questionar e por pensar. E não nos preocupemos se, por descuido, escrevemos alguma tolice; muitos filósofos assim o fizeram, mas não abriram mão de pensar.
Às vezes, basta um pensamento oportuno para nos alegrar.





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